"A mulher do século" TAG Curadoria - Junho/2023

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Você tem em mãos agora um emblemático livro escrito nos Estados Unidos na década de 1950, uma obra que temos o prazer de publicar em primeira mão no Brasil. O grande atrativo de A mulher do século, de Patrick Dennis, é o humor de que o autor lança mão para nos apresentar a trajetória de uma figura muito especial: Tia Mame, a irreverente protagonista da história, uma mulher à frente de seu tempo que recebe a missão de educar o sobrinho órfão.

Para situá-lo na narrativa, apresentamos a seguir textos introdutórios, como uma contextualização do período em que se passa a trama e uma entrevista com a nossa curadora do mês, a filósofa italiana Ilaria Gaspari. Há ainda uma matéria sobre as adaptações da obra para os palcos e as telas, incluindo sugestões de outras personagens tão icônicas quanto Tia Mame, além de uma análise crítica do livro.

Boa leitura!

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JUN 2023
RAFAELA PECHANSKY Publisher LIZIANE KUGLAND Revisora BRUNO MIGUELL Designer JÚLIA CORRÊA Editora ANTÔNIO AUGUSTO Revisor
sumário posfácio 26 30 Para ir além Análise crítica 32 Agenda prefácio 12 Entrevista com a curadora 6 8 17 Por que ler o livro O livro indicado Contextualização 4 Experiência do mês 24 Ilustração do mês

VAMOS LER A mulher do século

Criamos esta experiência para expandir a sua leitura. Entre no clima de A mulher do século colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!

Leia até a página 50

Após a chegada um tanto conturbada de Patrick na casa de sua tia, ela mostra-se disposta a dar a formação que considera a mais adequada para o sobrinho. Busca enriquecer o seu vocabulário, fazendo-o anotar as palavras que não conhece, e, burlando um acordo, matricula o garoto em uma escola progressista.

Será que essa foi uma boa ideia de Mame?

Leia até a página 114

Com o sufoco trazido pela Grande Depressão, Mame dedica-se a uma série de trabalhos. Como vendedora, acaba conhecendo um homem sulista, e o relacionamento entre eles, como acabamos de ver, coloca nossa protagonista em situações bastante embaraçosas. Você também se divertiu com os últimos acontecimentos? Conte lá no app!

Leia até a página 188

Quantas emoções! E pobre Patrick, envolvido por Mame e Agnes em aventuras pitorescas que o fazem quebrar uma série de regras da St. Boniface! O Sr. Babcock, claro, não ficou nada contente com o que acabou de testemunhar. Ao menos, o trio pôde contar com alguém como o Sr. Pugh.

Leia até a página 260

Patrick vai à universidade, e Mame acaba acompanhando a trajetória acadêmica do sobrinho de um modo bastante peculiar. Quando o rapaz está prestes a dar um próximo passo em sua vida, rumo ao casamento, Mame percebe os preconceitos da família da noiva e não deixa barato! O que você achou das últimas cenas?

Compartilhe suas impressões no app!

PLAYLIST ACESSAR O APP 6 EXPERIÊNCIA DO MÊS
OUVIR

Concebido pela designer Luísa Zardo, autora de capas de livros da TAG, como Aprender a falar com as plantas e Indígenas de férias, o projeto gráfico deste mês busca evidenciar a personalidade extravagante da protagonista de A mulher do século. As mãos de Tia Mame ganham destaque na capa, que, a partir de cores vibrantes e elementos como as joias e os drinques, remete ao luxo e às festividades da rotina da personagem.

projeto gráfico mimo

19 de junho é a data em que se celebra o cinema brasileiro. 125 anos após os primeiros registros cinematográficos do país, a TAG envia o Sétima, um jogo de cartas que reverencia a 7ª arte. Para a partida, cada jogador recebe sete cartas cujos versos são estampados pela Baía de Guanabara, paisagem que, supostamente, serviu de cenário para a primeira filmagem brasileira, da qual não se tem mais registro.

Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.

Leia até a página 347

São tantas as voltas que a vida dá, não é mesmo? Excêntrica e avoada, mas com tanto afeto para dar, Mame é mesmo encantadora. Quem diria que, no desfecho, Patrick se veria na situação de decidir algo assim?

