prefรกcio Minha vida de rata
Olá, tagger Violet Rue delata um crime racial e perde a vida como sempre conheceu. Ainda criança, precisa entender a fenda que o episódio abre entre ela e a família – e o abismo em que tal fenda se transforma ano após ano. A motivação do crime é, para ela, difícil de entender. Violet é uma criança doce e se transforma em uma mulher que resiste para existir. Por trás de um véu de fragilidade, ela busca reparação com os seus, refletindo sem jamais entender os motivos do ato brutal cuja delação vitimou sua infância e sua juventude. Esta revista vem como uma resposta às questões que Violet levanta ao longo da narrativa de Minha vida de rata. Nesta edição, a jornalista Brenda Vidal caminha pelos meandros do racismo estrutural: em uma edição composta unicamente por falas de especialistas negros, os “comos” e “porquês” de Violet são respondidos de forma enfática e, esperamos, definitiva. A leitura de Joyce Carol Oates requer força e empatia, pois mostra o que poucos desejam ver: o desejo de aniquilação do diferente, a manutenção de hierarquias antiquadas a qualquer custo. Enxergar e entender tudo isso dói, mas eleva. Oferecemos nossa mão a você, tagger, para embarcar nessa narrativa e sair diferente. Boa leitura!
outubro/2020
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Edição
Impressão
Fernanda Grabauska
Impressos Portão
Redação
Projeto Gráfico Bruno Miguell M. Mesquita Kalany Ballardin Paula Hentges
Fernanda Grabauska Laura Viola Hübner Luísa Santini Januário Nicolle Ortiz Rafael Balsemão
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Túlio Cerquize tcerquize@gmail.com
Revisão Antônio Augusto da Cunha Gustavo Lembert da Cunha Rafael Balsemão Rafaela Pechansky Liziane Kugland
Como manusear a nova revista
Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.
Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!
Sumário prefácio
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O livro indicado: Minha vida de rata
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Unboxing
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Violência lapidada
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Não é monstruosidade, é racismo
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O livro indicado
Minha vida de rata de Joyce Carol Oates
Texto: Brenda Vidal Fotografia: Recorte da box de Minha vida de rata
Pare exatamente do jeito que você está. Inspire fundo: encha seu diafragma – é para você sentir sua barriga se expandir como um balão – e leve seus ombros em direção às orelhas. Sustente essa posição, com o ar dentro da barriga, por quatro, três, dois, um: abra a boca, exale e deixe os ombros caírem de uma vez só. Esse exercício de relaxamento deveria ser um apêndice em diversas obras da escritora estadunidense Joyce Carol Oates – sobretudo para o livro que chega a sua casa neste mês. Repita-o quantas vezes for necessário durante a leitura de Minha vida de rata. Sentiu desconforto em ficar com os ombros contraídos no alto? Com um enredo vertiginoso e visceral, é impossível não reagir com o corpo todo, muitas vezes ficando em estado de alerta e de tensão. Pausas para respirar fundo serão muito bem-vindas em uma leitura que faz ofegar. Aqueles já iniciados na obra de JCO – escritora que se equilibra entre a popularidade comercial enquanto autora de best-sellers e uma carreira de premiações e reconhecimentos no espaço literário – sabem bem o quanto ela é cirúrgica ao construir sensações de angústia, principalmente ao esmiuçar sujeiras estruturalmente jogadas para debaixo do tapete. Nesse livro, inédito no Brasil e lançado originalmente em 2019 nos Estados Unidos, ela mais uma vez convoca a temática da vida íntima em família, principalmente em seus elementos corrosivos e suas bases erodidas. O que destaca Minha vida de rata é a abordagem ousada: a
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Fotografia: Oregon State University 8
dinâmica de uma numerosa família de ascendência irlandesa em solo estadunidense se torna no livro o cruzamento de violências e opressões. A narrativa segue o percurso de um eletrocardiograma, atingindo mais de um pico e apresentando curvas acentuadas ao impacto de cada novo trauma. Tirar a peneira que tapa o sol parece ser a obsessão criativa de Oates, e aqui aconselhamos cuidado: a exposição direta ao astro-rei pode também iluminar o lado mais sombrio de nossas relações e de nossas contribuições – conscientes ou não – para a manutenção de privilégios e, consequentemente, opressões. Sua carreira começa no final dos anos 1960 e é acompanhada de forma insistente por um questionamento por parte de público e de crítica: por que abordar tópicos tão duros, ásperos, umbrosos? Em uma entrevista ao jornal britânico The Guardian em 2019, quando perguntada sobre a questão – inclusive retomando um ensaio intitulado “Why is your writing so violent?” (Por que sua escrita é tão violenta?, em tradução livre), de sua autoria–, ela declarou o seguinte:
— Parecia haver um consenso geral, mesmo entre escritores, de que as escritoras deveriam se concentrar na vida doméstica, vida familiar, criação de filhos, casamentos, romance… Algumas mulheres me repreenderam repetidamente por ousar escrever sobre assuntos tão distintos. A revisora de uma revista influente na década de 1960, a Saturday Review, me disse sem rodeios para eu me concentrar em questões femininas e deixar “grandes romances sociais” para (o escritor e jornalista) Norman Mailer. Joyce Carol Oates está interessada na luta diária pela sobrevivência, por personagens que se veem diante do extremo, histórias comoventes sobre o processo de superação - sob um olhar bastante crível e humano. Em certa medida, ela rompe com a patriarcal e exaustiva noção de “escrita feminina”, conceito que cristaliza a produção feita por mulheres em um reduzido universo temático. A escrita de mulheres é, basicamente, tudo o que uma mulher quiser escrever e ponto final, né? Para JCO, a família aparece como ponto de partida para reflexões sobre acontecimentos que causam danos irreparáveis, capazes de tornar suas personagens mulheres dotadas de resiliência. Ambientes abusivos e mudanças inesperadas são marcantes em algumas de suas obras mais densas, como Freaky green eyes (2003) e After the wreck, I picked myself up, spread my wings and flew away (2006), mas, em Minha vida de rata, eles se combinam de forma ensurdecedora, culminando em uma obra considerada pela crítica “o mais sombrio de todos os livros”. Para atingir essa tal obscuridade, não foi necessário ir em busca do terror, da fantasia, ou do sobrenatural, mas, sim, da audácia de cavoucar nas condições humanas mais desumanas. Nessa obra, JCO é capaz de fazer de Violet a personificação de como uma ruptura com os ciclos de violências seculares e estruturais pode ser dolorosa, apesar de ser o caminho mais redentor.
