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Acostura entre ficção, política e história demanda, quase sempre, um trabalho delicado e engenhoso. O livro que chega a você este mês é um exemplo bem-suce dido desse expediente. Com desenvoltura, a espanhola Elena Medel apresenta persona gens cujas trajetórias atravessam os próprios eventos históricos de seu país. A partir delas, temos a chance de refletir sobre as conquistas femininas ao longo das últimas décadas, sobre o mundo do trabalho e o peso do dinheiro em nossas vidas. E o melhor: tudo isso nos é narrado de uma forma profunda e envolvente.
Antes de se lançar nas páginas de As mara vilhas, sugerimos que você aproveite o prefácio de nossa revista — nele, publicamos um texto introdutório ao romance, uma reportagem sobre a história recente da Espanha (ideal para a compreensão do pano de fundo da trama) e uma entrevista com a curadora do mês, a escritora brasileira Giovana Madalosso, cuja produção dialoga com a de Medel. Após a conclusão do livro, não deixe de ler também por aqui uma análise crítica da obra, uma entrevista com a autora e sugestões de outros títulos para quem ficou com aquele gostinho de quero mais.
Boa leitura!
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QUEM FAZ
RAFAELA PECHANSKY
Publisher
JÚLIA CORRÊA Editora
GABRIEL RENNER Designer
BRUNO MIGUELL Designer
LIZIANE KUGLAND Revisora
Impressão Gráfica Ipsis
Capa Violaine Cadinot
Página da loja Lais Holanda
ANTÔNIO AUGUSTO Revisor
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Comece o livro e leia até a página 18
Conhecemos a personagem Alicia, que tem um emprego precário e lida com um trauma do passado. Enquanto isso, María, uma mulher mais velha, organiza na associação de moradores o protesto pelo Dia das Mulheres.
Leia até a página 53
María teve de tomar uma decisão difícil na sua juventude. Ela se comunica com a família por cartas, especialmente com o irmão, Chico. Por sua vez, Alicia e sua irmã, Eva, vivem uma tragédia.
Leia até a página 85
María trabalha como cuidadora de uma idosa, e sua patroa é muito religiosa, característica marcante da sociedade espanhola. María vivencia também um fato histórico: a morte do ditador Francisco Franco. Alternando os tempos da narrativa, Alicia é vítima de uma violência.
Leia até a página 124
As eleições gerais de 1982, vencidas pela esquerda, são um marco da transição para a democracia. No grupo de María, o clima é de euforia e também de desconfiança. Décadas depois, Alicia entra na vida adulta encarando uma realidade diferente da sonhada pelas gerações anteriores.
Leia até a página 188
A história do romance se encaminha para o fim. A trama vai deixando mais claros os entrelaces entre as personagens. Tudo culmina no protesto do Dia das Mulheres de 2018, o mesmo organizado por María nas primeiras cenas e visto por Alicia no início do dia, quando ia para o trabalho.
As maravilhas pode ter terminado, mas a experiência não!
Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.
projeto gráfico
O projeto gráfico de As maravilhas foi desenvolvido pela designer Violaine Cadinot. Na capa do livro, uma obra do artista egípcio Essam Marouf remete às diferentes gerações femininas mostradas no romance de Elena Medel. Para a luva, foi desenvolvida uma padronagem que conversa com as cores e com os elementos da própria capa.
mimo
Neste mês, você recebe uma cinta de livro feita com couro de origem vegana, ideal para quem ama fazer marcações e rabiscos nos livros. Mas fique tranquilo se você não é desse time: o item pode ser utilizado também em cadernos, tablets e notebooks menores, por exemplo. Ah, aqueles que assinam os dois clubes recebem um brinde extra!
por que ler o 1ivro
Elena Medel, autora de As maravilhas, está entre os principais nomes da literatura espanhola contemporânea. Sua estreia na ficção rendeu esse romance potente, que vem sendo classificado como um “épico da vida feminina”, oferecendo também uma imersão no passado recente da Espanha — do final da ditadura franquista até a explosão do feminismo.
“Um romance de estreia habilidoso e arrasador, de grande sutileza, inteligência rara e profunda maturidade.“ Le Monde
“As maravilhas é um romance que olha para as pessoas e para a história com uma nitidez avassaladora. Entre o que há de melhor na literatura contemporânea.“
José Luís Peixoto
“Uma leitura hipnotizante.“ Avni DoshiEssam Marouf
Jornalista e especialista em Literatura Brasileira pela UFRGS. Vencedora do Prêmio Neusa Maria de Jornalismo e do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, da OAB.
A precariedade como imposição, o cuidado como escolha
IAREMA SOARES*Em As maravilhas, Elena Medel compõe um quebra-cabeça da trajetória de suas protagonistas, que evidencia entrelaçamentos entre gênero e classe social
Publicado em 2020, As maravilhas tem dois temas centrais: o dinheiro e o cuidado. Sua autora, Elena Medel, mostra que a falta de recursos pode determi nar uma vida marcada pela precariedade, liquidar os sonhos das pessoas, bem como estraçalhar a própria carne desses indivíduos. Mas o que se destaca ainda mais na narrativa é a proposta de rompimento de um comportamento sistêmico, é a ruptura com o ato do cuidado — algo que está atrelado ao gênero e é por ele imposto.
