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Era novembro de 2021 quando enviamos ao clube, pela primeira vez, um título haitiano — Clara da luz do mar, de Edwidge Danticat. É com alegria que temos a oportunidade, neste mês de agosto, de apresentar outro livro de mesma origem, de uma região cuja literatura ainda não ganhou o devido espaço no cenário editorial brasileiro.
Com a indicação preciosa de Allan da Rosa, você tem em mãos agora um retrato instigante e multifacetado do país caribenho. A obra tem autoria de Dany Laferrière, que transforma em matéria literária a sua própria vivência como cidadão exilado. É precisamente essa experiência o ponto de partida de País sem chapéu, autoficção protagonizada por um escritor que, de volta ao país natal, começa a narrativa expressando seu anseio em “falar do Haiti, no Haiti”. Dessa empreitada, revela-se a riqueza das tradições do país, assim como os conflitos que marcam a sua história.
Para situá-lo nesse universo, publicamos a seguir um texto introdutório ao livro, seguido de uma contextualização das questões políticas e religiosas que aparecem no romance. Há também uma entrevista com nosso curador e análises que aprofundam os principais aspectos da obra.
Boa leitura!
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RAFAELA PECHANSKY Publisher
JÚLIA CORRÊA Editora
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LIZIANE KUGLAND Revisora
ANTÔNIO AUGUSTO Revisor
Impressão Ipsis
Capa TAG / Hector Hyppolite
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VAMOS LER país sem chapéu
Criamos esta experiência para expandir a sua leitura. Entre no clima de País sem chapéu colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!
Leia até a página 30
Depois de vinte anos, Velhos Ossos volta ao Haiti e está determinado a escrever sobre seu país natal. O retorno para casa, com o encontro com a mãe e a tia, rende passagens marcadas por comoção, afeto, humor e estranhamento. O que será que vem pela frente na jornada de nosso “escritor primitivo”?
Leia até a página 82
Acompanhamos o protagonista em seu tão esperado passeio pelas ruas de Porto Príncipe, que acaba por revelar as mazelas da região. Instigado pela notícia sobre um exército de zumbis à solta, ele decide investigar a questão. Alguns relatos inusitados vêm à tona, como o caso de Bombardopolis, narrado por Legrand Bijou.
Leia até a página 112
Após acompanharmos mais perambulações do protagonista pelas ruas do Haiti, um suposto padrinho de Renée surpreende Velhos Ossos e faz um convite bastante peculiar. Será que ele aceitará essa tentadora proposta?
Leia até a página 194
Entre amigos de longa data e antigas paixões, figuras do passado de Velhos Ossos, como Lisa, Philippe, Manu e Antoinette, despertam memórias bonitas e dolorosas, além de discussões calorosas. Afinal, não se passa incólume por vinte anos de exílio. O pai do protagonista, já sabemos, também viveu uma experiência de exílio, e o último diálogo traz à tona recordações dele.
projeto gráfico
Os materiais gráficos da edição foram desenvolvidos pela equipe da TAG a partir de uma pintura de Hector Hyppolite. Em País sem chapéu, encontramos passagens que referenciam as obras do artista e, assim, optamos por destacá-las de modo a conduzir o olhar dos leitores como em um passeio por uma galeria — passeio que remete ao hábito do protagonista de passar horas diante de quadros de certos pintores haitianos. Ao escolher tais imagens, também quisemos dar um ar mais alegre e vívido para o projeto, apesar do conteúdo por vezes denso do livro, seguindo o contraponto exposto por Laferrière entre “país real” e “país sonhado”.
mimo
“Uma parede em branco é um desperdício de ideias”, já dizia Paulo Leminski. No mês em que se comemora o Dia Nacional dos Profissionais da Educação (6 de agosto), tomamos a frase do poeta como inspiração para o nosso mimo, um item ideal para tomar notas e registrar os pensamentos mais criativos e inspiradores que surgem em nosso dia a dia. Você recebe um quadro magnético de 15cm x 20cm, produzido com duas tiras de ímã, perfeito para superfícies como murais e portas de geladeira, além de uma caneta com apagador embutido.
País sem chapéu pode ter terminado, mas a experiência não!
Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.
