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A terceira vida de Grange Copeland
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Ao Leitor A ficção nos acostuma a pensar que todo campo seco, arrasado, pode se tornar uma paisagem de verde viçoso. O livro que você recebe este mês não é uma ficção otimista, no entanto. Assim como um campo sem água e nutrientes não viceja, pouco evolui o ser humano sem afeto e dignidade. É o caso de Brownfield em A terceira vida de Grange Copeland. No romance de estreia de Alice Walker – traduzido em primeira mão para os assinantes da TAG –, a trajetória de sonhos para o futuro seguidos de repetidas derrocadas nos faz entender o ciclo do racismo no período da chamada reconstrução pós-abolição. Neste prefácio, você vai conhecer a história de Alice Walker, tão forte em seu ativismo quanto na retórica de seus romances. Vai entender um pouco das circunstâncias da escrita de A terceira vida de Grange Copeland e se aprofundar nas suas principais temáticas: a modalidade da parceria rural, a conquista da educação como recurso de emancipação para o negro e a questão dos direitos civis, que permeia o livro que você lê este mês e toda a obra de sua autora. Mesmo longe do otimismo, A terceira vida de Grange Copeland nos mostra exatamente do que o campo morto de Brownfield precisa para prosperar. Com sorte, depois dessa leitura, possamos todos ser agentes de mudança a partir dos ensinamentos de Alice Walker. Boa leitura!
maio/2020
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Redação
Bruno Miguell M. Mesquita Gabriela Heberle Kalany Ballardin Paula Hentges
Projeto Gráfico
Daniel Silveira Fernanda Grabauska Laura Viola Hübner Maurício Lobo Nicolle Ortiz
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Revisão Antônio Augusto da Cunha Gustavo Lembert da Cunha Liziane Kugland
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Como manusear a nova revista
Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.
Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!
Sumário prefácio
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O livro indicado: A terceira vida de Grange Copeland
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Os direitos civis na obra
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A redenção pelo conhecimento
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Uma nova palavra para escravidão
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O livro indicado
A terceira vida de Grange Copeland de Alice Walker
Texto: Maurício Lobo Fotografias: Divulgação
“Tudo começa ao querermos entender algo, seja uma pessoa ou apenas um acontecimento.” A frase de Alice Walker sobre a produção de seus romances dá o tom de sua literatura: sua obra busca examinar e entender o passado e as mazelas da comunidade negra norte-americana. A escritora, engajada em iniciativas políticas desde os anos 1960, se fez notar pelo retrato vívido do cotidiano de mulheres negras e a complexidade das relações humanas que acompanha essa perspectiva. Walker nasceu em fevereiro de 1944 na pequena comunidade rural de Eatonton, no estado da Geórgia, região sul dos Estados Unidos. Foi a mais jovem de oito irmãos, prole de um casal que ganhava seu sustento por meio da parceria rural (ou sharecropping), que, no contexto pós-guerra civil para os americanos negros, era na prática uma continuação da escravidão (leia mais na página 18). Apesar das dificuldades, a mãe de Alice, que para ajudar a aumentar o salário miserável era também costureira, vislumbrava um futuro melhor para a filha. Por isso, impediu a caçula de seguir os trabalhos rurais dos mais velhos, inscrevendo-a em uma escola aos quatro anos de idade. É muito improvável que Walker, até então uma criança extrovertida, tivesse seguido o rumo que seguiu se um trágico acidente durante a infância não lhe tivesse ocorrido. Com oito anos, brincando com dois de seus irmãos mais velhos, foi atingida por uma bala de chumbo que lhe custou a visão de um olho e prejudicou severamente sua autoestima. Ela, então, retirou-se das atividades comuns de infância, encontrando refúgio
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nos livros e na escrita de poesia. Sem espaços silenciosos para ler e escrever em um ambiente onde circulavam dez pessoas, passou grande parte de seu tempo trabalhando em sua literatura na parte externa de casa, encontrando a tranquilidade de que necessitava debaixo de uma árvore. Embora uma cirurgia para remover a cicatriz de seu olho, anos mais tarde, tenha contribuído para que Alice voltasse a ser uma jovem confiante, a literatura já havia deixado uma marca indelével. Nas escolas racialmente segregadas em que estudou, foi uma aluna de destaque, e ainda hoje menciona os professores que lhe incentivaram a imaginar e a buscar um futuro melhor com as próprias forças. Se faltaram recursos, o que sobrou na infância de Alice Walker foi o apoio de sua comunidade, que lhe deixou o caminho aberto para ir atrás de um destino distinto. Acima de tudo, foi sua mãe que a incentivou desde cedo a ser escritora. Em 1961, Walker recebeu uma bolsa para estudar na Spelman College, à época uma faculdade para mulheres negras, em Atlanta. Durante sua passagem pela cidade, foi ativa na luta pelos direitos civis, acompanhando de perto a insurreição de figuras como John Lewis e Julian Bond contra a segregação no país e, mais tarde,
presenciando a Marcha de Washington, onde Martin Luther King proclamou o famoso discurso Eu tenho um sonho. Insatisfeita com o posicionamento político da Spelman, que, segundo ela, preferia formar mulheres comportadas e sem espírito crítico a incentivar o ativismo, Walker partiu para o estado de Nova York, onde recebeu outra bolsa na Sarah Lawrence College, instituição de artes liberais que lhe proporcionou um intercâmbio estudantil em Uganda, em 1964. No mesmo período, um drama abalou Walker: a escritora precisou se submeter a um aborto, episódio que a colocou em profunda depressão. Seu único refúgio foi, novamente, a escrita. A autora escreveu poemas como forma de apaziguar sua ansiedade e dor. Alguns de seus rascunhos foram parar nas mãos de uma professora, que, impressionada, levou o projeto adiante. Parte desses poemas foram a base para sua primeira publicação, Once (1968). Walker retornou brevemente à Geórgia após sua graduação para ajudar no movimento por direitos civis. Viajava para as zonas mais afastadas e ia de porta em porta oferecer o registro de voto a pessoas negras e pobres. Testemunhar o impacto da pobreza nas relações entre negros e negras foi essencial para a consolidação de suas convicções; esse trabalho continuou quando ela partiu para o Mississippi, anos mais tarde, onde se casou com o advogado judeu Melvyn Leventhal, do qual se separou em 1976. Primeiro casal interracial do estado, os dois precisaram superar dificuldades e ameaças de morte. Apesar da intimidação, nada foi suficiente para silenciá-los. Mel continuou lutando contra a segregação em escolas e Alice, em paralelo ao registro de votantes, foi também professora. Em 1969, ela deu à luz sua única filha, Rebecca, e concluiu seu primeiro romance, A terceira vida de Grange Copeland (1970), cuja primeira edição traduzida para o português brasileiro você recebe neste kit.