No enredo, há mulheres que optam por cuidar dos outros e há mulheres que optam por negar esse papel de cuidadoras, pois entendem isso como uma decisão livre e determinante em suas vidas. Estas rompem com a estrutura central do conceito de economia do cuidado, termo criado na década de 1990 para se referir a um campo de estudos que vem tentando trazer visibilidade para um conjunto de práticas que leva a mulher a executar jornadas duplas de trabalho sem uma recompensa financeira ou emocional. Isso é percebido na trajetória de María e de Alicia, as prota gonistas, que decidem rasgar esse contrato social em prol do que elas desejam para suas respectivas vidas.
A autora conta a história dessas duas personagens por meio de saltos no espaço e no tempo, e é com essa abordagem que recebemos, uma por vez, as peças que montam esse grande quebra-cabeça que é a vida de ambas, uma vida repleta de quinas pontia gudas e ranhuras. María, no final dos anos 1960, deixa
sua filha recém-nascida e sua pequena cidade para trabalhar em Madri. Alicia faz o mesmo caminho trinta anos mais tarde por razões diferentes. A existência dessas personagens está conectada por laços que aparentemente são fortes, mas que se enfraqueceram com o tempo. Contudo, elas não deixam de ter muito em comum: ambas compartilham uma história de sobrevivência em um mundo árido e hostil às mulhe res, e vivem uma precariedade que atravessa gerações na Espanha (e no mundo). María e Alicia revisitam o passado por meio de memórias na juventude e na vida adulta, e mostram como, sempre lutaram por saídas que as mantivessem no controle das rédeas de suas próprias vidas. Muitas dessas recordações são traumáticas; ainda assim, são somadas à vida dessas mulheres, que prosseguem em uma trajetória errante e se reinventam a cada acontecimento.
Vale notar que, ao longo das páginas, fica evidente para a autora que a classe define toda e qualquer pes soa, determinando seu ponto de partida e de chegada, seus sonhos, suas possibilidades e suas oportunidades. E o gênero acrescenta uma camada limitante nesse sistema opressor. Elena Medel, no entanto, expõe esse esquema deixando de lado outro pilar fundamental, o de raça, que é determinante para a compreensão dessas dinâmicas — como bem lembra o filósofo camaronês Achille Mbembe, o racismo é um meca nismo de inferiorização político-ideológico-econômico, responsável pela desumanização em variadas formas, sobretudo da população negra. Porém, vale frisar, todas essas variáveis não prevalecem umas sobre as outras; o que ocorre é uma dialética constante entre elas.
Em 2002, ainda adolescente, Medel estreou no mercado editorial com o livro de poesia Mi primer bikini. Três coletâneas de poemas depois, ela é uma das poetas mais respeitadas da atual cena literária espanhola. As maravilhas é seu primeiro romance publicado e foi traduzido para seis idiomas. Em 2020, foi agraciado com o Prêmio Francisco Umbral Livro do Ano. O júri destacou a frescura literária da obra e a “excelente qualidade poética” de sua prosa. Com essa conquista, tornou-se a primeira mulher a ganhar o prêmio organizado pela Fundação Francisco Umbral. A autora nasceu em 1985 em Córdoba e, atualmente, vive em Madri.
"Medel mostra que a falta de recursos pode determinar uma vida marcada pela precariedade, liquidar os sonhos das pessoas, bem como estraçalhar a própria carne desses indivíduos."
Em meio à explosão de narrativas escritas por mulheres, As maravilhas traz algo ainda fresco e pouco discutido”
JÚLIA CORRÊA*Curadora do mês, a escritora Giovana Madalosso justifica sua indicação ao clube e avalia os pontos de contato do romance de Elena Medel com a sua própria produção
Expoente da literatura brasileira contemporânea, Giovana Madalosso, curitibana nascida em 1975, é autora de livros como A teta racional, de 2016, finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional, e Tudo pode ser roubado, de 2018, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
É editora na TAG. Jornalista formada pela UFRGS, é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Antes, foi repórter cultural do Estadão e colaboradora do portal Fronteiras do Pensamento.
Seu romance mais recente é Suíte Tóquio, de 2020, cujo enredo tem proximidades com o do livro de Elena Medel indicado por ela ao nosso clube. “Os dois romances focam bastante nas questões de classe e no abismo que existe entre a vida de uma mulher de classe média/alta e uma mulher de classe baixa”, avalia ela em entrevista concedida à TAG.
Além de falar sobre As maravilhas, Giovana comenta a sua atuação na organização, em junho deste ano, de um movimento que reuniu centenas de escritoras, em 42 cidades do Brasil, para a realização de regis tros fotográficos históricos que buscaram enfatizar a presença feminina na literatura nacional. Leia a íntegra a seguir.
Como você entrou em contato com a pro dução de Elena Medel?
Conheci Elena Medel através da minha editora, a Todavia. Eles costumam me enviar lançamentos que possam me agradar. Nesse caso, acertaram em cheio.
Por que decidiu indicar As maravilhas ao nosso clube? Em sua visão, quais são as principais qualidades desse romance?