Leia até a página 217
Depois dos curiosos desdobramentos da viagem empreendida pelo protagonista (e após entendermos seus objetivos mais profundos), é com uma anedota reveladora sobre um pintor primitivo que encerramos a leitura do livro. O que você achou do final da história? Compartilhe suas impressões no app!
“Uma pequena joia literária que se saboreia página após página. [...] Apenas sublime.”
Le Figaro
“Através do humor, da magia, da emoção, Dany Laferrière nos oferece uma viagem de uma riqueza sem limites.”
RCF Radio
por que ler o livro
País sem chapéu é um livro que cativa com sua narrativa envolvente, permeada por uma prosa poética evocativa, com descrições vívidas e potentes. Publicada pela primeira vez em 1996, a obra oferece um retrato original da cultura haitiana: revela a complexidade da formação e das tradições do país e aborda temas como identidade e pertencimento. É o primeiro título publicado no Brasil de Dany Laferrière, membro da Academia Francesa e vencedor do prestigiado prêmio Médicis.
Retorno ao país sem chapéu
HENRIQUE AMARAL
Com uma prosa ágil e divertida, Dany Laferrière nos convida para uma viagem de retorno a seu Haiti natal, incluindo no itinerário uma visita ao país dos mortos e reflexões sobre a vida
Após duas décadas exilado na América do Norte, um escritor já bastante conhecido faz uma viagem a seu Haiti natal, do qual saiu muito jovem, acossado pela ditadura Duvalier (1957–1986). Esse é o argumento básico de País sem chapéu, um dos dez romances da série que Dany Laferrière intitulou “autobiografia americana” e o primeiro a tratar de um tema incontornável da literatura caribenha: o retorno ao país natal, eternizado pelo martinicano Aimé Césaire em seu Diário de um retorno ao país natal.
Publicado originalmente em 1996, País sem chapéu valoriza a coincidência entre vida e obra — o autor migrou para o Canadá exatamente em 1976 — e permite que Laferrière fale de seu retorno pessoal, batizando com seu sobrenome o narrador-protagonista de toda a série, conhecido pelo apelido Velhos Ossos. Assim, sentado embaixo de uma mangueira, inebriado pela natureza tropical e pela agitação de um bairro popular de Porto Príncipe, o narrador conta suas experiências no calor da hora, em cores quentes e vivas, como um “escritor primitivo” ou um legítimo representante da pintura naïf haitiana.
Mas não nos deixemos enganar pela aparente simplicidade. O talento literário que notabilizou Laferrière, tornando-o um dos escritores mais celebrados do Haiti e o primeiro a obter um assento na prestigiosa Academia Francesa, está nesse estilo ágil e prosaico que, no entanto, permite abordar os temas mais complexos. A fome e a miséria, a falta de horizontes políticos e econômicos, o passado traumático, mas também a paixão pela literatura e pela observação do
cotidiano, tudo isso vem à tona com leveza, na narração de um passeio pela cidade ou na descrição bem-humorada das personagens.
A tonalidade melancólica que caracteriza L'énigme du retour, outra de suas narrativas de exílio, está ausente aqui. Em País sem chapéu, importa menos um acerto de contas com o passado e as heranças familiares, e mais um registro vivaz das impressões e percepções que Laferrière, exilado há tantos anos, descobre diante do país natal e de suas paisagens humanas, naturais... e sobrenaturais. Como num livro de poemas de Édouard Glissant, outro caribenho célebre, o romance é dividido em seções intercaladas de “país real” e “país sonhado”. No entanto, essa divisão entre sonho e realidade não é estanque e, desafiando os limites do autobiográfico, o narrador percorre uma terceira categoria: o “país sem chapéu”, que corresponde, na tradição do vodu haitiano, à região onde habitam os mortos.
Palco da maior revolução de escravizados vitoriosa das Américas, o Haiti costuma ser lembrado pela mídia internacional apenas por seus atributos negativos. O pior IDH do continente, os desastres naturais, a violência dos conflitos internos, tudo converge para o clichê de uma nação assolada pela morte. Mas esse “país sem chapéu” tem muito a ensinar sobre a pulsão de vida, e é isso que Laferrière assinala quando o inclui, de maneira divertida e repleta de referências ao vodu, em seu itinerário. Como na Odisseia, de Homero, o protagonista precisa visitar o país dos mortos para que seu retorno se efetue — e para que a imagem da terra natal (real ou sonhada) não seja apenas miragem.
