"Indígenas de férias" TAG Curadoria Abril/2022

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INDÍGENAS DE FÉRIAS

ABR 2022


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AVISO DE GATILHO O livro deste mês contém cenas com ideações suicidas. Se você estiver precisando de ajuda, entre em contato com o CVV (Centro de Valorização da Vida) pelo 188 ou acessando www.cvv.org.br.

ortanto, estamos em Praga”, nos diz repetidamente, quase como em um mantra, o narrador protagonista do livro deste mês, Blackbird Mavrias. De origem Cherokee e Blackfoot, ele e sua esposa, Mimi Bull Shield, partem em uma viagem para a capital da República Tcheca em busca de informações sobre o paradeiro de um parente que, ao sair do Canadá, havia levado consigo um importante objeto familiar. É a partir desse argumento que se desenrola a história de Indígenas de férias, de Thomas King, autor celebrado por nossa curadora desta edição, a também canadense Margaret Atwood. Temos de admitir: estamos muito entusiasmados por contar com uma indicação dessa autora tão especial. E o melhor de tudo é saber que o escritor que ela nos apresenta agora é, também ele, excepcional. “Conheço King há milhares de anos — ou pelo menos desde os anos 1990, quando ele foi um dos primeiros a defender e, de fato, produzir a primeira onda de escritos indígenas norte-americanos”, conta Atwood em entrevista exclusiva concedida à TAG. Com humor e irreverência, King aborda temas caros às suas origens Cherokee e grega. Da violência oficial aos estereótipos associados aos povos originários, da fragilidade emocional à percepção identitária, são muitas as camadas desse romance. Nas páginas a seguir, buscamos abarcar a variedade de temas suscitados por sua leitura. Entre entrevistas, contextualizações e análises críticas, aproveite para se aprofundar no universo de King e de seus cativantes personagens. Boa leitura!


ABRIL 2022 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200

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QUEM FAZ

RAFAELA PECHANSKY

JÚLIA CORRÊA

LIZIANE KUGLAND

ANTÔNIO AUGUSTO

Publisher

Editora

Revisora

Revisor

PAULA HENTGES

LAÍS FONSECA

LUANA PILLMANN

Designer

Designer

Estagiária de Design

Impressão Gráfica Ipsis

Capa Luisa Zardo

Revisão sensível desta edição Julie Dorrico

Preciso de ajuda, TAG! Olá, eu sou a Sofia, assistente virtual da TAG. Converse comigo pelo WhatsApp para rastrear a sua caixinha, confirmar pagamentos e muito mais! +55 (51) 99196-8623


Por qu e ler o liv ro

O livro indicad o

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posfácio

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prefác

conteú dos guia de

Experiê do mês ncia

Para ir além

Entrevista Thomas King

Crítica

Contex tualizaç ão

Entrev ist Margar a et Atwo od


JORNADA DE LEITURA

4 EXPERIÊNCIA DO MÊS

Marque a cada parte concluída

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riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima de Indígenas de férias colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!

Inicie o livro e leia até a página 54 Depois de lermos sobre algumas “aventuras” de Mimi e Blackbird em Praga, já começamos a entender o motivo do passeio pela Europa. Leia até a página 107 Acabamos de saber como o casal de protagonistas se conheceu e os motivos que os levaram a se identificar um com o outro. O que você achou do encontro? Comente lá no app! Leia até a página 134 Os relatos da viagem do casal à pequena vila de Kymi, na Grécia, revelam mais de suas origens familiares. Um interessante desvio no caminho do roteiro em busca do passado de Tio Leroy, não concorda? Leia até a página 262 A personalidade ácida e irônica de Blackbird é um dos destaques do livro. Embora já acostumada, Mimi demonstra aqui a necessidade de questioná-lo. O que você tem achado dos “demônios” do personagem? Compartilhe suas impressões no app! Leia até a página 318 Um item entregue pelo misterioso Oz parece ter muito a revelar a Blackbird e a Mimi. Um desfecho e tanto, não é mesmo?

Indígenas de férias pode ter terminado, mas a experiência não! Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.


EXPERIÊNCIA DO MÊS

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A cidade de Praga, destino do casal protagonista da obra de King, é a grande inspiração do projeto gráfico deste mês, assinado pela designer Luisa Zardo. Ela conta que propôs um teaser que conectasse os diversos pontos da narrativa. Assim, a composição da capa busca guiar o olhar dos leitores desde o trem, que contém a ideia de viagem e deslocamento, passando pelos personagens, simbolizados pelos elementos indígenas, até a própria cidade europeia para a qual convergem as histórias e memórias do romance.

Para o mês de abril, elaboramos um mimo para aqueles associados que gostam de decorar a casa com artigos literários. A placa de MDF que acompanha o kit é colorida e tem o tamanho ideal para caber na sua estante ou até para ser dada de presente para alguém especial. Os itens foram desenvolvidos pelo time da TAG e homenageiam grandes nomes da literatura mundial. Que tal postar no app a foto do seu cantinho com a plaquinha, com a hashtag #bibliotecatag?

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INDÍGENAS DE FÉRIAS

“Cada página do romance oferece ao leitor a mistura que o autor faz de humor com a consciência das camadas emocionais — positivas e negativas — que existem por trás do riso.” Quill&Quire

“Indígenas de férias é uma história espirituosa e engraçada que pondera a importância da história desde as menores conexões pessoais até a política mais ampla.” Vancouver Sun

“Desde a primeira página, a voz sardônica e muito engraçada de King nos leva a lugares aos quais nunca esperávamos ir… A história europeia e indígena colidem e não há ninguém melhor para examinar as consequências.” Toronto Star

POR QUE LER O LIVRO Laureado com a Ordem do Canadá e vencedor de prêmios como o RBC Taylor Prize, o canadense Thomas King é autor de livros de ficção e não ficção em que aborda questões relativas aos povos nativos. Em Indígenas de férias, lança mão do humor e da ironia para trazer à tona reflexões profundas, envolvendo tanto a identidade dos personagens quanto a saúde mental de um deles. Tudo isso em uma curiosa viagem para Praga, na República Tcheca. Elogiado por nomes como Margaret Atwood e David A. Robertson, o romance foi premiado com a Stephen Leacock Memorial Medal for Humour.