2023 jul fev ago mar set abr out mai nov jun dez jan
A mulher do século pode ter terminado, mas a experiência não!
PODCAST 7 EXPERIÊNCIA DO MÊS
OUVIR
“Loucuras extravagantes e aventuras delirantes.”
The New York Times
“Tia Mame encanta, seduz, diverte [...].”
la Repubblica
“Chocante, hilário, irreverente, sofisticado, satírico em doses generosas.”
8 POR QUE LER O LIVRO
The Denver Post

Por que ler o livro

Clássico norte-americano dos anos 1950, A mulher do século figurou na lista de best-sellers do New York Times por 112 semanas e ganhou adaptações inesquecíveis para o teatro e o cinema. Com uma trama bem-humorada em torno de uma personagem cativante e transgressora, o livro diverte e, ao mesmo tempo, instiga reflexões sobre educação, relações familiares, autonomia feminina e conflitos entre tradição e modernidade.

9 POR QUE LER O LIVRO

Liberdade e irreverência

JÚLIA CORRÊA

Em A mulher do século, o narrador-personagem compõe o retrato da própria tia, cuja personalidade marcante fez da obra um sucesso editorial nos Estados Unidos dos anos 1950

Quando iniciamos a leitura de A mulher do século, livro publicado originalmente em 1955, logo somos informados de que “Tudo começou por causa de uma edição antiga da Digest”. Quem nos conta isso é Patrick Dennis, narrador-personagem que leva o nome do próprio autor. Uma das matérias que ele lê na revista destaca uma figura que seria a “personagem mais inesquecível” que o articulista já conhecera, ao que Patrick reage: “Faça-me o favor, esse escritor não faz a menor ideia do que está falando! Ele não tem nem como saber o significado da palavra personagem se nunca conheceu minha Tia Mame. Ninguém tem como saber”.

É assim, portanto, que tudo começa: estabelecendo comparações com a figura retratada na revista, Patrick passa a compor o retrato da própria tia, a protagonista do livro, cujos humor e irreverência fariam da obra um sucesso editorial nos Estados Unidos dos anos 1950, quando permaneceu na lista de títulos mais vendidos do país por nada menos do que 112 semanas. O êxito da obra seria alavancado ainda por suas adaptações nos anos seguintes, sobretudo pelo filme homônimo de 1958, estrelado pela atriz Rosalind Russell, que ajudou a imortalizar a personagem (leia mais na página 26).

O que faz de Mame uma figura tão emblemática? É o que descobrimos através dos relatos de seu sobrinho, que, a partir de uma série de narrativas fragmentadas,

O LIVRO INDICADO 10

revelará a centralidade da tia em sua formação. Aos dez anos de idade, no final da década de 1920, ele fica órfão e é enviado de Chicago para Nova Iorque, onde a tia mora. A recepção ao sobrinho já revela o tom cômico que pautará boa parte do livro: a tia está promovendo uma festa bastante inusitada em seu apartamento e é surpreendida pela chegada de Patrick e Norah, a babá que o acompanha. Na cabeça de Mame, ignorando as regras do calendário, aquele era o dia 31 de junho, e os dois só chegariam no dia seguinte, primeiro de julho. Não demora para ela se dar conta: “Mas isso é ridículo! Todo mundo sabe que ‘Os meses de trinta dias são setembro, abril, junho e…’, meu Deus! veio um momento de silêncio. Meu querido! ela disse, muito dramática. Eu sou sua Tia Mame! e ela me abraçou e me beijou, e eu entendi que estava seguro”. A cena evidencia também o tom da própria relação entre tia e sobrinho: apesar de toda a sua distração, de suas extravagâncias e excentricidades, Mame dará o seu melhor para educar e proteger Patrick. E jamais falta afeto vindo da parte dela, mulher ousada, à frente de seu tempo, sempre atenta ao seu visual, conhecedora de Freud, leitora de autores modernos, como Gide e Proust, e antenada com as mais recentes tendências artísticas e decorativas. Se a crise de 1929, por exemplo, põe em risco a segurança financeira deles, não faltam esforços de sua parte para que sigam levando uma vida confortável: Mame arregaça as mangas e sai atrás de uma série de empregos, um esforço que rende passagens impagáveis e que acaba por mostrar o próprio espaço que as mulheres vão conquistando no mercado de trabalho daquela época.