Laferrière deu o título de L'exil vaut le voyage [O exílio vale pela viagem] a um de seus romances mais recentes. É hora de levar a frase a sério e seguir esse grande viajante exilado pelos espaços, enredos e atmosferas de sua escrita. E, na tradução de Heloisa Moreira, o convite para viajar por esse País sem chapéu é irresistível.
Entre o real e o sonhado
EDUARDO PALMA
Livro de Laferrière revela as fraturas da colonização e da violência política no Haiti ao mesmo tempo que mostra a riqueza das expressões culturais e religiosas do país
País sem chapéu é um convite para conhecer melhor uma região presente com frequência no noticiário: o Haiti. Na obra, viajamos pela capital do país, Porto Príncipe, através do olhar de um homem que retorna à sua terra natal após 20 anos. É 1996, e o Haiti está passando por intervenções internacionais. Há soldados norte-americanos nas ruas, além de tropas das Nações Unidas. Não seria a primeira nem a última vez que os haitianos viveriam com soldados estrangeiros.
Há nostalgia e sentimentos conflitantes no regresso do protagonista. Acompanhamos a saudade do tradicional suco de romã, dos temperos da comida da mãe, das ruas empoeiradas, do sol forte. Não falta estranhamento, após tanto tempo fora, com as superstições do dia a dia de seus conterrâneos. O choque com a superpopulação da cidade, com 2 milhões de habitantes, as condições precárias de saneamento básico, o trânsito agitado nas ruas estreitas e a fome também chamam a sua atenção. Além de seus conflitos internos, não são poucas as discussões que tem com amigos que sentem que ele abandonou seu país.
Porto Príncipe.
UMA ILHA, DOIS MUNDOS
O Haiti é parte da mesma ilha onde se localiza a República Dominicana. Foi nessa ilha que Cristóvão Colombo atracou quando chegou pela primeira vez ao “Novo Mundo”, em 1492. Em 1697, a Espanha cedeu parte da ilha aos franceses, que passaram a colonizar a região. O local ficou marcado pela produção de açúcar e café, então baseada no trabalho escravizado africano. Do lado oriental, ficaram os dominicanos, com forte influência cristã e idioma espanhol, em um território que é quase o dobro do haitiano. Do lado ocidental, um território equivalente ao do estado de Alagoas, também há a presença do cristianismo, somada, porém, às práticas do vodu; e os idiomas crioulo [também escrito “créole” e “kreyòl”) e francês são tidos como oficiais.
INDEPENDÊNCIA
Contra o domínio francês, os haitianos, liderados por Toussaint Louverture, iniciaram uma revolução. Na época, o Haiti era formado por uma população de cerca de 450 mil pessoas escravizadas em um total de 520 mil habitantes. A sociedade era dominada por uma pequena elite branca dona de terras. O processo começou em 1791 e terminou com a independência, em 1804.
Em 1825, a França ameaçou invadir o país e exigiu reparações econômicas para não fazê-lo, alegando perdas financeiras com a independência. Esses pagamentos obrigatórios terminariam somente em 1947 e, em algumas ocasiões, chegaram a 40% da renda total do país em um ano. O New York Times estimou que esses pagamentos superaram os 21 bilhões de dólares, o que atrasou o desenvolvimento do Haiti como um Estado autônomo. Some-se a isso um histórico de desastres naturais, como furacões e terremotos devastadores.
DITADURAS
Outros eventos fundamentais para entender o Haiti são as ditaduras do século XX. Em 1957, François Duvalier (conhecido como Papa Doc) chega ao poder, motivado por forte nacionalismo e apoiado pelos militares. Durante 14 anos, atuou com mão de ferro e criou organizações paramilitares para controlar a população, ameaçar e aniquilar opositores com violência, tortura e assassinatos.
Papa Doc morreu em 1971. Seu filho, Jean-Claude Duvalier (Baby Doc), que tinha 19 anos à época, assumiu o poder. Com os mesmos métodos brutais, governou até 1986, quando renunciou e fugiu para a França após revolta popular. “Essas ditaduras destruíram as esperanças de um Estado funcional para servir à população”, resumiu o historiador Matthew Smith, da Universidade de Londres, em entrevista ao The Guardian, em 2023.