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Walker constrói uma narrativa intensa sobre uma família marcada por conflitos internos tão potentes a ponto de se tornarem, muitas vezes, insuperáveis. Ao longo de três gerações, o leitor será exposto a questões que seguem conservadas temporalmente como racismo, machismo, violência doméstica, desigualdade social e conflitos familiares. Composta por descendentes de escravos, a família Copeland – chefiada pelo pai, Grange, e pela mãe, Margaret – vive no sul dos Estados Unidos no início do século XX. Morando na Geórgia e trabalhando, como a maioria dos negros na época, em condições precárias nas fazendas de algodão, Grange não consegue escapar da desigualdade social, vivendo em meio à pobreza desoladora. Sem cumprir o papel esperado de pilar familiar, quando o protagonista se vê fragilizado, acaba compelindo toda a família à decadência pessoal em que se encontra. Margaret, submissa ao marido, é pressionada e ameaçada fisicamente por Grange, que abusa de bebidas alcoólicas. Brownfield, o filho do casal, é negligenciado pelo pai, que faz questão de estancar qualquer tipo de pensamento positivo do garoto em relação a uma mudança de vida. Toda essa desordem e melancolia levam, invariavelmente, a violentas brigas – como se elas (assim descreve a narração) “fossem capazes de preservar parte do sentimento de estar vivo”. Nesse sentido, o casal Copeland alimenta sua relação com conflitos e traições, e o ciclo vicioso vai se tornando cada vez mais profundo.
“Com Grange, eu queria entender o que acontecia à vida familiar durante um período de anos. E queria entender o conceito de autodesprezo e ódio à família, o tipo de coisa destrutiva que Brownfield exemplificava. Queria entender Brownfield e também entender pessoas que poderiam ser Brownfield, mas não eram. Queria saber qual era a diferença. Tudo começa ao querer entender algo.”
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Pairando ao redor dos protagonistas (e, naturalmente, incidindo no núcleo familiar) está o racismo, tema que percorrerá toda a narrativa. Grange, inconformado com sua situação de miséria, converte sua insatisfação em ódio contra qualquer homem branco. Num ato final de desespero, ele procurará outros caminhos para evoluir financeira e pessoalmente – sem saber que essa atitude, entretanto, levará sua família à degradação completa. O tempo passa e, como dito, as tensões familiares dos Copeland deixam um rastro de traumas. Entre mortes, abandonos e procuras, Brownfield herda de Grange o ódio à população branca, assim como o espírito autodestrutivo. Após se casar com Mem, mulher de personalidade forte que acredita no poder emancipatório dos estudos e do conhecimento, o jovem Brownfield envereda pelo mesmo caminho do pai, mas de maneira ainda mais radical: embebeda-se com frequência, revolta-se
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com a vida no campo, violenta a mulher de maneira sistemática e se recusa a oferecer qualquer tipo de atenção às três filhas do casal. No meio dessa tormenta, é Grange quem reaparece, transformado por suas experiências e disposto a uma reaproximação. Em termos estéticos, a obra apresenta um desenvolvimento tradicional: narrativa em terceira pessoa com uma linguagem bastante objetiva, deixando em um plano secundário os aspectos subjetivos dos personagens. Assim, ganhamos um romance de subtextos, que abrem a leitura para uma série de possibilidades de compreensão dos conflitos psicológicos existentes na obra. Há ainda, em termos de linguagem, um registro distinto operado por Walker nos diálogos entre indivíduos do norte e do sul dos EUA. O registro da fala dos Copeland é construído com variações linguísticas que indicam um nível de escolaridade baixo. Contudo, não se trata apenas de um nível linguístico, pois, para quem mora no norte do país, o sul é visto como um local de pessoas menos civilizadas. Ou seja, a questão linguística só condensa alguns dos motores fundamentais da obra de Walker: os complexos mecanismos de poder que seguem reprimindo qualquer avanço em termos de uma sociedade mais igualitária. Desde a publicação de A terceira vida de Grange Copeland, Walker lançou uma obra extensa, persistente no tom combativo e em defesa das experiências das mulheres negras, o que lhe garantiu sucesso também como ensaísta e poeta. Entre livros de ensaios, não ficção, romances, coletâneas de poemas e contos, que continua publicando até hoje, sua obra mais popular ainda é A cor púrpura (1982), vencedora do National Book Award e do Pulitzer de ficção, o que a tornou a primeira mulher negra a receber este prêmio. O livro recebeu adaptação para o cinema em 1985, com direção de Steven Spielberg e atuações de Oprah Winfrey, Danny Glover e Whoopi Goldberg. Narrado pela protagonista Celie, A cor púrpura traça a trajetória de uma jovem que, partindo de uma infância traumática e violenta, passa por um despertar interior no qual, com a ajuda de outras mulheres, consegue enfim se entender como alguém desejável, forte e independente.
Mulherismo e polêmicas A preocupação com políticas identitárias da autora também causou impacto na sociologia. Uma das contribuições mais lembradas de Alice Walker para o feminismo negro foi quando, em sua coletânea de ensaios In search of our mothers’ gardens: womanist prose (sem tradução para o português), de 1983, introduziu o termo womanism – ou “mulherismo”–, que representaria a mulher negra e feminista. A criação desse termo fazia sentido à época, em um contexto no qual a teoria feminista não abrangia as vivências das mulheres negras. O que Alice Walker e tantas outras protagonistas do feminismo negro defendiam era o enfoque nas diferentes subjetividades, levando em conta, fundamentalmente, as diferenças de raça e classe. O termo mulherista seria, dessa maneira, uma alternativa e, ao mesmo tempo, uma expansão do feminismo. Na contramão de seu trabalho por igualdade, declarações polêmicas recentemente colocaram a autora na linha de fogo da crítica. Em 2018, Alice foi acusada de antissemitismo ao indicar, em entrevista ao New York Times, a leitura de And the truth shall set you free (sem tradução para o português), livro do britânico David Icke, conhecido conspiracionista. No livro, o autor afirma tanto que os judeus financiaram o Holocausto quanto que, talvez, o Holocausto simplesmente não tenha acontecido. Walker não retirou a declaração. Em seu website, ela reiterou a indicação e afirmou que Icke tem “a coragem de fazer as perguntas que outros não fazem”.
