Dez2017 "A Praça do Diamante"

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DEZEMBRO DE 2017    A Praça do Diamante


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Ao Leitor Chegamos ao fim de mais um ciclo na TAG. Este foi um ano de realizações memoráveis, como o envio de doze edições exclusivas, dentre as quais se destacam a obra escrita para os associados e duas traduções inéditas. Ano em que o compartilhamento de experiências proporcionadas pela literatura multiplicou-se em uma escala nunca imaginada por nós. Dois mil e dezessete permitiu-nos perceber que, sim, o livro ainda tem espaço no Brasil e, sim, seu potencial é muito maior do que aparenta. A você, só temos a agradecer pelo carinho que recebemos, assim como pelas críticas e sugestões que nos fazem crescer como indivíduos e como empresa. A obra que encerra o percurso literário deste ano chega por indicação de Carol Bensimon, jovem escritora que possui uma vasta bagagem

de cinco livros publicados, além de traduções, textos para periódicos e colunas em blogs. A Praça do Diamante encantou Bensimon há quase quinze anos e nunca saiu da sua lista de livros prediletos. Mercè Rodoreda, autora indicada, ganhou o mundo com uma obra autêntica e potente, mas que desfruta de pouco reconhecimento em terras brasileiras. Catalã de orgulho inabalável, optou por escrever na língua que aprendeu nas ruas de Barcelona, mesmo que isso lhe privasse da imediata e merecida fama internacional. Acabou conquistando a admiração de ninguém menos do que Gabriel García Márquez, que abre nossa edição com uma demonstração do valor dessa escritora de coração intrépido e apaixonado. Boa leitura!



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A curadora: Carol Bensimon Entrevista com Carol Bensimon O livro indicado: A Praça do Diamante

Literatura catalã Guerra Civil Espanhola – Franquismo Artistas que se manifestaram sobre a Guerra Civil Espanhola

Voa, Colometa

Luis Fernando Verissimo


FabrĂ­cio Sviroski


A curadora: Carol Bensimon

Tímida? Discreta? Carol Bensimon pode não parecer afeita à exposição excessiva, mas seus escritos caminham na direção contrária: estreou na literatura aos vinte e seis anos, surpreendendo pela maturidade de sua prosa. Hoje, nove anos depois do début com Pó de parede (2008), é nome de destaque no segmento literário brasileiro. Romancista, contista e tradutora, foi incluída, em 2012, no volume Os melhores jovens escritores brasileiros da revista inglesa Granta. Além de escrever e traduzir obras de ficção, contribuiu com crônicas para periódicos e, atualmente, é colunista dos blogs da TAG e da Companhia das Letras, espaços em que discorre sobre livros e literatura.

leitores por todo o Brasil. O reconhecimento nacional, entretanto, em nada mudou sua personalidade reservada, tampouco a vontade de continuar morando na cidade natal – ela brinca que ainda se sente “meio provinciana”. Entre publicações de livros, crônicas, colunas, traduções, roteiros de audiovisual e participações em eventos, Bensimon afirma que vive indiretamente da literatura. Sempre soube que ser uma escritora no Brasil não era uma tarefa simples, tanto que desconsiderou a ideia por um bom tempo e buscou outras opções profissionais, enquanto escrevia por prazer. Estudando Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, encontrou novo fôlego literário: “[No curso] tive contato com cinema, que é uma coisa que me interessa e me influencia. Talvez, se eu fizesse Letras, teria menos contato com a

Nascida há trinta e cinco anos em Porto Alegre, Bensimon já concorreu a prêmios como o São Paulo de Literatura e o Jabuti e conquistou

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literatura contemporânea, por mais paradoxal que isso pareça. Eu gosto de colocar questões do mundo contemporâneo nos meus textos, então acho que na Comunicação tive mais contato com o mundo real do que teria na Letras, até para criticar certas coisas”, relatou em uma entrevista para a revista Culturissima.

Sem abdicar de seus processos livres de escrita, Bensimon deu início à carreira de redatora publicitária assim que obteve a graduação. Abandonou a carreira, entretanto, quando ganhou uma bolsa de estudos no mestrado em Escrita Criativas da PUCRS. Foi no curso que, pela primeira vez, estudou teoria literária de forma mais aprofundada. Começou a escrever textos para antologias e periódicos como a Bravo!, Zero Hora e Ficções (7 letras) e, concomitante ao final do mestrado, lançou Pó de parede.

Seguindo a cartilha do Escritor Gaúcho Contemporâneo em Evidência, Bensimon participou da oficina literária de Luiz Antonio de Assis Brasil, por onde passaram nomes como Daniel Galera, Leticia Wierzchowski e Michel Laub. No ano de 2004, angariou seu primeiro contingente de leitores com o blog Kevin Arnold para dois, no qual explorou uma escrita mais intimista, relatando experiências e opinando sobre arte e cultura.

Um segundo momento decisivo na carreira de Bensimon aconteceu quando percebeu que seu doutorado em Literatura Comparada, iniciado em 2008 na França, não era mais estimulante do que a escrita de ficção: “Eu tinha que escrever uma tese, ia levar dois ou três anos fazendo isso, e de repente começou a me parecer absurdo gastar num trabalho teórico o tempo e a energia que eu podia colocar num romance”. Ao abrir mão do doutorado, Carol seguiu a carreira de escritora sem mais amarras e publicou o primeiro romance: Sinuca embaixo d'água (2009), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria autor estreante e do Prêmio Jabuti de 2010 na categoria romance. A experiência na França ainda geraria bons frutos, como as oportunidades de traduzir as adaptações para quadrinhos de O estrangeiro (1942), do escritor francês Albert Camus, e Na colônia penal (1919), de Franz Kafka.