Em meio à explosão de narrativas escritas por mulheres, As maravilhas traz algo ainda fresco e pouco discutido: como as oportunidades pro fissionais e a questão de renda podem definir e marcar para sempre o destino de uma mulher e de seus descendentes. Simone de Beauvoir cos tumava dizer que a mulher proletária é mais livre do que a burguesa porque, dentro de um regime
A curadora do mês, Giovana Madalosso. Crédito: Renato Parada
de bens escassos e num cenário em que tanto o homem quanto a mulher precisam trabalhar, a situação de igualdade entre eles acaba por ser maior. No livro de Medel, temos a chance de ver perspectivas como essa dramatizadas com toda a profundidade e beleza de um bom romance.
Teve alguma personagem da história com quem você se identificou em especial?
Em algum aspecto, me identifiquei com todas.
Como você avalia a costura histórica feita pela autora?
Quando não percebemos os pontos, fios soltos e arremates de uma costura narrativa, apenas o resultado final, é porque foi feita com perfeição.
Há pontos de contato entre As maravilhas e Suíte Tóquio, seu romance de 2020, pensando em aspectos como as disparidades sociais na vida feminina. Como você enxerga os compo nentes de classe nas duas obras, considerando as particularidades brasileiras e espanholas?
Os dois romances focam bastante nas questões de classe e no abismo que existe entre a vida de uma mulher de classe média/alta e uma mulher de classe baixa. A diferença está nas condições de trabalho. Suíte Tóquio é o nome que uma patroa dá para o quarto de empregada de seu apartamento, onde a babá vive quinze dias por mês com apenas uma folga. Essa situação análoga à escravidão em pleno século XXI, infelizmente, é uma temática mais brasileira.
Em sua visão, o livro de Elena Medel dialoga com outras obras atuais? Se sim, pode mencionar algumas delas?
Dialoga com diversas obras, mas cito aqui duas de que gosto muito: A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, no sentido de como a questão de gênero marca e define o destino de uma mulher. E Nós, mulheres, da Rosa Montero, porque mostra como isso vem acontecendo his toricamente, desde que o patriarcado é mundo, em narrativas reais e muito bem elaboradas.
A ESTANTE DA CURADORA
O primeiro livro que leu: O pequeno vampiro, de Angela Sommer-Bodenburg.
O livro que está lendo: O desafio poliamoroso , de Brigitte Vasallo.
O livro que mudou a sua vida: Foram dois: O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, e A terra inabitável , de David Wallace-Wells.
O livro que gostaria de ter escrito: Os detetives selva gens, de Roberto Bolaño.
O último livro que a fez rir: Não sei se foi o último, mas lembro de rir alto com O complexo de Portnoy, de Philip Roth.
O último livro que a fez cho rar: Vista chinesa, de Tatiana Salem Levy.
O livro que dá de presente: Tudo sobre o amor, de bell hooks.
O livro que não conseguiu terminar: Muitos. Dezenas, talvez centenas. Leio vários livros ao mesmo tempo e largo os que não despertam a minha paixão. Tenho 47 anos e mui tos títulos a ler; não perco mais meu tempo com o que não vale a pena — e isso vale para muitas coisas na vida.
Você organizou recentemente um encontro para a realização de uma fotografia histórica com mais de 400 mulheres escritoras, em um movimento que viralizou pelo Brasil. Qual você con sidera a importância desses registros?
Nosso movimento fotografou mais de 1.700 escritoras em 42 cidades do Brasil e do mundo. Eu coordenei presencial mente a foto citada por você, em São Paulo. Olhar para aquelas 400 escritoras sentadas à minha frente gritando em unís sono “Viva a literatura feita por mulheres!” foi um dos momentos mais bonitos da minha vida. Essas fotos foram importantes em diversos aspectos, que vão desde um mapeamento da escrita feita por mulheres no Brasil até uma celebração necessária do crescimento dessa escrita. Mas, sem dúvida, o mais precioso foi o efeito empoderador. Muitas mulheres relataram que, até o dia da foto, mesmo já tendo escrito diversos textos, inclusive livros, não conseguiam se assumir como escritoras. Tomar um espaço público, junto com seus pares, fez com que enxergassem a própria potência e passassem a dizer “Eu sou escritora”.
Pode nos falar dos seus projetos atuais? Você pretende lançar algum novo livro em breve?
Acabei de lançar um conto inspirado em uma música de Caetano Veloso na coletânea Vivo muito vivo, que celebra os 80 anos desse compositor maravilhoso com diversas ficções. No momento, estou escrevendo meu novo romance, que deve sair em 2023, e adaptando para o cinema um conto que escrevi para uma coletânea da TAG (Partes de um corpo).
ENTREVISTA COM A CURADORARegistro da Guerra Civil Espanhola por Robert Capa. Crédito: International Center of Photography / Magnum Photos
A Espanha das últimas décadas
PAULA SPERB*Romance de Elena Medel tem acontecimentos his tóricos como pano de fundo de trama que mostra o cotidiano de três gerações de mulheres espanholas
Crítica literária e jornalista. Fez pós-doutorado em Letras na UFRGS e é doutora em Letras pela UCS. Foi repórter da Folha de S. Paulo e Veja.
Uma ditadura, a redemocratização, uma crise eco nômica e uma greve convocada por mulheres. Esses são alguns dos fatos históricos que ocorreram na Espanha entre o século XX e o XXI e que impactam, de diferentes maneiras, as personagens de Se tais acontecimentos não são necessariamente o tema da obra em si, tampouco podem ser deixados de lado. As mulheres retratadas no enredo, todas da mesma família, têm suas vidas afetadas pelo contexto social e político de suas épocas. Para ajudar a mergulhar na história contemporânea da Espanha, a TAG ouviu historiadores que ajudam a contextualizar os principais acontecimentos.