8 O LIVRO INDICADO

Uma viagem narrativa com Thomas King RUBELISE DA CUNHA*

Em seu mais recente romance, o autor recupera a contação de histórias como uma forma de reconexão com a ancestralidade indígena

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É doutora em Teoria da Literatura (PUCRS) e professora associada de Literaturas de Língua Inglesa na FURG, onde coordena o Núcleo de Estudos Canadenses.

uando li pela primeira vez um conto de Thomas King, fui surpreendida por seus personagens indígenas e por narrativas repletas de humor que resgatavam a história colonial do Canadá e das Américas, as quais também me faziam pensar sobre o que aconteceu em nosso território com a invasão portuguesa. Encontrei personagens míticos como a Coiote fêmea, uma trickster que teima em celebrar os 500 anos da chegada de Colombo nas Américas, enquanto o narrador tenta dissuadi-la de seu equívoco contando uma história que difere da narrativa oficial. Também encontrei figuras emblemáticas como a mãe do narrador do conto “Borders”, que não consegue atravessar a fronteira do Canadá aos Estados Unidos para visitar sua filha porque insiste em responder que sua cidadania é Blackfoot, sua nação indígena, e não canadense ou americana. Esses dois contos e as outras obras do autor chegaram até mim em sua língua original, o inglês canadense. Felizmente, em 2022, os personagens desse premiado escritor de origens Cherokee e grega chegaram ao Brasil falando nosso idioma. Não poderia ser melhor ter como primeira obra de Thomas King traduzida no Brasil seu mais recente romance, Indígenas de férias, publicado em 2020, no qual os personagens indígenas Blackbird Mavrias e Mimi Bull Shield estão em viagem à República Tcheca no intuito de encontrar pistas do paradeiro de Tio Leroy.


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Nascido nos Estados Unidos com a ancestralidade indígena Cherokee de seu pai, exatamente como acontece no romance com o personagem Blackbird, Thomas King também foi criado pela mãe de origem grega, já que seu pai foi embora quando o autor ainda era criança. Foi em 1980 que o autor se mudou para o Canadá para lecionar na Universidade de Lethbridge, na província de Alberta. Hoje cidadão canadense, reside na cidade de Guelph, em Ontário. A partir de sua experiência na província de Alberta, região habitada pelos Blackfoot, King passou a incorporar as vivências desse povo indígena em seus textos literários. Por isso, e também por ter crescido num ambiente habitado por mulheres de sua ancestralidade grega que eram contadoras de histórias, o que ressalta em sua obra literária é a forma como constrói personagens indígenas contemporâneas, resgatando as tradições das performances orais de contação de histórias, ao mesmo tempo em que subverte estereótipos

O autor do mês, Thomas King. Trina Koster


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relacionados aos indígenas. O próprio título do romance — em tradução literal, "índios em férias" — demonstra isso, pois além de ironicamente utilizar o termo “índio”, o qual foi imposto aos povos originários, também apresenta um casal em uma viagem de férias tipicamente ocidental. O casal em férias contraria o forte imaginário que ainda corrobora a ideia de autenticidade explorada no século XIX, a qual coloca o indígena na categoria de “índio morto”, pois o reconhece apenas como habitante da mata com hábitos do passado e nega sua existência no mundo contemporâneo urbano ao considerá-lo “menos indígena” por incorporar hábitos ocidentais. A subversão de estereótipos no romance também vem acompanhada do humor indígena característico de seus textos literários, ferramenta que Thomas King considera poderosa para abordar os dilemas das personagens indígenas e para a revisão da história de violência colonial do Canadá. Ao ser entrevistado no documentário Redskins, Tricksters and Puppy Stew (2000), dirigido por Drew Hayden Taylor, o autor reconhece que o humor de seus textos literários é sua forma de ativismo, já que o humor consegue derrubar barreiras e entrar não somente pela porta da frente da casa das pessoas, mas também na intimidade da cozinha. Indígenas de férias nos apresenta um casal contemporâneo de meia-idade e seus dilemas, mas é através deles que tomamos conhecimento de suas origens indígenas e de questões enfrentadas pelos povos originários do Canadá. Uma dessas questões foi abertamente discutida mundialmente e aqui no Brasil em 2021: os casos de violência e abuso das crianças que foram levadas para as residential schools, internatos comandados por instituições religiosas, nos quais mais de 4000 crianças indígenas não sobreviveram e foram enterradas como indigentes. O choque da imagem de cruzes encontradas e divulgadas nos jornais e mídias sociais fez com que o Canadá tivesse de revisitar seu antigo fantasma. Também é mencionado no romance o “Sixties Scoop”, episódio histórico em que inúmeras crianças foram


"[...] o humor de seus textos literários é sua forma de ativismo, já que o humor consegue derrubar barreiras e entrar não somente pela porta da frente da casa das pessoas, mas também na intimidade da cozinha."