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Mimo:
O espaço rural é quase um personagem na obra de maio. Alice Walker relata que, sempre que se punha a escrever, colocava flores à sua direita para chamar a inspiração. Pensando nisso, o mimo do mês é um pot-pourri, conjunto de flores e sementes aromáticas que você pode utilizar para perfumar seu ambiente de leitura ou o cômodo que desejar. As flores e sementes evocam a questão dos ciclos, da renovação e da esperança presentes na obra. Para usar o mimo, é facil: encaixe a tampa na parte inferior da caixinha, deixando-a aberta para perfumar sua casa. Depois disso, é só abrir o livro e embarcar nessa leitura.
Projeto gráfico:
A capa pode ser interpretada de duas maneiras: primeiramente, as figuras representam as “três vidas”, as três fases de Grange Copeland – diferentes, ainda que a mesma. Em uma segunda leitura, os vultos simbolizam as três gerações presentes na história – Grange, seu filho e sua neta – se interpondo. As linhas presentes na capa, na revista e na luva trazem os conceitos de trajetória e linhagem, destacados no romance. Além disso, se você posicionar as capas de forma consecutiva, perceberá que elas se complementam infinitamente, representando ciclo e repetição. 13
OS DIREITOS CIVIS E A OBRA DE Alice Walker Texto: Maurício Lobo Fotografias: Divulgação
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m uma das passagens mais emblemáticas de A terceira vida de Grange Copeland, acompanhamos a visita de Quincy e Helen, um educado casal de ativistas dos direitos civis, à casa de Ruth e Grange – este, um tanto desconfiado, e aquela, curiosa com as ideias do casal. Embora o romance aborde temas políticos em praticamente toda a sua extensão, esse é o único momento no qual se vê referência direta ao movimento a que Alice Walker se dedicou desde muito jovem. É provável que a cena em questão seja inspirada no trabalho da escritora pelo sul dos Estados Unidos entre 1965 e 1966, época na qual viajou por zonas rurais para sugerir o registro eleitoral a cidadãos negros, que até então representavam uma parcela quase inexistente do corpo eleitoral dos Estados Unidos. Iniciativas como as praticadas por Walker e por outros ativistas atingiram o ápice nas marchas conhecidas como Marchas de Selma a Montgomery, que mais tarde conduziriam à
aprovação da Lei dos Direitos ao Voto, marco na história americana que sucedeu a Lei dos Direitos Civis de 1964, dando aos milhões de cidadãos negros o direito ao voto. Inicialmente programadas como uma resposta ao assassinato do ativista Jimmie Lee Jackson, o início da marcha foi frustrado duas vezes pela polícia e por grupos segregacionistas – as imagens de violência transmitidas ao resto do país, no entanto, fizeram crescer o apoio popular ao movimento. A marcha foi finalizada somente na terceira tentativa, quando 300 ativistas atravessaram 85 quilômetros a pé e foram recebidos por cerca de 25 mil pessoas em Montgomery, capital do estado do Alabama, onde Martin Luther King proclamou o discurso How Long, Not Long. Não foi apenas em A terceira vida de Grange Copeland, entretanto, que Walker abordou diretamente o Movimento dos Direitos Civis. Este, aliás, é o alicerce narrativo fundamental de Meridian (1976), segundo romance da escritora, nunca publicado no Brasil. Por meio de uma narrativa não linear, a obra conta a trajetória de uma jovem que vê no trabalho de divulgação do 15 registro eleitoral nas zonas pobres dos Estados Unidos uma das armas mais eficazes contra a discriminação e a desigualdade no país. Walker continuou escrevendo sobre questões de raça ao longo da carreira, uma vez que a luta pelos direitos da população negra ainda é uma constante nos Estados Unidos. O movimento Black Lives Matter, que surgiu em 2013 após a morte do jovem Trayvon Martin e a consequente absolvição do policial que o assassinou, foi a referência para um dos poemas da coletânea Taking the arrow out of the heart (2018). Ao refletir sobre a dor das mães negras que perdem seus filhos e a impunidade de seus assassinos, Walker traça um paralelo entre passado e presente, uma realidade que jamais deixou de assolar a população afro-americana. “Esta é uma mensagem que eu desejo que todos os policiais e participantes da (Klu Klu) Klan verdadeiramente entendam – que você não sai realmente impune ao infligir sofrimento e dor às mães”, disse a autora sobre o poema do livro, que ainda presta, em outras páginas, tributos a ícones como Martin Luther King e B.B. King.
A redenção pelo conhecimento
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A personagem Mem, esposa de Brownfield, diferencia-se desde sua aparição em A terceira vida de Grange Copeland por ser uma mulher negra que foi à universidade. Para inveja e ira do marido, ela sabe ler e escrever – não só tem uma visão lúcida do mundo como também tem mais oportunidades profissionais. Mem valoriza a educação e planeja que as filhas tenham acesso ao conhecimento. Contudo, a violência de Brownfield distancia a personagem dessa meta e sua derrocada pessoal ocorre na medida em que ela se afasta dos estudos. A realidade retratada no romance de Walker evidencia a relação entre a comunidade negra do sul dos Estados Unidos e o acesso à educação entre o final do século XIX e o início do século XX – época em que, finda a escravidão, tudo ainda era muito novo. Segundo o historiador Christopher M. Span, autor do livro From cotton field to schoolhouse (2009), quando a Guerra Civil norte-americana terminou e, com ela, milhões ganharam a liberdade, os primeiros passos rumo à democratização do acesso ao ensino foram dados quando da construção de escolas para ex-escravizados. Esses espaços eram geridos tanto por professores vindos do norte do país como por negros libertos. Embora rudimentares em relação aos colégios para brancos, representaram progresso. As comunidades negras locais reuniam esforços para construir, ampliar e manter essas escolas.
