"Alguém para correr comigo" TAG Curadoria - Dezembro/2022

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DEZ 2022
ALGUÉM PARA CORRER COMIGO
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Temos a alegria de encerrar o ano com um romance escrito por David Grossman, considerado um dos principais nomes da atual literatura israelense. Foi sua conterrânea Ayelet Gundar-Goshen quem indicou a nós Alguém para correr comigo, um livro perfeito para quem está atrás de uma leitura leve e, ao mesmo tempo, profunda. Isso porque o enredo parte das aventuras de dois adolescentes por Jerusalém para falar de temas muito maiores, como a amizade, o amadurecimento e o amor.

Nas páginas a seguir, você confere mais informações sobre a produção de David Grossman. Há entrevistas com ele e com nossa curadora, uma análise crítica do romance, além de uma reportagem sobre um lado menos conhecido da capital de Israel, para além dos muros sagrados. Ah, no clima de fim de ano, você descobre também os livros da TAG Curadoria que marcaram a nossa equipe em 2022.

Boa leitura!

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DEZ
2022
RAFAELA PECHANSKY
Publisher
BRUNO
MIGUELL Designer LIZIANE KUGLAND Revisora GABRIEL RENNER Designer JÚLIA CORRÊA Editora
Impressão Gráfica Ipsis Capa TAG – Experiências Literárias Página da loja Gabriele Baptista
ANTÔNIO AUGUSTO Revisor
22 Entrevista com o autor David Grossman 26 28 Crítica Para ir além 14 Contextualização 10 Entrevista com a curadora Ayelet Gundar-Goshen 6 8 Por que ler o livro O livro indicado 4 Experiência do mês posfácio prefácio guia de conteúdos 32 Agenda 20 Ilustração do mês 30 Especial

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JORNADA DE LEITURA

Criamos esta experiência para expandir a sua leitura. Entre no clima de Alguém para correr comigo colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!

Comece o livro e leia até a página 24 Assaf corre atrás de uma cadela. Por sua vez, uma moça misteriosa demonstra estar envolvida em um plano secreto. O que será que vem pela frente?

Leia até a página 78 Uma freira com um passado bem curioso revela ser um elo importante nessa trama, e Assaf está hipnotizado com as suas histórias que parecem fábulas.

Leia até a página 162 Deu até um nervoso por aqui! Tamar consegue se aproximar cada vez mais de seus objetivos. Será que ela está em perigo?

Leia até a página 248 Assaf acaba de ter acesso a um item com informações preciosas, que fazem o seu sangue fervilhar e despertam ainda mais o seu senso de urgência. O que será que vai acontecer?

Leia até a página 327 Ops, parece que Assaf acabou de fazer uma grande confusão. Será que ela poderá ser desfeita?

Leia até a página 380 Pois é, nosso coração também transbordou de emoção com o final dessa história. Ao que tudo indica, novas aventuras (esperamos que menos perigosas!) estão por vir para Assaf e Tamar.

Alguém para correr comigo pode ter terminado, mas a experiência não!

Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.

EXPERIÊNCIA DO MÊS 4

A capa do livro foi desenvolvida pela designer Ale Kalko, da editora Companhia das Letras. A partir de sobreposições, as ilustrações trans mitem a ideia de movimento, representando a corrida desenfreada do jovem Assaf atrás de uma cadela, assim como a presença de tramas para lelas no romance. Ao fundo, o mapa simboliza o deslocamento dos personagens por Jerusalém, cidade que é pano de fundo da história.

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Já no clima de virada de ano, o mimo do mês é o calendário de mesa 2023! O tema que abraçamos nesta edição é “Pets na Literatura” — afinal, seja como protagonistas ou figurantes, os bichinhos sempre abrilhantam as narrativas dos livros. A cada novo mês, você é convidado a rememorar enredos com a participação de pets emblemá ticos! As ilustrações são de autoria da designer Nicole Bustamante (www.nicolebustamante.work).

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jul
projeto gráfico mimo EXPERIÊNCIA DO MÊS
jan

Por que ler o livro

Em uma narrativa misteriosa e cativante, com ares de fábula, o consagrado escritor israelense David Grossman mostra as aventuras de dois adolescentes por uma Jerusalém subterrânea, com um enredo que se desdobra numa jornada interior dos personagens. As trajetórias de ambos são costuradas de modo sensível pelo autor, que venceu, com esse elogiado romance, o Prêmio Sapir e o Jewish Quarterly-Wingate Literary Prize.

6 POR QUE LER O LIVRO

“Uma corajosa viagem ao submundo de Israel.“

The Independent

“Apaixonante e sensível... Uma fábula de amor nos moldes clássicos transposta para a realidade contemporânea de Israel.“

The New York Times Book Review

“Uma narrativa que é, ao mesmo tempo, uma reportagem emocionante e uma mágica evocação dos poderes de transformação do amor.“

The Guardian

“Grossman lança mão do picaresco para melhor sondar o mistério da alma: com ele, as verdadeiras aventuras são interiores.“

Le Temps

7 POR QUE LER O LIVRO

A arte dos encontros

A partir das aventuras de dois adoles centes, Alguém para correr comigo, de David Grossman, une realismo e fábula em trama que ressalta a força da coragem e do amor

Olivro que você recebe este mês revela a potência dos encontros mais singelos. Com a sutileza de quem conhece os meandros da alma humana, o consagrado autor israelense David Grossman nos apresenta dois adolescentes que perambulam por cantos obscuros de Jerusalém. É pouco a pouco, conforme avançamos através das delicadas páginas de Alguém para correr comigo, que descobrimos o que une esses jovens.

É editora na TAG.

Jornalista formada pela UFRGS, é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Antes, foi repórter cultural do Estadão e colaboradora do portal Fronteiras do Pensamento.

