Dezembro de 2014 Orgulho e Preconceito
REDAÇÃO
Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Tomás Susin dos Santos tomas@taglivros.com.br
REVISÃO ORTOGRÁFICA
Antônio Augusto Portinho da Cunha Adriana Kirsch Trojahn
PROJETO GRÁFICO
Casa Elétrica casaeletrica@casaeletrica.com
ILUSTRAÇÃO DA CAPA Laura D. Miguel lauradep@gmail.com
IMPRESSÃO
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AO LEITOR Quem me acode à cabeça e ao coração neste fim de ano, entre alegria e dor? Que sonho, que mistério, que oração? Amor. Carlos Drummond de Andrade Poemas de Dezembro (1985)
Dois mil e quatorze foi nosso primeiro ano, e por ele passamos, muitas vezes, entre a alegria e a dor. Porém, cada obra selecionada, cada revista elaborada, cada caixinha embalada e cada kit enviado foram feitos, sempre, com amor. Amor pelos livros, pela literatura, pelos materiais que a vocês dedicamos – esse foi o sentimento que nos carregou ao longo do ano que passou, e esperamos que seja o sentimento que continuará nos guiando ao longo do ano que começará. Durante esses meses, nos perguntávamos: se tivéssemos que escolher, dentre os clássicos da literatura, uma obra para enviar aos associados, qual seria? Levamos esse questionamento, que inicialmente veio de nossos associados, a um dos mais respeitados filósofos da contemporaneidade, Peter Singer, que coroou com sua escolha a britânica Jane Austen e seu renomado Orgulho e Preconceito, alegando considerá-lo o melhor romance já escrito. Se é o melhor, não ousamos afirmar. O que afirmamos, entretanto, é que essa é uma obra merecedora de lugar cativo em todas as bibliotecas pessoais. Por isso, mesmo sabendo que uma parcela significativa dos associados já a conheça, decidimos transformar o mês de dezembro em uma oportunidade para que a lêssemos, investigando, explorando e mergulhando no universo construído pelas hábeis mãos de Austen. Equipe TAG
A INDICAÇÃO DO MÊS
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O indicante: Peter Singer O livro: Orgulho e Preconceito
ECOS DA LEITURA
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De Auden a Austen Homenagens a Jane Austen Longa Caminhada até a Liberdade A transfiguração da Biblioteca Pessoal
A INDICAÇÃO DE JANEIRO
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Patch Adams
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Indicação do Mês
A INDICAÇÃO DO MÊS
FOTO: Denise Applewhite - Princeton University
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O INDICANTE: PETER SINGER “Peter Singer é, quase certamente, o mais conhecido e mais lido de todos os filósofos contemporâneos.” -Helga Kuhse, filósofa
Se você está caminhando pela rua e deparase com uma criança sendo atropelada, você faz todo o possível para ajudá-la. Por que então você não tenta ajudar os milhões de crianças gravemente doentes na África? Para o polêmico filósofo australiano PETER SINGER, essas duas situações deveriam ser tratadas da mesma maneira. É claro que você deve socorrer uma pessoa atropelada, mas sua relação emocional com a situação não deveria ser o único motivo para você ter se solidarizado. O seu dever moral para com a criança africana é o mesmo que para com a que está gravemente ferida perto de você, mesmo que você não se sinta emocionalmente ligado à que está distante. Você poderia argumentar, então, que não possui nenhuma garantia de que o dinheiro doado para crianças africanas será bem utilizado, e que por esse motivo prefere ajudar quem está próximo de você. Singer possui uma resposta para isso também. Ele é membro da comunidade “Giving What We Can”, que busca encorajar as pessoas a se comprometerem com causas sociais que realmente possuam efetividade. Esta organização costuma listar as melhores instituições de caridade, habilitando os doadores a evitar que suas doações sejam desperdiçadas por empresas mal geridas. Singer, que doa 25% do seu salário para a UNICEF e Oxfam, rejeita a visão de que a doação seja possível apenas para pessoas abastadas, pois sustenta que cada indivíduo costuma ter gastos desnecessários e, com um pouco de planejamento, poderia direcionar esse excedente, mesmo que mínimo, para quem realmente precisa de auxílio. Filho de austríacos judeus que emigraram para
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Indicação do Mês
a Austrália, fugindo da Segunda Guerra Mundial, Peter Singer nasceu em Melbourne, e lá realizou seus estudos durante a infância e a juventude. Após ter concluído sua graduação em Direito, História e Filosofia, na Universidade de Melbourne, Singer recebeu uma bolsa da Universidade de Oxford, na Inglaterra, onde começou sua carreira como filósofo. Atualmente, leciona em Princeton.