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retiradas de suas famílias indígenas para serem adotadas por famílias brancas. A reivindicação dos indígenas que tiveram suas crianças retiradas forçosamente fez com que esse episódio catastrófico fosse conhecido como “Lost Generation” ou “Stolen Generation”, referência às crianças “perdidas” ou “roubadas” de suas famílias. O romance faz referência a esse triste capítulo da história do Canadá através do dilema da personagem Tolmar, entrevistada por Blackbird para uma reportagem jornalística. Mesmo sendo Blackbird narrador e protagonista, são as personagens femininas de Thomas King que representam elos de reconexão com as origens e as tradições indígenas. Ao falar de seu romance no Festival Internacional de Escritores de Ottawa em 2020, o autor compara Mimi à mãe de seu conto “Borders”, pois ambas possuem uma personalidade forte e defendem suas raízes ancestrais Blackfoot. Outra personagem de destaque é a mãe de Mimi, Bernie Bull Shield, que apesar de aparecer na narrativa apenas através das conversas e memórias do casal, torna-se central ao contar as histórias de Tio Leroy que farão Mimi convencer Blackbird a viajarem pelo mundo para encontrar pistas de seu paradeiro e do famigerado medicine bundle, uma espécie de saco com alguns itens pessoais que conectam a pessoa a sua ancestralidade, utilizado em rituais indígenas. Como em outras obras literárias, Thomas King recupera, em Indígenas de férias, a contação de histórias como uma forma de reconexão com a ancestralidade indígena. O medicine bundle que povoa as histórias de Bernie cumpre sua missão ao conduzir Blackbird e Mimi na viagem ao exterior que oportuniza um reencontro consigo mesmos e com suas raízes ancestrais. Como um mediador entre duas línguas, uma espécie de trickster da escrita, o tradutor Davi Boaventura nos conduz nessa viagem junto às personagens indígenas com o mesmo humor cultural que Thomas King nos conduz na língua inglesa, o qual derruba barreiras, subverte estereótipos e revisa a história oficial, contribuindo com a força da palavra narrada para a mudança de mundo que o escritor tanto almeja.


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Histórias não contadas e feridas abertas EDUARDO PALMA*

1,6 milhão de canadenses são indígenas, mas integração e reconciliação ainda são desafios no país

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m dos maiores países do mundo. Paisagens exuberantes, metrópoles modernas, um destino turístico cobiçado e um dos níveis de desenvolvimento humano mais elevados do planeta. São essas algumas das ideias que vêm à mente quando pensamos no Canadá. Mas, nos últimos anos, uma história pouco contada vem ganhando manchetes internacionais: a de como o país lidou com os povos nativos. O Canadá tem hoje 1,6 milhão de indígenas, que representam 5% da população, mas as cicatrizes do passado colonial têm reaberto feridas de uma reconciliação ainda em curso.

OS GRUPOS INDÍGENAS

Já escreveu sobre política brasileira, relações internacionais e comportamento. Sempre com um livro na mão, não dispensa uma leitura com ideias que transcendem seu tempo, de temas complexos a amenidades.

O maior grupo indígena canadense é o dos First Nations (em português, Primeiras Nações) — são 977 mil pessoas, divididas em 634 povos com cerca de 50 idiomas. Os povos de Blackbird (Cherokee) e Mimi (Blackfoot), personagens principais de Indígenas de férias, pertencem aos First Nations. Um em cada dois First Nations vive hoje nas províncias de Ontário e Colúmbia Britânica. Há ainda os Inuítes, que vivem no extremo norte, em regiões árticas. São chamados de “esquimós”, mas essa palavra não é bem-vista. Existem 65 mil inuítes. O outro grupo de aborígenes canadenses é o dos Métis, formado por etnias locais com descendentes de europeus, com cerca de 500 mil representantes. Em sua maioria, vivem em Ontário, Manitoba, Alberta, Colúmbia Britânica e nos Territórios do Noroeste.


CONTEXTUALIZAÇÃO

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OS BLACKFOOT A personagem Mimi Bull Shield pertence aos Blackfoot, um dos grupos dos First Nations. Hoje, há 22,4 mil Blackfoot espalhados entre as províncias canadenses de Alberta e Saskatchewan, e no norte de Montana, nos Estados Unidos. Uma de suas atividades mais tradicionais era a caça de bisões. Eram conhecidos por suas moradias “portáteis”, chamadas de tipis. Esse grupo resistiu à invasão dos europeus por muitos anos. Mas políticas de assimilação cultural e o sistema das escolas residenciais (leia mais abaixo) diluíram algumas de suas práticas.

OS CHEROKEE

O estado de Oklahoma usa a criação da artista Louise Fluke (abaixo) como sua bandeira oficial desde 1925, exceto pela adição da palavra "Oklahoma" em 1941. Seu design contempla 60 povos indígenas norte-americanos através de seus vários elementos, incluindo um escudo de guerra adornado com sete penas de águia. Oklahoma Historical Society

Assim como no Canadá, há First Nations nos EUA. Eles compõem cinco grandes grupos: Cherokee, Choctaw, Creek, Chickasaw e Seminole. No total, há 2,9 milhões de indígenas nos EUA, espalhados por 567 povos reconhecidos. Blackbird Mavrias tem origem Cherokee. Os Cherokee são o grupo indígena mais populoso nos EUA, com cerca de 310 mil integrantes, localizados majoritariamente na região de Oklahoma — de onde ouvimos histórias da infância e adolescência do nosso personagem. Também há cerca de 11,6 mil Cherokee no Canadá.

FERIDAS O tratamento dado aos indígenas é uma das pautas das conversas do casal Blackbird e Mimi, quando lembram dos relatos sobre as escolas residenciais. Esses locais eram internatos para onde crianças eram levadas para aprender a “cultura canadense”. Estimativas indicam que cerca de 150 mil foram enviadas para essas escolas, algumas das quais geridas com apoio


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da Igreja Católica. Houve mais de 100 escolas residenciais. A última fechou em 1996. Nos últimos anos, centenas de relatos de violência, alimentação inadequada, traumas, abusos sexuais e psicológicos nesses ambientes foram divulgados. Uma dica para quem quer conhecer mais sobre essa história é a série Anne with an E — a personagem Ka’kwet passa por uma dessas escolas.