Ao darmos início ao livro, lemos que “Um cão galopa pelas ruas, e atrás dele corre um rapaz”. Em terceira pessoa, a voz narrativa logo nos informa que esse rapaz chama-se Assaf. Estagiando durante as férias escolares no Departamento de Saúde Pública da prefeitura, ele é encarregado de encontrar o dono de uma cadela que estava perdida no centro da cidade. A instrução soa estranha, mas Assaf deve cumpri-la: “amarramos o cão numa corda deixando que ele se vá, e vamos atrás durante algum tempo, uma, duas horas, e ele próprio nos conduz direta mente até os seus donos”.

Toda a descrição inicial acaba por acompanhar o acelerado fluxo de consciência do rapaz, que “corre para a frente” enquanto “seus pensamentos ficam para trás” (a prosa, nesse momento, adquire até certo tom pueril, que corresponde às confusões típicas da

O LIVRO INDICADO
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Nascido em Israel em 1954, filho de um bibliotecário que emigrara da Polônia durante a Segunda Guerra Mundial, David Grossman é formado em Filosofia e Teatro pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Ao longo de sua carreira, produziu obras de ficção e não ficção, traduzidas para mais de 30 idiomas. Recebeu diversos prêmios, como o Man Booker Prize, e já chegou a ser cotado para o Nobel de Literatura. É ativista pela paz em seu país. Em sua produção, busca mostrar a complexidade humana, trazendo à tona conflitos atuais e traumas históricos.

mente de um adolescente). Agitada, a cadela (que depois descobriremos se chamar Dinka) demonstra simpatia por Assaf e sai em disparada por lugares mais do que inusitados para o jovem. Gradualmente, ele se vê animado com a aventura, “se sentindo preen chido por uma sensação nova e misteriosa, o prazer da corrida rumo ao desconhecido”. Essa missão em torno de Dinka, no entanto, é apenas o pontapé de uma aventura que se mostrará muito mais intensa, por vezes perigosa, mas sempre fascinante.

A segunda personagem, Tamar, é apresentada a partir de um corte temporal, que anuncia a forma descon tínua que pautará, dali em diante, toda a construção narrativa. Somos informados de que, um mês antes de Assaf e a cadela se conhecerem, “Uma moça miúda, frágil” desceu do ônibus em uma estrada secundária e tortuosa, acima de um dos vales que cercam Jerusalém. Tudo indica que ela está envolvida em algum plano secreto — afinal, por que ela estaria guardando supri mentos, curativos e correntes em uma gruta? O que a levaria a raspar o cabelo? O que a motivaria a cantar nas calçadas de Jerusalém?

O zigue-zague narrativo que alterna a trajetória desses dois jovens produz, assim, uma trama cheia de suspense e mistérios. De início, podemos até estranhar esse expediente utilizado por Grossman, sem entendermos muito bem em que ponto as aven turas paralelas de Assaf e Tamar se entrecruzam. Mas a insistência na descoberta é recompensada por passagens sensíveis, por um elenco de outros personagens marcantes que vão se descortinando ao longo da história, apresentados a nós com a devida profundidade psicológica. Com ares de fábula, a trajetória de uma freira trancada no alto de uma torre rende, por exemplo, encontros e diálogos que tocam a alma dos adolescentes. “Se você me contar uma história do seu coração [...], eu lhe conto uma história do meu”, diz ela a Assaf, reforçando a importância das conversas (supostamente) mais banais. Há momentos ainda de muita tensão, entre fugas e perseguições envolvendo traficantes e artistas de rua. Publicado em 2000, o romance foi o vencedor do Prêmio Sapir e do Jewish Quarterly-Wingate Literary Prize. Em 2006, ganhou uma adaptação para o cinema por Oded Davidoff.

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Quem é David Grossman?
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Crédito: Claudio Sforza

Já escreveu sobre política brasileira, relações internacionais e comportamento. Sempre com um livro na mão, não dispensa uma leitura com ideias que transcendem seu tempo, de temas complexos a amenidades.

Uma Jerusalém cosmopolita

Pano de fundo das aventuras de Alguém para correr comigo, a capital de Israel tem cada vez mais atrações que vão além dos muros sagrados

Ao menos três das principais religiões monoteístas a consideram o centro do mundo. Milhões de pessoas viajam de todas as regiões do planeta para conhecer a “Cidade Santa”. Os cristãos buscam o Santo Sepulcro, onde teria ocorrido a crucificação, o sepultamento e a ressurreição de Jesus Cristo. Os judeus não deixam de ir ao Muro das Lamentações, que teria sido parte do Templo de Salomão. E os islâmicos se dirigem à Mesquita de Omar, um dos locais mais sagrados para a religião. Mas, para além dessa cidade histórica que atrai multidões de turistas e viajantes, Jerusalém tem seu lado de “cidade normal”. Em Alguém para correr

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Performance artística em antiga estação de trem que hoje tem lojas, restaurantes e shows ao vivo.

Crédito: Aaron Paz

comigo, de David Grossman, conhecemos essa outra perspectiva. Aquela que vai além dos muros sagra dos e pela qual Assaf, Tamar e outros personagens transitam. Vale lembrar que Jerusalém é reivindicada como capital do Estado palestino, configurando um dilema para a comunidade internacional há décadas sem consensos.

Hoje, Jerusalém tem 900 mil habitantes, deve chegar a 1 milhão na próxima década e é a maior cidade de Israel. A cidade histórica tem planos futuristas: planeja tornar-se a capital mundial dos veículos autônomos, sendo sede de uma empresa que é potência no segmento de carros autônomos: a Mobileye.

Jerusalém também tem se esforçado para abrigar cada vez mais startups de distintos ramos, como inteligência artificial e as diversas possibilidades abrangidas pela área de saúde. Além de contar com universidades prestigiadas, ser um centro multicultu ral, ter ruas movimentadas, grifes internacionais e… um trânsito de dar inveja (ou não) a cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre. Observamos um pouco desse lado de Jerusalém quando a personagem Tamar vai cantar pela primeira vez na badalada rua Ben Yehuda, uma das mais char mosas e visitadas. Ali nesse “calçadão” do centro de Jerusalém, há shows, comidas variadas e lojas de diferentes continentes, onde se mesclam turistas e israelenses todos os dias.