O progresso moral de uma sociedade pode ser julgado pela maneira como ela trata os seus membros mais fracos. -Peter Singer Durante os anos em que esteve em Oxford, definiu como foco para seus estudos o tratamento injusto imposto aos animais e a fome presente no mundo. Seu livro Libertação Animal, publicado em 1975, tornou-o conhecido mundialmente, e é considerado até hoje uma referência no campo dos direitos dos animais. Filósofo utilitarista, Singer baseia seu principal argumento na defesa de que a teoria de “buscar o maior bem possível para o maior número” não deveria excluir os animais deste número. Singer argumenta que o motivo dessa exclusão reside no “especicismo” – termo que se popularizou a partir da publicação da obra –, ou seja, a preferência dada pelos humanos aos seres da mesma espécie, quando na verdade todos deveriam ser tratados de maneira igualitária.
A escravidão animal deveria ser enterrada, juntamente com a escravidão humana, no cemitério do passado. -Peter Singer Sua obra mais abrangente é Ética Prática, em que assume posições categóricas sobre temas controversos, que vão desde a eutanásia, o aborto e o infanticídio, até a pobreza mundial. Apesar de suas convicções polêmicas, Peter Singer é um dos filósofos mais respeitados da atualidade. Ao colocar-se em uma posição de questionamento constante, Singer mantém viva a chama iniciada por Sócrates dois mil e quatrocentos anos atrás, quando foi condenado à morte pela audácia com que questionava o inquestionável.
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Indicação de Janeiro
Jane Austen,
pintado em aquarela por sua irmã Cassandra
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O LIVRO: ORGULHO E PRECONCEITO Considerada a segunda obra mais amada de toda literatura inglesa1, Pride and Prejudice foi escrito por Jane Austen em 1813, recebendo aceitação imediata dos críticos e do público em geral, tendo vendido mais de vinte milhões de exemplares até os dias atuais. Peter Singer relatou à TAG que já havia indicado este livro para o jornal britânico The Guardian, em 2001, e que ainda o considera uma peça fundamental de qualquer biblioteca.
Se este não é o melhor romance já escrito, eu não sei qual é. Nada supera a sua impressionante observação dos costumes, personagens e paixões, relatados com o mais prazeroso e delicado senso de humor. -Peter Singer Nascida em 16 de dezembro de 1775 em Steventon, Inglaterra, Jane Austen era filha de um erudito reverendo, possuidor de vasta biblioteca. Incentivada por seu pai desde pequena a ler e escrever, publicou seu primeiro romance aos dezenove anos. Algumas obras redigidas pela autora ao longo de sua juventude, porém, foram descobertas apenas postumamente, e publicadas sob o título de Juvenilia. Seus principais livros, que lhe conferiram o prestígio de ser considerada uma das maiores escritoras de todos os tempos, são Razão e Sensibilidade, Orgulho e Preconceito e Emma. Uma das características mais marcantes de Jane Austen é o manejo de uma narrativa muito objetiva, abdicando de adjetivos e descrições detalhadas de personagens e paisagens. Não é de se surpreender que, apesar de seus temas gravitarem em torno do amor, flagremos escasso sentimentalismo em seu estilo, dada a opção por estruturar os romances em 1 Pesquisa realizada pela BBC em 2003
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rápidos, e frequentemente mordazes, diálogos entre os personagens. Em Orgulho e Preconceito, isso é absolutamente evidente, resultando em uma leitura fluente e agradável. Tendo como plano de fundo a aristocracia rural inglesa do final do século XVIII, esta obra-prima é marcada pela ironia de Austen perante a futilidade presente na época. A memorável abertura do livro já nos introduz a muito do que vamos encontrar no restante da narrativa: “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de boa fortuna, deve estar necessitado de uma esposa.”.