Ao longo das décadas representadas no livro, aliás, é interessante acompanhar como os episódios narrados dão conta das crises políticas e econômicas, dos conflitos de valores e das transformações sociais da primeira metade do século XX nos EUA (leia mais na página 17), com o humor utilizado como ferramenta crítica. Nesse contexto, cabe ressaltar, Mame não encarna a figura de uma heroína virtuosa — afinal, ela não está isenta de falhas. Porém é possível afirmar — e vale a pena lançar-se à leitura do livro para confirmar — que ela encarna a potência de um espírito livre, disposto a desbancar ideias retrógradas e a não abrir mão de seus valores e de sua autonomia.

O LIVRO INDICADO
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DE AUTOR BEST-SELLER A MORDOMO, QUEM FOI PATRICK DENNIS?

Nascido em Chicago, Patrick Dennis foi um dos pseudônimos do escritor Edward Everett Tanner III (1921–1976). Foi um dos autores mais lidos nos Estados Unidos entre as décadas de 1950 e 1960. Entre outros títulos de sua autoria, Little Me, de 1961, também se tornou um sucesso na Broadway. Junto com A mulher do século, os títulos Guestward, Ho! e The Loving Couple, ambos de 1956, fizeram de Dennis o primeiro autor a figurar simultaneamente com três livros na lista de mais vendidos do New York Times. Casado e pai de dois filhos, Tanner era bissexual e um ícone da vida boêmia nova-iorquina. Ao longo dos anos 1970, suas obras perderam popularidade. Tendo declarado que já tinha dito tudo o que tinha para dizer, tornou-se um mordomo de famílias da elite de West Palm Beach e Chicago.

O LIVRO INDICADO
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Crédito:CantorArthur

PRINCIPAIS PERSONAGENS

Mame Dennis é a protagonista do livro, mulher livre e espontânea que assume a missão de educar o sobrinho

Patrick Dennis personagem que leva o nome do autor, é o narrador da história e sobrinho de Mame

Norah Muldoon empregada da família de Patrick, é a responsável por levar o menino até Nova Iorque

Sr. Babcock administrador da herança de Patrick, é encarregado pelo pai do menino de matriculá-lo em uma escola conservadora e protegê-lo das excentricidades da tia

Vera Charles estrela dos palcos nova-iorquinos, é a melhor amiga de Mame

Sr. Burnside chamado por Patrick de Tio Beau, é um petroleiro do Sul que se envolve com Mame

Sally Cato McDougall ex-noiva de Beau, faz de tudo para deixar Mame em situações embaraçosas

Agnes Gooch assistente de Mame, ajuda-a a datilografar os seus livros

Brian O’Bannion poeta e conselheiro literário de Mame, responsável pela reescrita de seus textos

Sr. Pugh bedel da Academia St. Boniface, internato em que Patrick é colocado por Babcock

Bubbles garçonete com quem Patrick tem um caso durante a vida universitária

Gloria Upson noiva de Patrick, seus pais são antissemitas

Margot, Miranda, Melissa Maddox: três irmãs do Maine que Mame conhece no México e, depois, apresenta a Patrick Pegeen filha do dono de um hotel em que Patrick se hospeda quando vai encontrar as irmãs Maddox

O LIVRO INDICADO
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“A literatura é o meu primeiro amor”

Ilaria Gaspari conta à TAG por que indicou A mulher do século ao nosso clube e fala sobre as relações entre a literatura e a filosofia, sua área de atuação

JÚLIA CORRÊA

“P ara mim, filosofia e literatura iluminam uma a outra”, afirma a italiana Ilaria Gaspari, nossa curadora do mês, que, em suas obras, costuma produzir um instigante diálogo entre essas duas áreas. Nascida em 1986, a filósofa fez a sua formação na Escola Normal Superior de Pisa e na Sorbonne. Seu livro mais recente publicado no Brasil, A vida secreta das emoções, lançado pela editora Âyiné, propõe uma viagem por diferentes estados de espírito, como a nostalgia, o remorso, a inveja e a felicidade. É uma obra permeada por exemplos literários, e sua própria escrita é marcada por um tom poético.