Depois da saída de Baby Doc, houve diversas (e polêmicas) tentativas de estabilizar o país, seguidas de golpes, governos interrompidos e apoio internacional, incluindo missões da ONU, como vemos no livro. A primeira missão vigorou entre 1993 e 1996. Em 2004, foi restabelecida, com a liderança do Brasil até 2017.
Hoje, o Haiti tem cerca de 5 milhões de pessoas em situação aguda de insegurança alimentar, conforme dados da ONU. Desde o assassinato, em 2021, do então presidente Jovenel Moïse (que buscava denunciar figuras associadas ao narcotráfico), vivencia um vácuo político em que gangues dividem o poder e controlam partes de importantes cidades, com sequestros e assassinatos cada vez mais frequentes.
“O VODU É CHAVE PARA COMPREENDER O MUNDO MATERIAL E SIMBÓLICO HAITIANO”
"País sem chapéu" inclui uma série de referências ao vodu haitiano, religião que mistura elementos cristãos e crenças africanas. Para entender a sua centralidade na cultura do país e aprofundar a experiência de leitura da obra de Laferrière, conversamos com Handerson Joseph, antropólogo de origem haitiana, professor do departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFRGS.
Um dos temas que se destacam no livro de Laferrière é a presença do vodu, de suas práticas e de suas divindades. Quais são os aspectos centrais dessa religião?
No Haiti, esse termo foi e continua sendo usado para denominar o conjunto de crenças e ritos de matrizes africanas com a influência do catolicismo e dos taínos (nativos da ilha de São Domingos). No final do século XIX, o vodu se apresentou como uma resposta à exploração do cativeiro, do imperialismo econômico, social e cultural dos europeus. Como diria o sociólogo haitiano Laënnec Hurbon, o vodu significou, desde cedo, a “linguagem própria”, a consciência de sua diferença em relação ao mundo dos senhores, a força que aguçaria a sua capacidade de luta. Ele é uma resposta a tais humilhações, aos trabalhos forçados, ao preconceito racial, características da sociedade colonial. Em outras palavras, o vodu representa o poto mitan (pilar) da sociedade haitiana.
Como pode ser vista a influência dessa religião no dia a dia das pessoas?
O vodu não tem só o conceito espiritual. Ele ordena um modo de vida, um modo de ser, de pensar e de “estar no mundo”. Existe uma cosmovisão por trás e um código ético a regular o comportamento social. Para uma boa parte da sociedade haitiana, o vodu dá sentido ao mundo e à sua existência. O seu universo está como o lugar por excelência em que se revela a existência haitiana. O vodu é uma peça-chave para compreender o mundo material e simbólico haitiano no que diz respeito a política, história, economia, cultura popular, ecologia e
religião. Está em todas essas dimensões e em outras mais. Está enraizado no pensamento social haitiano, no modo de se relacionar com o outro, nos laços familiares e de vizinhança, no lakou e na bitasyon, na cultura popular, na língua kreyòl, na arte naïf, nos gestos, nas falas, nos contos e nas lendas.
Pode dar alguns exemplos?
Uma boa parte das pessoas, quando adoece, primeiramente desconfia que foi atingida por alguma magia (maji) do vodu ou, quando precisa alcançar algum projeto ou sonho, pede proteção aos lwas (divindades equivalente aos orixás) e às forças espirituais e ancestrais que os guiem. As plantas e receitas tradicionais desempenham um papel importante nas práticas de (auto)cuidado físico e espiritual no mundo cotidiano.
País sem chapéu mostra, em determinado momento, certo “embate” entre o catolicismo e o vodu. Como é a convivência entre essas duas religiões?