Texto: Maurício Lobo Fotografia: Divulgação
A abolição também fez surgir uma gigantesca demanda por educação pública no sul. Antes da Guerra Civil, praticamente não havia escolas públicas na região, a ponto de diversos estados sulistas revisarem suas constituições para incluir a educação pública. Isso servia para brancos, também – muitos escravocratas donos de terras eram analfabetos. Graças aos esforços de lideranças negras, o acesso amplo ao ensino público se tornou uma realidade para todas as crianças. Na segunda metade do século XIX, o número de negros na escola cresceu. Em termos de participação, as escolas norte-americanas passaram a ser frequentadas de maneira igual por negros e brancos. De acordo com Span, em 1900, o analfabetismo entre afro-americanos com menos de 40 anos praticamente deixou de existir. Ainda assim, as chamadas leis de Jim Crow estabeleciam separação racial nas escolas, em especial no sudeste dos EUA. Somente em 1954, no caso judicial conhecido como Brown contra o Conselho de Educação de Topeka, a segregação racial entre estudantes foi considerada ilegal. Após Linda Brown, uma menina negra de 8 anos, ter sua matrícula negada em um colégio público, seu pai recorreu à Suprema Corte dos EUA para reivindicar o ingresso da filha na escola. A vitória de Linda Brown (por nove votos a zero) determinou o fim da segregação nas escolas, embora a execução da ordem tenha sido um processo lento e difícil. O racismo estrutural é complexo e adaptável ao momento histórico. Mas, até mesmo para que haja essa compreensão, a educação é imprescindível. Apesar de fundamental para uma vida digna, o acesso ao conhecimento ainda não é suficiente para garantir a igualdade racial. Nesse sentido, A terceira vida de Grange Copeland evidencia os dois lados da moeda: ao mesmo tempo em que prova que a escolaridade pode emancipar o cidadão negro, mostra que a dinâmica social parece ir contra o avanço dessa população.
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Uma nova palavra para escravidão
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Ao final da Guerra Civil americana, que determinou o fim da escravidão, surgiu um grande questionamento a respeito de novas formas de trabalho. Qual seria a dinâmica da recém-obtida liberdade? Em um momento onde não havia nem dinheiro, nem linhas de crédito independendentes para fazendeiros do sul, senhores e ex-escravos precisaram negociar. Foi assim que, de maneira não oficial, surgiu a parceria rural – sharecropping, no inglês –, sistema em que os fazendeiros permitiam a arrendatários o uso de suas terras agricultáveis em troca de uma parte da colheita. Sedentos por trabalho como homens livres, ex-escravos e suas famílias eram encorajados, então, a produzir a maior colheita possível, e fazendeiros garantiam a mão de obra sem risco de fuga. Na Geórgia retratada em A terceira vida de Grange Copeland, a parceria rural vigorou de 1877 até bem tarde no século 20. Muitas famílias negras – estima-se que, em 1910, mais da metade dos sharecroppers eram afro-americanos – alugavam as terras de seus proprietários brancos para cultivar algodão, tabaco e arroz. Em muitos desses casos, os proprietários entravam com equipamento para cultivo, podendo oferecer também comida e roupas em crédito para os trabalhadores até a estação da colheita. Na hora de acertar os valores, no entanto, os proprietários das terras eram favorecidos. Pagando muito pouco pelo fruto do trabalho dos arrendatários (por vezes cerca de um terço do valor obtido pela colheita), os fazendeiros muitas vezes atribuíam aos trabalhadores dívidas impossíveis de serem pagas, renovando o contrato ano após ano na esperança de sair do atoleiro.
Texto: Fernanda Grabauska Fotografia: Divulgação
Em uma entrevista à emissora norte-americana PBS, o historiador e professor da Universidade de Richmond Edward Ayers faz a ressalva de que, muito embora o sistema de parceria rural tenha feito a devassa na vida de muitas famílias de ex-escravos, nem todos esses trabalhadores foram prejudicados pelo sistema. "Durante os anos da Reconstrução, houve diferentes tipos de barganha. 'Chefe, tenho minha própria mula, tenho meu próprio arado, colocarei cinco dos meus filhos no campo', ou 'Veja a colheita do ano passado. Foi a maior que você tirou. Nos dê mais terras na parceria para tirarmos uma cota maior da colheita' são exemplos de diálogos possíveis. Alguns tiveram a sorte de se beneficiar do sistema de parceria rural". Ayers, no entanto, afirma que é importante lembrarmos que isso estava muito longe de ser comum. "Mais frequentemente, famílias negras com mulheres e crianças no campo usavam a mula e o arado do fazendeiro e, ao final do ano, ouviam algo do tipo 'bem, você tirou uma boa colheita, mas lembra quando emprestei o dinheiro para o remédio da sua filha? E vi que você comprou um vestido em dezembro, e, veja bem, temo que adicionando o dinheiro para a comida que eu lhe emprestei, o valor da colheita não cobriu, você ainda me deve dinheiro." No Brasil, a parceria rural chegou a ser regulamentada no Código Civil de 1916, com as cotas de retorno fixadas em decreto. Pela lei, os fazendeiros teriam direito de 10% a 75%, dos proventos, de acordo com os bens postos à disposição e correspondente às facilidades oferecidas. Assim como nos Estados Unidos, no entanto, tais contratos eram feitos de maneira predominantemente informal e muitos trabalhadores analfabetos ou pouco instruídos (caso de Brownfield no romance de Alice Walker) eram enganados.
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Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.