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E a jornada de Violet é espinhosa e propositadamente extenuante. Haverá momentos em que você vai esboçar um “Meu Deus, chega!” ou “Alguém ajuda essa garota, pelo amor de Deus!”, de tão prolongada e torturante que é sua trajetória. O enredo contém muitos gatilhos de violência – não queremos dar spoiler, mas recomendamos ir com calma, afinal, alguns assuntos podem ser muito sensíveis para você.
‘‘As mulheres tudo veem, mas são constantemente desencorajadas a falar – ou melhor, são silenciadas, cúmplices de um mesmo silêncio.’’ 10
Conflitos que nos espetam, mas que não podemos ignorar. Na casa de madeira na rua Black Rock, 388, na fictícia cidade de South Niagara, Violet e os demais Kerrigan são uma família convencionalmente caótica. A dinâmica da casa é mergulhada na masculinidade tóxica: um pai patriarcal e silenciador que estimula os filhos homens a serem violentos, inclusive com sessões de lutas com eles. As mulheres tudo veem, mas são constantemente desencorajadas a falar - ou melhor, são silenciadas, cúmplices de um mesmo silêncio. Um crime de racismo dispara o potencial danoso e opressor que há na família de origem irlandesa, inserida no reduto branco do bairro e da cidade - nas mentiras, no negacionismo, no silêncio. Violet ousa falar e se vê forçada a se refazer a partir do nada. Um percurso dolorido e longo – acompanhamos a adolescência e a adultez de Violet –, marcado pelos impactos das violências e traumas na sua subjetividade, na sua psique, sua dilacerante noção punitivista contra si mesma. Afinal, é melhor ser leal à família ou à verdade?
unboxing O projeto gráfico de Minha vida de rata contrasta a brutalidade das pinceladas da pintura a óleo à delicadeza de um rosto feminino com traços irlandeses — ascendência da protagonista, Violet Rue. O título do livro é estampado na frente da face, representando o apelido e a "marca" que Violet carrega consigo ao longo da narrativa. O mimo, por sua vez, é um conjunto de três sabonetes com aroma da flor violeta, em homenagem ao nome da personagem. A embalagem dos sabonetes alude ao ciclo natural das flores, que, assim como a vida, é composto de fases, esperança e renovação.
Ilustração: Túlio Cerquize
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A autora do mês
Violência lapidada
Texto: Brenda Vidal Fotografia: Dustin Cohen
“Gosto de escrever, sim. Muito. E me sinto um tanto perdida, sem destino e totalmente sentimental e incoerente quando acabo um trabalho e ainda não estou envolvida com outro”, declarou Joyce Carol Oates em 1976, durante entrevista para o poeta Robert Phillips, publicada na The Paris Review dois anos depois. JCO leva o “gostar de escrever” a um nível impressionante: com 57 anos de carreira, ela coleciona, por alto, mais de cem publicações – entre romances e coletâneas. Isso sem contar o que foi publicado sob os pseudônimos Rosamond Smith e Lauren Kelly. Minha vida de rata, que você recebe na caixinha deste mês, foi lançado em 2019, quando a escritora já estava na casa dos 80 anos. Conhecida como uma das figuras mais respeitadas da literatura norte-americana, é exaustivamente adjetivada como “a mais prolífica escritora viva dos Estados Unidos”. Ela parece ter nascido para as palavras, a ponto de se dedicar a elas quase que espiritualmente. E só uma experiência transcendental – como ela acredita que a arte pode proporcionar – consegue nos ajudar a dimensionar essa relação. A cada obra, JCO empreende uma busca vertiginosa, visceral, por conectar e promover conexão com os universos que ganham forma a partir de sua palavra escrita. Desejo tangível pelo escrever, adoração pelas palavras, mas também uma disciplina ferrenha, que, depois de tanto tempo, já é algo natural. Em entrevista à revista The New Yorker em 2013, ela diz que poderia, basicamente, “escrever o dia inteiro”, e pondera: “Não é como se eu sentasse para escrever como se isso fosse um ato
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extraordinário, sabe, é basicamente o que eu faço”. A escrita não só faz parte da sua rotina há muitas décadas, como, às vezes, se sobrepõe a outras práticas cotidianas. Na conversa que teve com a Paris Review, ela descreveu: “Não tenho um ritual formal, porém gosto de escrever de manhã, antes de tomar café. Às vezes, o trabalho corre tão suavemente que demoro a fazer uma pausa – e, como resultado, acabo tomando café da manhã às duas, três da tarde, na melhor das hipóteses”. Ao entrar em contato com a figura de Joyce Carol Oates, principalmente sob o efeito de Minha vida de rata, o leitor pode pensar em grandes faixas de areia. Vistas de longe, são imponentes; mas, observadas