Fabrício Sviroski

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Recentemente, Bensimon deixou de escrever para jornais. Publicar semanalmente e estar exposta ao escrutínio – muitas vezes feroz e descontextualizado – pouco combina com a escritora, que prefere reservar à ficção os temas que lhe fascinam. Não é que ela esteja arrependida: trinta e cinco das suas melhores crônicas, escritas sobretudo para o jornal Zero Hora e para o blog da editora Companhia das Letras, foram reunidas em Uma estranha na cidade (2016).

de ensino médio que viaja para a Califórnia com a intenção de mudar de vida e de se envolver com o plantio e comércio da maconha – ele fora demitido após ser flagrado pela polícia com alguns pés da planta destinados ao tratamento de sua mãe, paciente terminal de câncer. O principal cenário do romance é o pequeno condado de Mendocino, a três horas de São Francisco, onde Carol viveu por seis meses. Antes de se tornar escritora – antes mesmo de publicar seus primeiros textos na internet – Carol Bensimon era, claro, uma devoradora de livros. Durante esse período, cruzou, por acaso, com A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda. O romance catalão logo entrou para sua lista de favoritos, capaz de transformar sua percepção como leitora e escritora:

Em seu segundo romance, Todos nós adorávamos caubóis (2013), Bensimon escolheu uma corrente temática ligada à cultura dos Estados Unidos e a transferiu para cidades do extremo sul do Brasil, colocando duas garotas como protagonistas – ao estilo do road movie Thelma e Louise (1991) – e abordando a relação ambígua entre as duas. “É a primeira vez que eu trato de questões de gênero e de identidade sexual na minha literatura”, afirmou em entrevista à Carta Capital. Para escrever Caubóis, foram necessários três anos de dedicação, pesquisa e viagens pelo interior do Rio Grande do Sul, para que cenários e sensações fossem minuciosamente retratados no livro.

“O estilo de Rodoreda é muito cativante, e eu gosto da maneira como ela equilibra a tragédia com um pouco de humor desencantado. Acho que os associados da TAG vão sentir algo parecido com o que eu senti, porque Colometa [narradora-protagonista do livro] é uma personagem extremamente carismática desde a primeira página.”

A mesma estratégia de imersão foi utilizada para a escrita do romance mais recente de Bensimon, intitulado O clube dos jardineiros de fumaça (2017). A obra conta a história de um professor brasileiro

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Entrevista

com Carol Bensimon

FabrĂ­cio Sviroski

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TAG – Em um post no blog da editora Companhia das Letras, você diz acreditar que o ofício da escrita está muito mais perto do ilusionismo do que da mágica. Em contrapartida, qual seria a posição da leitura nesse caso?

Carol Bensimon – Na verdade, acho que o fato de eu ter cursado Comunicação Social foi importante para que eu começasse a ter uma postura crítica em relação à publicidade, ao consumo, às transformações da paisagem e da cidade. Esses temas entraram muito no Pó de parede, meu primeiro livro, e continuaram aparecendo aqui e ali. Olhando para trás, me parece que foi interessante também ter tido noções de fotografia, cinema, design, além de ter conhecido, nesse ambiente, muitas pessoas com pendores artísticos. Anos depois, já muito convicta de que eu queria escrever livros de ficção, cursei o mestrado em Escrita Criativa na PUCRS, o que certamente ajudou a desenvolver meu olhar em relação à literatura.

Carol Bensimon – O escritor pode ter extrema consciência do que está fazendo, pode criar cada frase como se construísse uma máquina – azeitada pelos seus sentimentos e emoções, claro –, mas a verdade é que ele nunca sabe como essa “máquina” vai chegar ao leitor. Cada leitor vai olhar por um ângulo, perceber certos detalhes e não outros, ser tocado por certas passagens e não por outras. A relação do personagem X com Y de repente lembra a sua relação com seu pai, uma praia inglesa lembra a praia do litoral gaúcho que você frequentava na infância... e tudo isso “entra” na experiência de leitura. Talvez a leitura, no fim das contas, seja a grande mágica, a grande coisa imprevisível.

TAG – “Quando quero criar uma cena, costumo pensar na trilha que estaria tocando caso a cena fosse a de um filme, e então saio para caminhar escutando essas músicas”, você afirmou a respeito de seu processo criativo. De que forma esse olhar cinematográfico se insere na escrita ficcional literária?

TAG – Em outras entrevistas, você comentou que o seu percurso acadêmico em Comunicação Social foi essencial para possibilitar um olhar crítico em relação à literatura brasileira contemporânea. Quais são as relações estabelecidas entre sua formação e a consolidação de sua carreira enquanto escritora?

Carol Bensimon – Publiquei meu primeiro livro há quase dez anos e, nesse percurso, dá para dizer que meu estilo foi se definindo. Agora já sei o que eu faço bem e o que eu não faço bem. Uma das coisas

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acho que dá para dizer que os dois livros tratam de tragédias, sem, no entanto, usarem o tom da tragédia. Os leitores vão perceber logo que há algo de cômico na maneira de Colometa narrar.

que me parece clara é que sou uma escritora de cenas. Gosto de me demorar nelas, descrever detalhes, imprimir um ritmo. E o cinema acaba sendo uma influência, porque o meu processo criativo é também muito visual, embora também haja nos meus romances muito pensamento de personagem e voltas temporais, o que evidentemente é mais “literário” do que “cinematográfico”.