O livro anterior de Gaspari, Lições de felicidade, por sua vez, detalha um experimento que a autora se propôs: colocar em prática, durante seis semanas, os ensinamentos de diferentes escolas filosóficas gregas do passado. Nossa curadora é também romancista. Em 2015, lançou o seu primeiro romance, Etica dell’acquario, sem tradução no Brasil. Apaixonada por Proust, tem um podcast (em italiano) sobre o escritor francês: Chez Proust, produzido com a Emons Record. Trata-se de uma paixão, aliás, que divide com a protagonista do livro que indicou ao nosso clube. Em A mulher do século, Mame revela-se uma dedicada leitora do autor de Em busca do tempo perdido.

Na entrevista a seguir, Gaspari dá mais detalhes do que motivou a sua indicação à TAG e avalia as qualidades da obra de Patrick Dennis, como a complexidade de sua protagonista e a relação dela com o sobrinho. Também comenta a centralidade da literatura em sua trajetória e compartilha leituras marcantes.

ENTREVISTA COM A CURADORA
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A curadora do mês, Ilaria Gaspari.

Crédito: Chiara Stampacchia

Como você entrou em contato com A mulher do século? Como foi a sua experiência de leitura? Você poderia explicar por que decidiu indicar esse livro ao nosso clube?

Foi muito difícil escolher um livro, eu sentia uma grande responsabilidade. Porque há muitos livros que eu amo, e escolher apenas um parecia impossível; mas também porque sei, como grande amante da leitura, que, dependendo do momento, do humor, da fase da vida que atravessamos, um livro nos diz tantas coisas diferentes. Enfim, eu estava em crise. Então fechei os

ENTREVISTA COM A CURADORA
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olhos e pensei: qual livro gostaria de redescobrir do zero? E, por trás dos meus olhos fechados, apareceu A mulher do século. Na Itália, foi um caso literário alguns anos atrás, uma redescoberta, para dizer a verdade, porque já havia feito um grande sucesso nos anos 1950 e, depois, quando a editora Adelphi o republicou, foi ainda mais longe. Lembro-me de se falar muito sobre isso, intrigava-me. Na época, eu estava na universidade e costumava retornar à casa dos meus pais, que moravam em outra cidade, nos finais de semana. Um dia, cheguei à estação mais cedo, algo muito raro para mim, e entrei na livraria ao lado para passar o tempo. Comprei esse livro, a capa me agradou muito e precisava enganar a espera; eu tinha comigo apenas livros para estudar para uma prova, e a ideia me entediava… Então comecei a ler e quase perdi o trem.

O vínculo entre Mame e seu sobrinho Patrick é um elemento central do livro. O que você acha que a relação entre os dois diz sobre a natureza da família e do amor?

Acredito que — um pouco como tudo nesse livro — nos diz algo muito profundo e, ao mesmo tempo, refrescante, libertador: que os relacionamentos, mesmo aqueles que estamos acostumados a pensar como mais “tradicionais” e codificados, como a relação entre uma tia e um sobrinho, na verdade os inventamos nós mesmos, dia após dia, e o amor, quando ilumina esses relacionamentos, os transforma completamente, fora de todas as rotinas mais arraigadas, de todas as convenções. E nos diz também que as solidões que se unem criam famílias atípicas e felizes à sua maneira, porque o amor tem muitas formas.

Um dos principais conflitos do livro é aquele entre tradição e modernidade (um exemplo é a escolha da escola em que Patrick estudará). Como você avalia o tratamento que o autor dá a esse conflito?

Também em relação a esse tema, parece-me que o livro mostra uma abertura que nos liberta da ideia de que as coisas devam necessariamente continuar a seguir o caminho do passado; mostra que podemos inventar o futuro, talvez com um pouco de loucura, como faz Tia Mame, mas sentindo-o nosso, novo, fresco.