em detalhe, nada mais são do que muitas partículas de rochas degradadas – minúsculos pedaços que se unem e formam algo maior. No microscópio, cada grão de areia é único. A areia forma o chamado Grande Mar no Saara, mas também cabe na mão de uma criança. Por que a comparação? Porque a carreira de Joyce Carol Oates é polida na erosão. Com temáticas desconfortáveis, ela vai, escrita por escrita, erodindo estruturas, provocando fissuras, extraindo grânulos. Grânulos diversos, visto que a versatilidade é também outra marca sua: JCO transita com graça entre poemas, ensaios críticos, contos, romances, peças. E falar dessa autora, no alto de seus 82 anos e com uma trajetória colossal, é como querer falar de uma gigante duna. Nascida em junho de 1938 na cidade norte-americana de Lockport, estado de Nova York, Joyce é a primogênita do casal Carolina e Frederic James Oates, também pais de Fred Jr. e Lynn Ann. Ela cresce em uma espécie de fazenda, num contexto mais ruralizado e afastado da cidade grande, e concebida em uma comunidade de brancos da classe operária. Uma de suas obsessões literárias, a luta diária pela sobrevivência é experimentada no contexto familiar, nada luxuoso e sem muitas garantias financeiras. Ainda na adolescência, aos 14 anos, ela ganha de presente da avó uma máquina de escrever, e sua pulsão pela escrita começa a se desenvolver. Ela termina o ensino médio em 1956, na Williamsville South High School, tornando-se a primeira na família a atingir esse
A escritora em instantâneo de 1949
grau de escolaridade. Ainda na adolescência, dá indícios de que se destacaria na escrita ao ganhar prêmios. Seu ofício é carregado com afinco e determinação desde aquela idade, como relembrou na entrevista à Paris Review: “Comecei a escrever no segundo grau, treinando-me conscientemente para escrever romance após romance, e jogando tudo fora depois de concluído”. Com o destaque, ela estuda na Universidade de Syracuse e se forma em 1960. Vai a Wisconsin cursar o mestrado em 1961 e, no final da década, assume a cadeira de docente na universidade canadense de Windsor. Sua relação com a literatura se revela uma dupla jornada, dividida entre a licenciatura e a criação. Os anos 1960 se mostram abundantes e prósperos: em 1963, ela publica seu primeiro livro, a coletânea de contos By the north gate. Em 1970, ganha seu primeiro prêmio notável: o romance Eles recebe o National Book Award. Desde então, cultiva uma carreira abundante em títulos, prêmios e em variedade: do conto à dramaturgia, do romance à poesia. Cultiva também, desde o início, críticas pela temática violenta e obscura, lida como ainda mais “assustadora” quando obra da mente de uma mulher. A atração por esses temas é um questionamento que acompanha toda a sua trajetória.
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Pendulando entre o realismo social e uma espécie de revisão do gótico sulista – aspectos também notados nos trabalhos de Toni Morrison e Anne Rice –, a escrita parece ser conduzida por aquilo que faz nosso coração acelerar, que faz nossa espinha arrepiar, aquilo que nos sobressalta. Com experimentalismo também nas formas e estruturas, ela se utiliza de alegorias para refletir, de forma constantemente crítica, sobre a experiência contemporânea da vida nos Estados Unidos. Através de uma fluência desconcertante, o viés psicológico vai desnudando os recantos mais escuros das esquinas da vida urbana padrão. Medos, inseguranças, provocações ao nosso senso de identidade, a fragilidade da personalidade humana. A violência que irrompe e alcança níveis extremos, mas que, de certa forma, é apenas uma germinação de diversas sementes violentas que permeiam nosso dia a dia. Culpa, sina, ansiedade, punição. As contradições, tensões e o colapso de instituições como família e casamento, sem cair em discursos moralistas. Cenários com tradição naturalista, que podem se relacionar à obra de escritores como William Faulkner e Gustave Flaubert, com a explosão de traumas e violências à superfície do status quo. Obsessões sexuais, inadequação, conflitos religiosos, um terror latente. Frequentemente cotada para o Nobel de Literatura, Joyce Carol Oates é ganhadora da National Humanities Medal, do PEN/Malamud Award por excelência em contos, professora emérita da Universidade de Princeton e autora de best-sellers, como We were the Mulvaneys e As cataratas. Imensa e diversa, coesa e detalhista. É com devoção e dedicação quase obsessivas que ela lapida, abrasa e refina seus escritos. Escritos que convocam ao desconforto, em uma leitura superficial, mas que, ao fechar dos livros, nos desmobilizam do conforto em tolerar e perpetuar sistemas que fomentam violências.