Desde o século XIX, há uma relação ambivalente entre o vodu e o catolicismo. As pessoas negras escravizadas foram obrigadas a mobilizar elementos do catolicismo para manter algumas práticas tradicionais, ancestrais e transcendentais trazidas do continente africano. No entanto, a primeira tentativa oficial da Igreja Católica para combater o vodu ocorreu em 1896, através de várias ações que resultaram na “liga contra o vodu”, com a punição de seus praticantes. Quase um século mais tarde, com a Constituição de 1987, o vodu passou a ser reconhecido pelo Estado do Haiti como religião. Antes disso, seus adeptos eram perseguidos, e inúmeras foram as campanhas “antissupersticiosas” realizadas pela Igreja Católica em tentativas infrutíferas para extirpar essa crença de boa parte da sociedade haitiana. Essa representação preconceituosa e estigmatizada que se tem do vodu é devida ao cristianismo e ao neocolonialismo. É comum um praticante ir diariamente à missa, comungar ou participar de procissões e de rituais da Igreja Católica. As orações da Igreja Católica, como o “Pai Nosso”, a “Ave Maria”, são igualmente rezadas no vodu. A ladainha dos santos da Igreja Católica faz parte do ritual voduísta. Cada lwa tem sua correspondência nos santos da religião católica. O sacerdote voduísta começa a sua cerimônia com o sinal da santa cruz, o mesmo da religião católica. É comum, no Haiti, escutar pessoas dizendo que, para ser um bom voduísta, deve-se ser um bom católico. Isso expressa o sincretismo do vodu, a articulação entre o vodu e o catolicismo, mesmo tendo sido imposto, fruto da violência colonial.
“País sem chapéu tem uma prosa saborosíssima, que lida muito bem com símbolos”
Curador do mês, Allan da Rosa aponta as qualidades da obra de Dany Laferrière, menciona outras referências literárias e adianta novos projetos
Oescritor brasileiro Allan da Rosa, nosso curador deste mês, nasceu em São Paulo, em 1976. Historiador e doutor em Educação pela USP, pesquisa temas como ancestralidade, imaginário e cotidiano negro. Editou o selo Edições Toró, fundado em 2005 e voltado a autores de literatura periférica, movimento do qual é expoente.
Textos de sua autoria, como os contos de Reza de mãe, tratam, entre outros assuntos, da realidade brasileira, da vida na periferia e dos desafios sociais envolvendo a precariedade econômica. Títulos como Águas de homens pretos (2021) e o infantojuvenil Zumbi assombra quem? (2017) trazem ainda à tona questões relativas à ancestralidade. São temas que remetem, em certa medida, ao livro de Laferrière que indicou ao nosso clube, do qual tomou conhecimento em meio a pesquisas sobre as diferentes manifestações da diáspora africana.
“É muito bacana lermos sobre o Haiti e outros países cujas imagens e situações nos chegam muito estereotipadas”, diz ele na entrevista a seguir, na qual revela os motivos que o levaram a recomendar País sem chapéu ao clube. Além disso, fala de outras referências literárias e adianta novos projetos.
Como você entrou em contato com País sem chapéu? Já conhecia a produção do autor?
Entrei em contato com essa obra porque eu sou pesquisador dos movimentos, das artes, dos pensamentos da diáspora africana e, assim, garimpo nas artes e literaturas da Jamaica, de Cuba, da Martinica e do Haiti. Quando li País sem chapéu, não sei se já havia a tradução de um outro livro dele, que li logo em seguida: Como fazer amor com um negro sem se cansar.
Por que você decidiu indicá-lo ao nosso clube? Eu sinto que há vários sabores, várias reflexões especiais quando lemos prosas escritas por pessoas das Antilhas, dos Caribes. Saímos um pouco da fonte da literatura negra dos Estados Unidos, que é muito valorosa, mas também impõe limites para compreendermos nossos espaços brasileiros. Repito: ela é muito valorosa, mas tem seus limites. E nós mesmos, por vezes, queremos transpor aquela realidade diretamente para a nossa, sem reflexões, sem filtros.
Quais são, na sua visão, as principais qualidades de País sem chapéu?