Jane Austen estuda minuciosamente a sociedade daquele tempo, a mediocridade dos seus tipos, o ridículo dos hábitos, a vaidade e a tolice de burgueses e nobres que o preconceito separava. -Lúcio Cardoso, romancista
A história nos é exposta, na maior parte do tempo, do ponto de vista de Elizabeth Bennet, pertencente a uma família burguesa que entra em convulsão com a chegada à sua cidade de Mr. Bingley e Mr. Darcy, representantes da nobreza rural da época. Semelhantemente a uma peça de teatro, a autora nos introduz às características particulares de cada personagem apenas no desenrolar da história – a partir das suas condutas pessoais ao reagirem às mais diversas situações, e não por uma descrição de um narrador onisciente. Para reforçar ainda mais a sátira, Jane Austen constrói alguns personagens com características extremadas, como Mrs. Bennet, mãe de Elizabeth, e Mr. Collins, seu primo, o que torna a narrativa bastante cômica em alguns momentos. Não obstante, a autora ainda cria algumas situações baseadas justamente nos pontos que estão sendo ironizados. Por exemplo, a primeira informação a ser descoberta sobre uma nova pessoa que se encontra na região é o seu rendimento anual, e a partir disso é que é decidido se esta é respeitável ou não, como podemos observar durante o baile que é
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organizado para receber o novo morador da região, Mr. Bingley.
Mr. Darcy atraiu desde logo a atenção da sala, pela sua estatura, elegância, traços regulares e atitude nobre, e também pela notícia que circulou, cinco minutos depois da sua entrada, de que possuía um rendimento de dez mil libras por ano. Os cavalheiros declararam que ele era uma bela figura de homem, as senhoras foram de opinião de que era muito mais elegante do que Mr. Bingley. -Trecho extraído do livro
Além dos jantares, chás e bailes, Austen intensifica a relação entre os personagens ao nos apresentar o que se passa nos espaços domésticos – desde a simples residência dos Bennet até a mansão dos Darcy. Dessa maneira, a autora nos prova que a integridade e os valores de cada ser humano não são manifestados apenas em situações onde eles estão à prova, mas também no que é chamado small talk, ou seja, “conversa fiada”. Elizabeth e Mr. Darcy, os personagens centrais deste romance, foram considerados pelo renomado crítico literário Otto Maria Carpeaux “entre as criaturas mais completas da literatura universal”, certamente devido aos seus memoráveis diálogos e acaloradas discussões, que nos proporcionam acompanhar a evolução do apreço que cada um nutre pelo outro ao longo da história.
Quanto melhor conheço o mundo, menos ele me satisfaz; e cada dia vejo confirmada a minha crença na incoerência de todos os caráteres humanos e na pouca confiança que se pode depositar nas aparências do mérito ou do bom senso. -Elizabeth Bennet, em trecho extraído do livro
Inicialmente, o livro seria publicado como “Primeiras Impressões”. Porém, a autora acabou modificando-o para evitar confusões – duas obras
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homônimas tinham sido publicadas enquanto Austen estava redigindo seu livro. Acredita-se que o título “Orgulho e Preconceito” tenha sido extraído de uma passagem de Cecília2, romance lançado em 1782 por Fanny Burney e reconhecidamente muito admirado por Austen. Assim como tudo que a autora produzia, o título é muito objetivo, e ilustra a origem da maior parte dos problemas enfrentados pelos personagens. As reações das pessoas são objeto de análise durante toda a narrativa, e o orgulho com que agem é altamente visível em seus diálogos. A genialidade da autora também é manifestada quando nos apercebemos, ao longo da leitura, que nos identificamos com a personagem principal de tal maneira que acabamos partilhando de seus preconceitos, mesmo quando alguns desses se revelam infundados com o desenrolar da trama. Jane Austen declarou, certa vez, que se dedicava à elaboração de suas obras como se estivesse trabalhando em uma peça de marfim, onde tudo deve ser tratado com o maior cuidado. Podemos sentir este cuidado em Orgulho e Preconceito, uma narrativa absolutamente verossímil, em que cada detalhe possui certa importância em momentos posteriores do enredo. Uma das razões pelas quais este livro atingiu sucesso tão amplo reside no fato de que, por mais que a história se passe no final do século XVIII, suas críticas e ironias são atemporais, e facilmente acabamos comparando-as com situações do nosso cotidiano – como disse Virginia Woolf, Jane Austen é “a escritora cujos livros são imortais”.