NÃO É MONSTRUOSIDADE, É RACISMO Como a lógica da branquitude justifica assassinatos e violência contra a comunidade negra
Texto: Brenda Vidal
É pouco dizer que, em Minha vida de rata, a vida dos Kerrigan é abalada por um evento violento. Um evento indiscutivelmente irreparável rompe o cotidiano dessa família branca de ascendência irlandesa, e, apesar de inúmeras justificativas e delírios em prol da alucinada possibilidade de reparação, o abismo se expande. O mesmo evento é ainda mais irreparável, pois definitivo, para outra família do livro: os Johnson. O assassinato de um jovem negro no enredo contém em si o virulento diálogo com uma das expressões mais radicais do racismo – o limiar da violência extrema. Não é necessário abrir o livro para que outros casos venham à mente – são tantos os George Floyd e os João Pedro que é difícil contabilizar as vítimas fatais da organização racista do mundo. Aqui, convocamos a sensibilidade para tratar de um assunto complexo – e que pode ser um tema gatilho para pessoas negras –, que é a articulação entre racismo, violência e o processo de objetificação do outro. Importante ressaltar que estamos nos debruçando sobre o racismo na experiência de pessoas negras; outros grupos de pessoas não brancas não terão suas peculiaridades abordadas. Vamos provocar você nas próximas páginas. Através da semiose social, conceito articulado pelo argentino Eliseo Verón, que aplica conceitos do norte-americano Charles Peirce para entender a dimensão social e a construção da cultura, é possível afirmar que as violências que partem do cotidiano se infiltram nas
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estruturas de uma sociedade. Nos cotidianos racistas, caso do Brasil, o corpo negro é um corpo ligado a coisas ruins. A dimensão do imaginário social é mobilizada pelo pesquisador, ativista e tradutor Vinícius da Silva para pensar as violências físicas e os assassinatos de indivíduos negros: “A construção social, ideológica e cultural tangenciam fenômenos como esses. O modo como essas mortes são tratadas e concebidas e, consequentemente, como essas vidas são concebidas, está sendo informado por essa construção que permeia os nossos juízos”, diz. Por mais que muitas pessoas brancas não sejam capazes de matar uma pessoa negra, é importante desapegar-se da ideia de que quem comete tais atos é um “monstro”, como aprofunda o professor de Filosofia Africana e doutor em Bioética Wanderson Flor do Nascimento. “É algo absolutamente corriqueiro do racismo. Um dos problemas é que ele joga uma espécie de véu em cima de alguns fenômenos, o que faz com que a gente sequer perceba que a violência está acontecendo. Os autores dessa violência, no livro, não eram monstros. O racismo não é uma experiência de monstruosidade, mas seu efeito é um feito monstruoso”, determina. O slogan Black Lives Matter ou, em português, “Vidas Negras Importam”, não está aí querendo passar a mensagem de que, se sua vida não é uma vida negra, ela não pode importar, pois só as vidas negras importam.
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Fotografias: Guillaume Issaly Johnny Silvercloud Anthony Quintano Romerito Pontes
Ao contrário, é uma tentativa de valorizar a existência desse grupo social, de humanizá-lo. De dizer que essas pessoas são humanas, merecem viver suas vidas... Por que, em 2020, essa é uma ideia ainda necessária?
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Porque, em nossas sociedades e em suas instituições, a lógica colonial que transformou indivíduos negros em objetos ainda não foi superada. Ainda estamos tentando devolver a subjetividade e o valor humanitário de negras e negros num cotidiano racista. Nascimento desenha: “Se você esbarra em uma barata, ou em outro animal que você não considere digno de viver, e você mata essa barata, você não vai imaginar que esse é um gesto violento, porque ele não é entendido dessa forma. O racismo tira a capacidade de pessoas brancas verem corpos negros como vidas que valem a pena serem vividas”. Enquanto o racismo continuar a se atualizar e a estruturar nosso modo de viver, pessoas negras serão desumanizadas. E, se o objeto – pessoa negra – é desumanizado, quem o desumaniza historicamente – a pessoa branca – também é desumano. A relação sujeito-objeto, no caso da objetificação de vidas, é paradoxal. A branquitude objetifica negros e negras, mas há a necessidade de reconhecer suas humanidades para que elas sejam retiradas. Ou seja, a lógica racista sabe que objetificar uma pedra, na filosofia ocidental, não faz sentido, porque a pedra é uma pedra. Agora, quando objetifica um ser humano não igual a si, mas capaz de assimilar a opressão, o opressor se realiza e se afirma enquanto superior. “Isso é algo de todas as estruturas opressivas: você só se entende enquanto sujeito se você consegue colocar o outro no lugar de objeto. O homem só se entende homem negando a mulher e transformando-a em objeto, assim como o branco para com o não branco. Isso não é uma escolha, é uma determinação da lógica racista”, expõe Nascimento. Essa engrenagem é a engrenagem que mantém a branquitude viva. A branquitude é mais do que o conjunto de pessoas de pele clara, é o resultado do processo violento que descrevemos aqui, o qual se constrói na hierarquia racial. É uma relação de poder, uma gangorra. Nas lógicas opressoras, o que é diferente do opressor precisa ser diminuído. É necessário uma escavação profunda e crítica para desmantelar essa estrutura que molda nosso jeito racional padrão de pensar. Assim, não há espaço para assimilar o diferente como se diferencia a cor azul da cor
vermelha, mas dá-se, aí, um processo de outrificação: o diferente é visto como elemento que desorganiza a ordem social, dependendo do lugar que ocupa, e implica uma vontade de eliminar o outro. Essa construção ancestral e constante da pessoa negra em objeto não se dá só a chutes e pontapés literais, mas em diversas formas de objetificar no dia a dia: nas piadinhas, nos estereótipos reproduzidos, na falta de negros no círculo socioafetivo. Por que cabelos crespos, de pessoas negras, são comparados à palha de aço, enquanto cabelos lisos, de pessoas brancas, não são comparados a utensílios esdrúxulos? Porque pessoas negras estão mais próximas de objetos do que de seres humanos. O extermínio dessas vidas conversa muito com a ideia de abjeção articulada pela filósofa norte-americana Judith Butler, que invoca mais o banimento dessa existência – a impossibilidade desse indivíduo existir. Algo bem próximo ao que defendem grupos supremacistas brancos, não é mesmo?