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posfรกcio
A terceira vida de Grange Copeland
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Ao Leitor Permita-se descansar um pouco depois dessa leitura. Sim, a trama embrulha o estômago, faz acreditar no pior do ser humano e nos obriga a pensar em que condições nasce o ciclo de violência que ela nos explica de maneira tão explícita. Mas, com a cabeça descansada, a leitura deste posfácio também se faz necessária. Nele, a curadora deste mês, a cordelista, poeta e contista Jarid Arraes fala sobre sua relação com o livro que indicou. Mais do que isso, ela fala sobre seu encontro com a escrita, com a literatura negra e sobre sua visão do cenário criativo brasileiro atual, sempre nos convidando a ver com os olhos do outro. No segundo momento deste posfácio, o crítico e escritor Luiz Maurício Azevedo nos empresta seu olhar sobre a obra de Alice Walker no contexto da literatura norte-americana. Com o mérito de escrever sem compaixão, ele nos diz, a autora nos apresenta uma Geórgia tão bem construída em seus problemas e suas escolhas que se torna, uma vez lida, indissociável da Geórgia factual. Ambos os debates aqui trazidos convergem em um ponto: a boa literatura não santifica. Ela se arrisca a expor o que é feio, o que é incomum, a vista da qual desviaríamos nossos olhos e - a partir do talento do autor - nos faz não só olhar, mas entender. Boa leitura!
“E quer me dizer que isso não é roubar?” “Não, senhor. Não é.” “O que é então?” “É melhoria de sua propriedade, sim, senhor.” “O quê?” “Seiso planta centeio para ter mais chance de preço alto. Seiso pega e cuida do chão, dá colheita maior para o senhor. Seiso pega e enche a barriga de Seiso para trabalhar mais.” Esperto, mas o Professor bateu nele mesmo assim para mostrar que as definições pertencem aos definidores — não aos definidos.” (MORRISON, Toni. "Amada". São Paulo, Companhia das Letras, 2007)
Ilustração do mês Guile Farias é natural de Pelotas, onde vive e trabalha com arte. Desde pequeno em contato com o desenho e processo criativos por influência de seu irmão mais velho, recebeu, aos 19 anos, o cargo de diretor de arte e gerente de campanhas de uma marca atrelada de sua cidade, o que o aproximou do design e da publicidade. Formado em artes visuais, Guile atualmente trabalha lado a lado com grandes artistas e empresas, como Emicida, Drik Barbosa, Rael da Rima, Balaclava, entre outros. Para a ilustração, Guile trabalhou na cena em que Grange conversa com ativistas pelos direitos civis na varanda da casa onde mora. Entre eles, há brancos, e ele se pergunta se conseguiria convidar os opressores a atravessar a porta de seu refúgio.
Sumário posfácio
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Entrevista com Jarid Arraes
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Mínimos, múltiplos e incomuns
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Andrés Barba: O curador de junho
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Entrevista: Jarid Arraes
“A realidade vai além dos nossos enquadramentos.” Jarid Arraes se põe no mundo com a visão de uma diva pop e a sensibilidade do sertão. A curadora do mês conversou por e-mail com a TAG sobre sua vivência na literatura, sobre descobrir escritoras negras e sobre tudo aquilo que Alice Walker pode nos ensinar.
TAG — Queria começar perguntando como você se descobriu escritora. Como foi esse processo de chegar à proporção ideal de "Cariri com Lady Gaga"?
Texto: Fernanda Grabauska Fotografias: Divulgação
Jarid Arraes — Um dos primeiros contatos que tive com a literatura aconteceu na garupa de uma moto, quando meu pai declamou pra mim versos de dois poemas. Tinha onze anos e ri quando ouvi “no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho” e “apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija”. Passei muitos dias pensando em como a poesia podia ser tantas coisas ao mesmo tempo. Um poema sobre um porquinho-da-índia (que despertou a conversa), uma repetição sobre uma pedra no caminho, ou intensa, nojenta. Linda. Me apaixonei pela poesia de um jeito muito profundo, até hoje é minha linguagem literária favorita.
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Cresci na familiaridade do cordel, já que meu avô e meu pai são cordelistas e xilogravadores. O cordel foi muito importante para que a literatura soasse como um caminho interessante e para que eu começasse a escrever; ainda que por muito tempo eu não compartilhasse. Minha mãe foi fundamental; era professora e me ensinou a ler antes do tempo esperado da escola. Ela lia pra mim quando eu era bem pequena e eu decorava as histórias e contava pra ela com as mesmas palavras. Minha família, de formas diferentes, me estimulou para que eu me relacionasse de maneira positiva com as letras e a literatura. E por isso digo que escrever não é um dom, é uma intimidade que você vai pegando. Então eu me descobri escritora quando percebi que eu tinha intimidade com a escrita. Mas meu processo de descoberta e de começar a compartilhar o que eu escrevia teve muitas faces. Uma delas, a Lady Gaga.
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“Me sinto livre para aproveitar cada coisa no momento presente.” Quando fui convidada pra Flip, a Folha me chamou para escrever sobre uma obra de arte que me impactou na vida, e eu escrevi sobre a Lady Gaga. Nossa! Recebi perguntas e até questionamentos meio indignados. Mas, como eu falo no artigo, a Lady Gaga me inspira criativamente de muitas formas. A cada nova “era” sua, ela constrói novas personagens e narrativas. E sempre é tudo muito coeso. Ela conta histórias com suas personagens, que são muitas vezes bizarras, estranhas. E esse “estranho” sempre me encantou na arte. Foi a estranheza da poesia, declamada na garupa da moto, que me fez querer a literatura. Foi a estranheza da Lady Gaga que me atraiu de forma magnética e, gratamente, me levou até uma artista maravilhosa. O cordel também tem sua
aura de estranheza, com narrativas fantásticas. E as xilogravuras do meu avô sempre me impressionavam, com muitas bestas e muitos riscos marcantes. Tive um imenso privilégio por ter crescido cercada por tantas manifestações artísticas da nossa dita cultura popular. Não sei se eu tenho um balanço entre o sertão do Ceará, o Cariri e a Lady Gaga. A prosa e a poesia. A poesia no geral e isso tudo. Mas me sinto livre para aproveitar cada coisa no momento presente. E me sinto feliz porque tenho essa mistura de referências, sonoridades, texturas.