Mercado Mahane Yehuda.
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Crédito: Emmanuel Dyan

As outras duas ruas que compõem o centro de Jerusalém são a Jafa e a Rei George, também nas quais os personagens vivem momentos marcantes. Na rua Jafa — onde carros não passam —, estão locais importantes para a cidade, como a praça Zion, a Prefeitura e o mercado (o shuk) Mahane Yehuda.

O shuk é uma espécie de mercadão municipal, com mais de 200 lojas que oferecem desde frutas, legumes e vegetais frescos, passando por sementes, castanhas e até produtos para a casa e vestuário. É parada imperdível para turistas, mas também espaço para os moradores fazerem compras.

O mercado e seu entorno mudam do dia para a noite, diz a brasileira Hanna Rosenbaum, consultora executiva de comunicação da StandWithUs Brasil (SWU). Ela mora nessa região central e se diverte com o cosmopolitismo que vê nos arredores de sua casa. “De dia, ele é um mercadão de frutas e verduras, peixes, tudo concentrado”, diz. “De noite, eles fecham, e abrem bares quase no mesmo lugar. O local se transforma, fica lotado de pessoas, de turistas de várias partes do mundo e, nas ruas ao redor, tem ainda diversos restaurantes com muita variedade”, explica ela.

“As pessoas ficam até tarde, principalmente quinta à noite, que é como se fosse a sexta-feira do Brasil. É o quintou”, brinca. Ainda nessa região central, no entorno da rua Ben Yehuda, estão locais como a estação central de ônibus e importantes linhas do transporte público.

Jerusalém tem buscado atrair jovens e cada vez mais turistas para além de sua área histórica, promo vendo e recebendo festivais de cerveja, de cinema, de música, de artes e tentando “rivalizar” com Tel Aviv, um dos centros mais cosmopolitas do Oriente Médio.

E como é a experiência de viver nessa cidade tão especial, com o passado e o futuro convivendo? “Eu já era encantada por Jerusalém só de saber que é um lugar santo para tantas religiões, um lugar que abriga, apesar dos conflitos, tanta coexistência. São pessoas reunidas de todos os lugares do mundo para virem em jornadas de todas as religiões”, conta Hanna.

“Logo que me mudei para cá, achava o máximo ver as pedras de Jerusalém e ver a cidade inteira dourada no pôr do sol. Andava pelas ruas sorrindo só

Jerusalém
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ISRAEL

de ver pessoas vestidas de maneiras completamente diferentes, algo que você não vê todo dia no Brasil”, relembra. Hanna avalia de forma positiva como as pessoas preservam e querem “se apropriar” da história da cidade visitando museus e locais turísticos com frequência. “É muito bonito, entre lágrimas e comemorações, ver pessoas tão diferentes se jun tando neste centro do mundo.”

Hanna mudou-se para Israel para fazer mestrado na Universidade Hebraica de Jerusalém, que tem mais de 20 mil estudantes. Mais de dez ex-alunos dessa instituição foram laureados com o prêmio Nobel. E a cidade também tem centros médicos de excelência. “É muito comum ver gente da China, da Coreia, da Suíça, da Finlândia, do Brasil vir aqui para estudar, ficar alguns anos, aprender o idioma”, afirma Hanna. Para ela, é muito importante tratar dessa parte internacional da cidade e desse outro lado de Jerusalém. “Grandes empresas estão vindo para cá e tem muita gente querendo procurar emprego em Jerusalém. Antigamente, esses centros comerciais, essas startups ficavam em Tel Aviv, mas agora muitas estão abrindo sedes em Jerusalém.”

A badalada rua Ben Yehuda. Crédito: Eugene O Músicos ocupam as ruas da cidade. Crédito: Judith Scharnowski
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Meus personagens são ambivalentes porque a vida é ambivalente”

JÚLIA CORRÊA*

Em conversa com a TAG, Ayelet Gundar-Goshen destaca as qualidades da produção de David Grossman e fala sobre a dimensão moral da literatura

Aescritora Ayelet Gundar-Goshen é figurinha carim bada no nosso clube. Em 2019, foi a responsável por indicar o romance Êxtase da transformação, do escritor austríaco Stefan Zweig. Agora, de volta ao papel de curadora, ela nos brinda com outra indicação preciosa: Alguém para correr comigo, de seu conterrâneo David Grossman — na opinião dela, “o mais importante autor israelense vivo”.

É editora na TAG.

Jornalista formada pela UFRGS, é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Antes, foi repórter cultural do Estadão e colaboradora do portal Fronteiras do Pensamento.

Nascida em 1982, Gundar-Goshen é mestre em Psicologia pela Universidade de Tel Aviv e roteirista de cinema e televisão. Lançou seu primeiro romance em 2012 — vencedor do Prêmio Sapir, Uma noite, Markovitch tem como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial e a Primeira Guerra Árabe-Israelense e gira em torno de jovens que partem da Palestina para a Europa, onde um grupo de moças judias os espera para escapar de Hitler.

Racismo, imigração e antissemitismo são alguns dos temas contemplados em sua produção, que inclui ainda os romances Despertar os leões e Outro lugar, todos lançados no Brasil pela editora Todavia. Na entre vista a seguir, ela detalha seu apreço pela escrita de David Grossman e discorre sobre as questões morais que pautam os seus próprios enredos e personagens.

ENTREVISTA COM A CURADORA 14

O que torna Alguém para correr comigo um livro tão especial? Na sua opinião, quais são as principais qualidades desse romance?