“GENOCÍDIO CULTURAL” O Canadá instaurou uma Comissão da Verdade e Reconciliação, que atuou de 2007 a 2015 e ouviu mais de 6.500 pessoas. “Essas medidas faziam parte de uma política para eliminar os povos aborígenes e assimilá-los”, registra o relatório final da Comissão. “O governo canadense seguiu essa política de genocídio cultural porque desejava se desfazer de suas obrigações legais e financeiras para com o povo aborígene e obter controle sobre suas terras e recursos.” A Comissão recomendou 94 ações de reparação, tais como mudanças nos currículos para promover uma visão menos eurocêntrica e um programa nacional de pesquisa para promover a reconciliação no país de 38 milhões de habitantes. “Milhares de crianças morreram e desapareceram. Muitos outros sobreviventes carregam terríveis cicatrizes físicas, mentais e espirituais da experiência”, afirma Daniel Justice, professor de Estudos Críticos Indígenas da Universidade da Colúmbia Britânica e cidadão de origem Cherokee. Para o pesquisador, os impactos não podem ser subestimados, mas a resistência indígena também não. “Embora a violência do colonialismo tenha sido profunda, não foi total — os povos indígenas ainda estão aqui e trabalhando duro para superar os séculos de violência profunda infligida pelo Canadá”, defende ele em entrevista à TAG. Por conta das desigualdades ainda existentes no acesso a educação, renda e oportunidades, o governo fornece auxílio financeiro para os que vivem em reservas e apoio para demandas como alimentação, moradia, saúde e outros programas sociais.


ENTREVISTA

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"King usa o humor para fins sérios e subversivos RAFAELA PECHANSKY*

Curadora deste mês, Margaret Atwood conta como a pandemia impactou o seu processo criativo e explica por que indicou Indígenas de férias para o nosso clube

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Ama livros desde pequena. Foi uma das primeiras associadas da TAG, em 2014, e trabalha no clube desde 2018. Atua como publisher, publicando os livros em parceria com editoras brasileiras e na liderança de decisões editoriais dos clubes.

scritora premiada e aclamada por leitores de todo o mundo, Margaret Atwood é autora, entre outros livros, de O conto da aia, de 1985, cuja popularidade foi alavancada pela adaptação televisiva de 2017, com a atriz Elisabeth Moss. Sua obra mais recente é Os testamentos, de 2019, que dá continuidade àquele romance distópico. Convidada a ser nossa curadora, Atwood, que é ativista das causas femininas e ambientais, não indicou nenhuma distopia, como alguns poderiam imaginar. No caso, a obra que sugeriu ao clube reflete o seu apoio à divulgação da produção de autores nativos. Recentemente, por exemplo, o jornal The Guardian noticiou que, graças ao incentivo da autora, uma importante obra com registros orais quase extintos do povo indígena Haida ganharia edição na Inglaterra. Indígenas de férias, no entanto, traz o adicional de ter sido escrita por um amigo seu de longa data. “Eu revisei duas de suas brilhantes primeiras histórias em 1990 e, desde então, o tenho acompanhado — ele e seu trabalho”, relata a seguir. Na entrevista, Atwood, que completou 82 anos em novembro passado, conta como a pandemia afetou a sua rotina, avalia as qualidades da produção literária de King e aborda a questão da busca por nossas identidades. Leia a conversa completa nas próximas páginas.


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A curadora do mês, Margaret Atwood, e seu companheiro, Graeme Gibson, nos anos 1980 e 2017. margaretatwood.ca Leonardo Cendamo

Antes de mais nada, como você está se sentindo? Como a pandemia lhe afetou? Eu estou bem, dentro do que a situação permite, o que inclui minha idade, meu vício em trabalho e a morte — logo antes da pandemia — do meu companheiro, Graeme Gibson. Eu bebo muito café. Eu como muito pouco, às vezes eu simplesmente esqueço. Mas sobre a sua pergunta: agora estamos vivendo — esperamos — o fim da pandemia. No começo da pandemia — de março de 2020 até, digamos, janeiro ou fevereiro de 2021 —, nós não entendíamos completamente o que estava acontecendo. Os primeiros lockdowns foram assustadores; algumas cidades pareciam vazias. Todos os eventos foram cancelados ou transferidos para formatos online, e tivemos que nos esforçar para descobrir como fazer isso. Houve muitos pedidos de ajuda — ainda há, mas os primeiros tinham um ar de grande desespero. Foi quando eu e minha irmã encenamos A máscara da morte rubra, de Edgar Allan Poe, para o programa Front Row da BBC, usando objetos domésticos. Depois, chegamos ao meio da pandemia — surgiram as vacinas —, com aberturas, fechamentos, criação de protocolos, relutância em segui-los, e assim por diante. Todos de olho nos gráficos. E ainda mais eventos online, mas com menos pessoas aparecendo de roupas íntimas ao fundo. Agora, no fim da pandemia — em países com altas taxas de vacinação —, as coisas parecem estar se “normalizando”. Isso pode ser enganoso. Quanto a como a pandemia me afetou, parece ter significado ainda mais trabalho. A esta altura, todos nós já estamos com fadiga virtual. Onde estou? Em que ano estamos? Será que dormi por 100 anos?


ENTREVISTA

Tradução ANA BEATRIZ FIORI

Registro de Atwood em Berlim, no ano de 1984, escrevendo O conto da aia. Isolde Ohlbaum

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Indígenas de férias é um livro incrível, com personagens profundos e cativantes. Você lembra o que sentiu quando leu esse livro pela primeira vez? Pode nos dizer por que o indicou? Eu conheço Thomas King há milhares de anos — ou pelo menos desde os anos 1990, quando ele foi um dos primeiros a defender e, de fato, produzir a primeira onda de escritos indígenas norte-americanos. Eu revisei duas de suas brilhantes primeiras histórias em 1990 e, desde então, o tenho acompanhado — ele e seu trabalho. King escreveu um livro fundamental sobre territórios indígenas e outros direitos [dos povos nativos], The Inconvenient Indian; uma série de livros de investigação; e uma série de rádio, The Dead Dog Café. Também é um fotógrafo talentoso e tirou um dos últimos retratos de Graeme, que está na minha cozinha. Como diria meu pai, “um menino e tanto”. Indígenas de férias parece aquelas primeiras histórias que revisei — é engraçado, mas o humor é usado para fins sérios e subversivos. De certa forma, é uma longa anedota, uma missão que não leva a um Cálice Sagrado — e não é assim mesmo, como sugere a história, a maioria das missões? É verdade que a viagem é melhor do que a chegada? Nem sempre: Blackbird odeia viajar. Nas histórias de King, sempre há curvas, mas o que está do outro lado nunca é o que se espera.