A branquitude objetifica negros e negras, mas há a necessidade de reconhecer suas humanidades para que elas sejam retiradas. Da Silva evoca questões para, de fato, construirmos saídas antirracistas. “É necessário uma substituição do paradigma social, daquilo que a bell hooks vai chamar de ‘comunidade amada’. Isso é algo difícil e que precisa ser feito na coletividade. E, por isso, devemos pensar na importância dos movimentos sociais, de pessoas negras, sobretudo de mulheres negras, que nos passam muitos ensinamentos e caminhos para seguirmos”. Se quisermos que vidas negras importem, precisamos entender o problema do racismo, algo que requer estudo e reflexão crítica. Assim, poderemos partir para soluções. Nascimento nos deixa o questionamento definitivo: “Os corpos negros estão tombando em todo canto, estão no chão o tempo inteiro. A quem isso mobiliza?”.
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Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.
posfรกcio Minha vida de rata
Olá, tagger Não só com agressões físicas se mata um ser humano, você vê. Joyce Carol Oates tem o poder de tirar tudo do lugar para depois colocar de volta. É o que diz a nossa curadora, Luisa Geisler, que assina também a tradução do romance que você leu, sobre essa história de assassinato de almas. Mas, assim como Violet Rue encontrou a coragem para se reerguer depois de todos os socos que a vida lhe desferiu, quem lê Minha vida de rata pode também repensar a existência. Todo livro é um portal para o entendimento: se você, pessoa branca que está nos lendo, conseguir repensar o que representa na dialética racista, a busca de Violet valeu a pena. Neste posfácio, conversamos com a curadora sobre o livro do mês e suas reverberações e buscamos, com as vozes de mais pessoas negras, entender a questão da culpa branca. Enxergar o problema ainda não é melhorar. No purgatório que suas ações lhe proporcionaram, a protagonista de Minha vida de rata, por muitos anos, dá braçadas em um mar de culpa sem saber como agir. Esperamos que, no final dessa experiência, você encontre ideias para se tornar um instrumento de mudança no cotidiano. Boa leitura!
“No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover em direção à liberdade, a agir de formas que libertam a nós e aos outros.” “O amor como a prática da liberdade”, bell hooks
Ilustração do mês Gabriela Pires é designer visual e ilustradora. Filha de pai paraibano e neta de mineiros, tenta usar sua história familiar como bagagem para seu trabalho. Nascida e criada em São Paulo, carrega em si a inquietude e a diversidade de interesses e visões de mundo, duas marcas da metrópole onde vive. A TAG instigou Gabriela a retratar a família de Hadrian Johnson após o assassinato do adolescente. A ideia da silhueta do jovem é homenagear e representar vidas negras que são tiradas injustamente.
Sumรกrio posfรกcio
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Entrevista com Luisa Geisler
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Livrai-nos do racismo
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As camadas da inferioridade
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Luiz Antonio de Assis Brasil: O curador de novembro
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Entrevista: Luisa Geisler
“Joyce Carol Oates tira tudo de ordem.” Luisa Geisler escreve para experimentar. O exercício é levado com seriedade pela escritora e tradutora gaúcha, que não se dá espaços para rigidez ou medos paralisantes. De passos acionados por impulsos genuínos e autênticos, ela mostra que a chave para se construir um caminho está no movimento. Sua jornada é prova disso: revelada aos 19 anos com o elogiado Contos de mentira, já publicou os romances Quiçá, Luzes de emergência se acenderão automaticamente, De espaços abandonados, Enfim, capivaras e Corpos secos. Ao longo dos anos, deslocou-se do engessado posto de “eterna promessa” da literatura para firmar-se entre as escritoras contemporâneas mais instigantes do cenário nacional. TAG — Luisa, como e quando o livro Minha vida de rata, sua indicação aos associados da TAG, chegou a sua vida?
Texto: Brenda Vidal Fotografias: Desirée Ferreira
O livro me chegou como um trabalho de tradução. Eu já conhecia a Joyce Carol Oates por contos, mas nunca tinha tido uma relação muito próxima, como a tradução exige e cria. Ao entregar o arquivo, mandei junto um e-mail emocionado, falando que queria tudo da autora no futuro, avisando que virava a noite, largava carreira,
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dinheiro e canudo, mas eu queria lidar mais com o rolo compressor de potência que é a Joyce Carol Oates. Inclusive, já estou trabalhando em outra tradução dela (Deus seja louvado).
Ele é um livro escrito por uma mulher branca e que aborda questões raciais. Que impactos uma obra crítica à branquitude e produzida por ela mesma pode promover?
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Obviamente, sou uma pessoa branca lendo o livro. O ângulo racial assombra cada página do livro, acrescenta mais uma camada a cada palavra. O papel da branquitude como aliada entra aí: dar legitimidade e reforçar uma queixa que parece “direitos de um grupo que não me interessa”. Direitos negros, direitos de minorias, são Direitos Humanos. Eu acabo vendo aspectos da complexificação do crime de ódio que ocorre no livro. Não se trata de pura e simplesmente “odiar negros”. Oates explora como esse tipo de crime se torna uma disputa de poder, de psicológicos, de masculinidade(s). Os problemas de desigualdades estruturais da sociedade geram as outras violências presentes na narrativa.