2 The Daily Telegraph (10/08/2008), “How Pride and Prejudice got its name.”
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Muito tímida, conta-se que em certa época Jane Austen escrevia seus enredos em pequenas folhas de papel, para que pudesse esconder caso aparecesse alguém interessado no que estava produzindo. Inúmeras adaptações de Orgulho e Preconceito para o cinema e teatro já foram feitas. A mais recente, em 2005, obteve indicações ao Oscar para Keira Knightley como melhor atriz. Em homenagem a Austen, a aclamada escritora britânica P. D. James lançou, em 2011, o livro intitulado “Morte em Pemberley”, com o objetivo de ser uma sequência de Orgulho e Preconceito, condimentada com o tom de mistério que lhe é característico. Conheça mais sobre a obra na página 19 da seção Ecos da Leitura. Para comemorar o bicentenário de Jane Austen, em 2013, foram elaborados alguns selos comemorativos, e com eles ilustramos essa página.
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Ecos da Leitura
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Ecos da Leitura
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De Auden a Austen é o primeiro eco do mês, expondo um poema composto por W. H. Auden, que enaltece as características literárias de Jane Austen. A homenagem do poeta não foi a única recebida pela autora: desde livros inspirados em sua obra até museus em sua cidade natal, o próximo eco traz algumas das diversas Homenagens a Jane Austen. A seguir, Longa Caminhada até a Liberdade, um texto que busca trazer para a realidade atual alguns dos dilemas enfrentados pelos personagens de Orgulho e Preconceito, a partir de cenas apresentadas no filme Histórias Cruzadas, do falecimento do ícone Nelson Mandela e da experiência narrada por um homem que largou tudo o que possuía em busca do sentimento de igualdade. O último eco é de Ray Bradbury, autor de Fahrenheit 451, com o seu artigo escrito para o jornal francês Le Monde, dissertando a respeito das diferentes recordações que cada leitor possui sobre um mesmo livro, e como seria alterada sua história se cada um fosse recontá-la a partir de sua memória. contato@taglivros.com.br
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DE AUDEN A AUSTEN O poeta britânico W. H. Auden lançou, em 1937, um poema intitulado A Letter to Lord Byron3 , em que se refere a Jane Austen com espanto e admiração:
“But tell Jane Austen, that is, if you dare, How much her novels are beloved down here. She wrote them for posterity, she said; ‘Twas rash, but by posterity she’s read. You could not shock her more than she shocks me, Beside her Joyce seems innocent as grass. It makes me most uncomfortable to see An English spinster of the middle class Describe the amorous effects of ‘brass’, Reveal so frankly and with such sobriety The economic basis of society.”
Mas conte a Jane Austen, quer dizer, se você ousar,/Quanto seus romances são amados aqui embaixo/Ela escreveu para posteridade, ela disse/Foi arriscado, mas pela posteridade ela é lida Você não poderia impressioná-la mais do que ela me impressiona/ Perto dela, Joyce parece inocente como a relva/Me deixa muito desconfortável ver/Uma solteirona inglesa de classe média/ Descrever os efeitos amorosos da ‘grana’,/Revelar tão francamente e com tanta sobriedade/A base econômica da sociedade (Tradução livre e em versos brancos)
3 Southam, B. C. (ed) (1995). Jane Austen: The Critical Heritage 1. New York: Routledge
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HOMENAGENS A JANE AUSTEN
Orgulho e Preconceito inspirou não apenas inúmeras gerações de leitores, mas também de escritores de diversos gêneros literários, desde histórias com personagens e desfechos muito similares, até adaptações com a inserção de zumbis no enredo original. Selecionamos duas obras que julgamos interessantes, como complemento à leitura do livro enviado neste mês. Museus: Existem dois museus em homenagem a Jane Austen, na Inglaterra. Um em Chawton, onde residiu a maior parte de sua vida, e outro em Bath, para onde se mudou posteriormente.