Na Flip de 2019, você participou de uma mesa com a Carmen Maria Machado e disse que se emocionou muito quando, na adolescência, descobriu que havia escritoras negras ao conhecer Conceição Evaristo. Como é que foi isso? Durante toda a minha descoberta literária, eu só tive acesso a livros escritos por homens brancos. Pegava livros com meu pai e na biblioteca muito pequena da escola. Li coisas incríveis. Drummond, Ferreira Gullar, Leminski, Augusto dos Anjos, Tolkien. Meu acesso a livros escritos por escritoras negras só veio quando eu já tinha dezenove anos, comecei a pensar sobre machismo, racismo, e então me perguntei por que não conhecia mulheres negras que tinham feito grandes coisas na nossa História. Comecei, claro, pela literatura. E foi aí que encontrei os Cadernos Negros e a Conceição Evaristo. Encontrar a Conceição foi um momento muito emocionante, porque eu não sabia, conscientemente, que a ausência de mulheres negras escritoras nas minhas referências era uma espécie de bloqueio pra mim. Um tipo de impedimento para que eu enxergasse como possível o meu próprio caminho como escritora. Junto com a Conceição, vieram outras. Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Toni Morrison, Maya Angelou, Alice Walker. Minhas primeiras referências. As primeiras referências de muita gente.
E a sua relação com Alice Walker? O que motivou sua indicação de A terceira vida de Grange
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Copeland para a TAG? O que você espera que essa história ensine ao leitor?
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Alice Walker é uma grande e premiada escritora. Muita gente conhece A cor púrpura, pelo próprio livro, pelo filme ou pelo musical. E como A cor púrpura é esse imenso clássico do nosso tempo, achei que seria maravilhoso termos o primeiro livro escrito por Alice Walker – A terceira vida de Grange Copeland –, que era inédito no Brasil até essa indicação para a TAG. Meus outros motivos transitam entre os temas e a própria autora. Como eu disse, Alice Walker foi uma das primeiras escritoras negras que li, e sei que muitas pessoas também podem dizer o mesmo. Tenho muita admiração por ela, não só como autora, mas como pensadora, como teve coragem de falar sobre tantos temas controversos na sociedade e dentro da própria comunidade negra nos EUA, como bissexualidade. Espero que A terceira vida de Grange Copeland seja lido pelos leitores com fluidez e paciência. Espero que esse livro nos ensine a olhar o mundo com mais compreensão de que a realidade vai além dos nossos enquadramentos. E que, mesmo assim, temos que nos movimentar para que ela seja melhor.
Acho que um dos temas desse livro é o conhecimento como forma de emancipação e possibilidade de futuro para as minorias, mas em especial para as mulheres – como se vê claramente no caso de Mem, que tem seu futuro frustrado pela violência de Brownfield, mas também de Ruth. Queria que você falasse um pouco disso pra gente. Concordo que o livro fala muito sobre a vida roubada, o futuro roubado. É muito doloroso, muito feio e extremamente desconfortável olhar tão de perto como acontece uma cadeia de violência. Como um trauma começa e bate contra alguém em posição vulnerável. Não é fácil assistir a quem foi abusado se tornar abusador. Penso na incrível escrita de Alice Walker, que trouxe tudo isso de forma tão conturbada e sensível para a literatura, e
também no quanto podemos refletir, de forma solitária, sobre todos os temas que aparecem no livro. Eu acho que precisamos de introspecção, que paciência para refletir é fundamental, e que esse livro pede isso. Ele é muito importante para quem já pondera sobre racismo, machismo, abuso, relações familiares, traumas, sociedade, educação, mas para quem não gosta desses papos também. É uma chance para sentir muitas coisas. Eu acho que você pode sair uma pessoa bastante diferente depois dessa leitura e ter uma compreensão mais refinada sobre o sofrimento humano. Eu não seria capaz de falar algo – aqui e agora - sobre essas questões, porque não me pareceria à altura do que eu realmente pensei e senti enquanto lia A terceira vida de Grange Copeland. É claro que precisamos conversar sobre racismo e machismo, combatê-los, ainda vivemos as consequências da escravidão, e há estatísticas e estudos, mas vocês já leram A terceira vida de Grange Copeland? Vocês sentiram raiva, confusão e acharam triste e não acreditaram e argumentaram consigo mesmos e pensaram em parar em algum momento?
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Da mesma forma, naquela mesma mesa da Flip, a Carmen disse que "a literatura é a sobrevivência para as mulheres". Acho que isso vale tanto para a leitura quanto para a escrita, não? O que sua experiência como escritora, leitora e mentora de outras escritoras lhe ensinou sobre isso?
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Entendo que uma das questões importantes nisso é reconhecer em outra mulher uma chama que também parte de você, saber que você não tem que reagir sozinha, há outras que vão reagir ao seu lado. A literatura tem essa capacidade lindíssima de aproximar pessoas imensamente diferentes, porque nós nos encontramos na qualidade humana que nos une. Mesmo quando o personagem é um elfo do sexo masculino, eu ainda encontro nele muita coisa de mim. E o mesmo vale para uma personagem mulher e negra das décadas pós-escravidão nos EUA, como a Alice Walker escreveu; um homem pode encontrar nessa personagem características que também são suas. Nós passamos muito tempo buscando humanidade em nós e nos outros. Falhando também, é claro. Mas vejo na literatura essa pulsação tão forte. Eu sei por que existem grupos de leitura de livros escritos por mulheres, grupos de escritoras e eventos voltados para ouvir autoras. Porque estamos preenchendo lacunas de humanidade. Há muitos que sentem dificuldade de enxergar mulheres como tão humanas quanto, muitos que não conseguem ler um livro escrito por uma mulher e ter a percepção de que aquela obra é tão universal quanto um livro escrito por um homem. Mas a literatura sempre foi uma ferramenta de existência, é justo e previsível que as mulheres utilizem a literatura como plataforma para afirmar a existência. A existência da escrita, da criação, da voz, da coletividade e da individualidade.