Jornais noticiam a morte de Franco, em 1975.
Crédito: Reprodução
Guerra Civil (1936–1939)
Em 1936, distante do tempo em que foi um império mercantilista, a Espanha era uma república parlamen tarista, ou seja, a maioria do parlamento escolhia o primeiro-ministro. Naquele ano, com uma maioria de parlamentares vitoriosos no campo da esquerda, foi escolhido um primeiro-ministro socialista. Poucos meses depois, porém, ele sofreu um golpe da ala conservadora, liderada pelo general Franco. Apesar da resistência — que uniu trabalhadores, anarquistas e socialistas —, os golpistas tomaram o poder em 1939, iniciando a ditadura.
“Quando falamos do fascismo na década de 1930 na Europa, normalmente nos referimos a Hitler, na Alemanha, e a Mussolini, na Itália. Então, fala-se menos na Península Ibérica, com o fascismo de Salazar, em Portugal, e de Franco, na Espanha”, avalia o historiador Alessandro Bica, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Bica salienta as características do fascismo de Franco: “culto ao líder, nacionalismo exacerbado, poder cen tralizado e propaganda governamental”.
Ditadura Franquista (1939–1975)
A repressão à oposição foi violenta ao longo de toda a ditadura franquista, regime que teve fim ape nas com a morte do general, em 1975. Prisões e execuções eram parte do aparelho repressivo de Franco, incluindo a pena de morte. Em 1974, apesar da pressão de protestos pelo país, Franco não evi tou que o militante anarquista Salvador Puig Antich fosse morto. “Ele foi executado com um garrote, um método bastante medieval em que a cabeça é per furada por trás enquanto a vítima está sentada com o pescoço preso”, explica Gérson Fraga, historiador e professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Salvador foi o último a ser executado dessa forma na Espanha. Condenado por um conselho de guerra pela morte de um policial, ele teve o pedido de indulto negado por Franco.
O fascismo de Franco sempre foi exercido sob um regime capitalista, explicam os historiadores ouvidos pela TAG, mas o franquismo ajustou-se ao
contexto internacional. “Para vencer a Guerra Civil, Franco recebeu ampla ajuda de Hitler e Mussolini. Quando se inicia a Segunda Guerra, mesmo sem a participação oficial da Espanha no conflito, Franco dá seu apoio aos fascistas”, diz Bica.
Porém, quando a guerra acaba, a Espanha passa a ser aliada dos Estados Unidos, antigo inimigo. “A Espanha era fascista, mas também era anticomunista. Então, no período da Guerra Fria, passa a ser aliada dos Estados Unidos, que buscavam evitar o cresci mento do comunismo na Europa”, explica Fraga.
Transição Espanhola (1975–1985)
A ditadura franquista acaba apenas quando o gene ral Franco morre, em 1975. A morte dele aparece em As maravilhas. “Hoje, pelo jeito, deve estar mor rendo mais gente em Madri, ou será que proibiram as pessoas de morrer até que ele seja enterrado?”, diz uma vizinha à personagem María. A morte marca também o começo da transição, que consolidará a monarquia parlamentarista na Espanha. Atualmente, o país tem tanto um rei como um primeiro-ministro eleito pelo parlamento, também chamado de presi dente do governo.
Em As maravilhas, aparecem as históricas eleições gerais de 1982, que consagram o socialista Felipe González, do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), como presidente. María participa de uma celebração com seus companheiros do grupo de bairro. Nos anos 1990, no entanto, o país voltou a ser governado por partidos de direita.
Crise econômica (dos anos 1990 aos dias atuais) As crises financeiras que afetaram o mundo em escala global, especialmente entre 2007 e 2009, tam bém tiveram impactos na Espanha. A partir de 2010, o desemprego se intensifica no país, afetando os jovens espanhóis. Os efeitos de uma série de medidas anteriores de austeridade passaram a ser mais perce bidos. “Com o implemento de políticas neoliberais, há uma consequente precarização. Mesmo sendo qualificados, os jovens que conseguiam emprego se deparavam com a precarização”, explica Fraga,
Felipe González, presidente eleito em 1982.
da UFFS. Na obra, a personagem Alicia é uma das muitas jovens que sobrevivem com um emprego precário — ela atua como vendedora em uma loja de conveniência no metrô.
Greve das Mulheres (2018)
No romance, o Dia Internacional da Mulher marca um dos momentos mais importantes da trama. As manifestações de mulheres ocorreram em escala global naquele ano. Na Espanha, porém, elas rei vindicaram também respostas aos problemas eco nômicos. “No contexto espanhol, a data adquire um caráter singular porque é convocada uma greve geral de trabalhadores e essa greve é convocada pelas mulheres. Promover a greve naquele momento tinha dois sentidos: o primeiro é o de afirmação de gênero e luta por igualdade; o segundo, o de combate à precarização do trabalho, que afeta todos, mas especialmente as mulheres”, explica Fraga.