TAG – Segundo a crítica literária, existe uma definição para os chamados romances de formação, do alemão, bildungsroman, em que a personagem principal passa por um processo de amadurecimento. Nesse sentido, você vê paralelos entre seu romance Todos nós adorávamos caubóis e A Praça do Diamante?

TAG – Em A Praça do Diamante, a imposição da Guerra Civil ao longo da história deixa a narradora-protagonista Colometa em um sentimento de luto constante. Você diria que essa noção existencialista pode se relacionar com o seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água, levando em consideração a morte da personagem Antônia e o luto de seus amigos a partir da tragédia?

Carol Bensimon – Sempre gostei muito de bildungsromans, e acredito que isso tem uma explicação simples: foi aos vinte e poucos anos que cheguei a livros que mexeram muito comigo – e que podem ser encaixados nessa categoria –, como Middlesex (Jeffrey Eugenides), Uma casa no fim do mundo (Michael Cunningham) e o próprio A Praça do Diamante; paralelamente, eu mesma estava numa fase de transformação, da adolescência para a idade adulta, mudando de carreira, querendo morar em outro país, etc.

Carol Bensimon – O luto da Colometa é uma manifestação pessoal de um luto nacional. Há esse pano de fundo que é a guerra. Em Sinuca embaixo d’água, o luto tem um raio de alcance muito menor. O que aconteceu, antes de a história começar, foi um acidente de carro. Antônia morre e as personagens tentam lidar com esse acontecimento. Um pequeno drama urbano? Claro que, no nível íntimo, isso pode ser devastador. Mas, fazendo uma aproximação:

Eu já tinha trinta e um anos quando publiquei Todos nós adorávamos caubóis, mas as personagens são um pouco mais novas, estudantes ainda, com dramas típicos dessa faixa etária. Acho que há

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muitas diferenças entre o meu romance e o de Rodoreda. A maior delas tem a ver com movimento. Todos nós adorávamos caubóis é um romance de estrada, que percorre pequenas localidades do Rio Grande do Sul. Há uma ideia de liberdade ali. Parece que todos os caminhos estão abertos para Cora e Julia. Em A Praça do Diamante, por outro lado, Colometa está aprisionada pela guerra e pela condição feminina.

parecido com o que eu senti, porque Colometa é uma personagem extremamente carismática desde a primeira página. Além disso, é fascinante a maneira como ela apresenta a Guerra Civil Espanhola. Colometa, é óbvio, não está na linha de frente, mas o combate vai penetrando e contaminando progressivamente o seu cotidiano de uma forma muito peculiar.

TAG – Além da importância que o livro tem para a literatura catalã, ele foi traduzido para quase quarenta idiomas. Contudo, no Brasil, assim como outros escritores catalães, Mercè Rodoreda é pouquíssimo conhecida. O que você espera de sua difusão para nossos associados? Pessoalmente, qual foi o impacto do livro para você e para sua escrita? Carol Bensimon – Cheguei a esse romance em 2003, por acaso, conferindo lançamentos em uma livraria. Comprei e li. Instantaneamente, ele virou para mim uma referência. Prosa tocante, densa, bem escrita. Dá para dizer que foi um dos pilares fundadores na minha formação de escritora (e de leitora, por que não?). O estilo de Rodoreda é muito cativante, e eu gosto da maneira como ela equilibra a tragédia com um pouco de humor desencantado. Acho que os associados da TAG vão sentir algo Fabrício Sviroski

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“O modo de ler um conto de fadas é se atirar para dentro dele.” – W.H. Auden

“O modo de ler um conto de fadas é se atirar para dentro dele.” – W.H. Auden

NOVEMBRO DE  A praça do diam

NOVEMBRO DE 2017    A praça do diamante

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O livro indicado: A Praça do Diamante

Membro da geração literária formada no exílio republicano espanhol e considerada a mais influente escritora de língua catalã, Mercè Rodoreda i Gurguí é dona de destacada obra do período Pós-Guerra Civil, com traduções para cerca de quarenta idiomas. Sua produção abarca diversos gêneros, como o conto, o teatro e a poesia, porém seus maiores êxitos literários – que conquistaram o coração de Gabriel García Márquez – são os romances.

gem rápida pelo ensino formal – que frequentou somente dos sete aos dez anos de idade – e pela forte influência de seu avô materno, Pere Gurguí, cujo fascínio pelas flores e amor pela cultura e língua catalãs deixaram marcas profundas na obra da autora. “Lembro-me da sensação de estar em casa quando, debruçada sobre a varanda, via cair sobre a relva e as hortênsias as flores azuis dos jacarandás. Nunca saberei como explicar; nunca tive essa enorme sensação de me sentir em casa como quando morava na casa do meu avô.”

Seja espacial, política ou afetivamente, todo o universo de Mercè Rodoreda e de sua obra remete à Catalunha. A escritora nasceu no ano de 1908 em uma pequena vila do bairro de Sant Gervasi de Cassoles, em Barcelona. Foi a única filha de Andreu Rodoreda, contador de uma loja de armas, e Montserrat Gurguí, dona de casa – ambos entusiastas da literatura e do teatro.