É raro encontrar um livro que consiga ser, ao mesmo tempo, um livro sobre a juventude e um livro para a juventude. Em Alguém para correr comigo, David Grossman aceitou esse enorme desafio literário e criou uma história que funciona tanto como “vira-páginas” quanto como uma profunda jornada psicológica. É uma viagem aos cantos escuros de Jerusalém e uma viagem aos cantos escondidos das almas de Assaf e Tamar. Como um arquiteto brilhante, Grossman cons truiu uma história que é funcional e incrivelmente bela. No primeiro plano, temos o enredo — e que enredo! Com mocinhos e bandidos, um thriller de ação e uma busca romântica, o perfeito romance de amadurecimento. No segundo plano, temos a visão do entorno — a profundidade psicológica dos personagens e as delicadas metáforas que conectam a jornada dos adolescentes à questão mais ampla do lugar que a arte ocupa em nosso mundo. Nesse romance, a arte pode ser usada como manipulação, mas também pode ser o caminho da salvação. O leitor é obrigado a se

ENTREVISTA COM A CURADORA
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A curadora do mês, Ayelet Gundar-Goshen Crédito: Nir Kafri

perguntar sobre sua própria forma de consumir arte — estou lendo uma história para fugir de mim mesmo ou para me encontrar?

Além de Alguém para correr comigo, quais outros livros de David Grossman merecem nossa atenção? Qual é sua opinião sobre a produção dele em geral?

O mais importante autor israelense vivo, Grossman consegue escrever ficção que é afiada como uma lâmina mas cheia de misericórdia. A agudeza de sua escrita assemelha-se ao bis turi de um cirurgião, que o usa para curar, não para machucar. Já aconteceu com você de um romance ser tão poderoso que você se lembra exatamente onde estava quando terminou de lê-lo? Lembro-me de onde estava quando li Ver: amor. Esse livro me afetou profundamente, tanto como terapeuta quanto como escritora. Ele explora a forma como o trauma molda a vida da vítima e seu meio.

Com ares de fábula, Alguém para correr comigo é ambientado em Jerusalém, mas não foca nos conflitos políticos e religiosos da região. O que você acha da expectativa que se cria em torno de autores israelenses para que sempre abordem esses temas em seus trabalhos?

Acredito que os autores têm a responsabilidade moral de se manifestarem contra o que é injusto e de serem muito claros sobre questões políticas. Temos o privilégio de ter pessoas nos ouvindo, lendo nossas palavras — e esse privilégio vem com o dever de falar e escrever sobre coisas que são silenciadas em nossa sociedade. No entanto, acho que um autor pode optar por escrever sobre o que quiser e ser guiado por sua paixão em vez de uma lista de tópicos ditados pela política atual. David Grossman é um exemplo perfeito nesse aspecto — ele é um ativista antiocupação muito comprometido em sua vida cotidiana e usa sua influência social nesse assunto. Mas deve haver uma separação entre o papel público de um autor e seu trabalho criativo, que deve permanecer livre de ordens.

ENTREVISTA COM A CURADORA 16

Gundar-Goshen aponta a responsabilidade moral dos escritores, ao passo que o trabalho criativo deve ser "livre de ordens".

Crédito: Alon Siga

1. Intitulado "O merceeiro e a musa", o texto foi publicado no site da revista Quatro Cinco Um março de 2019.

Livros de sua autoria, como Despertar os leões e Outro lugar, ambos recentemente lan çados no Brasil, abordam conflitos morais e recusam simplificações, contemplando temas como racismo, imigração, antissemitismo. Isso nos faz lembrar de um texto que você escreveu em homenagem a Amós Oz1 na ocasião de sua morte, em que lemos que “o processo da escrita não estará completo se o escritor não se colocar na pele de seus personagens”. Como você lida com essa “dimensão moral” da literatura?

Em Outro lugar, uma mãe israelense começa a suspeitar que seu filho estava envolvido na morte de seu colega de classe, um menino muçulmano. Enquanto ela investiga o que aconteceu, também investiga seu próprio relacionamento com o filho. A mãe no romance é muito carinhosa com o filho, mas, ao mesmo tempo, é uma estranha para ele. Eu acho que essa é uma das noções mais assustadoras de ser pai ou mãe — se importar tanto com alguém e, finalmente, ser deixado de fora de seu mundo. Tenho uma imagem clara disso desde o primeiro dia no jardim de infância da minha filha: ao deixá-la para trás, vi a porta se fechar e pensei no quanto temia que uma das outras crianças a machucasse (verbal ou fisicamente). E então pensei — por que você tem tanto medo de que ela se machuque e nunca considera a possibilidade de ela machucar outra pessoa? Acho que é porque tendemos a pensar em nós mesmos de forma positiva, não como alguém capaz de fazer o mal. Tememos que o mal externo machuque a nós ou a nossos filhos, mas muitas vezes não reconhecemos que não somos apenas vítimas em potencial, mas também agentes em potencial. Meus personagens são ambivalentes porque a vida é ambivalente. Histórias infantis têm moral. Histórias de adultos têm perguntas. A primeira questão que me interessa é o que significa ser humano. Que responsabilidades morais carregamos conosco. Eu queria explorar o papel fundamental que a mentira desempenha em nossas vidas: às vezes, a mentira é o material de que uma nação é feita; às vezes, é a cola que mantém um relacionamento unido. Como mãe, eu

ENTREVISTA COM A CURADORA
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me perguntava se os filhos mentem mais para os pais do que os pais escondem a verdade dos filhos. Às vezes, uma mentira é muito mais real do que “a verdade”. Por exemplo, como psicóloga, acho os sonhos mais interessantes do que a cronologia diária. Esses sonhos não são verdadeiros, mas transmitem os verdadeiros desejos e medos muito mais do que fatos objetivos. Como psicóloga, quando um paciente mente sobre algo, sinto que a mentira é ainda mais importante que a verdade, porque a mentira indica o desejo real ou o medo real. No tratamento, uma mentira muitas vezes ultraja uma verdade que é tão insuportável que não se pode lidar com ela. A melhor maneira de conhecer os aspectos ocultos mais importantes da vida de um paciente é perguntar sobre o que ele mentiria.

Você já declarou apreciar as obras de Jorge Amado e Clarice Lispector. Pode nos contar um pouco de sua relação com a literatura brasileira?