É um livro especialmente frutífero em relação a assuntos fundamentais do nosso viver — as relações que temos com a morte, com o sonho. O fundamento do livro é a relação entre sonho e realidade, que nos faz perguntar qual é a fronteira entre imaginado, imaginário, corpo… Realidade é algo que sentimos, sonhamos, pensamos, tocamos? Creio que esse livro traz uma coceira saborosa sobre essas relações. Também é muito bacana lermos sobre o Haiti e outros países cujas imagens e situações nos chegam muito estereotipadas. País sem chapéu tem uma prosa saborosíssima, que lida muito bem com símbolos. O chapéu é um símbolo, na cabeça, da vestimenta, da elegância, e também simboliza a demarcação de vida e morte. O humor aparece como chave de percepção da estranheza, de corrosão de certezas e de compreensão de maneiras de sentir o tempo, que vão além da maneira geral presente-passado-futuro. Outro detalhe bacana que perpassa o livro é a relação entre pertencer e se sentir alheio, entre reconhecimento e estranheza.
Além de Laferrière, que outros autores e leituras marcaram sua vida como leitor? Pode compartilhar algumas de suas referências literárias?
Tenho tantas referências apaixonantes. Por agora, eu poderia mencionar Toni Morrison, a romancista que ensina como o contexto racista é voraz e sempre, ao mesmo tempo, trança ao ambiente de seus livros a complexidade das personagens. Ela passa longe do simplismo, do qual nem sentimos o cheiro. Outra referência fundamental para mim é Cuti, craque nos ensaios, na ficção e na poesia, autor de livros inesquecíveis como Poemaryprosa. João Antônio está sempre presente, é o escritor que mais me arrepia, mais me emociona. Eles são três entre muitas outras fontes. Poderia citar ainda Maryse Condé, Hilda Hilst, James Baldwin…
Você pode nos falar de seus projetos atuais?
Podemos esperar novos livros em breve? Em breve, entre agosto e setembro, vai sair um livro resultante de uma pesquisa de quase três anos, obra minha em coautoria com Deivison Nkosi Faustino, com o título Balanço afiado — estética e política em Jorge Ben. É um estudo em que inventamos prosas, entrevistas, ficção; em que pesquisamos e dedilhamos fundamentos do canto, do toque e da poética de Jorge Ben. Abordamos as imagens de futebol, os fundamentos da alquimia, os fundamentos musicais de matrizes africanas que aparecem de inúmeras maneiras reinventadas por ele. Conversamos sobre masculinidade, sexualidade, políticas miúdas e políticas institucionais que atravessaram a invenção do artista. E, por agora, também componho o projeto de um novo livro, talvez para 2024, com contos que se passam na São Paulo do século XIX. São histórias sobre pessoas pretas, alforriadas, libertas, escravizadas, vendedoras, andantes, vigias, prostitutas, lavadeiras, barbeiros, médicos, músicos de orquestra, professores, integrantes de confrarias, com as suas traquinagens, aventuras, iras, projetos de nação, festas, vinganças, traições, prazeres. Esse é um livro que está brotando devagarinho, verdinho, no caule da minha caneta, neste instante. É a continuidade de minhas reflexões sobre modernidade e projetos transnacionais negros atravessando fronteiras do Brasil e das Américas, conectados pelas culturas, cotidianos e mentalidades de matrizes africanas.
Ilustração do mês
Gabriel Renner é ilustrador freelancer e designer. Passou pelas redações de Zero Hora, Diário Gaúcho, Notícias do Dia e Grupo Editorial Sinos, além de ter ilustrado para as revistas Superinteressante, Mundo Estranho e Sexy. @rennergabriel
A pedido da TAG, o artista interpretou uma passagem do livro do mês: “Há muito tempo que espero este momento: poder sentar à minha mesa de trabalho (uma mesinha bamba debaixo de uma mangueira, no fundo do quintal) para falar do Haiti com calma, com tempo. E o que é ainda melhor: falar do Haiti, no Haiti. [...] Escrevo a céu aberto no meio das árvores, das pessoas, dos gritos, dos choros. No coração desta energia caribenha. Com uma bacia de água limpa, não muito longe, para refrescar o corpo (o rosto e o peito) quando a atmosfera se torna insuportável”.
POSFÁCIO
Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página.
A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.