Minha vida de rata é cheio de sensações no mínimo desconfortáveis. Fiquei imaginando… existiria uma bebida, um turno do dia ou um momento ideal para lê-lo? Indicaria lê-lo com chuva, com calma, com uma cerveja ou um café — qualquer um dos dois, bem amargo.
O que a escrita de JCO desperta em você? Joyce Carol Oates tira tudo de ordem para colocar as coisas em ordem. Tipo jogar todas as roupas na cama para reorganizar o armário, mas as roupas são meus sentimentos. Não sei se é a imagem ideal, mas é a que me ocorre. O ato de traduzir o Minha vida de rata foi intenso, um livro em que me peguei questionando o valor de uma vírgula, repensando aspectos da minha
própria escrita. Por mais que a história seja potente, a linguagem, a forma como a narrativa se constrói, impressiona muito. É um livro que não existe apenas numa história, mas a partir de uma mecânica.
Seu lançamento mais recente, Corpos secos, é uma obra realizada ao lado de outros três autores: Natalia Borges Polesso, Samir Machado de Machado e Marcelo Ferroni. Como foi essa experiência de produzir de forma conjunta? O Corpos secos é esse apocalipse de mortos-vivos nacionalizado para o Brasil, sob quatro pontos de vista, quatro autores com seus protagonistas se cruzando pelo país em busca de alguma saída. Partindo de uma sinopse comum, um autor optou por aventura, outro bolou um perfil psicológico mais complexo, outro foi para sangue e tripas. Um autor começou com uma Madame Bovary que vira Imperatriz Furiosa à la Mad Max. Uma autora encontrou drag queens veganas e mães que descobrem a cura nas ervinhas no jardim. Outra autora encontra um garoto-soldado que era só um garoto com um peixe no começo da história. O que me interessou no projeto é como um autor com voz própria sempre encontra o ângulo que interessa. O livro já teve direitos para cinema vendidos (uhul!), mas meu sonho é escrever uma continuação, com esse mesmo grupo.
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A estante da autora O último livro que li: Ainda que a terra se abra, de Rodrigo Tavares. O livro que estou lendo: Amada, de Toni Morrison. O livro que eu gostaria de ter escrito: O mundo em chamas, de Siri Hustvedt. O último livro que me fez chorar: Altos voos e quedas livres, de Julian Barnes. O último livro que me fez rir: Poemas, de Wislawa Szymborska. O livro que eu não consegui terminar: (Eu estou indo devagar) Relatos reunidos, de Hebe Uhart. 8
O livro que eu dou de presente: Os nacionais contemporâneos; os da Aline Valek pra uns, os do André Leon para outros. O livro que mudou a minha vida: Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas.
LIVRAI-NOS DO RACISMO Culpa branca e a inércia de pessoas brancas na dinâmica de opressão racial
Texto: Brenda Vidal
Em Minha vida de rata, a protagonista Violet Rue Kerrigan não é alguém expressamente racista. Mas, em uma outra ponta, fica a pergunta: seria ela antirracista? Dominada por uma sensação torturante, ela se culpa por ter denunciado os irmãos, por ter rompido a lealdade familiar e por ser irmã de dois dos assassinos de Hadrian Johnson. Em certos momentos, parece se culpar pela morte do garoto – um redemoinho de culpa que deve também ser analisado pelo viés racial. Ao longo do tempo, Violet cultiva o hábito de enviar um cartão no dia de São Valentim junto de uma certa quantia de dinheiro para o endereço da família Johnson. E é só por obra do acaso que ela se desencontra com a mãe de Hadrian, ao tentar encontrá-la em sua residência. Mas o que Violet poderia dizer de acolhedor para a mãe de Hadrian Johnson? Será que essa mãe necessitava ouvir algo dela ou era de Violet a necessidade de falar? Tatiana Nascimento é escritora, doutora em Estudos da Tradução e ministra formações sobre privilégio branco. Em maio deste ano, ela publicou no portal da revista O Menelick 2º Ato o texto “Leve sua culpa
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branca pra terapia”. Culpa branca? Nascimento explica no artigo: “Penso culpa branca não como alguma culpa sentida por alguma pessoa branca: mais precisamente o sentimento de ser culpada pela própria branquitude. Tenho visto aparições desse sentimento como tentativa de expurgar o pecado do racismo da própria vida. Às vezes ele me parece uma manifestação secundária, derivada da percepção inicial da branquitude como, ao mesmo tempo, mantenedora e beneficiária maior do racismo. Uma manifestação que dá o passo seguinte à autocompreensão tida por pessoa branca sobre o lugar que ocupa numa sociedade colonial. Mas esse passo seguinte, sendo a culpa, é estacionário”. É importante atentar ao fato de que as produções teóricas de pessoas negras sobre questões raciais e, especificamente, sobre branquitude são múltiplas, assim como o contexto sociopolítico de cada pesquisador e sua experiência com o racismo. A concepção de culpa branca não é consenso, mas aqui pode gerar reflexões. Sim, desconfortos podem fazer parte dessa jornada. O racismo é