18 ENTREVISTA

Blackbird, o narrador, procura por sua herança, e esse é um dos principais temas da narrativa: a busca pela identidade e como ela está ligada aos nossos ancestrais. Você já passou por algo semelhante? Ah, constantemente. Tenho parentes da Nova Escócia. Sua história remonta ao final do século XVIII e, antes disso, à Nova Inglaterra no século XVII. Essas linhagens familiares incluem várias pessoas que foram expulsas de outros lugares por não concordarem com seus governantes, ou que partiram como refugiados econômicos: puritanos, huguenotes franceses, galeses pobres, escoceses pós-Clearances. Naturalmente, eu tinha algumas tias interessadas nessas histórias. Tenho todas as suas anotações. Há muitos agricultores, alguns pescadores, alguns médicos e também alguns piratas. Eu posso ser ou não parente da “Half-Hanged Mary”, uma mulher enforcada como bruxa, sem ser morta, na Nova Inglaterra no século XVII. Um dos sobrenomes da minha família é Moreau — huguenote francês — e significa “mouro”. Quando me inscrevi na 23andMe [empresa de testes genéticos], como esperado, apareceu linhagem do Oriente Médio. Como foi essa história? Nunca saberemos! Somos como nossos ancestrais? Em parte: se não fosse por eles, não estaríamos aqui. Nesse sentido, devemos ser gratos a eles. Mas quem sabe o que eles realmente faziam, e por quê? Seus atos heroicos, seus crimes? De modo geral, sabemos pouco. Mas, se queremos reconhecimento pelas coisas boas, precisamos reconhecer também as coisas ruins. Foto: John Reeves



Ilustração do mês Igor Frederico é ilustrador e quadrinista nascido em Planaltina (DF). Já foi professor de filosofia e coautor da página de tirinhas Memórias de um Outro. É coautor do quadrinho Dente de leite, vencedor do 1º Prêmio Geek, da Amazon Brasil. Sua arte é muito inspirada na cultura pop. @igorfredericoart A convite da TAG, Igor ilustrou a seguinte passagem do livro do mês: "PORTANTO, ESTAMOS EM PRAGA, e, depois do nosso jantar no restaurante do cavalo com alças, andamos pela Ponte Carlos e paramos bem no meio da estrutura para contemplar o rio e as luzes da cidade. Mimi se aconchega mais perto de mim. Não sei dizer se esse gesto carinhoso é melhor em Praga do que é em Guelph, mas não perco muito tempo pensando no assunto."


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POSFÁCIO Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página.

A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.


22 PARA IR ALÉM

Os demônios de Bird BRUNA MENEGUETTI*

King parte de eventos traumáticos para compor sua ficção e discutir a repercussão que tanta violência e preconceito causam na mente dos povos originários

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Jornalista, escritora e dramaturga. Autora do livro O último tiro da Guanabara, vencedor do Prêmio Bunkyo de Literatura de 2021.

leitor que viaja com Blackbird Mavrias e Mimi Bull Shield no livro Indígenas de férias, de Thomas King, deve ter paciência para aguentar os demônios que acompanham Bird, mas também estar atento às experiências que trespassam os protagonistas em Praga, na República Tcheca. Cada novo detalhe obtido sobre o passado ou o presente faz com que diversas questões indígenas apareçam. Alguns exemplos são relatos de preconceito e descaso contra povos originários que os personagens da obra já vivenciaram ou do qual ficaram sabendo, como quando o tio de Mimi, conhecido como Tio Leroy, teve de conviver com um “fiscal” e obter um “passe” para sair de sua reserva. O personagem então foi expulso do local e passou a viver na Europa como refugiado. Há ainda os episódios que Bird cobriu enquanto era fotojornalista e especialista em questões indígenas, como quando registrou ocupações em reservas e parques do Canadá ou na ocasião em que noticiou a recuperação de artefatos nativos. Muitos dos casos narrados, aliás, são reais, como a morte de Robert Smallboy por frio em 1984, após não conseguir alugar um quarto para passar a noite por ser indígena. King usa desses relatos terríveis para compor sua ficção e discutir a repercussão que tanta violência e preconceito causam na mente dos povos originários. O maior exemplo disso é o protagonista Bird, que depois de 40 anos decide largar a profissão. Nesse ponto, é nítida a desesperança dele nas questões indígenas e o remorso por desistir delas. Talvez, aliás, seja nesse momento que os demônios de Bird comecem a tomar forma, ganhar nomes, corpos e vozes.


PARA IR ALÉM

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Para Daniel Munduruku, professor, mestre e doutor em Educação pela USP, e pertencente ao povo Munduruku, “o desequilíbrio social abala o equilíbrio pessoal e isso pode gerar uma desordem mental”. Já para Geni Núñez, ativista guarani, escritora, psicóloga e doutoranda pela UFSC, o corpo indígena é “também parte do território, então todas as violências contra os rios, contra as matas, contra os demais bichos acabam sendo também uma dor coletiva". A autora Julie Dorrico, pesquisadora e curadora de literatura indígena, pertencente ao povo Macuxi e doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS, afirma que as consequências mentais das violências sofridas pelos povos originários daqui repercutem de modo semelhante ao de Bird. “Viver num Estado-nação que reconheceu o nosso direito de existir há apenas 34 anos certamente afetou e ainda afeta diretamente a nossa saúde mental”, afirma Dorrico. Sinal disso é que, entre 2015 e 2018, dados do Ministério da Saúde mostraram que os óbitos por suicídio na população indígena foram quase três vezes maiores do que a média nacional. “Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as principais motivações estão na falta de terra, falta de agricultura e confinamento num pequeno espaço”, explica. “A insegurança física tem abalado a segurança simbólica e mental dos indígenas.“