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Na mesa com os vivos e os mortos
FERNANDA SILVA E SOUSAPaís sem chapéu compõe um mosaico multifacetado de um retorno em que a saudade não é de um país enquanto nação, mas de um território de afetos
“Eles estão aqui, bem perto de mim, os mortos. Meus mortos. Todos aqueles que me acompanharam durante essa longa viagem”, escreve o narrador de País sem chapéu, do escritor Dany Laferrière, quando começa a realizar, enfim, o desejo de escrever sobre o Haiti no Haiti, depois de vinte anos de exílio em Montreal, Canadá. É ao oferecer o alimento primeiro aos mortos — depois de ser repreendido pela mãe na sua primeira refeição na casa materna após o exílio — que Velhos Ossos, o apelido de Laferrière no Haiti, diz sentir a presença de cada um deles. Daí em diante, o seu retorno não se traduz apenas em um reencontro com os vivos, mas também com os mortos, que passam a povoar sua escrita em um país em que as fronteiras entre a vida e a morte são turvas.
Voltar ao Haiti, o país real, é também voltar ao país sem chapéu — expressão que sua avó utilizava para se referir ao reino dos mortos —, pois o narrador se vê imerso em um território onde a morte social da população, vivendo em condições desumanas, parece decretada e, ao mesmo tempo, onde a morte como outra forma de vida, e não como o fim definitivo, anima as crenças, práticas e costumes dessa população. Na contramão de uma representação midiática que espetaculariza a pobreza no Haiti e reifica corpos negros, Laferrière abre espaço para o invisível, para o mistério, para tudo que excede a possibilidade — ou ilusão — de captura e compreensão do Ocidente, simbolizado, no livro, pelos Estados Unidos. Não à toa, em sua conversa com o professor J.-B. Romain, o mestre diz, em relação ao país sem chapéu: “o importante é que ele é invisível”.
Nesse sentido, o próprio Haiti se torna opaco e desconhecido à medida que o autor, retornando após uma longa experiência de exílio, percebe como ele lhe escapa, com sua multidão “barulhenta”, “suada” e sua “cacofonia incessante”, escrevendo “a céu aberto no meio das árvores, das pessoas, dos gritos, dos choros”, que não falam só de uma dura luta por sobrevivência, mas também dos sonhos, paixões, histórias que não estão à venda, como afirma o professor J.-B. Romain. Esse personagem e também a mãe do narrador, o doutor Legrand Bijou e Pierre são figuras mais velhas cujas falas, longe de atualizá-lo sobre o Haiti, reforçam o que os gestos, sons, ritmos, canções da população insinuam: uma vida que permanece (a despeito da escravidão, das invasões militares, das pesquisas científicas) inexplicável e, por isso mesmo, ainda aterrorizante para o Ocidente.
A estrutura de País sem chapéu, cujos capítulos se alternam entre o país real e o país sonhado, com registro de cenas, imagens e episódios fragmentados e aparentemente banais do cotidiano, compõe, assim, um mosaico multifacetado de um retorno em que a saudade de Laferrière não é de um país enquanto nação, mas de um território de afetos, sentidos, saberes, que parecem invioláveis e indestrutíveis e que fazem parte da sua carne. Trata-se de um retorno a uma espécie de comunhão existencial entre os vivos e os mortos, em que a possibilidade de sobreviver ao horror, à fome, à miséria, diante de uma longa história de violência, se encontra no que é criado, cantado, falado e vivido coletivamente a partir de códigos, gestos, sentidos amalgamados no que só o créole haitiano se afigura capaz de expressar. Ser um escritor primitivo, como se define o autor no início do livro, é, depois do exílio, poder voltar a olhar e retratar o Haiti com o frescor de uma força invisível e ancestral, quando, por alguns momentos, o país real pode ser o país sonhado.
“Na contramão de uma representação midiática que espetaculariza a pobreza no Haiti e reifica corpos negros, Laferrière abre espaço para o invisível, para o mistério, para tudo que excede a possibilidade — ou ilusão — de captura e compreensão do Ocidente [...].”
Por que Dany Lafferière escreve em francês?
Confira um excerto do texto "O imaginário, os espaços, as línguas", de autoria da tradutora Heloisa Moreira, que analisa as razões pelas quais o escritor adota a língua francesa e não o créole em sua produção literária*
Laferrière escreve seus livros em francês, e as razões que enumera para explicar essa escolha nem sempre são fáceis de compreender. Em mais de uma entrevista ele afirma: “sou um escritor americano escrevendo diretamente em francês, e não um escritor francófono”. Essa frase, contraditória à primeira vista, aponta para questões importantes.