uma experiência violenta e encará-lo pode evocar sensações de ódio, frustração, impotência, revolta, entre outras. Mas, quando se menciona culpa branca, a assistente social, mestra e doutoranda em Antropologia Joyce Souza Lopes reforça: “Trata-se de um conceito. Não somente o sentimento de culpa sentido por sujeitos brancos, mas um traço identificado entre muitos dos brancos tensionados racionalmente, que se caracteriza por uma busca por redenção sem grandes sacrifícios; uma ânsia crescente por serem absolvidos de sua ancestralidade racista simplesmente pelo fato de reconhecerem a própria branquitude”. Se a chave para o fim do racismo fosse apenas o arrependimento, poderíamos até estar mais avançados em nossa sociedade. Mas não é nada disso. Nessa fervorosa busca por perdão eterno, por salvo-conduto, há inclusive a lógica de perdão cristão articulada ao sistema colonial. “É fundamental perceber que essa necessidade de remissão dos pecados tem relação com o nosso berço fundamentalista cristão, que compreende o mundo a partir de uma dualidade simplista entre bons e maus, ignorando as facetas subjetivas e as complexidades do
ser humano”, aponta a advogada e consultora étnicoracial Monique Rodrigues do Prado. A culpa, além de ser uma sensação que só pode se referir a algum evento passado – ou seja, já cometido –, está aqui articulada enquanto caráter coletivo da branquitude. Advinda da lógica racista, ela pode ser ainda utilizada como forma do sujeito branco manter-se no protagonismo, posando de herói mesmo nas discussões sociais. O branco culpado é quase como alguém que tem as vistas cobertas por um véu; incapaz de enxergar o racismo com a nitidez da realidade, ele age em busca da remissão de seu ato muito mais pelo peso na consciência do que pelo seu engajamento na promoção de equidade racial. Está interessado em ser perdoado, mas não em anular seus privilégios.
“O racismo é uma experiência violenta e encará-lo pode evocar sensações de ódio, frustração, impotência, revolta.” Ações individuais são importantes, mas não resumem a questão – o racismo é coletivo e não se restringe à esfera da moral: “Nos âmbitos institucional, político, econômico, jurídico e social, a culpa branca de um indivíduo não gera efeito nenhum, por isso a importância de a culpa não ser reduzida a um sentimento, mas ser convertida em responsabilidade, de modo que isso seja acoplado ao contrato social como um valor democrático”, reflete Prado. É de se imaginar que, para o ser humano empático, ver-se como possível perpetuador do racismo deve
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ser horrível e causar um sentimento de peso ancestral. Muitas pessoas brancas minimamente iniciadas na discussão do racismo escutam que ele é estrutural e fazem dessa condição uma espécie de bengala para se desculpar – ou até mesmo se "des-culpar" – pelas reproduções de algo que, afinal, está gravado na sociedade. Lopes expõe: “Quando o argumento se torna jargão, a única dimensão levada em conta é a da universalidade, a de totalidade. É como se o racismo fosse uma onda de poluição que paira no ar: todos respiram, ninguém é responsável individualmente por emiti-la, mas sua produção está a pleno vapor”. A antropóloga arremata: “Atualmente, eu concordo com a assertiva de que o racismo não seja apenas estrutural. O racismo é ontológico, o racismo é pilar da concepção branca de ser humano e de humanidade, concepção que funda a colonialidade”. Ou seja, é pesaroso que uma pessoa não branca tenha de ouvir de uma pessoa branca todas as suas lamúrias e os seus sentimentos de culpa sobre ser branco em uma sociedade racista. E é ainda mais violento perceber que a pessoa branca recua e, em um discurso superficialmente consciente, tenta justificar seus erros para que se entenda que ela não “vacilou” por intenção. É necessário ir além na compreensão das esferas imbricadas na dinâmica racista e como elas se manifestam – do xingamento de “macaco”, passando pela má distribuição do saneamento básico no Brasil, até a falta de pessoas negras na chefia de empresas – e que a pessoa branca se mobilize em prol de reparação social, autocrítica pessoal e coletiva e de seu lugar no mundo. Ao pensar na relação de brancos e não brancos em um ambiente marcado pelo racismo, você pode imaginar uma grande escada na qual, historicamente e pelo viés de raça, brancos estão nos degraus mais altos, enquanto pessoas não brancas estão distantes e abaixo. As pessoas brancas, quando não querem ser racistas, acreditam que basta olhar para os não brancos abaixo e gritar “vamos, suba!”, mas são elas mesmas incapazes de descer para ajudar. Será que o caminho da equidade racial é construído apenas de subidas?
Crítica
As camadas da inferioridade
Texto: Fernanda Bastos Jornalista, poeta e CEO da Figura de Linguagem, editora antirracista sediada em Porto Alegre. É também mestra em Comunicação (UFRGS) e autora de Eu vou piorar (Figura de Linguagem, 2020).