ORALIDADE E IDENTIDADE King, assim como seu protagonista, é descendente dos Cherokee, não gosta de viajar e tem sido uma voz importante nos direitos dos povos originários. É também “um dos autores nativos mais reconhecidos e elogiados na América do Norte”, segundo afirma Bianca M. O. Leimontas, tradutora e mestre em Inglês pela UFSC, em sua dissertação sobre o autor. Por isso, não é de se estranhar que o escritor envolva a marca da oralidade em seus textos. “O fato de trazer isso para a língua escrita ajuda a perpetuar a importância da oralidade para os povos indígenas”, esclarece Leimontas em entrevista à TAG.


24 PARA IR ALÉM

Em Indígenas de férias, é possível notar essa oralidade “na presença de personagens da cultura oral, de padrões orais, na repetição de frases e, por vezes, nas palavras e expressões das línguas indígenas”, informa Leimontas. De acordo com ela, também é por meio da oralidade que o autor traz discussões sobre identidade. “Esse tema permeia várias obras de King e começa na própria origem dele, pelo fato de o autor ter miscigenação étnica e de ser um imigrante. A ideia de identidade acaba sempre vindo à tona com discussões sobre o que é ser indígena de verdade”, conclui Leimontas. Não à toa, Bird e Mimi decidem fazer um medicine bundle (no livro, chamado de "Bolsa Crow"). Os bundles representam a história de uma família e, segundo o personagem, os originais continham itens como pedras, dentes, penas e pedaços de tecido. No entanto, o medicine bundle do casal contém itens recolhidos durante suas viagens e é feito de náilon e zíper, o que incomoda Bird. Também o incomoda o fato de estar investigando o passado de Leroy sem muito sucesso. Assim, de certa forma, é possível que os demônios de Bird igualmente possam ser fruto do seu desejo de seguir as origens indígenas e, muitas vezes, de não conseguir satisfazer esse desejo. Segundo Dorrico, o processo de cura pode passar por “encontrar-se na identidade que lhe pertence e na ancestralidade que possui”. Para Daniel Munduruku, a vida dos povos indígenas “é organizada para seguir a lógica ditada pela cultura em que vivemos. Não seguir essas regras é romper com o equilíbrio e, portanto, alimentar o que há de pior em nós. Essas forças ocultas são, em maior ou menor grau, os fantasmas que assolam nossa existência”. De acordo com Núñez, “a literatura indígena tem tido um papel maravilhoso na nomeação das feridas e no acolhimento delas. É, portanto, uma forma de cuidado de nossas comunidades, além de ser um convite às pessoas não indígenas para que repensem a colonialidade”. De fato, a narrativa de King aborda como fechamos os olhos diante de injustiças, como tentamos imitar o modelo norte-americano de viver e como, na verdade, deveríamos usar as viagens para questionarmos quem somos e o que temos feito.


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"as pessoas não esperam ver nativos viajando ou exercendo profissões Thomas King fala de sua amizade com Margaret Atwood, conta como concebeu Indígenas de férias e examina a situação dos indígenas em seu país Como você se sente sendo prestigiado por Margaret Atwood, que nos indicou o seu livro? Como é a relação de vocês? Ela inspira de algum modo o seu trabalho como escritor? Margaret Atwood e eu somos amigos desde a publicação do meu primeiro romance, Medicine River. Ela tem sido uma grande apoiadora de escritores nativos e esteve envolvida em várias questões relacionadas ao tema. Nós dois nos damos muito bem, pois ambos temos um senso de humor bastante diabólico. Ao mesmo tempo que escrevemos sobre assuntos diferentes, estamos preocupados com a justiça social e o meio ambiente, e isso se reflete em nossa escrita e nossa amizade. Pode nos contar como foi o processo de escrita de Indígenas de férias? Quais elementos da trama apareceram primeiro em sua mente ao decidir escrever essa obra? Por que você decidiu ambientar o livro em Praga? Você já conhecia a cidade? Fez algum tipo de pesquisa para poder torná-la pano de fundo da história? Eu não tenho o que se chama de “processo de escrita”. Eu nunca sei como vou iniciar um livro. Às vezes, é um personagem, às vezes, uma situação, em outras, não é mais do que uma frase. Na maioria das vezes, eu apenas começo a mexer, tentando algumas coisas para ver o que funciona. Com Indígenas de férias, o livro foi inspirado em


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algumas viagens que eu e minha companheira, Helen Hoy, fizemos e em uma parte específica da história indígena. Fomos à Europa para uma viagem fluvial de Budapeste a Amsterdã, mas em vez de voar diretamente para Budapeste, fomos primeiro a Praga e ficamos lá por vários dias. Então, nossa jornada começou em Praga e foi aí que decidi definir a história. Veja bem, esse é o primeiro e único romance meu ambientado fora da América do Norte e isso foi um pouco complexo. Eu não conhecia Praga, então tive que abordar a narrativa do ponto de vista de um turista. Não fiz pesquisa. Quando vou a algum lugar, gosto de ser surpreendido, então a maior parte do cenário vem de nossa peregrinação pela cidade.