O termo “francofonia” teve sua criação institucional em 1970. Ele é, antes de tudo, um termo político, pois designa um espaço cultural e econômico delimitado pela língua francesa. No entanto, quando associado à literatura, costuma designar aquela que é feita fora da França ou por autores não franceses. Sendo assim, refere-se não a um campo linguístico, mas sim a um espaço geopolítico, que delimita uma zona de influência. Nas palavras do próprio autor:
“Nunca temos muita certeza se a palavra inclui a França ou se ela se aplica exclusivamente aos países onde se fala francês com exceção da França. Essa distância cria uma situação extremamente desagradável, temos a impressão de que a França está construindo um império.”
É clara sua recusa do termo. Afinal, francofonia e literatura de imigração não seriam formas de denominar o que está à margem, na periferia e não no centro?
A primeira língua do autor, a língua por meio da qual aprendeu a conhecer o mundo, foi o créole haitiano. A língua francesa veio depois:
“Antes de ir à escola, em Petit-Goâve onde passei minha infância com minha avó, eu falava principalmente créole. [...] Toda a vida cotidiana acontecia em créole. É a língua que falo sem pensar. E foi nessa língua que descobri que existia uma relação entre as palavras e as coisas. Em créole há palavras que eu adoro ouvir, palavras boas de ter dentro da boca. Palavras de prazer, ligadas principalmente às frutas, à variedade de peixes, aos desejos secretos (palavras que não podem ser ditas diante dos adultos), aos jogos proibidos.”
Percebemos a relação afetiva e quase material com a língua; ela traz em si não só o som, mas o cheiro, a forma e a concretude dos objetos. O francês era a língua que devia ser aprendida para se ter acesso à educação, à civilização e como possibilidade de abrir-se para o mundo. E se, por um lado, a nova língua entrou desvalorizando a primeira e criando uma deformação na imagem de si; por outro, ela tornou possível o acesso a outras culturas. Foi por meio da língua francesa que Dany afirma ter conhecido grandes escritores, não só os franceses, mas também autores traduzidos em francês. Essa cultura adquirida por meio da língua francesa o ajuda a defender-se dos americanos e é motivo de orgulho:
“Eu me sirvo da França contra a América, mostrando para eles esse refinamento cultural que vem da França, essa abertura para o mundo proibida aos negros fechados em guetos. [...] Essa cultura, eu a recebi da França.”
“O escritor insiste em dizer que, para ele, o que importa é a cultura, e não a língua (como separar as duas?), que é uma simples roupa que ele gostaria de eliminar.”
Outro elemento importante na escolha da língua foi o fato de, ao chegar a Montreal, encontrar uma língua francesa diferente: o francês falado no Québec não é o francês do colonizador, mas sim do colonizado, ou seja, uma língua inferior, como ele aprendeu a perceber o créole quando vivia no Haiti. A questão da língua e da independência é onipresente no Québec. Perceber essa relação entre o quebequense e sua língua ajudou a criar uma cumplicidade entre Dany e o país que o acolheu em seu exílio. Assim, escolhe o francês como língua de criação.
E o que explicaria a quase ausência do créole em seus livros? Segundo Dany, porque a maioria de seus leitores não sabe o idioma. Neste livro, ele aparece somente nos provérbios que abrem cada capítulo, com a tradução abaixo, e em alguns termos próprios do universo haitiano, que mantivemos em sua forma original, grafados em itálico e elucidados em nota. Além disso, o texto em francês traz, integradas à narrativa, diversas palavras e expressões provindas do créole haitiano, do francês falado no Haiti, do francês falado no Québec e do inglês dos Estados Unidos. Na tradução, esses termos foram incorporados da mesma forma que no texto-fonte, sem aspas nem uso do itálico.
O escritor insiste em dizer que, para ele, o que importa é a cultura, e não a língua (como separar as duas?), que é uma simples roupa que ele gostaria de eliminar. Acredita que o fato de tratar de situações do dia a dia da cultura haitiana já faz referência à língua que está sendo falada, pois todo o cotidiano está imerso no créole.
Texto publicado originalmente na 1ª edição brasileira do livro, lançada em 2011 pela Editora 34.
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5. Qual foi a sua interpretação sobre a viagem do protagonista ao mundo dos mortos?
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