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Morte em Pemberley: P.D. James é um dos maiores nomes de romances de mistério e investigação. Aos 94 anos, não se sabe se a escritora já está aposentada, pois lançou mais de cinco livros após ter completado oitenta anos, quando se acreditava que iria pendurar a caneta. Seu último livro, lançado em 2011, é Morte em Pemberley, uma sequência de Orgulho e Preconceito. A história inicia-se seis anos após os eventos descritos na obra de Jane Austen. No prólogo, os personagens principais são apresentados novamente pela autora, que, ao final do primeiro capítulo, introduz um assassinato. O restante da narrativa gira em torno desse mistério. Quando finalizamos um livro que amamos, é inevitável sentirmos que precisamos saber mais sobre o que acontece com os personagens, que já nos são tão familiares quanto pessoas reais. Depois de publicar meu último romance, pareceu-me um tempo propício para direcionar minhas atenções a uma ideia, que há anos me perseguia, de combinar minhas duas grandes paixões: livros de mistério e romances de Jane Austen. – P. D. James
As Sombras de Longbourn: Jo Baker também sentiu que precisava saber mais sobre os personagens de Orgulho e Preconceito. Porém, não sobre os protagonistas, e sim sobre aquelas presenças pontuais e quase inumanas que os serviam à mesa ou entregavamlhes recados. Por trás de cada descrição da vida íntima das irmãs Bennet, havia certamente o trabalho de uma criada, e cada refeição servida implicava uma cozinheira, um mordomo para servi-la. Qual seria a história não contada desses personagens? As Sombras de Longbourn é o romance dessas figuras invisíveis. Excepcional! Não uma sequência, mas um olhar comovente sobre o mundo de Orgulho e Preconceito, só que do ponto de vista da área de serviço. – The New York Times
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LONGA CAMINHADA ATÉ A LIBERDADE Há um ano, morreu o ícone sul-africano Nelson Mandela, e seu falecimento trouxe novamente à tona diversas questões referentes à sua constante luta pela igualdade entre os cidadãos, além de relembrar o público da insólita situação em que se encontrava a África do Sul durante a época do Apartheid. O tratamento imposto ao longo de décadas a milhões de africanos negros foi relembrado com pavor e espanto pela população mundial, e milhares de pessoas foram prestar suas homenagens em frente à casa do eterno líder sul africano. Prisões e escolas especiais, proibição de trabalhar no serviço público, impedimento de possuir direito a voto ou a propriedade. Todas essas – e inúmeras outras – eram circunstâncias às quais se submetiam os negros na África do Sul, o que contribuía cada vez mais para segregar os cidadãos e estimular o ódio entre as raças. Mesmo que um indivíduo fosse contrário a esta absurda situação, o sistema lhe impunha que fosse conivente. Vigorava, por exemplo, uma severa punição para casamentos interraciais - ambos os cônjuges seriam presos. Infelizmente, essas terríveis formas de discriminação social não se restringiram apenas à África do Sul, apesar de em nenhum outro país o próprio governo ter adotado posições tão opressoras. Indicado ao Oscar, o filme Histórias Cruzadas, baseado no livro A Resposta, de Kathryn Stockett, reproduz de maneira chocante o modo como eram tratadas as empregadas domésticas negras pelos seus patrões nos anos sessenta, no sul dos Estados Unidos. – Os negros carregam doenças diferentes das nossas. É por isso que eu redigi a Iniciativa de Limpeza Sanitária do Lar. (Hilly Holbrook) – A o quê? (Sketeer) – Um projeto de lei de doença preventiva que exige que cada casa de brancos tenha um banheiro separado para os empregados. Foi aprovado pelo Conselho do Cidadão Branco. (Hilly Holbrook)
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Esses exemplos de segregação horrorizam – e até enojam – a maior parte da população mundial atualmente. Dificilmente, portanto, encontramos casos tão chocantes de discriminação no nosso dia a dia, e o fato de o país mais poderoso do mundo ter elegido um presidente negro evidencia que o fim desse tipo de injustiça aproxima-se. Assim, podemos nos orgulhar do papel exercido por pessoas como Mandela, Martin Luther King, Desmond Tutu e tantos outros. Todavia, um fato que as pessoas parecem ignorar é que Mandela não lutava exclusivamente contra a desigualdade entre negros e brancos. É evidente que o contexto de seu país, na época, obrigou-o a focar seus esforços contra a discriminação racial. Porém, ele buscava a igualdade entre todos os cidadãos, fossem eles de cores, profissões ou níveis sociais diferentes. O que lhe importava é que fossem tratados da mesma maneira.