– Mercè Rodoreda em Imatges D'infantesa

No mesmo ano em que perdeu seu querido avô, Mercè recebeu a notícia da chegada de seu tio Joan, que

A primeira infância de Mercè foi pontuada pela leitura de grandes autores catalães, por uma passa-

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se instalaria na casa dos Rodoreda i Gurguí. Catorze anos mais velho, Joan havia trocado correspondências com a sobrinha nos anos anteriores e tornara-se uma paixão idealizada e ingênua. No dia do seu vigésimo aniversário, ela se casou com o tio, em uma cerimônia que necessitou de autorização do papa dado o grau de consanguinidade dos dois – e que não tardaria a mostrar-se uma escolha equivocada. Frustrada com a dependência tanto econômica como social decorrentes do casamento, Rodoreda encontrou refúgio na literatura, escrevendo e publicando gradualmente, até visualizar a escrita como um ofício promissor. Houve momentos em que se trancou diariamente num pombal azul, localizado na casa onde morou quando criança, para escrever e sentir-se livre do matrimônio. Esse período não seria apenas relevante por permitir as primeiras incursões literárias e jornalísticas da escritora – em sua grande maioria textos imaturos, segundo ela –, mas também por afetar a escolha de elementos estéticos de sua obra. A Guerra Civil Espanhola, eclodida em 1936, tirou de Mercè seu pai, Andreu, vítima de um bombardeio. Durante esse sombrio período da história espanhola, publicou Aloma (1938), romance semiautobiográfico cuja protagonista, ainda adolescente, envolve-se com um homem mais velho. É possível

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perceber, na obra, elementos que mais tarde se tornariam marca da prosa de Mercè, como a simbologia poética. Em sua prosa, ela se vale de elementos como flores, espelhos, pombos e a representação das fases da vida de uma mulher, suas experiências e seu universo.

Com o início da Segunda Guerra Mundial, o grupo de escritores do castelo dispersou-se, alguns partindo para a América e outros ficando na Europa. Seguiu-se um período no qual o casal, inicialmente refugiado em Paris, teve de fugir dos nazistas, até Obiols ser detido e obrigado a trabalhos forçados por meses. Uma paralisia no braço direito impediu Mercè de escrever romances de 1947 a 1953, momento em que se dedicou a textos de menor extensão, encontrando-se na poesia. Durante esse período, começou a pintar, interessada por Pablo Picasso, Paul Klee e Joan Miró.

A versão de Aloma que se conhece hoje, publicada em 1969, foi completamente reescrita e indica uma Rodoreda transformada pela Guerra e pelo que, trinta anos antes, havia sido uma de suas experiências mais intensas: o exílio. Poucos meses antes da derrota dos republicanos e da instauração do regime fascista de Francisco Franco, Mercè Rodoreda partiu de sua terra natal, deixando seu filho – Jordi, o único que teve – com Montserrat. Por conselho da mãe, que temia por Mercè em razão de suas publicações em catalão e em revistas de esquerda, foi embora sem saber que ficaria tantos anos longe de casa.

A partir de 1954, estabeleceu-se em Genebra, Suíça, onde trabalhou com tradução, escreveu contos e, em 1959, começou a dar vida ao romance mais prestigiado de sua carreira. Pensada inicialmente com o título de Colometa, a obra foi publicada pela primeira vez em 1962 como A Praça do Diamante [La Plaça del Diamant]. A edição enviada pela TAG é traduzida diretamente do catalão.

O primeiro destino foi o castelo de Roissy-en-Brie, onde encontrou outros escritores exilados. Na França, conheceu e tornou-se amante de Armand Obiols, pseudônimo de Joan Prat i Esteve, escritor catalão de vasto conhecimento literário que teve importante participação nas produções subsequentes de Rodoreda. A complicada relação entre ela e Obiols, que era casado, duraria até a morte deste.

“Este é um dos livros de alcance universal que o amor escreveu.” – Michel Cournot, escritor francês

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Ambientada no bairro barcelonês de Gràcia no final da década de 1930, período em que aconteceu a Guerra Civil, a obra é narrada por Natália, jovem que perdeu a mãe muito cedo e que vive com o pai. Balconista de uma loja de doces, leva uma vida apática e sem grandes pretensões. É noiva de Pere, mas, durante um baile na Praça do Diamante, conhece o impetuoso Quimet. O rapaz logo se interessa por Natália e lhe dá o apelido de Colometa, que significa "pombinha" em catalão. Pouco tempo depois desse encontro, ela decide largar o noivo para ficar com Quimet.

Descrever A Praça do Diamante como uma obra que trata apenas de sofrimento, no entanto, não lhe faz jus. Isso seria ignorar a delicadeza que provém do deslumbramento quase infantil da narradora e o grande tema da obra, no entendimento da própria autora: “Quero afirmar em alto e bom som que A Praça do Diamante é, acima de tudo, um romance de amor, por mais que não tenha um grão de sentimentalismo”.

“Seus livros permitem vislumbrar uma sensibilidade quase excessiva e um amor pela sua gente e pela vida de sua vizinhança que talvez seja o que dá um alcance universal a seus romances.”

Vêm a casa nova, a vida nova, a gravidez, a criação de pombos. Ao mesmo tempo em que Quimet submete Natália a um controle aprisionador, a Guerra Civil começa a invadir a cidade, e a narradora terá de aprender, aos poucos, a lidar com a solidão e a escassez financeira.