E como isso se relaciona com o que você nos traz em Redemoinho em dia quente? Posso dizer que o Redemoinho em dia quente é uma afirmação de existência em vários sentidos. Sabe,
mesmo depois que me tornei escritora, mesmo depois que publiquei três livros, os meus próprios livros ainda não estavam acessíveis no Cariri. Então eu quis voltar toda a minha energia criativa para minhas raízes. Tive essa ideia de um livro de contos com protagonistas e narradoras mulheres do sertão do Ceará, mostrando o Cariri pelos olhos dessas mulheres. E eu não escrevi um sertão de chão rachado e caveira de vaca. Cansei dessa imagem que tanta gente tem como única verdade de tanto ser contada de novo e de novo. Escrevi o sertão onde eu cresci e as personagens que surgiram a partir das mulheres de lá. Diferentes, diversas, idosas, jovens, de meia-idade, crianças, religiosas, questionadoras, bizarras, assustadoras, em situações tristes, engraçadas, inesperadas, enfim. Um monte de cheiro, cor e barulho. Uma oportunidade de colocar o sertão na literatura de um jeito que eu nunca li. Uma forma de chegar até lá, finalmente, com um livro meu. Já que agora eu estou numa grande editora, já que agora meu livro fala sobre nós, com nossas protagonistas, e descreve nossas ruas, com nossa língua. É um livro escrito com sotaque, com as palavras escritas do jeito que falamos. Uma afirmação de existência.
O seu projeto de escrita é superambicioso não só no sentido temático, mas também no de gênero. Você passa por tudo, poema, conto, prosa. Como é o seu processo criativo? Como você se abastece de referências para conseguir não só enredo, mas segurança na forma? Sinceramente, só me sinto livre para fazer o que eu quiser quando eu quiser. Escrever o que me vier de mais sincero naquele momento da vida. E eu não me sinto muito segura na forma, exceto quando me sinto. Os momentos em que estou mais confiante são quando percebo que há um significado para aquela escolha que tomei. Por exemplo, o Redemoinho em dia quente. Eu me sinto muito feliz com minha escolha de escrever o livro com sotaque. Há um motivo para essa escolha estética, eu nunca li nada assim antes, representa toda uma questão de valorização linguística do Cariri, essa é
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a minha voz. Percebe como tenho colunas segurando a estrutura? Estou em paz com meu estilo. Acho então que a questão é estar consciente da própria escrita. Por isso que repito tanto que escrever não é um dom, não bate uma inspiração com uma iluminação especial. Eu falo que é um processo de insight, você vai juntando referências, pedaços de uma imagem, até que ela se forma inteira, e foi seu cérebro trabalhando o tempo todo com seu desejo de criar e as referências a sua volta. Faz parte do meu processo ver séries, filmes, ouvir música, conversar com as pessoas, jogar videogame, passear com meu cachorro, me desesperar olhando pro teto, escrever um monte de coisa que parece inútil. Tudo está mexendo e a imagem está lá se completando. Eu não tenho rotina, viajo muito para eventos, escrevo nos espaços de tempo. Aprendi a respeitar esses caminhos. Também aprendi que me sentir desconfortável é o motivo por que escrevo, então trabalho para que o desconforto seja uma peça da minha criação. 12
Há um movimento cada vez maior de autores e autoras crescidos em condições periféricas. É justo dizer que estamos assistindo ao desabrochar de uma nova literatura brasileira ou ainda é muito cedo? O que você espera ver na literatura nos próximos anos? Acho que há muitas periferias na literatura. Há situações complexas, também muito positivas, outras ainda péssimas. Mas eu vejo movimento e acho isso importantíssimo. Quando a gente se mexe é ótimo. Não posso dizer que temos uma nova literatura brasileira, mas acho que deve ter gente já dando uma conversada sobre isso nas universidades. O que eu sei com certeza é que desejo ver muita criatividade na literatura brasileira. E pra que a literatura seja criativa, ela precisa ser cheia de narrativas variadas, cenários variados, autoras e autores variados, com linguagens variadas e olhares variados. É lindo quando a gente entende a criatividade desse jeito.
Mínimos, múltiplos e incomuns
Texto: Luiz Maurício Azevedo Doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP
Em um dos mais importantes textos da história do pensamento no Brasil, intitulado Literatura e Sociedade, publicado em 1965, o crítico literário Antonio Candido realiza uma investigação sobre aquilo que parece ser ainda hoje uma das questões fundadoras da teoria literária: afinal, qual seria a relação entre literatura e sociedade? Grosso modo, a literatura não é uma confirmação antropológica, tampouco pode ser usada como um instrumento de conserto de tudo aquilo que no mundo real porventura vai mal. Embora se alimente da vida prática, a literatura não é sua refém. Nós não admiramos autores cujas biografias sejam materialmente precárias porque nos sentimos culpados em alguma medida, e sim porque eventualmente eles escrevem bem. Candido, que sabia das coisas, defendia que “o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se assim, interno.” Se considerarmos a literatura produzida por indivíduos negros, essa concepção é ainda mais relevante. É sobre ela que pairam as maiores suspeitas de qualidade e é dela que tendemos a desconfiar, suspeitando que sua hoje quase onipresença nos cenários culturais seja mais uma extensão do domínio do politicamente correto do que fruto de seu valor artístico.
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Nos Estados Unidos, país onde essas questões parecem ter atingido um nível ainda maior de tensionamento, a história da literatura negra já se confunde com a própria história da América. Isso ocorre porque, por lá, a literatura teve realmente um papel fundamental na construção de uma identidade nacional que se equilibra entre a necessidade de reforçar as delícias de se pertencer a um lugar e as agonias de se sentir preso a ele.
“É do erro e não da santidade que sai nossa essência humana.” 14
O objeto literário produz sentidos e esses sentidos ressemantizam a vida social, criam fronteiras, derrubam muros, reinventam a nós mesmos e os que nos cercam. Através da literatura se pode, simbólica e objetivamente, transformar territórios. Tomemos como exemplo o estado da Geórgia, um lugar onde a exploração econômica resultou em um tipo explosivo de conflito étnico. Os campos de algodão e o modelo de escravidão que a parte sulista produziu fornecem um material vergonhoso para nossa história humana, mas muito fértil para a literatura. Autores competentes como Alice Walker decidiram começar por aí a edificação de sua carreira literária. Hoje é dificíl separar onde começa a Geórgia factual – aquela que encontramos em mapas e podemos alcançar através de um Airbus A330 ou de um Boeing 767 – e onde termina a Geórgia literária de Alice Walker, aquela que acessamos por intermédio do mundo dos livros, onde o acesso não é garantido por passaportes, vistos e pela fatídica escolha de chicken or pasta, mas sim pela sofisticada mistura entre imaginário, léxico e capacidade cognitiva. Quando bem realizada, as interações entre literatura e realidade social apagam as marcas que nos permitiriam discernir entre uma e
Fotografia: Nusz, Nancy, Collector.