Tenho acalentado o ideal de uma sociedade livre e democrática na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal que espero viver e atingir. Mas se for necessário, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer.4 -Nelson Mandela Jane Austen, no livro enviado este mês pela TAG, constrói uma sátira de outro tipo de preconceito – entre distintas classes sociais –, que é expresso nas mais banais circunstâncias, como em um baile ou em uma conversa em um ambiente doméstico. Tudo o que uma mulher burguesa ambicionava era casar-se com um homem nobre, apesar de saber que este dificilmente aceitaria assumir um compromisso com alguém “inferior”. Além disso, era esperado que as pessoas mais abastadas se dirigissem às outras como superiores, visto que possuíam tão alto cargo e riqueza. Um dos maiores legados de Austen foi revelar aos leitores que a integridade das pessoas pode
4 Trecho retirado do livro Longa Caminhada Até a Liberdade, Editora Nossa Cultura
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ser identificada pela maneira como essas se comportam em ocasiões informais, e não apenas nas situações em que uma demonstração de caráter se faz necessária. A pessoa que é legal com você, mas não é legal com o garçom, não é uma pessoa legal. É muito comum, atualmente, brasileiros morarem por determinado tempo em outro país e voltarem com percepções diferentes a respeito do valor de uma profissão. Pessoas que trabalharam na Holanda, Austrália, Suécia, e outros países do chamado “Primeiro Mundo”, em empregos que aqui não são muito valorizados, como faxineiro ou garçom, relatam, estupefatos, que não foram tratados com superioridade pelo povo local, mesmo que fossem apenas quem os estava servindo. Aparentemente, tal mentalidade não é encontrada no Brasil, um país que trata seus trabalhadores menos prestigiados como se exercessem “profissões invisíveis”. Eduardo Marinho, autor do livro Crônicas e Pontos de Vista, conta que, quando jovem, não conseguia enxergar sentido em sua vida abastada – olhava para um mundo de tamanha desigualdade e perguntava-se por que, entre tantos desafortunados, tinha privilégios. Buscando um sentido maior que o que encontrara em seu curso superior, largou a universidade e passou a viajar, carregando apenas uma mochila nas costas: “Assim eu me aproximava das pessoas mais pobres, porque tinha muita curiosidade de entender o ‘código’ delas. Eu queria sentir igualdade. Como quando ia aos clubes com os amigos, nos lugares bacanas, e eu os via tratar com arrogância quem lhes servia. Incomodava-me muito isso. Então, comecei a perceber que, de um lado, existe um sentimento implantado de superioridade. Do outro, um sentimento também implantado de inferioridade. E as pessoas têm muita dificuldade de sentir igualdade verdadeira. Eu tentava me aproximar dos garçons, dos cozinheiros – e todos me tratavam muito bem, mas para eles eu era apenas um ‘rico legal’. Não existia igualdade.”
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O fato de enxergarmos o valor do ser humano através do prestígio de sua profissão é apenas um exemplo que ilustra esse preconceito: julgamos a nós e aos outros por meio de valores socialmente compartilhados, sejam eles o status da profissão, a renda, o bairro onde moram, a casa ou carro que possuem, a cor da pele ou a crença religiosa. Nesses julgamentos, expressam-se os sentimentos de superioridade e inferioridade, e a diferença entre eles cria um terreno fértil para o preconceito. Esse, portanto, não se encontra em situações extremas como o Apartheid, e seu combate não se dá somente por meio de figuras da estatura de Mandela. Como Jane Austen demonstra em sua obra, o preconceito impregna-se nas situações corriqueiras – nas falas, nos gestos, nas interações sociais, nas relações humanas; no modo como conversamos com o garçom, como tratamos a empregada doméstica ou como olhamos para o colega de faculdade cotista.
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Trecho retirado do livro Longa Caminhada AtĂŠ a Liberdade, Editora Nossa Cultura
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A TRANSFIGURAÇÃO DA BIBLIOTECA PESSOAL Para finalizar a revista deste mês, trouxemos um texto de Ray Bradbury que faz com que nos questionemos: Como reescreveríamos nossos livros favoritos? Conheça o que o autor de Farenheit 451 imagina que aconteceria com as grandes obras caso fossem reescritas a partir das recordações de cada um.