ENTREVISTA COM A CURADORA
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Crédito: Chiara Stampacchia

A mulher do século é um livro conhecido pelo seu humor, ao mesmo tempo que aborda temas históricos e profundos. O que você pensa sobre o equilíbrio entre esses diferentes tons e o efeito que isso causa nos leitores?

Eu acredito que, muitas vezes, os livros verdadeiramente humorísticos, realmente divertidos, são também aqueles que conseguem contar os aspectos mais profundos da vida. É como se o poder libertador que é a prerrogativa do humor permitisse, a quem o maneja, chegar muito mais profundamente. A mulher do século, para mim, é um desses casos.

Mame é frequentemente vista como um ícone feminista. Em que medida você acredita que ela desafia os papéis de gênero tradicionais? Como o livro aborda a tensão entre satisfação pessoal e expectativas sociais?

Mame não é uma personagem resolvida, não é um “modelo”, não é uma figura que se propõe como um exemplo a seguir — e também nisso, nessa liberdade, vejo um grande potencial feminista. Hoje está na moda uma ética muito prescritiva, a ideia de que, nos modelos literários ou artísticos, devemos nos reconhecer, nos colocar no lugar, nos identificar. No caso de A mulher do século, um romance que vem de uma época que hoje parece muito distante e que conta a história de uma mulher excêntrica e emancipada à sua maneira, também através do uso de fantasia e ilusão, em uma época em que as expectativas sociais em relação às mulheres eram extremamente opressivas, essa identificação não é tão

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imediata. E, além disso, Mame não quer nos “ensinar” nada, não tem a pretensão de dizer aos leitores como se comportar: ela nos mostra sua maneira de estar no mundo, que é livre porque nega essas expectativas sociais tão sufocantes. Isso me lembra, por esse tipo de liberdade em que encontro um dos aspectos mais espontâneos e emancipatórios do feminismo, outra personagem excêntrica, outro modelo não convencional extraordinário: Píppi Meialonga. [Gaspari refere-se à personagem infantil criada pela sueca Astrid Lindgren.]

Aqueles que acompanham a sua produção sabem da sua paixão pela literatura. Seu livro mais recente publicado no Brasil, A vida secreta das emoções, é repleto de referências literárias. Como você avalia a relação entre literatura e filosofia? Até que ponto a literatura influencia sua atividade como filósofa?

A literatura é o meu primeiro amor; meu primeiro livro foi um romance e, para ser sincera, me considero mais uma escritora que estudou filosofia e, às vezes, aborda temas filosóficos. Para mim, filosofia e literatura iluminam uma a outra. Acredito que seja uma relação totalmente aberta, em constante transformação. Na história, existem grandes autoras que trabalham na fronteira entre essas duas formas de pensamento e mostram o quão permeável é tal fronteira: penso em Iris Murdoch, em Ingeborg Bachmann. São autoras que admiro muito e que tornam vivo o diálogo entre uma e outra forma de escrever e pensar.

A ESTANTE DA CURADORA

O primeiro livro que leu:

O jardim secreto, de F. H. Burnett.

O livro que está lendo: Chocolates for Breakfast, de Pamela Moore.

O livro que mudou a sua vida: Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.

O livro que gostaria de ter escrito: São tantos! Mas diria A marca humana, de Philip Roth.

O último livro que a fez chorar: Chocolates for Breakfast, que estou lendo agora.

O último livro que a fez rir: Pacto sinistro, de Patricia Highsmith.

O livro que dá de presente: A mulher do século!

O livro que não conseguiu terminar: São muitos, mas citaria Pessoas normais, de Sally Rooney. (Sei que todos gostaram, mas não me agradou tanto assim.)

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Sociedade em movimento

A mulher do século acompanha importantes momentos da cultura norte-americana no século XX

Irreverente e transgressora, a personagem de Tia Mame encarna muitos aspectos marcantes do desenvolvimento da sociedade norte-americana a partir dos anos 1920. Das dificuldades que enfrenta com a quebra da bolsa de valores, passando por sua inserção no mercado de trabalho, até a forma como revela e, ao mesmo tempo, se opõe a preconceitos de sua época, descobrimos tensões e transformações sociais e culturais relevantes para a compreensão daquele período — uma prova de que, na literatura, o humor e a profundidade histórica podem andar juntos. A seguir, confira uma contextualização das principais questões abordadas pelo livro.