– Gabriel García Márquez

Rodoreda abordou novamente o universo e as fases da vida das mulheres no romance El carrer de les Camèlies (1966). Um ano mais tarde, publicou Jardí vora la mar e, no mesmo ano, a coletânea de contos La meva Cristina e altres contes. Estas duas últimas obras chamam a atenção pelo teor melancólico e desencantado que, somados à perda do companheiro Armand Obiols e ao descobrimento de uma amante do escritor, em 1971, levaram Rodoreda a um estado de tristeza e solidão que culminou na publica-

A obra possui uma linguagem coloquial e incomum para a literatura catalã da época, e mistura descrição histórica e social com misticismo. Como pontuou a curadora Carol Bensimon, Colometa é apresentada como uma personagem cativante desde a primeira página; pelo fraseado leve, envolvente e aparentemente ingênuo de sua narradora protagonista, somos conduzidos, simultaneamente, ao âmago do horror da guerra e às entranhas psicológicas de uma mulher.

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“Ao que parece, poucas pessoas sabem fora da Catalunha quem foi essa mulher invisível que escrevia num catalão esplêndido uns romances lindos e consistentes como não se encontram muitos nas letras atuais. Um deles – A Praça do Diamante – é, na minha opinião, o mais belo já publicado na Espanha depois da Guerra Civil.”

ção de Mirall trencat (1974), um de seus romances mais prestigiados, que trata do desmembramento de um universo familiar. Em 1980, pouco depois de seu retorno à Catalunha, recebeu o Prêmio de Honra das Letras Catalãs. Mercè Rodoreda ainda teve a oportunidade de testemunhar a filmagem de dois de seus romances: Aloma tornou-se uma série de televisão em 1978 e A Praça do Diamante ganhou uma adaptação para o cinema, em 1982. No dia 13 de abril de 1983, Mercè Rodoreda i Gurguí faleceu, vítima de um câncer de fígado. O velório aconteceu no departamento de Cultura da Catalunha e, levando em conta a sua vontade, o corpo foi sepultado no cemitério de Romanyà de la Selva, quando muitos colegas de profissão e outras personalidades da época se fizeram presentes. Cerca de um mês depois, Gabriel García Márquez mostrava-se consternado com a morte da colega em um texto no jornal espanhol El País:

Mercè Rodoreda na Plaça del Diamant, no bairro de Gràcia, Barcelona. EFE

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ECOS da leitura



P

ara falar em literatura catalã, é preciso compreender o debate político que envolve a língua. Com o término da Guerra Civil, em 1939, a língua catalã foi motivo de perseguição, sendo proibida sua utilização em livros, jornais e até mesmo no ambiente familiar. Na mesma época, escritores exilados da Catalunha, como Mercè Rodoreda, produziram obras em catalão em protesto à situação. No entanto, a partir de 1978, com a nova Constituição, a pluralidade linguística da Espanha foi reconhecida e o território da Catalunha admitiu o catalão como língua oficial. Apesar de ser considerado minoritário, o catalão é idioma oficial do Estado soberano de Andorra e é o sétimo da União Europeia, reunindo cerca de dez milhões de falantes bilíngues distribuídos na Espanha, Itália e França. Destacamos a seguir alguns dos principais nomes da literatura escrita em catalão.

Caterina Albert i Paradís

Nasceu em 1869 no município de La Escala, pertencente à província espanhola de Girona. A vida literária da escritora começou aos vinte e nove anos, quando foi excluída da premiação de um concurso de escrita, pois apenas homens possuíam o direito de escrever. Foi então que ela passou a assinar com o pseudônimo Victor Català. Seu livro de maior prestígio, Solidão (1905), reflete sobre a posição da mulher na sociedade da época e é considerado o precursor da literatura moderna catalã. 20


Joaquim Monzó i Gómez

Carme Riera Guilera

Mais conhecido como Quim Monzó, nasceu em 1952 em Barcelona. Autor de novelas e romances, Quim também traduziu escritores anglófonos, como J.D. Salinger e Ernest Hemingway. Na sua escrita, mantém um estilo irônico e pop que o distingue entre as vozes catalãs contemporâneas. Durante a Feira do Livro de Frankfurt de 2007, ano em que a cultura catalã foi homenageada, Monzó foi convidado a proclamar o discurso inaugural do evento. No Brasil, publicou Gasolina (1983) e, em Portugal, O porquê de todas as coisas (1991).

Nasceu em 1948 em Palma, principal cidade da ilha de Maiorca, na Espanha. Carme é Doutora em Filologia Hispânica e professora catedrática da Universidade Autônoma de Barcelona. Extensa, sua obra é composta por romances e uma antologia da poesia catalã feminina. A autora ganhou os principais prêmios literários catalães e espanhóis: Prêmio Nacional de Literatura da Catalunha (2001), pelo livro Através do céu e além (2000), e Prêmio Nacional de Letras Espanholas (2015), pelo conjunto de sua obra.

O

utros autores catalães têm se destacado no cenário literário contemporâneo, porém por sua produção em espanhol. Entre eles, estão: Carlos Ruiz Zafón, autor do best-seller A sombra do vento (2001); Eduardo Mendoza, vencedor do Prêmio Cervantes em 2016 pela sua obra completa; Manuel Vázquez Montalbán, com seu emblemático detetive Pepe Carvalho; e, por fim, Enrique Vila-Matas, que escreveu Paris nunca acaba (2003), baseando-se na sua experiência de exílio em um apartamento alugado da escritora francesa Marguerite Duras.