Ray Bradbury
– Especial para o jornal Le Monde
H
á cinquenta anos, eu publicava na revista The Nation um artigo no qual explicava por que gostava tanto de escrever ficção científica. Algumas semanas mais tarde, chegou uma carta, assinada, com uma caligrafia aracniana, “B. Berenson, I Tatti, Settignano, Italia”. Podia ser Bernard Berenson, pensei, o grande historiador da arte do Renascimento? Impossível. A carta dizia: “Caro sr. Bradbury, É a primeira vez em 89 anos que pego a caneta para expressar minha admiração a um autor. O artigo em que descreve as razões que o levam a escrever seu gênero de ficção é tão original e tão diferente da habitual falta de graça da maquinaria literária que não pude deixar de escrever-lhe. Quando vier à Itália, venha me visitar.” Bernard Berenson. Foi a partir dessa carta que se formou uma amizade que me levou a dar a ele um exemplar de meu romance “Farenheit 451”, que acabava de ser publicado. Nesse romance, os Homens-Livros que vivem nas colinas memorizam todos os grandes livros, ocultando-os, por assim dizer, entre seus ouvidos. Berenson ficou tão encantado que um dia, em I Tatti, me sugeriu: “Por que não escrever uma continuação a ‘Farenheit 451’ na qual todos os grandes livros memorizados pelos homens das colinas seriam finalmente impressos tais como teriam sido retidos? Que aconteceria então? Não acha que todos seriam infielmente restituídos? Que nenhum
reapareceria em suas vestes de origem? Não seriam mais longos, mais curtos, mais toscos, mais prolixos, desfigurados ou embelezados? Em vez de anjos em seus nichos, não veríamos gárgulas ultrapassando o telhado?”. A sugestão de Berenson inflamou de tal forma minha imaginação que me pus a tomar notas, dizendo-me: “Oh meu Deus, quisera ser o gênio que conhecesse suficientemente algumas das maiores obrasprimas da humanidade para poder reescrevêlas, como se eu fosse meus Homens-Livros do futuro, tentando rememorar todos os detalhes dessa extraordinária literatura!”. Nunca fiz isso. Mas, relendo minhas anotações e tornando a pensar em Berenson cinquenta anos depois, pensei: por que não retomar sua idéia e encorajar meus leitores a colocá-la em prática? Que diria de escolher seu escritor favorito? Kipling, Dickens, Wilde, Shaw, Poe. Esses autores, registrados na memória e voltando à vida dentro de trinta anos, como suportariam, sem tê-la desejado, a mudança? Poderia a Casa de Usher, depois de sua queda, erguer-se novamente? Poderia Gatsby, morto a tiros de revólver, continuar nadando em sua piscina? Veríamos Cathy, em “O Morro dos Ventos Uivantes”, surgir da neve ao ouvir o grito de Heathcliff? Tomem “Guerra e Paz”. Com um bom século de ditaduras totalitárias atrás de nós, os conceitos de Tolstói, infielmente rememorados, não seriam politicamente reconfigurados, o que resolveria de modo diferente os diversos conflitos da sociedade russa?
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Memórias de uma feminista As graciosas jovens de Jane Austen, uma vez regurgitadas pela memória de uma feminista, não seriam substituídas, no tabuleiro social do século 19, por mulheres ambiciosas, conquistadoras e arrogantes? “As Vinhas da Ira” poderiam perfeitamente voltar, não sob a forma de uma calma constatação social, mas de uma revolta socialista organizada a bordo de um velho Ford T na Rota 66. Suponha que a tarefa de memorizar “A Morte em Veneza” caiba a um homossexual mais assumido; não é possível que ele imagine, trinta anos mais tarde, o belo Tadzio saindo do mar e se precipitando nos braços de Aschenbach, que lhe estenderia uma toalha para secá-lo em meio a gargalhadas e que essa alegria freudiana é que derrubaria o velho autor? Considere agora o caso de um machão disléxico que eliminasse uma em cada três palavras da paisagem parisiense de Marcel Proust, reatando com o passado de forma tão estúpida que o simplificaria como um quadro de Toulouse-Lautrec, apagando todos os devaneios do escritor. E “Moby Dick”? Quando se tratasse de rememorá-lo por inteiro, não haveria a tentação de lançar ao mar Fedallah, o pársi, esse enfadonho obstáculo? O que permitiria a Ahab, em seguida, ser jogado borda fora pela baleia branca. Ao chegar a esse ponto, poderia acontecer de evocar mais o filme que o livro, o capitão Ahab atado sobre a baleia branca e fazendo sinal, com a mão morta, à sua tripulação para segui-lo. Nesse caso, o livro seria esquecido e o filme relembrado. Que fantástico jogo literário!