Crédito: Biblioteca Virtual del Patrimonio Bibliográfico Mulheres espanholas protestam em 2018. Crédito: Gaudi RamoneIlustração do mês
Gabriel Renner é ilustrador e diretor de arte. Fez o curta O paradoxo da espera do ônibus em parceria com o diretor carioca Caselli e, em Porto Alegre, Renner foi diretor de animação de Hotel Farrapos com o estúdio Cartunaria. Ambos podem ser assis tidos no Youtube e no seu instagram: @rennergabriel.
A pedido da TAG, o artista interpretou uma passagem do livro do mês: “A praça da estação Atocha quase deserta, os poucos carros e os poucos pedestres: mais alguns minutos, e o dia vai clarear. Na Cuesta de Moyano, as bancas com as persianas baixadas, alguns vultos arroxeados — ela as distingue de longe, as mulheres — empilhando cartazes perto do car rossel. Escutou alguma coisa sobre o dia de hoje na televisão, mas logo se distrai, o farol fica verde, ela atravessa até a entrada da estação, pensando em assuntos que lhe interessam um pouco mais.”
Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página.
seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.
Crítica literária e jornalista. Fez pós-doutorado em Letras na UFRGS e é doutora em Letras pela UCS. Foi repórter da Folha de S. Paulo e Veja.
Escrevemos os livros que podemos”
Elena Medel reflete sobre condições de trabalho e fala sobre como As maravilhas resultou mais no livro que pôde escrever, ocupando o tempo que deveria ser livre, do que aquele que gostaria de ter escrito
Foi com os versos do poeta espanhol Federico García Lorca que Elena Medel entendeu que queria falar aquele idioma, que era o mesmo que o seu, mas usando as palavras de um modo único. Antes de As maravilhas, seu primeiro romance publicado — ela escreveu outros quatro —, Medel dedicou-se à poesia. É da poesia que carrega a busca pela palavra exata, mas é no realismo que constrói suas narrativas.
Na entrevista a seguir, a autora conta que se interessa por como os livros que lemos são escritos e editados. Isso porque ela está atenta às questões que envolvem a precarização do trabalho, tema presente no seu livro. Vivendo em Madri, ela já ganhou diversos prêmios literários e também é editora de um selo de poesia.
PAULA SPERB*A autora do mês, Elena Medel. Crédito: Laura C. Vela
Seu romance possui muitos temas, mas é quase impossível não começar falando da questão feminina e das diferentes gerações de mulheres que se cruzam na trama. Nesse sentido, o que distingue e o que há em comum entre María, Carmen, Alicia e Eva?
Existe um ponto em comum entre elas, que costumo omitir porque prefiro que se descubra conforme se lê. Entretanto, não se trata do nexo mais poderoso entre todas as mulheres de As maravilhas; creio que há ele mentos, como o gênero ou a classe social, que unem essas personagens mais que qualquer outra circunstân cia. Mulheres de classe baixa, com trabalhos precários, sobrevivendo na periferia de uma grande cidade ou em bairros humildes de uma cidade pequena… Essa experiência poderia aproximá-las, mas quase sempre — por suas atitudes diferentes — as afasta. Aquilo que Alicia interpreta como uma debilidade, María converte em fortaleza.
A memória coletiva de certo tempo, ou tempos, também surge na novela. Em determinado ponto, por exemplo, Alicia pensa sobre o episódio violento em sua escola e conclui que narrá-lo “concederia a eles um lugar em sua memória”, algo como uma memória individual. Como você trabalhou a memória coletiva dos episódios históricos ao mesmo tempo que escreveu também sobre a vida íntima?
O feminismo nos recorda de que o pessoal é político. Desde a intimidade, construímos ideologia, refletimos sobre a maneira como o indivíduo atravessa o coletivo e vice-versa. Nesse sentido, aspirava a contar a história recente do meu país em dois sentidos e a partir de duas vidas: a de María, cuja trama se conecta diretamente com os acontecimentos históricos, e a de Alicia, mais vinculada às questões econômicas. Praticamente cada capítulo de María aborda uma história íntima com um acontecimento histórico de fundo — a morte do dita dor Franco, a vitória socialista nas eleições gerais de 1982 —, e praticamente cada capítulo de Alicia também une uma experiência sua com uma crise econômica de fundo — as consequências das crises dos meados dos anos noventa, que nos despertaram do sonho da modernidade, ou a interminável crise de 2008. Quando pensamos em contar a História, nos detemos nos nomes próprios que tomaram decisões, quase sempre homens
brancos ricos e heterossexuais com um posicionamento socioeconômico e ideológico muito específico. Mas o que acontece com as pessoas sobre quem repercute o que esses homens fizeram ou deixaram de fazer? Com as vidas sobre as quais nunca saberemos e que, entretanto, me parecem valiosíssimas, extraordinárias? A partir delas, quero contar a História, pensar sobre a política e a ideologia.
Parte importante da trama ocorre durante a ditadura franquista e sua queda. Vemos María politizada, ainda que seu entorno, com seus companheiros de grupo, fosse muito machista. Falar da ditadura é o que torna o romance um livro político?