Albert Sánchez Piñol Nasceu em Barcelona em 1965. No Brasil, publicou Victus – a queda de Barcelona (2012) e Pele fria (2002), título que foi traduzido para mais de trinta línguas e adaptado para o cinema em 2017. Muito premiado em território espanhol, Pele fria teve sua narrativa comparada à dos escritores Joseph Conrad e H.P. Lovecraft. 21


Guerra Civil Espanhola Franquismo

Por Dante Gallian, Doutor com Pós-Doutorado em História Social, docente na Universidade Federal de São Paulo e coordenador do Laboratório de Leitura da Casa Arca.

Para além do fascínio brilhante e cristalino, o diamante remete à imagem da visão prismática, que, fragmentando a luz, revela matizes e facetas inusitadas de uma realidade que, de outra forma, poderia nos parecer rotineira, monótona. É assim que a narrativa de Mercé Rodoreda, através da sua protagonista Natália, La Colometa, nos apresenta o cenário de um dos períodos mais conturbados e complexos da história da Espanha e do próprio século XX.

derno, as elites espanholas, em sua obsessão tradicionalista, acabaram precipitando sua própria derrocada, de maneira que a substituição do regime monárquico pelo republicano se deu de forma conturbada, caracterizada pela radicalização política e ideológica. Ao mesmo tempo, grupos políticos que se foram gestando ao longo de todo o século XIX, desde o liberalismo clássico até o socialismo marxista, passaram a desempenhar um papel crescente e decisivo neste novo período da história espanhola, fomentando um clima revolucionário que iria, em poucos anos, mergulhar o país numa guerra civil que foi uma das mais cruéis de que se tem notícia.

O marco histórico de A Praça do Diamante (1971) remete ao período da Segunda República Espanhola, que começou em abril de 1931, quando se esgotam as últimas tentativas de manter a monarquia, em agonia desde o fim do século XIX.

Em fevereiro de 1936, realizaram-se as terceiras eleições gerais da Segunda República, que culminaram com a vitória da Frente Popular, aliança de partidos de centro-esquerda que colocaram em prática um programa revolucionário, caracterizado pela separação entre Igreja e Estado, a secularização do ensino e a reforma agrária. A reação das forças tradicionalistas não tardou em se deflagrar: organizados em torno a seus principais generais,

Após o período napoleônico (18001815), a sociedade espanhola se viu tensionada entre a ânsia por mudanças de cunho iluminista e liberal e a força de resistência das estruturas tradicionalistas, concretizadas pelo Estado Absolutista e pela mentalidade católica. Incapaz de absorver e ressignificar as transformações trazidas pelas revoluções políticas, econômicas e sociais do mundo mo22


os militares planejaram um golpe de estado que derrubaria o governo constitucional e instauraria um regime de exceção que não apenas frearia, mas reverteria o processo revolucionário. Assim, em 17 de julho de 1936, teve início o alçamento militar que acabaria sendo chefiado pelo general galego Francisco Franco e que alcançou uma vitória apenas parcial. Em muitas cidades importantes, incluindo Madri e Barcelona, os golpistas foram rechaçados e, pouco mais de três dias, o país encontrava-se dividido em duas zonas: a “republicana”, leal ao governo constituído; e a “nacional”, dominada pelos militares golpistas. Sem poder contar com o apoio das forças armadas, cujo contingente em sua quase totalidade estava alinhado ao movimento “nacional”, os republicanos passaram a se defender através de milícias paramilitares reforçadas por voluntários estrangeiros que identificavam no conflito espanhol uma espécie de símbolo de resistência libertária na luta contra o fascismo internacional. E, de fato, inserida no contexto Pré-Segunda Guerra Mundial, a Guerra Civil Espanhola passou a ser encarada como um conflito emblemático, característico da polarização ideológica e política que marcava não só a Europa, mas boa parte do mundo em vias de globalização. Hitler e Mussolini posicionaram-se de forma clara e efetiva em prol do movimento golpista, transformando os campos e cidades espanholas em teatro de operações de testes milita23


Por uma grande e livre Espanha (poster Nacionalista, 1937)

Sem disciplina não há vitória (poster do Partido Socialista, 1936)

res, alguns com resultados trágicos memoráveis, como o bombardeamento da cidade basca de Guernica. Os governos democráticos da França, Inglaterra e Estados Unidos, temendo a deflagração de um conflito mundial, firmaram um pacto de não intervenção que praticamente isolou a cambaleante República Espanhola, que passou a contar apenas com o apoio indireto e supostamente secreto da União Soviética. Se, por um lado, tal auxílio permitiu a organização e abastecimento de um exército regular em substituição às milícias de feição anárquica, por outro, determinou uma concentração de poder nas mãos do Partido Comunista Espanhol, de viés stalinista, em detrimento dos outros grupos políticos que compunham a Frente Popular, como os socialistas moderados, os republicanos democráticos, os trotskistas e até mesmo os anarquistas. O resultado desta sovietização do poder republicano a partir de 1937 acabou por culminar

numa verdadeira guerra civil dentro da Guerra Civil, caracterizada pelo expurgo e assassinato de milhares de milicianos, particularmente na cidade de Barcelona. Assim, a República Espanhola foi, paulatinamente, perdendo terreno para as forças nacionalistas do Generalíssimo Francisco Franco e, pouco mais de três anos após o início do conflito, em abril de 1939, sucumbiu. O fim da Guerra Civil, entretanto, deu início a uma fase não menos dramática da história da Espanha. O período do pós-guerra, que coincide em grande parte com a Segunda Guerra Mundial, caracterizou-se por um ambiente de terror, perseguição, fome e exílio. Ambiente também dominado pelo ódio e ressentimento ultraconservador que despencaria com particular violência sobre as mulheres como Natália, que um dia ousaram fazer a experiência da liberdade e da autodeterminação. 24