Fui apresentada à literatura brasileira pelo meu parceiro, cujo pai é um brasileiro que migrou para Israel. Gosto da vivacidade da escrita de Amado, seu grande senso de compaixão por seus personagens e o fato de que ele sempre me deixa com fome de vida depois que eu largo o livro.

Quais são os seus projetos atuais?

Acabei de ter um bebê, então ele é o meu principal projeto no momento. :)

E quais são as suas inspirações atualmente?

O que você tem lido?

Estou lendo muita literatura italiana — estou fazendo uma turnê de leituras na Itália com Outro lugar, então tento ler o máximo possível antes de viajar para que os livros ecoem dentro de mim enquanto viajo pelo país.

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do mês

Gabriel Renner é ilustrador freelancer e designer. Passou pelas redações de Zero Hora, Diário Gaúcho, ND Notícias e Grupo Editorial Sinos, além de ter ilustrado para as revistas Superinteressante, Mundo Estranho e Sexy. @rennergabriel

A pedido da TAG, o artista interpretou uma passagem do livro do mês: “E a cadela — ela não espera até que o sentimento exato se mostre em seu rosto, dispara novamente numa corrida desenfreada, esticando de vez a corda até o seu comprimento máximo, e Assaf voa atrás dela com um grito mudo, a face retorcida pelo esforço de segurar com uma das mãos a enorme embalagem e agarrar a corda com a outra, e só por milagre ele passa pelas pessoas na rua sem encostar, a caixa balança no alto de seu braço estendido para cima, e ele sabe, não tem nenhuma dúvida sobre esse assunto, que nesse instante parece uma cari catura de garçom, e além de tudo o cheiro da pizza começa a exalar da caixa, e Assaf desde de manhã comeu apenas um sanduíche e, obviamente, tem todo o direito de comer um pedaço da pizza que está agora sobre sua cabeça, pois afinal pagou cada azeitona e cogumelo, mas por outro lado sente que ela afinal não lhe pertence de todo, pois em certo sentido alguém a comprou, e para outro alguém, e ele não conhece nenhum deles.

E assim, nessa mesma manhã, com a pizza na mão, ele atravessa mais praças e ruas e faróis vermelhos. Jamais tinha corrido pelas ruas desse jeito, jamais tinha violado tantas leis de trânsito de uma só vez, e a cada instante alguém buzinava, tropeçava, xingava ou berrava, mas após algum tempo já não estava mais se incomodando, e de passo em passo foi pas sando também a raiva de si mesmo, pois de forma inesperada estava totalmente livre, fora do escritório opressivo e enfadonho, livre de todos os problemas, pequenos e grandes, que haviam recaído sobre seus ombros nos últimos dias, livre como um cometa em sua trajetória, percorrendo toda a extensão do céu, deixando atrás de si um rastro cintilante".

20 ILUSTRAÇÃO DO MÊS
Ilustração

posfácio

Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página. A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra. !

JÚLIA CORRÊA*

David Grossman relembra o contexto de produção de Alguém para correr comigo, comenta os principais temas do romance e fala da atual literatura de seu país

F

Os traços humanistas da produção de Grossman têm relação com a sua trajetória pessoal: ativista pela paz em Israel, ele imprime em sua produção uma série de preocupações que remetem às suas próprias origens. “Cresci em uma família de refugiados, em um bairro de refugiados. Conheço sua linguagem e seus medos e sua luta para fazer parte de algo.”

oi ao sair para encontrar um amigo e ser abordado por um homem que procurava o dono de um cachorro que David Grossman teve a inspira ção necessária para escrever Alguém para correr comigo. A partir daí, os desafios envolveriam a humanização da narrativa, para a qual se dedicou a uma escuta zelosa de jovens que viviam nas ruas de Jerusalém. O escritor conta que pôde perceber neles uma carência de atenção e, assim, “foi um privilégio poder entrar em seu mundo interior”.Na entrevista concedida à TAG, cuja íntegra você lê a seguir, o premiado autor israelense dá mais deta lhes da concepção de Alguém para correr comigo, discute os propósitos de sua escrita em tempos de “alienação e cinismo” e avalia a atual produção literária de seu país.

Há algo de universal em crescer sentindo-se isolado” ENTREVISTA COM O AUTOR
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É editora na TAG. Jornalista formada pela UFRGS, é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Antes, foi repórter cultural do Estadão e colaboradora do portal Fronteiras do Pensamento.

Qual foi a sua inspiração para escrever Alguém para correr comigo? Você se recorda do contexto de produção? Quais foram os principais desafios na escrita desse romance?

Em um dia chuvoso de 1999, saí de casa para encontrar um amigo, quando um homem na rua se aproximou de mim e perguntou se eu reconhecia o cachorro que ele estava segurando. O homem estava exausto, explicando que perseguia o cachorro desde o início da manhã. Perguntei por quê, e ele me disse que trabalhava na prefeitura; seu trabalho era devolver os cães perdidos aos seus donos, que depois pagavam uma taxa pelo tempo do funcionário. Entrei no carro, e parecia mel caindo na minha cabeça: uma história liderada por um cachorro era uma inspiração prática. Eu só tive de correr atrás do cachorro como o homem fez. Um dos principais desafios dessa história foi conhecer os meninos de rua, que não deixavam ninguém entrar em seu mundo. Mas, uma noite, um dos garo tos me reconheceu e me deixou me juntar a eles. Passei muitas noites na praça Zion, no centro de Jerusalém, e após a desconfiança inicial, eles queriam me contar tudo. Eles queriam que alguém os ouvisse. Foi um grande privilégio poder entrar em seu mundo interior.

Há um encontro de gerações muito marcante na narrativa. Por um lado, Teodora representa a maturidade, apesar de seu retraimento social causado pela experiência de isolamento; por outro, cada um ao seu modo, Assaf e Tamar representam a juventude. Quais foram os seus propósitos ao estabelecer essas relações?