Foto: Hartley Goodweather

A relação de Bird com os seus “demônios” é um dos principais tópicos do livro. Eles explicam muito da personalidade dele e mostram por que ele é um pouco temperamental de vez em quando. Por que você teve essa ideia de dar a esses demônios nomes e personalidades? Todo mundo tem seus demônios. Normalmente, nós não falamos sobre eles. Mas, quando eu estava começando a trabalhar em Indígenas de férias, minha esposa me disse que eu poderia querer lidar com meus demônios. Eu entendi que ela disse que eu teria de lidar com “Eugene”. Ela disse “não, demônios“, e eu, “ah, você diz Eugene e os outros demônios“. Bem, essa foi a causa. Assim que eu disse isso, pude ver o desenvolvimento de um conjunto de personagens que eram, de fato, demônios. E foi assim que Kitty e Didi e Desi e Chip e, claro, Eugene surgiram. Demônios que seguiriam Bird e o incomodariam sempre que pudessem. Foi bastante intrigante dar nomes aos demônios e dar-lhes presença física no romance. Bastante intrigante. É claro que cada uma de suas características vem das várias dificuldades com as quais todos lidamos. Autoaversão, preocupação de que as coisas vão dar errado, depressão, desespero e raiva por coisas que estão além do nosso controle. Uma vez que eu tinha os demônios nomeados, o resto do livro se encaixou.


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"Todo mundo tem seus demônios. Normalmente, nós não falamos sobre eles."

O título do livro — Indígenas de férias — refere-se a algo que as pessoas não imaginam normalmente quando pensam sobre os nativos. É algo que ocorre também com as suas próprias profissões. Com isso, você procurou desafiar estereótipos mais comuns associados aos indígenas? Sim, o título desfaz o que a maioria das pessoas pensa dos indígenas. Eles não esperam ver nativos de classe média que viajam pela Europa como pessoas comuns. Eles não pensam nos nativos exercendo profissões. Esse é, claro, um estereótipo infeliz e o romance foi, em parte, uma tentativa de destruir essa noção de uma vez por todas. Não penso que fez isso, mas eu tentei. O Canadá e os povos indígenas ainda lutam para encontrar cura e reconciliação. No ano passado, as descobertas de valas comuns de crianças indígenas lançaram luz sobre os crimes que aconteceram em escolas residenciais. O que você acredita que ainda é necessário para que essas feridas cicatrizem? O Canadá e os povos indígenas têm lutado para chegar a um relacionamento saudável. A descoberta das valas comuns nos últimos anos não ajudou, pois abriu velhas feridas. Não que tenha sido uma surpresa para os nativos. Conhecíamos as escolas residenciais e os problemas que elas causavam havia muitos anos. Mas a descoberta das valas destacou tanto a tragédia quanto o problema. Em suma, o Canadá se moveu muito lentamente para tentar corrigir erros antigos e contínuos. Na minha opinião, o governo está mais interessado em colocar band-aids do que tentar curar as próprias feridas. Isso pode mudar nos próximos anos, mas, por enquanto, esse processo de cura mal está se movendo.


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EM PARCERIA COM A REVISTA CANADENSE HAMILTON REVIEW OF BOOKS, PUBLICAMOS A SEGUIR UMA RESENHA DO AUTOR DAVID A. ROBERTSON, QUE ANALISA A OBRA DE THOMAS KING E A RELACIONA COM AS SUAS PRÓPRIAS EXPERIÊNCIAS COMO INDÍGENA DE ORIGEM CREE

N

as décadas de 1980 e 1990, durante meus anos de formação, o mundo me ensinou sobre os povos indígenas, dos quais faço parte. Nas páginas dos livros, nas histórias em quadrinhos, na tela do cinema, nas notícias, minha educação foi implacável e extremamente prejudicial. O próprio King, em The Inconvenient Indian, explica isso ao analisar as classificações estereotipadas sobre como eram, e como são, os povos indígenas para os canadenses. Eu diria que essa percepção era, e ainda é, fortemente influenciada pelos mesmos instrumentos que me influenciaram. Indígenas mortos. Indígenas vivos. Indígenas legais. Foi o indígena morto que destruiu minha autoestima, meu amor-próprio. É claro que os indígenas mortos não estão literalmente mortos, mas existem em uma cultura morta, que é confortável e lucrativa para os brancos. Basta pensar em Pocahontas ou Tonto. É um estereótipo baseado em cocares, torsos nus, poderes xamânicos, selvageria, roupa de camurça e assim por diante. Tenho certeza de que você logo consegue imaginar. Por causa dessa autopercepção fabricada, eu não queria saber de ser indígena ao entrar na adolescência. Eu conheci todas essas representações negativas e nada que me ensinasse o contrário. E então duas coisas aconteceram. Meu pai, que era Cree, começou a me ensinar sobre minha identidade indígena com base na verdade (outra longa história), e eu comecei a ler o que chamam de livros de vozes próprias [movimento "own voices"]: histórias com personagens indígenas escritas por autores indígenas. Esses livros iniciaram o longo processo de destruir o dano que uma infância de deturpações havia causado e reconstruir minha identidade com um embasamento mais verdadeiro. Autores como Culleton (agora Mosionier), [Maria] Campbell, [Lee] Maracle e King. Eles não só escreveram livros icônicos que continuaram relevantes por décadas, mas abriram as


"Foi o indígena morto que destruiu minha autoestima, meu amor-próprio."