Os últimos meses foram de tensão sem precedentes nas relações conturbadas entre o Estado espanhol e a região da Catalunha. Você já leu que o governo da Espanha, no passado, chegou a proibir a publicação de veículos de imprensa e de literatura no idioma catalão, cerceando mesmo a liberdade dos nascidos na região de falar a língua local. No início de outubro de 2017, um referendo levou 2,26 milhões de pessoas às urnas para votar sobre a permanência ou não da Catalunha como parte da Espanha. Até o fechamento desta edição, uma apuração preliminar por parte das autoridades catalãs indicava que 90% dos votantes haviam optado por separar-se do país. O plebiscito foi alvo de oposição veemente do governo espanhol, cuja polícia invadiu seções eleitorais e agiu com violência contra os votantes, deixando ao menos 844 civis e 33 policiais feridos.

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Artistas que se manifestaram sobre a

Guerra Civil Espanhola

Segundo Harold Bloom, renomado crítico literário americano, “BARCELONA, EM PARTICULAR, É UMA CIDADE COMO NOVA YORK, ROMA E PARIS, SOBRETUDO PELO FATO DE QUE É UMA CIDADE DA IMAGINAÇÃO”. Durante a Guerra Civil Espanhola, tal alcunha foi confirmada pelo engajamento da classe artística: diversas manifestações colocaram em evidência suas posições políticas e sociais.

mento na cidade de Guernica. A obra foi encomendada pelo governo republicano espanhol para um grande mural que representaria a Espanha na Exposição Universal de Paris no mesmo ano. De acordo com o artista, “A pintura não é destinada a decorar apartamentos. É uma arma ofensiva e defensiva contra o inimigo.” O CEIFEIRO2 foi um mural criado por Joan Miró também para a Exposição Universal de Paris em 1937. Infelizmente, após a Exposição, O ceifeiro desapareceu. Encomendadas para o pavilhão

GUERNICA1 foi um quadro pintado a óleo por Pablo Picasso em 1937, idealizado a partir do bombardea-

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espanhol do evento, o principal objetivo das produções artísticas era o de servir como propaganda para a causa republicana. Ainda no ano de 1937, o artista criou cartazes como Ajude a Espanha, que situavam sua posição político-artística e evidenciavam o horror do confronto. POR QUEM OS SINOS DOBRAM3 foi publicado em 1940 pelo escritor americano Ernest Hemingway, que se inspirou na sua experiência como jornalista e combatente voluntário durante a Guerra Civil Espanhola. Curiosamente, o título repousava na cabeceira tanto de Fidel Castro quanto na do ex-presidente americano Barack Obama. A narrativa conta a história de um jovem professor americano que ingressa na guerrilha republicana durante a guerra como perito em explosivos. Hemingway faz na obra uma crítica às tropas de ambos os lados, nacionalistas e republicanos, pela violência desumana engendrada no conflito. PREMONIÇÃO DA GUERRA CIVIL4 (1936) traduz as inquietudes de Salvador Dalí após sua fuga da Espanha para Paris seis meses antes de eclodir a Guerra Civil. Partindo da estética surrealista, o pintor exprime a angústia latente que a iminência da guerra provocava, utilizando-se de elementos disformes e brutais. O quadro sugere duas Espanhas, ilustradas pelos dois blocos corporais que se confrontam, isto é, duas Espanhas que se devoram.

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VOA, Por CAROL BENSIMON Abrir um romance, ler suas primeiras linhas e já sentir-se levado pela história e pela maneira como ela está sendo contada: esse é um dos itens incontestáveis da minha lista particular de Coisas Mais Prazerosas da Existência. Quando acontece por acaso, com uma obra sobre a qual sei previamente nada ou quase nada, tanto melhor. Foi assim com A Praça do Diamante. Abri na primeira página, de pé na livraria. Tinha vinte e um anos e uma vontade palpitante de escrever meus próprios livros. Andava bem atenta à forma dos romances – a maneira de narrar, a cadência da prosa –, e não mais somente às histórias contadas. Tinha deixado de ser tão ingênua e começava a enxergar a ligação íntima entre essas duas coisas. Uma dependente da outra, uma se confundindo com a outra.

tes do sorteio da prenda, iam sortear cafeteiras; que elas as tinha visto; lindas, brancas, com uma laranja pintada, partida ao meio, os caroços à mostra. Eu não tinha vontade de ir dançar nem de sair (...).” Minha em-

patia com a personagem-narradora foi quase instantânea. Acredito que as primeiras páginas de um livro são uma espécie de carta de intenções, a antessala do universo onde em seguida nós, leitores, vamos nos locomover. E o que vejo – até hoje – naquela antessala de Rodoreda é mais ou menos o seguinte: uma protagonista que sente certo desconforto em estar no mundo, mas que, ao mesmo tempo, deslumbra-se com os pequenos detalhes da vida; um panorama enviesado da cidade de Barcelona antes, durante e depois da Guerra Civil Espanhola; uma prosa rápida, dançante, com um verniz de ingenuidade, e que acaba sendo uma maneira muito engenhosa de chegar a camadas mais profundas de significação.