Não havia outro propósito além de contar uma boa história. Tamar e Assaf falam uma linguagem moderna e fresca da rua, dos músicos de rua, uma

O autor do mês, David Grossman.
ENTREVISTA COM O AUTOR 23
Crédito: Kobi Kalmanovitz

linguagem especial própria. Eu amo decodificar essa linguagem. Teodora adquiriu sua linguagem de cartas e jornais, sua linguagem é uma mistura do hebraico bíblico e moderno.

Talvez devido ao tom fabular do livro, temos, por vezes, a sensação de que a trama poderia ter sido ambientada em qualquer lugar. Por que deci diu ambientá-la em Jerusalém? Em que medida a trama é indissociável da cidade?

Resolvi ambientá-la em Jerusalém, a cidade onde nasci, onde vivi a maior parte da minha vida, cujos segredos conheço bem. Mas, ao mesmo tempo, a história e os problemas de que trata o livro podem acontecer em qualquer cidade onde crianças e jovens tentam se definir, onde se sentem sozinhos, perseguidos, salvos por outros — pode ser lido ou ambientado em outro lugar. Eu recebi tantos retornos dos leitores dizendo “essa foi a minha adolescência”... Há algo de tão universal em crescer sentindo-se isolado e na necessidade desesperada de ser compreendido pelos outros... Pode ser no Cairo, em Xangai ou em Nova York.

Além do desamparo dos jovens, o livro fala também, indiretamente, do desamparo dos imigrantes. Em que medida você busca projetar suas preocupações sociais em sua produção?

Vivo em um país criado por refugiados, judeus que vieram na primeira metade do século 20, que ou fugiram da perseguição ou da maior atroci dade, o assassinato em massa da Shoá [termo com o qual os judeus referem-se ao Holocausto]. Cresci em uma família de refugiados, em um bairro de refugiados. Conheço sua linguagem e seus medos e sua luta para fazer parte de algo. É inevitável que eu descreva o isolamento e os medos gritados em seus pesadelos. Minha geração e a geração de meus filhos são afetadas por essa realidade — nada pode ser dado como certo, nada é garantido.

A amizade, a capacidade de escuta, o companheirismo, o amor… Esses são temas centrais em Alguém para correr comigo. Em tempos de

ENTREVISTA COM O AUTOR
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"Cresci em uma família de refugiados, em um bairro de refugiados. Conheço sua linguagem e seus medos e sua luta para fazer parte de algo."

A ESTANTE DO AUTOR

O primeiro livro que leu: Gilyona Dimyona — um livro que li na casa da minha avó quando tinha cinco anos de idade. Gilyona estava sempre se metendo em encrencas por causa de sua imaginação (“dimyona” é a palavra em hebraico para imaginação) e eu me identificava totalmente com ela.

O livro que está lendo: Days of Homecoming, de Sara Shilo — ela descreve uma profunda crise familiar pelo ponto de vista dos móveis da casa.

O livro que mudou a sua vida: Motl, Peysi the Cantor's Son, de Sholem Aleichem.

O livro que gostaria de ter escrito: O vento nos salguei ros, de Kenneth Grahame.

O último livro que o fez rir: Guide to Becoming an Israeli, que Lior Schleien escreveu para o seu filho pequeno.

O livro que dá de presente: Depende de quem vai receber. Para recém-nascidos, minha esposa e eu damos livros infantis para começarem sua biblioteca.

O livro que não conseguiu terminar: Sou um leitor bas tante obsessivo, não paro até usar cada gota de sangue para continuar e terminar.

intensa polarização social, qual você considera a importância de se tratar de valores e senti mentos como esses na literatura?

Em tempos de polarização social — de aliena ção e cinismo —, o propósito de escrever é me proteger dessas distorções da amizade e do amor. As crianças pagam um alto preço pelo cinismo da cultura de massa. Às vezes, um jovem é exposto a uma paródia de uma história bíblica, um mito, e não tem ideia do original, apenas da paródia. Eles perdem a chance de serem ingênuos. Se você não pode ser ingênuo e cheio de crenças, um estágio natural da vida, você perdeu algo importante. Em Alguém para correr comigo, Assaf e Tamar começam a agir contra os violentos e os cínicos... Eles mudam as regras do jogo, mostram um novo jeito de ser. Eu não era jovem quando escrevi esse livro, mas lembro-me do sabor do doce ingrediente do idealismo — foi algo inespe rado e muito gratificante.

O livro foi adaptado para o cinema em 2006. Você considera que a obra tem uma estrutura propícia para a linguagem cinematográfica?

Eu penso que sim. Sim, principalmente com o desafio da dupla trama — Assaf e o cachorro, e Tamar e seu irmão... Até que suas narrativas se encontrem.

Seu livro foi indicado ao nosso clube por Ayelet Gundar-Goshen, expoente da literatura israelense. Você tem acompanhado a jovem cena literária de seu país?

Tenho muita sorte, pois muitos jovens escritores compartilham seus livros comigo. Permita-me não elencar nomes — não quero prejudicar ninguém selecionando alguns. Mas vou mencionar The World a Moment Later, de Amir Gutfreund. Pelo menos seis gerações estão escrevendo ativamente agora — cada uma com suas próprias histórias e linguagens. É maravilhoso ser um escritor neste momento. O hebraico foi uma língua adormecida por dois mil anos — sem histórias, sem literatura —, e agora tenho a sorte de pertencer a uma geração de escritores ativos e vívidos.

ENTREVISTA COM O AUTOR
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É doutora em Letras e autora do livro Você não deve esquecer nada, pela editora Folhas de Relva. Atua como crítica literária, tradutora e professora.