É possível que, ao encerrar Minha vida de rata, paire um mal-estar. Não há uma solução fácil nessa obra, que aponta – como poucas conseguiram até aqui – o prejuízo que o racismo causa também para as pessoas brancas. Essa danação não vem do suposto “racismo negro” de que falam alguns personagens no livro, referindo-se ao antirracismo e às medidas de reparação, que leem como vingança. Esse sentimento vem da crença na superioridade branca, que se torna uma ferramenta de poder em sociedades organizadas pela desigualdade. Por mais que a autora evoque muitas vozes nessa narrativa polifônica, a de Hadrian Johnson, de sua família e de outros negros permanecem inauditas. E esse é um dos maiores acertos da obra, porque, deixando os negros de fora, ela pode aprofundar a análise sobre o quanto a crença na existência de raças inferiores provoca erosões em todas as identidades. Reflexões sobre a branquitude podem resultar no flagrante de um conflito pessoal na identidade racial branca, causado justamente pela consciência de pertencer a um grupo opressor. Para o historiador Lourenço Cardoso, que estuda o tema, aderir ao antirracismo exige que uma pessoa branca encare a própria identidade racial e sua consequente responsabilidade histórica. Para ele, há uma
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branquitude crítica, que é contrária ao racismo, e uma branquitude acrítica, que endossa a superioridade dos sujeitos brancos e pode assumir pulsões homicidas, caso da Ku Klux Klan, de organizações neonazistas e de grupos de ultradireita contemporâneos. A família de Violet e as pessoas racializadas como brancas que ela vai encontrando incorporam essas camadas de branquitude imbricadas a outras identidades em erosão, como a masculina. São pessoas que exercem seu mísero poder com frustração, prontas para explodirem em violência, que é a linguagem que dominam. A culpa branca é evocada muitas vezes no livro como contraposição ao ódio branco. Para provar que não é racista como seus irmãos homicidas, Violet parece buscar relações inter-raciais, que a permitam afirmar que não vê cor. Afinal, ela não acha que há raças inferiores, ela rejeita o mundo que estipula as hierarquias que a levaram para a violência e para o silenciamento. No entanto, o pertencimento ao mundo branco de Violet não lhe garante passagem livre. Uma vez que ela se mostra disposta a romper com o racismo, ela se torna ainda mais vulnerável, uma pária, uma rata. Depois que somos apresentados à atmosfera violenta e desesperançosa de sua casa, que estabelece a educação para o silêncio e o medo, não parece absurdo que ela se torne alvo de um supremacista branco pedófilo anos depois e, sobretudo, que esse ser ignóbil seja protegido dentro da comunidade reiteradas vezes, em detrimento de crianças como a própria Violet e Tyrell Jones. A trajetória de descoberta, assimilação da culpa e rompimento com o racismo naturalizado da personagem sugere que o amor é uma saída. O medo branco, que transforma qualquer sujeito negro em inimigo – e que pode ser considerado um erro –, é substituído, na mesma medida, pelo desejo de conhecer o outro. Porque sua culpa é pesada e a necessidade de consertar as coisas é grande, Violet cai em outras essencializações. Nessas horas, Tyrell Jones se torna um representante de sua raça, alvo da mistura de desejo, de desculpas e necessidade de aprovação: “Eu amo você. Me perdoa. Todos nós… perdoe todos nós”. Trata-se de uma simplificação que contraria os fatos. Pois mesmo que Violet queira
acreditar que o amor pode salvar as pessoas, sujeitos como seu irmão Lionel fazem com que ela esbarre no desejo de poder de uma identidade insegura, que identifica a violência e a exclusão como modos de ser, como performances ancestrais.
“Uma vez que ela se mostra disposta a romper com o racismo, ela se torna ainda mais vulnerável, uma pária, uma rata.” É fato que existem sujeitos que se acostumaram a alguma posição de poder na sociedade e que não querem perdê-la. Seja por sua raça sociológica, gênero ou classe, esses sujeitos desejam oprimir outros sujeitos, porque se sentem mais protegidos e familiarizados com a manutenção da violência daqueles que acreditam ser diferentes e, portanto, inferiores a eles. Não por acaso, sendo alvo de abusos constantes, Violet se sente mais à vontade junto à comunidade negra. Passagens como aquela na qual ela dialoga com uma senhora negra em um ônibus enfatizam essa tentativa de adequação de quem acredita que o mundo negro possa ser mais seguro para os vulneráveis, sejam eles negros ou brancos. A heroína de Minha vida de rata não recebe a empatia que oferece à sua comunidade. Mais do que ser xingada de rata, ela é forçada a se comportar como uma. Ela transita em comunidades estranhas, circulando à noite, fugindo de armadilhas. Sobrevivendo. Como um rato à procura de sobras, ela se move no escuro, naquilo que as pessoas escondem, nos pontos-cegos onde a violência viceja. Somente o conhecimento fornece a Violet a emancipação de que ela tanto necessita. Entretanto, para alcançá-lo em plenitude, ela tem de ter coragem para aceitar os riscos que a liberdade, por menor que seja, impõe.
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O curador de novembro
Luiz Antonio de Assis Brasil
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Fotografia: Raul Krebs
Pense em um autor brasileiro contemporâneo e muito provavelmente você terá alguém que aprendeu com o curador do próximo mês. Luiz Antonio de Assis Brasil é romancista, cronista, ensaísta e o professor responsável pelos primeiros passos na escrita de nomes como Carol Bensimon, Daniel Galera e Antônio Xerxenesky, apenas para citar alguns. Colunista da imprensa gaúcha por muitos anos, dedica-se atualmente à edição da Parêntese, revista digital semanal que traz cultura, opinião e literatura. Unindo o romance e a busca pela verdade, ele indica à TAG uma espécie de biografia romanceada de um episódio tão inusitado quanto definidor da história da democracia latino-americana. Nesse livro, um publicitário em crise é incumbido da tarefa de salvar seu país da ditadura com nada além de alguns minutos na televisão e uma música grudenta. Enquanto isso, mortes, desaparecimentos e violência rondam o cotidiano daqueles que o rodeiam.
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