outra. Esta é a principal habilidade de um bom livro. E escrever um bom livro não é algo trivial. Há autores que circundam o acerto sem nunca no entanto encontrá-lo. Dançam ao redor do alvo. Outros levam décadas para escrever livros que apenas do ponto de vista gramatical não oferecem constrangimentos. Alice Walker não faz parte desses grupos. Ela acertou de primeira. A terceira vida de Grange Copeland é uma espécie de romance de formação sobre as possibilidades de sobrevivência daqueles que têm de fazer da resiliência sua religião. Publicado no topo da década de 1970, a década em que tanto se discutiu a suposta morte do autor, em belíssimas proposições de Roland Barthes e Michel Foucault, o livro desafiou grande parte da comunidade negra ao retratar, sem condescendência, a vida cotidiana de pessoas que grande parte da opinião pública acredita necessitar de um processo de canonização antes de receberem o direito de serem consideradas humanas. Para convencer a todos nós de que o outro merece que reconheçamos sua humanidade, Walker prefere o caminho da descrição sistemática de cenas não edificantes, porque sabe que é do erro e não da santidade que sai nossa essência humana. É uma operação arriscada, que se apoia em uma coragem estética que por vezes parece disposta a deixar de lado as marcas biográficas de quem a criou; mas que o leitor ou a leitora não se engane: não é possível ler A Terceira vida de Grange Copeland sem considerar a verdade objetiva de que foi escrito por uma mulher negra, nascida na Geórgia, ativista prestigiada, com milhões de visualizações em vídeos e incontáveis compartilhamentos de frases de ordem motivacional. O que se vê nos livros de Alice Walker – e especialmente nesse – é que a figura da autora de certa forma sugestiona um tipo de percepção do conteúdo da mensagem a ser transmitida. Para os politicamente corretos, é
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a comprovação máxima da dimensão ética da literatura e de seu poder de transformar o leitor. Para os politicamente incorretos, é o oposto: a prova cabal de que, independente de cor ou gênero, o talento existe e, se pode existir em qualquer lugar e em qualquer tempo, não haveria motivos para trazer para o campo literário uma discussão que seria meramente política. Seja como for, seja em qual parte da torcida nos encontremos, é forçoso admitir que a extensão da influência de um romance como esse que você tem em mãos agora nos obriga a rever não apenas nossas posições sobre aspectos específicos do romance, mas também de todo o nosso próprio conceito de literatura. Livros assim obrigam a nós mesmos a uma tomada de posição sobre o que realmente precisa ser levado em conta. Há muitas coisas aparentes sendo contadas em A terceira vida de Grange Copeland, coisas que uma mente minimamente atenta está preparada para notar. Contudo, é preciso decidir também o que não deve ser visto. E aqui isso se refere especificamente àquilo que
eu não acho que eu deva ver, aquilo que pode potencialmente destruir a imagem que tenho do mundo, a imagem que possivelmente eu precise que o mundo tenha para poder suportá-lo com todo o seu peso e corrosão. Trata-se, portanto, de uma fantasia, de um esforço para a manutenção de minhas próprias crenças. Posso acender a luz, mas não posso olhar para as coisas cuja presença eu não quero admitir. Preciso sempre supor, ainda que a claridade procure evidenciar meu erro, que existe um modo de pavimentar o caminho de volta ao conforto da minha ilusão quando a luz for novamente – por mim, pela vida ou pela dor – apagada. Toda literatura não passa de uma desesperada tentativa de desligar nossa própria máquina de autoengano. Seja como for, se você deseja ler o livro como sendo uma mera trajetória de superação das inclinações existenciais, comuns a todos os seres que habitam este planeta doido e doído, A terceira vida de Grange Copeland cumpre esse ideal legítimo de transcendência. Se por acaso você desejar ler a obra utilizando uma outra chave, a do encontro brutal entre condições materiais desfavoráveis e respostas individuais incomuns, ao melhor estilo Thomas Carlyle, também é possível. Em todos esses cenários, contudo, permanece a sensação de que Alice Walker conseguiu domar as forças extraliterárias e colocá-las magistralmente a serviço de seu talento verbal. Não há na obra qualquer concessão à tentação de manipular grosseiramente o destino dos personagens, ou mesmo uma mínima tentativa de consertar com o roteiro aquilo que a vida social estragou. Em determinado momento do livro a narração menciona que “Grange tentara inúmeras vezes iniciá-la nos ódios do mundo, nos ódios irreprimíveis que ele continha, com dificuldade, dentro de si. Uma vez, lhe contara sobre um assassinato (ou suicídio) que causara, e ela ficara horrorizada. Tão horrorizada por a vítima ser branca quanto ficaria caso tivesse sido negra. Ele não conseguia fazê-la entender que havia uma diferença.” A tarefa mais árdua de Walker – e que ela cumpre com maestria – é fazer o leitor perceber que há essa diferença, mas que, talvez, isso não seja o principal.
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O curador de junho
Andrés Barba
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Fotografia: Divulgação
Romancista multipremiado por histórias tão fantásticas quanto universais, o espanhol Andrés Barba é o curador de junho da TAG. Nascido em Madri, em 1975, Barba é romancista, poeta, ensaísta, fotógrafo e autor de livros infantis. Em 2010, entrou no rol de melhores escritores jovens de língua espanhola da revista Granta. Mais recentemente, em 2017, venceu o Prêmio Herralde - concedido pela editora espanhola Anagrama para o melhor romance inédito em língua castelhana - com República luminosa, seu único livro publicado no Brasil. Sua indicação é escrita por uma autora fundamental para o romance realista italiano. Parceira de figuras igualmente prestigiosas como o poeta Cesare Pavese e o escritor Italo Calvino, a italiana consegue, na obra que você receberá em julho, iluminar os detalhes cotidianos da vida em meio à Segunda Guerra Mundial. Na obra, narrada por uma garota - a princípio apática, cada vez mais atônita conforme cresce e seu entendimento avança -, conhecemos a história de duas famílias cujas vidas se cruzam entre a resistência ao fascismo imposto por Mussolini e a sobrevivência durante a guerra.
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