Um olhar sensível para a juventude

Escrito quase como um thriller e em tom que remete a Charles Dickens, Alguém para correr comigo traz a prosa de David Grossman em seu mais agradável e lírico

David Grossman estreou como escritor em 1982 com a publicação de Duelo, mas foi em 1986, com Ver: amor, que ele se tornou um autor de renome internacional e escritor inescapável no cenário da literatura judaica con temporânea. O romance possui uma forma experimental que alterna focos narrativos e incorpora outros gêneros textuais para tratar da memória do Holocausto, seu efeito na sociedade israelense da época e sua influência no destino e propósito do escritor judeu, personificado no livro na figura quase mística de Bruno Schulz1. O sucesso e a ampla fortuna crítica em torno de Ver: amor firmaram Grossman como um escritor conhecido tanto por seu experimentalismo formal quanto pela preocupação com um olhar analítico e sociológico para a sociedade israelense.

Essas características seguiriam se fazendo presentes em romances como A mulher foge e Fora do tempo, ambos reflexões a respeito de um país marcado pela presença dos pais enlutados pelo duradouro estado de guerra de Israel. Pacifista, Grossman construiu em seus anos seguintes uma obra política que se aliava a uma empatia profunda pelas diversas vítimas, diretas ou colaterais, de um conflito sem fim.

Essa empatia é também o que move uma outra modali dade de seus romances: aqueles centrados em protagonistas adolescentes. A primeira dessas obras, O livro da gramática interior, é um fluxo de consciência do jovem Aharon, um menino que se embate com as dificuldades do crescimento e o significado da juventude em uma cidade tão antiga quanto Jerusalém e um país tão pesado quanto Israel.

Alguém para correr comigo traz esse mesmo olhar sensí vel e empático para a adolescência de O livro da gramática interior, mas o acomoda em uma forma mais comercial. Escrito quase como um thriller, o romance traz a prosa

CRÍTICA 26

de Grossman em seu mais agradável e lírico. Assaf, o jovem protagonista, é um menino observador e curioso, ainda que tímido, e o autor usa esse deslocamento e essa inibição para criar um espaço que permite que as pessoas que ele encon tra falem sem o risco de serem interrompidas. A quietude e desarticulação de Assaf e sua angústia para encontrar as palavras que quer dizer acabam, de forma quase paradoxal, criando a possibilidade de escuta que permite a verdadeira comunicação. Tamar, por outro lado, é arredia e desconfiada, mas, mais uma vez, a narração de Grossman e sua profunda compaixão por seus personagens permitem que a dureza da menina revele justamente sua vulnerabilidade. Assaf encontra Tamar quase por acaso e pelo intermédio de Dinka, a cadela perdida da menina, e de uma freira octogenária, mas, uma vez juntos, eles formam uma equipe e saem em uma jornada perigosa e de proporções quase épicas para resgatar o irmão da menina, um músico talentoso vítima de seu vício em heroína. Através dessa apresentação quase fabulosa, Grossman retoma seu olhar social e o comprometimento político de sua ficção, fazendo uma investigação das consequências do empobrecimento crescente da população israelense e do desamparo dos imigrantes da antiga União Soviética.

Esse olhar sociológico é realçado pelo ar dickensiano da história: Tamar, com seu cabelo raspado e ares de menino órfão, se apresenta como um novo Oliver Twist; Assaf, em seu fascínio encantado, lembra o Pip de Grandes esperanças; e Pessach, líder da gangue que eventualmente descobrimos estar com Shai, é uma releitura particularmente curiosa de Fagin. Isso porque o chefe dos ladrões de Oliver Twist entrou para a história da literatura como um dos grandes estereótipos antissemitas, mas aqui ele aparece revisitado por um escritor israelense e judeu, visto sob a ótica de um embrutecimento não étnico, mas causado pela violência e a miséria. Grossman é um escritor de referências, e o mapa de suas obras passa muitas vezes pelo cânone ocidental, o que lhe permite tecer esse quadro que vai do específico para o uni versal. De forma paralela, a jornada que Assaf empreende de sua existência confortável para o submundo das ruas de Jerusalém ecoa a passagem de qualquer crescimento, a ida do lugar conhecido da infância para o mundo novo e ame drontador da vida adulta. Isso torna o autor um herdeiro de Charles Dickens ainda em outro sentido: com um universo cheio das mais absurdas peculiaridades, ele constrói histórias das mais universais e chega àquilo que se mostra necessário para qualquer ser humano, esse alguém para correr consigo.

1. Escritor polonês assassinado por um oficial nazista em 1942. Sua obra hermética e inovadora e sua morte particularmente gratuita, mesmo para o período, tornaram sua figura um símbolo do destino da arte judaica.

CRÍTICA
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Conheça outros romances de David Grossman

Garoto zigue-zague (1994)

Com ares de Alice no país das maravilhas, o livro é protagonizado por um garoto que, pouco antes de com pletar treze anos e fazer seu bar mitzvah, embarca em uma viagem de Jerusalém para Haifa, onde deve encon trar seu tio. O percurso, porém, rende uma aventura fantástica com personagens inusitados e experiências que terão impacto na compreensão de sua identidade.

A mulher foge (2008)

O livro traz à tona os conflitos contemporâneos de Israel a partir da história de uma mãe que, temendo receber a notícia da morte do filho, que serve ao exér cito, foge para o norte do país levando consigo um amigo que fora torturado pelos egípcios na guerra do Yom Kippur, em 1973.

Fora do tempo (2011)

Com recursos que vão da parábola ao maravilhoso, a escrita do livro, com uma trama pautada pelo tema do luto, partiu de uma experiência pessoal do autor, que, em 2006, perdeu o filho Uri, então sargento do Exército israelense.

O inferno dos outros (2014)

Um comediante de stand-up que se apresenta em um palco decadente em Israel protagoniza a história, que, aos poucos, revela tensão e melancolia por trás das piadas contadas pelo personagem.

A vida brinca muito comigo (2019)

Obra mais recente de Grossman, o romance revela três gerações de mulheres que precisam lidar com traumas do passado a partir da vontade de uma filha de descobrir o que realmente aconteceu quando a mãe foi prisioneira em um campo da ilha de Goli Otok, na Croácia.

PARA IR ALÉM 28

*Cupom válido para compras acima de R$ 150,00.