Existe um componente político anterior também, e que aparece desde as primeiras páginas: o da classe social. Alicia busca um caixa do banco em que abriu sua conta para sacar dinheiro sem que cobrem uma taxa. O dinheiro se controla melhor em espécie do que em uma conta ou com cartão, porque se pode tocá-lo, ou seja, esse dinheiro existe. Sabe-se de quanto se dispõe e quanto se pode gastar. Aí já aparece a política no romance, desde a primeira cena, e continua com o ativismo feminista de María na associação de mulhe res — e sua lista de greves e manifestações de que não participou porque deveria trabalhar — e prossegue no regresso de María ao bairro em que nasceu. No livro, há alusões políticas mais evidentes, claro, como a menção à ditadura franquista ou às eleições de 1982, mas gostaria de pensar que a política aparece mais de outras maneiras mais sutis.
As gerações mais jovens das mulheres do romance não sofrem a ausência de democracia, mas sofrem o impacto da crise econômica. Que estratégias literárias você adotou para escrever sobre um fenômeno mais recente? Alicia é quem mais sofre com a crise?
Considero que a precariedade não é uma questão geracional, mas ligada à classe social a que pertencemos. María é uma personagem que nasceu no começo dos anos cinquenta, vive a precariedade — laboral e eco nômica, também emocional — de maneira muito mais direta que Alicia, que nasceu em meados da década de oitenta. María não conheceu outro sistema, ao contrário de Alicia, que desfruta da ilusão da Espanha da década
"Considero que a precariedade não é uma questão geracional, mas ligada à classe social a que pertencemos."
de noventa. Me refiro ao meu país, claro, porque é onde vivo e onde se passa o romance, ainda que a minha experiência com as traduções de As maravilhas esteja comprovando que — infelizmente — fala de questões muito universais. A crise de 2008 golpeou a nós que nos inseríamos no mercado de trabalho, nós que tínhamos vinte e poucos anos, e condenou a geração seguinte, que não conhece mais que contratos precários, bolsas eternas etc. Entretanto, como dizia, ainda que possa existir certo viés geracional na precariedade, creio que é um tema de classe: quem nasce em uma família de classe baixa terá mais dificuldade de conquistar um emprego digno, com um bom salário e condições estáveis, do que alguém de família abastada. Quanto às estratégias literárias, o realismo é a minha tradição literária: observo o que acontece, penso, conto no que escrevo. Com muita reflexão, claro, com muitas perguntas sobre o que dizer e como, mas assim trato eu meus textos.
“Até para protestar é preciso ter dinheiro”, diz María. Podemos dizer que, para escrever, também é necessário ter dinheiro? Qual é a sua experiência? Você nasceu no interior, como a personagem, e vive em Carabanchel, como ela. Como isso impacta sua literatura?
Escrevemos a partir das nossas circunstâncias. Quando se garante que não existe ideologia ou política em sua obra, essa atitude já implica um posicionamento. No meu caso, eu compartilho traços biográficos com María e Alicia — cidade de nascimento e bairro de vida, por exemplo —, mas meu ofício tem a ver com a cultura: atualmente, trabalho como editora independente, e, durante quatorze anos, fui freelancer em diferentes áreas da edição, principalmente. Não trabalhei com o corpo, como elas — em que pese a coluna e a visão, acaba -se resistindo —; ainda assim, trabalhei precariamente. Somava uma parte de pagamento aqui, outra parte de pagamento lá, e tinha pouco tempo para escrever, quando conseguia. Sempre digo que escrevemos não os livros que queremos, mas os livros que podemos. Para me dedicar ao livro As maravilhas, às vezes conseguia reservar umas horas no começo do dia, algum sábado ou final de semana, ao custo de escrever esgotada ou de recusar planos de lazer, o que impactava minha vida pessoal. Isso repercutiu no tempo — e na qualidade
do tempo — que dediquei a escrever o romance, no muito que demorei para escrevê-lo — uns cinco anos entre as primeiras notas e a entrega do texto definitivo à editora — e compreendo também que em questões como estrutura ou tom. Cada vez me interessa mais saber em que condições se escrevem — ou se editam — os livros que lemos.
As maravilhas é seu primeiro romance publicado, mas você já escreveu livros de poesia. De alguma forma, a poesia a ajudou a escrever romances?
Talvez minha trajetória de escrita pareça curiosa. Na minha infância, como suponho que aconteceu com outras pessoas, brincava de contar histórias: desligava a televisão e escrevia um final para o episódio da série a que assistia, ou prolongava nas minhas historinhas a vida dos personagens que me entusiasmaram. Aos 13 anos, descobri a poesia de Federico García Lorca e entendi que aquelas palavras soavam como as palavras que eu usava para falar com minhas amigas ou minha família, mas, ao mesmo tempo, serviam para forjar um idioma distinto, e nesse idioma queria me expressar. Comecei a escrever poemas enquanto continuava com meus relatos, tentando terminar algum romance — As maravilhas é o primeiro romance que publico, mas o quarto que escrevo —, começando no ensaio… Mas a poesia ocupa o coração do que escrevo: a busca da expressão exata, o despojamento, a aprendizagem da rejeição ou do descarte quando algo — um personagem, uma trama etc. — não funciona.
O que você gosta de ler em ficção? Há romances que influenciaram sua formação como escritora?