Fui surpreendida por aquele início. “A Julieta veio até a confeitaria

expressamente para me dizer que, an-

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A dança na Praça do Diamante com Quimet, o casamento, a guerra, a vida depois da guerra. As cenas do romance protagonizado por Natália – a Colometa – se desenrolam em um ritmo veloz, mas muito atento aos detalhes. E, se a personagem-narradora, poderiam dizer alguns, não é a pessoa mais perspicaz do universo, eu diria que é justamente esse seu olhar infantil sobre as coisas e pessoas o que a torna fascinante. Ou, posto de outra maneira: Colometa pode ser ingênua, mas Rodoreda certamente não o é. A prova disso é a forte carga simbólica que ela coloca em certos objetos do romance: o quadro das lagostas, o funil, a boneca que com frequência Colometa observa na vitrine e, claro, seu pombal e suas pombas.

O início do conflito – sempre a distância – é descrito então com um certo romantismo. Há um velho que diz que gostaria de estar na guerra, se divertindo. Em outro momento, a própria Colometa pensa que os rapazes mudam na guerra, se tornam homens de verdade. A realidade brutal, claro, vai bater à porta, e haverá mortes, fome e sonhos rompidos mais adiante. Mas acredito que é interessante perceber que, enquanto os homens “se divertem” e lutam pelos seus ideais em um conflito sangrento, Colometa, em casa, lida com o problema das pombas. Parece ser essa a guerra que lhe cabe. Não por acaso, o seu “direito de matar” também é outro, bem diferente do masculino. Mas não vou dizer mais sobre isso para não estragar a leitura de ninguém.

O encadeamento das ações também constrói essas camadas de sentido. Quando a guerra chega, ela é sutil, plantada aqui e ali no texto. A primeira menção a ela acontece em meio a um cotidiano banal e já deixa claro que Colometa estará do lado de fora do conflito. Ela não vai lutar, obviamente (é mulher), mas tampouco entenderá muito bem o que está se passando: “E tudo seguia assim, com pequenas preocupações, até que veio a república e o Quimet ficou todo entusiasmado, e andava pelas ruas gritando e agitando uma bandeira que nunca consegui descobrir de onde surgira”.

Em um prólogo escrito para a edição catalã de 1982, Mercè Rodoreda declara que A Praça do Diamante conta uma história de amor, por mais que não tenha um grão de sentimentalismo. Pareceme uma boa definição. Colometa jamais entra em fantasias envolvendo príncipes encantados. É esquiva porque a vida está sempre lhe passando a perna. Tenta, mais do que tudo, sobreviver. E, por “sobreviver”, entende-se não só a luta diária por um prato de comida, mas também a capacidade ímpar de perceber a beleza nas pequenas coisas da vida. Acompanhe os textos em

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Espaço do Leitor Desde que a funcionalidade “encontros” no aplicativo da TAG foi criada, as reuniões entre os associados multiplicaram-se por todo o Brasil. Taggers de diversas regiões do país estão se juntando para discutir sobre as obras enviadas, expandir suas experiências e, é claro, fazer novas amizades! Como incentivo à realização de mais encontros, estamos enviando caderninhos personalizados para os anfitriões dos eventos distribuírem aos participantes. Neles, é possível anotar as datas dos próximos eventos, além de pontos importantes das discussões. Para quem ainda não teve a oportunidade de participar, confira alguns registros das reuniões literárias.

Encontro de São Paulo

Encontro do Rio de Janeiro

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Encontro de Belém do Pará

Campos dos Goytacazes

Encontro de Belo Horizonte

Encontro de Ribeirão Preto

Ficou com vontade de participar? Para ficar por dentro dos encontros que vão acontecer na sua cidade, baixe o aplicativo da TAG Livros na App Store ou na Play Store. Ao abri-lo, selecione o segundo ícone no rodapé da tela, conforme sinalizado nas imagens abaixo. Selecione seu estado Crie um novo evento

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A indicação de

O livro de janeiro de 2018 representa a volta à TAG de um autor que dispensa apresentações: atendendo a pedidos, reeditamos nossa parceria, exatamente dois anos depois, com Luis Fernando Verissimo. Com mais de cinco milhões de livros vendidos e um Prêmio Jabuti na estante, Verissimo, que fez sua estreia no clube em janeiro de 2016, também é humorista, cartunista, tradutor, roteirista de televisão e de teatro e até saxofonista. Entre os mais de 60 livros que publicou, destacam-se O analista de Bagé e As mentiras que os homens contam. O romance indicado por Verissimo conta a história de um capitão inglês que, em tempos conflituosos, encontra refúgio em um palácio que frequentou na juventude. Tomado pela nostalgia, o narrador se entrega a lembranças de décadas passadas e da extravagante família com quem conviveu naquele local. O autor do livro retrata com uma prosa envolvente a decadência da aristocracia britânica do período entreguerras.

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“O autor do livro era uma figura contraditória. Um carolão convertido ao catolicismo que, ao mesmo tempo, escrevia livros de sátira política e social. Parte da atração que tenho por ele vem justamente disso. A melhor prosa do inglês que eu já li foi a dele, que é um dos grandes estilistas da língua inglesa.” - Luis Fernando Verissimo


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“A arte existe para que a verdade não nos destrua.” – Friedrich Nietzsche


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