Páginas memoráveis

Precisamos admitir: por aqui, nós adoramos uma retrospectiva. Com o fim do ano se apro ximando, não poderia ser diferente. Ao come çarmos a elaborar a experiência de dezembro, passamos a questionar entre nós, nos bastidores, quais foram os nossos livros favoritos em 2022. Se a variedade de estilos e autorias é uma das marcas dos títulos enviados ao clube, podemos falar o mesmo da nossa equipe: há espaço para todos os gostos! Tem quem prefira um bom thriller, quem não resista a um drama histórico ou quem não abra mão de um livro mais feel-good, daqueles que acalentam o coração.

Ao longo deste último ano, temos a alegria de poder dizer que nosso “cardápio” foi bastante diversificado: da Pérsia medieval à América Latina contemporânea, do Chipre a Zanzibar, de Praga a Israel, não faltaram narrativas emocionantes, cheias de reflexões e personagens marcantes.

É claro que a leitura dessas obras faz parte da nossa rotina de trabalho, mas, felizmente, por tabela, muitas delas também nos arrebatam pes soalmente. A seguir, confira as preferências de cinco colaboradoras da TAG.

Ah, também queremos saber qual foi o livro deste ano mais especial para você — acesse o app e conte lá para nós! Que venha 2023!

Confira livros da TAG Curadoria que marcaram integrantes da nossa equipe em 2022
ESPECIAL 30

Júlia Corrêa, Editorial

Um mundo cheio de magia se descortinou para mim quando iniciei a leitura de A ilha das árvores perdidas. Uma obra que começava citando versos de um de meus poetas favoritos, o grego Konstantinos Kaváfis, claramente já prometia algo de especial. E não foi diferente: a cada página, eu era surpreendida pela habilidade literária de Elif Shafak, capaz de tornar uma figueira a narradora principal de seu romance (e isso nos soar natural!), de nos transportar sensorialmente para uma ilha cheia de histórias e tradições, e de gerar reflexões sobre transmissões culturais e sobre os efeitos catastróficos do egoísmo humano. A obra sintetiza o que procuramos o tempo todo aqui na TAG: apresenta uma narrativa cativante, profunda, com personagens complexos e inesquecíveis.

Laura Viola, Experiência

Quando começamos a elaborar a experiência de dezembro da TAG Curadoria, lembro de invejar os associados, pois queria ter a oportunidade de ler Alguém para correr comigo pela primeira vez novamente. É um daqueles livros que nos surpreendem a cada virada de página, seja pelo enredo, pela escrita ou pelo sentimento que desperta. É uma leitura gostosa e, ao mesmo tempo, profunda. Mágica e, às vezes, real até demais. No começo, você talvez sinta algum estranha mento com a narrativa. Minha dica é: deixe-se ser guiado por essa aventura, assim como Assaf ao pegar a coleira de Dinka. Você não vai se arrepender. Boa leitura!

Nicolle Ortiz, Experiência

A minha leitura favorita foi Pesado, de Kiese Laymon! Fiquei muito impactada por sua escrita intimista, forte e, ao mesmo tempo, delicada. O pano de fundo da história é o sul dos Estados Unidos, a relação conturbada entre o narrador e sua mãe, o racismo estrutural e as múltiplas formas de preconceito. O livro é um soco no estômago importante, me fez chorar em diversos momentos e querer acompanhar, desde então, toda a produção do autor.

Rafaela Pechansky, Editorial

A gente percebe que amou um livro quando se pega o recomendando de forma desenfreada. Essa é a minha relação com o romance Com armas sonolentas. Um livro tocante, cheio de momentos em que você segura a respiração por serem totalmente inesperados e de escrita impecável. Carola Saavedra é uma joia da literatura brasileira contemporânea!

Violeta Vaal, Marketing

Fiquei gratamente surpreendida com K., pois normalmente conhecemos as histórias dos desaparecidos através da voz de mulheres: mães, avós, irmãs, amigas… Casas vazias, de Brenda Navarro, é um exemplo disso (aliás, foi um dos meus favoritos deste ano também!). Porém, em K., conhecemos a perspectiva do pai que procura a filha desaparecida. Isso me proporcionou uma dimensão sentimental ainda maior sobre a questão dos desaparecidos, além de me permitir conhecer mais sobre um período difícil da história do Brasil.

ESPECIAL 31

vem aí

encontros TAG:

Guia de perguntas sobre Alguém para correr comigo

1. Assaf e Tamar são jovens com personalidades bem contrastantes. O que você achou de cada um dos personagens e do modo como as suas trajetórias se cruzam na trama? É possível identificar semelhanças entre eles?

2. Teodora é uma personagem muito marcante da história. Quais são as suas impressões sobre ela e sobre suas experiências pessoais?

3. O que você achou do modo como o autor construiu o suspense da história?

4. Qual você considera a importância da arte e da música na trajetória dos personagens?

5. Qual a sua opinião sobre o desfecho da trama? Ao terminar a leitura, qual você acredita ser o principal tema do livro?

Começamos o ano com uma curadoria para lá de especial: autor de Torto arado, Itamar Vieira Junior indica um livro, inédito no Brasil, de uma escritora norte-americana frequentemente comparada a Alice Walker e Toni Morrison. Com uma linguagem direta e impactante, o romance mostra a trajetória de luta, a partir da década de 1960, de uma mulher negra que tenta sustentar sua família em um subúrbio de Detroit.

janeiro

Para quem gosta de: personagens femininas fortes, literatura afro-americana, dramas familiares

fevereiro

Aposta da TAG, o livro de fevereiro foi escrito por uma autora australiana. Entre distopia e romance psicológico, a obra gira em torno de uma mulher fascinada por pássaros que entra em uma embarcação para acompanhar a última migração de andorinhas do Ártico para a Antártida. Durante essa viagem, segredos e traumas de seu passado vêm à tona.

Para quem gosta de: distopias, ficção contemporânea, jornadas de autodescoberta

AGENDA 32

Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? (...) –

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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