Na reta final da escrita, sobretudo durante o processo de correção, antes de me sentar para escrever, lia auto ras que admiro, quase como forma de entretenimento: Annie Ernaux, Elena Ferrante, Natalia Ginzburg, Carmen Martín Gaite. Tomara que quem leia As maravilhas busque depois os livros de quem me inspirou. Como esta entrevista será lida no Brasil, gostaria de mencionar — além do nome evidente de Clarice Lispector e da poeta Ana Cristina Cesar — uma escritora espanhola que se exilou aí durante décadas, Rosa Chacel. E a feliz irmandade entre As maravilhas e Suíte Tóquio, esplêndido romance de Giovana Madalosso.
Crítica literária e jornalista. Fez pós-doutorado em Letras na UFRGS e é doutora em Letras pela UCS. Foi repórter da Folha de S. Paulo e Veja.
Gênero e classe em três gerações de mulheres
PAULA SPERB*
As maravilhas é um romance que conta a história contem porânea da Espanha pelo viés da vida cotidiana
L embranças de eventos grandiosos ou corriquei ros habitam nossa memória. A sensação de des lumbramento ao entrar pela primeira vez em uma residência repleta daquilo com que sonhamos ou almejamos pode ser uma dessas recordações. São reminiscências cheias de relevo que ganham ares de grandiosidade, especialmente se experimentadas na infância e adolescência. Uma memória desse tipo inspira o título de As maravilhas. Para realizar uma tarefa escolar em grupo, duas amigas vão até a casa de Alicia, a colega anfitriã. No apartamento, são recebidas por Alicia e sua irmã, Eva, quatro anos mais nova. As colegas, mais pobres do que as irmãs, são levadas a conhecer cada detalhe de uma casa recheada de artigos que indicam outra classe social. Uma televisão para cada quarto, um computador com acesso à internet — discada, já que estamos na década de 1990 —, pares de tênis caros, os perfumes da mãe, a cozinha com micro-ondas, e porta-retratos com fotografias da família na Eurodisney.
As duas amigas lembrariam daquela visita na ado lescência por muitos anos. Tanto por causa da riqueza que desconheciam como por causa dos eventos que ali se desenrolaram. Já adulta, uma delas escreve um e-mail à outra, relembrando aquele dia. O título do e-mail: “As maravilhas”. Como diz uma das vozes narradoras do livro, o “assunto da mensagem” não tinha “vínculo aparente com a situação”, mas logo entendemos que as maravilhas em questão eram tudo aquilo que a família ostentava e um dia perderia.
Assim, o livro acaba contando a história recente da Espanha pelo ponto de vista do cotidiano e da intimidade. O romance se inicia em 2018, cerca de duas décadas depois, com Alicia sacando o dinheiro que recebe por trabalhar em uma loja de conve niência em uma estação de metrô de Madri, a capital do país. A personagem já não carrega as distinções de família abastada do passado, mas símbolos da decadência econômica familiar — uma decadência que não ficou restrita à sua família, mas foi a crise financeira da Espanha. Alicia convive também com um trauma desencadeado naquele mesmo dia da visita das colegas do colégio.
Nascida em Córdoba, no interior, ela pertence à terceira geração de mulheres retratada no romance político e feminista escrito pela espanhola Elena Medel. Uma geração que supostamente tinha a garantia de um futuro de estabilidade econômica e prosperidade, segundo o que lhe era prometido, mas que viveu o oposto. Alicia e os jovens adultos de sua geração enfrentam o desemprego ou a precariedade dos contratos de trabalho como consequência de políticas econômicas neoliberais das décadas ante riores, conforme a própria autora do livro explica em entrevista à TAG nesta edição da revista.
Alicia decide que não será mãe. “Um corpo de mãe não é um grande prêmio para homem algum”, pensa. Sua opção por não vivenciar a maternidade tece um diálogo com outro romance espanhol, Aprender a falar com as plantas, de Marta Orriols, já enviado pela TAG. Ela chega a inventar uma filha imaginária, Alicita, que “não entende nada, nem sofre, nem ouve, só quer saber mesmo de chorar e mamar e cagar e que alguém a limpe”. A linguagem brutal adotada em diversos momentos por Alicia lembra outro livro hispânico, Casas vazias, da mexicana Brenda Navarro, igualmente já enviado pela TAG.
A maternidade, porém, não foi uma opção para María, a personagem que representa a primeira geração de mulheres retratada na obra. No final da década de 1960, seduzida por um homem com quem conversa durante um trajeto no ônibus, engra vida muito jovem. Pobre, ela deixa a filha pequena aos cuidados do irmão e da irmã, e muda-se para Carabanchel, distrito da periferia de Madri. Na capital,
trabalha como cuidadora de uma idosa e como faxi neira. Quando volta à cidade natal para visitar a filha, percebe que ela “cheira a cigarro”, “tão diferente […] de outros bebês”. Eis mais um exemplo de como o romance de Medel não poupa o leitor da aspereza da realidade das classes menos favorecidas. A filha, Carmen, sintetiza a segunda geração de mulheres presente no romance.
María é a personagem mais politizada da obra. Sua politização, todavia, não deriva necessariamente da vivência da ditadura franquista e sua consequente derrocada, mas de uma crescente consciência, sobre tudo sobre as questões de gênero, classe e trabalho. Ela pertence a uma associação de moradores, onde passa a participar de reuniões que discutem temas do bairro. Apesar do machismo que relega as mulheres a um papel secundário na organização, María ficava atenta às discussões, anotava “alguns nomes de escri tores que eram citados pelos colegas da associação e por outros homens”. “De um escritor eu passava para outro e mais outro, e sempre contava minhas conclusões para aquele homem, meu companheiro, que se chamava Pedro, e as debatia com ele. Na reunião seguinte, ele as apresentava”, conta María. A personagem, apesar de silenciada, ficava satisfeita que suas ideias eram recebidas como inteligentes.