Esfolados ou embelezados Faça a lista de seus dez romances preferidos e, sem esquecer os detalhes, reconstitua o esboço de sua intriga; a seguir, torne a abri-los para descobrir o quanto esfolaram, embelezaram, mutilaram esses livros admiráveis. Que passatempo para todos nós, nos dias vindouros! E, entre os volumes perdidos na floresta dos Homens-Livros, quais seriam os mais fáceis de recuperar? Não as grandes
obras-primas, elas são complexas demais. Mas James Bond, facilmente memorizável, poderia recobrar a liberdade, um pouco modificado, é verdade, mas não realmente afetado pela passagem do tempo. Os romances policiais em sua maior parte emergiriam intactos, assim como os grandes poemas. “Os Pomos de Ouro do Sol”, de Yeats, “A Praia de Dôver”, de Matthew Arnold, as quadras de Emily Dickinson ou os poemas da neve de Robert Frost. Eles atravessariam o tempo sem novidade, conservando-se, frescos e ágeis, na tradição oral dos contadores de outrora. O mesmo em relação aos livros infantis. Dificilmente “O Mágico de Oz” ou “Alice no País das Maravilhas” são desfigurados por uma memória enfraquecida. As grandes peças de teatro, “Hamlet”, “Rei Lear”, “Otelo” e “Ricardo 3º”, poderiam se arriscar a algumas deformações, mas a admirável língua continuaria a soar bem alto para além dos séculos. E o negro Jim, de Mark Twain, que desce o Mississippi na jangada em companhia de Huckleberry Finn, poderia perfeitamente conservar seu nome a despeito dos clamores dos críticos politicamente corretos que o interpelam das margens do rio. Que jogo apaixonante! Lamento não ter escrito sobre esse assunto há cinquenta anos, quando Berenson o sugeriu. Descubra sua felicidade, faça a lista de seus livros favoritos e veja se sua longa memória umbilical foi secionada ou se você ainda está maravilhosamente ligado às coisas que amava nas bibliotecas de muito tempo atrás. Ray Bradbury é escritor de ficção científica, autor de, entre outros, Farenheit 451 (Editora Globo). Artigo retirado da Folha de São Paulo, Caderno “Mais”, 29/02/2004 - Tradução de Paulo Neves
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A INDICAÇÃO De JANEIRO
Década de trinta do século XX, Sul dos Estados Unidos. Época e local errados para um rapaz negro alegar inocência frente à acusação de assassinato de um homem branco. Suas alegações não convencem, e a tensão aumenta quando se descobre que a família do homem assassinado busca vingança com as próprias mãos – na época, linchamento de negros não era um evento incomum. Como última esperança à prisão e à morte, o acusado conta com a ajuda de um garoto que, desconfiado da acusação, mergulha em uma investigação para descobrir a verdade do caso. O autor, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, transmite ao leitor uma imagem extremamente realista da cultura vivenciada pelo Sul dos Estados Unidos durante a Depressão, evidenciando a enorme segregação entre negros e brancos. Como defende Sir Salman Rushdie, aclamado escritor britânico, a ficção é o melhor meio de se conhecer determinada época e região, e o livro indicado por Patch Adams cumpre com esse papel. Detentor de uma biblioteca pessoal de mais de quarenta mil obras, chegar a apenas uma indicação para a TAG não foi fácil para Patch. Além do livro que será enviado, declarou-se apaixonado por poesia, e indicou alguns poemas – com eles, permearemos a revista do próximo mês.
Indicação de Janeiro 29
O INDICANTE: PATCH ADAMS
Esse livro ajudou-me a superar minhas crises, fez-me ser quem eu sou. Eternizado no filme que carregou seu nome, no qual foi representado brilhantemente por Robin Williams, Patch Adams é um médico diferente do que estamos acostumados a conhecer. Desde o primeiro contato com a medicina, revoltou-se com o sistema de saúde vigente: médicos elevados a um patamar sobre-humano, sem espaço para a humildade, e pacientes tratados como se fossem números. Patch buscava mais do que a cura da doença: ingressava no quarto dos pacientes com o objetivo de alegrá-los, contando piadas aos que estavam carrancudos, massageando os pés dos que aparentavam cansaço, fantasiado de Papai Noel quando visitava a ala infantil. Insatisfeito com os hospitais em que atendia, criou o Instituto Gesundheit! (saúde, em alemão), um local voltado para o paciente, e não para a doença, onde o sorriso, o amor, a preocupação e o carinho são os principais remédios. Informações completas a respeito do indicante do mês e do livro recomendado podem ser encontradas no www.taglivros.com.br ou então na revista do próximo mês.
-Friedrich Nietzsche-