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portas para autores como eu e muitos artistas que respeito e admiro. [Cherie] Dimaline. [Richard] Van Camp. [Waubgeshig] Rice. [Katherena] Vermette. [Eden] Robinson. [Alicia] Elliott. [Julie] Flett. [BillyRay] Belcourt. [Joshua] Whitehead.Eu poderia passar o resto do espaço deste texto listando autores indígenas, e isso é ótimo, mas acho que já deu para ter uma ideia. E, enquanto há cada vez mais autores indígenas criando novas obras incríveis, pioneiros como King permanecem. O Canadá, por sua vez, melhorou com isso. E eu também. Quando li Green Grass, Running Water e Medicine River, senti-me representado. Não só porque o basquete tem destaque em Medicine River, embora isso tenha ajudado, mas porque vi, pela primeira vez, personagens com os quais conseguia me identificar. Acompanhar a jornada de Will, um protagonista que não se encaixava em estereótipos, ajudou-me a ter orgulho da minha identidade indígena. Agora, tenho Bird, muitas décadas depois de ler um livro de King pela primeira vez, e novamente sinto-me representado. Por motivos diferentes, é claro, mas, mesmo assim, representado. As pessoas se identificam com histórias por diversas razões. Eu poderia me dedicar a analisar a escrita habilidosa de King, como ele sobrepõe ideias e temas complexos ao seu humor característico (e praticamente incomparável), mas quero comentar por que me identifiquei com essa história e esse personagem. Tenho Bird e tenho seus demônios, entidades que incorporam suas inseguranças, sua ansiedade, desilusão e depressão. Alguns desses demônios, aos quais King deu nomes como Desi e Kitty, são compartilhados. Eu vivi com ansiedade por muito tempo, com desilusão e depressão, e passei a encarar esses transtornos mentais como seres físicos que sempre me acompanham aonde vou. É comum usar um cachorro preto para representar a depressão. Mimi, esposa e âncora de Bird, simplesmente chama esse cachorro preto de Eugene. Eugene pode não ser um cachorro preto, mas lança uma grande sombra escura sobre


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Tradução ANA BEATRIZ FIORI

Termo popularizado por Alfred Hitchcock, MacGuffin é algo que mobiliza a ação de uma história, embora não tenha explicação ou relevância por si só.

a vida de Bird e sua capacidade de aproveitar o sucesso que obteve como fotojornalista renomado. Quanto à depressão, Bird e Mimi podem até viajar para Praga, mas Bird não consegue apreciar a beleza e as curiosidades que eles encontram no caminho enquanto buscam o pacote perdido de um parente — que é explicado, mas basicamente trata-se de um MacGuffin. O refrão repetido, "portanto, estamos em Praga", soa quase blasé. Cada vez que a frase aparece em uma página, o que ocorre com frequência, podemos quase ouvir Bird dizendo-a com exaustão e indiferença, como se tudo em Praga fosse facilmente encontrado e vivido em Guelph, onde ele mora com Mimi. King evita, felizmente, a ideia de "peixe fora d'água", o que é notável. Embora o título do livro indique a possibilidade de ser esse tipo de história (Indians on Vacation, isto é, "indígenas de férias"), Bird sente-se desiludido não por causa do lugar onde está ou de sua herança cultural (Blackfoot e grega). Temos a impressão de que ele também se sentiria assim em Guelph, que seus transtornos o acompanharam até Praga e continuarão com ele e Mimi ao voltarem para casa. Os dois se adaptam muito bem a Praga — não há drama quanto à sua sensação de pertencimento. Eles são turistas como todos os outros turistas. Esse conforto em terra estrangeira, a estagnação de Bird e Mimi (talvez só de Bird), não ocorre por serem indígenas, mas porque são pessoas, e pessoas podem se sentir estagnadas. "Portanto, estamos em Praga" é semelhante às aranhas no seu quarto ou o calor que não podem evitar. Eles enfrentam esses obstáculos porque são turistas, não porque são indígenas. Não são os indígenas mortos que passamos a esperar, e isso King articulou muito bem em seu trabalho. Ao ler The Inconvenient Indian e, depois, Indígenas de férias, temos a impressão de que King tenta fazer algo semelhante ao romper estereótipos e criar algo diferente. Assim, enquanto Bird e Mimi viajam sem encontrar o pacote, os leitores se deparam com verdades essenciais que King costura na trama da narrativa.


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A jornada que percorri rumo à minha identidade Cree levou a uma aceitação: eu sou Cree, não importa o que faça. Eu sou Cree mesmo sem usar um cocar, sem vestir calças de camurça e sem despir meu torso (que ninguém gostaria de ver mesmo). Nada pode me tornar mais ou menos Cree: estar em Winnipeg ou Praga, a maneira como me defino, as coisas boas e ruins, minhas âncoras e meus demônios — eu sou quem sempre serei. Porém, isso não significa que minha jornada e as experiências pelas quais passei não possam mudar como me defino. Não significa que Bird não possa se reconciliar com seus demônios, que não possa mudar, ou ter um momento de paz mesmo quando esses demônios o assombram. Não significa que ele não pode encontrar uma maneira melhor de carregá-los. A beleza que King apresenta na revelação de Bird, na sua aceitação, poderia ter acontecido em qualquer lugar, mas acontece em Praga. E, se algo tão promissor pode acontecer em Praga, com o calor e as aranhas, se Bird consegue cair tantas vezes e se reerguer, então isso pode acontecer em qualquer lugar. David A. Robertson é autor de inúmeros livros para jovens leitores, incluindo When We Were Alone, que venceu o Governor General’s Literary Award de 2017 e foi indicado para o TD Canadian Children’s Literature Award. Seu livro de memórias, Black Water: family, legacy, and blood memory, e seu livro de fantasia para crianças de 8 a 12 anos, The Barren Grounds, foram lançados no segundo semestre de 2020. Dave é membro da Norway House Cree Nation e atualmente vive na cidade de Winnipeg. Siga-o no Twitter: @DaveAlexRoberts Foto: Amber Green


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vem aí

junho

maio

Com indicação do escritor e editor Emilio Fraia, o livro de maio vem para mostrar como as relações familiares não são perfeitas. Escrito por uma autora que é expoente da literatura mexicana contemporânea, o livro explora e ressignifica os aspectos mais viciosos, inconfessáveis e corrompidos da maternidade. Para quem gosta de: literatura contemporânea, personagens femininas fortes, finais impactantes

Para fechar o primeiro semestre de 2022, o livro de junho, indicado pela escritora Natalia Timerman, é sobre um dos momentos mais repressivos da história do Brasil. Situada na cidade de São Paulo durante a ditadura militar, a trama mostra a busca incessante de um pai pela filha desaparecida. Para quem gosta de: literatura brasileira, autoficção, história contemporânea



“Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar.” – IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO, AILTON KRENAK


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