“Durante o dia, ela cozinha, limpa, passa roupa e obedece, mas à noite se dedica à memória”, diz a voz narradora. María, no futuro, conclui que “a memória gera sua própria ficção”. Nesse sentido, é possível relacionar, mesmo que tangencialmente, a ficcionalização da memória com o conto “O diário de Porfiria Bernal”, da argentina Silvina Ocampo. “Escrever antes ou depois que as coisas acontecem dá no mesmo: inventar é mais fácil do que recordar”, diz a personagem Porfiria.
A politização de María culmina com sua atuação feminista nos protestos de 8 de março de 2018 em Madri, que, diferentemente de outros lugares do mundo, contou com uma greve geral. A interseccio nalidade dos temas contemporâneos funciona como uma tese no romance de Medel. A autora sustenta, por meio da ficção, que o gênero não está alheio à classe. Como diz María, “Até para protestar é preciso ter dinheiro”.
Eliete: a vida normal, de Dulce Maria Cardoso
Importante nome da literatura portuguesa contemporânea, Dulce Maria Cardoso apresenta a história de uma mulher que se sente sufocada pela rotina como mãe e esposa, e que empreende uma investigação acerca de sua vida. A partir disso, a trama evidencia a sua relação com a mãe, com a avó e com o pai — morto inesperadamente, ele deixou memórias ligadas à sua luta contra a ditadura salazarista. Lançado em julho deste ano pela Todavia, o romance costura, assim como As maravilhas, dramas individuais com eventos do passado recente da Península Ibérica.
Nós, mulheres: grandes vidas femininas, de Rosa Montero Conterrânea de Elena Medel, a escritora e jornalista Rosa Montero, autora de A ridícula ideia de nunca mais te ver, apre senta biografias de mulheres célebres, como Agatha Christie e Simone de Beauvoir, e outras menos conhecidas, como Juana Azurduy, militar latino-americana de origem indígena que lutou contra os espanhóis.
As meninas, de Lygia Fagundes Telles
Morta neste ano, a autora publicou essa obra em 1973. Ambientado na época da ditadura militar brasileira, o romance mostra a trajetória de três jovens: a burguesa Lorena, a ativista política Lia e a viciada em drogas Ana Clara. A temática feminina é costurada magistralmente com o pano de fundo histórico.
Solitária, de Eliana Alves Cruz Lançamento recente da editora Companhia das Letras, esse romance brasileiro mostra os resquícios da época escravocrata que ainda hoje se fazem presentes no país. Acompanhamos a trajetória de duas mulheres negras, mãe e filha, que vivem na casa dos patrões em um condomínio de luxo. Uma delas acaba sendo testemunha-chave de um crime ocorrido nesse ambiente doméstico.
E eu não sou uma mulher?: mulheres negras e feminismo, de bell hooks
Para quem quer aprofundar as reflexões sobre os entrecruzamentos entre classe social, gênero e raça, a teórica feminista norte-ameri cana parte de um emblemático discurso proferido por Sojourner Truth, mulher negra que havia sido escravizada e se tornou oradora depois de liberta, para dissertar sobre o racismo e o sexismo presentes nos movimentos pelos direitos civis.
Outros livros para quem gostou de As maravilhas
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Guia de perguntas sobre As maravilhas
1. O que você achou da escrita de Elena Medel? Sua prosa se assemelha à de outros autores e autoras que você já tenha lido? O que você considera inovador no estilo narrativo de As maravilhas?
2. Discuta os paralelos e as divergências entre as trajetórias de María e Alicia.
3. Leia a contextualização da página 14 e discuta a forma como a autora costurou as trajetórias das personagens com os acontecimentos históricos espanhóis.
4. “Até para protestar é preciso ter dinheiro.” Discuta como essa afirmação da personagem María demonstra se confirmar ao longo da leitura do livro.
5. O que você achou do final do livro?
dezembro
Escrito por um autor israelense, o livro gira em torno das aventuras de dois adolescentes pelas ruas de uma Jerusalém subterrânea. Entre o mistério e a fábula, o que se lê é um romance cativante e cheio de sensibilidade. A indicação foi feita por uma escritora que volta a ser curadora do clube: a também israelense Ayelet Gundar-Goshen.
Para quem gosta de: literatura israelense, mistérios, fábulas Começamos o ano com uma curadoria para lá de especial: autor de Torto arado, Itamar Vieira Junior indica um livro, inédito no Brasil, de uma escritora norte-americana frequentemente comparada a Alice Walker e Toni Morrison. Com uma linguagem direta e impactante, o romance mostra a trajetória de luta, a partir da década de 1960, de uma mulher negra que tenta sustentar a sua família em um subúrbio de Detroit.
janeiro
Para quem gosta de: personagens femininas fortes, literatura afro-americana, dramas familiares
“Escrevo inteiramente para descobrir o que estou pensando, o que estou olhando, o que vejo e o que isso significa. O que eu quero e o que eu temo.”
– JOAN DIDION