OS LOUCOS ANOS VINTE

Não são poucos os filmes e livros dedicados aos “loucos anos vinte”. Foi um período de prosperidade, bonança, festas e a certeza de que os Estados Unidos se consolidavam como uma potência mundial, embalados pelo otimismo do pós-guerra e pela reconstrução

CONTEXTUALIZAÇÃO
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Cena da adaptação de O Grande Gatsby (1974).

Multidão durante uma corrida bancária na Grande Depressão.

Crédito: National Archives

europeia. Antes de A mulher do século, cujo início remonta a esse período, obras como O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, já revelavam um tempo de excessos e altas expectativas. Os padrões de consumo criados com as novas tecnologias eram melhores do que nunca. Geladeiras, rádios, telefones e carros estavam cada vez mais presentes. Cresciam o cinema, as revistas, o jazz e as atividades de lazer. E também o acesso ao crédito e ao mercado de ações como novas possibilidades. A indústria chegava aos seus melhores números e atraía milhares de habitantes das áreas rurais. Uma euforia que terminaria em frustração alguns anos depois.

A GRANDE DEPRESSÃO

Em outubro de 1929, a quebra da Bolsa de Nova York espraiou a crise para todos os lados. A indústria perdeu força de forma nunca antes vista e o desemprego disparou. São muitas as causas dessa crise. Entre elas, a especulação para ter ganhos fáceis com a bolsa, o endividamento causado pelo maior acesso ao crédito e a desigualdade de distribuição de renda. Como se não bastasse, perdas de safras no campo causaram migrações maciças para as cidades. Do outro lado do

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Mulheres trabalhando como arquivistas nos anos 1920.

Crédito: Coleção Bettmann

Atlântico, a economia europeia tentava se recuperar da guerra e sofreu mais esse abalo. Está formado o cenário para a maior crise econômica de que se tinha notícia até então. A grande depressão atinge Mame em cheio. Ela passa a buscar empregos e acaba trabalhando, entre outras funções, como decoradora e vendedora em lojas. Somente com as reformas para promover a recuperação econômica, obras públicas e regulações propostas pelo New Deal, de Franklin Roosevelt, é que a economia norte-americana volta a funcionar bem. Anos depois, a Segunda Guerra viria a ser o combustível final para essa retomada.

AUTONOMIA FEMININA

Durante a Primeira Guerra Mundial, muitas mulheres passaram a trabalhar e conquistaram sua independência financeira. Com o fim do conflito, queriam manter seu status social. Além disso, a influência da cultura de massa, das revistas e do cinema é fundamental nas mudanças sociais que os anos 1920 trouxeram, como a aprovação do voto feminino e a maior autonomia das mulheres. O livro mostra bem esse período com a atuação de Mame como redatora de uma dessas revistas, a Vanity Fair. Temas como a maior liberdade nos relacionamentos e um novo modo de ser chocavam as famílias mais conservadoras — cabelos curtos, saias até os joelhos e comportamentos inesperados para mulheres até então dão a tônica desse período.

CONTEXTUALIZAÇÃO
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TRADIÇÃO X MODERNIDADE

Mame, como uma mulher à frente de seu tempo, é leitora de autores da modernidade europeia e é inteirada das tendências artísticas internacionais. Não por acaso, choca a sociedade com o seu trabalho como decoradora quando decide decorar uma casa no estilo vanguardista da Bauhaus, considerado estranho para os gostos da elite nova-iorquina de então. Esse conflito entre tradição e modernidade se dá também na escolha do colégio de Patrick. A tia decide colocar o sobrinho em uma escola de influência “freudiana”, enquanto o tutor preferia que ele se mantivesse alinhado aos valores cristãos de um colégio tradicional.

OS CONFLITOS ENTRE O SUL E O NORTE DOS EUA

Mame se envolve com um sulista magnata do petróleo. Quando vai visitar a família dele, sofre preconceito por vir de Nova Iorque. Nessa parte, ainda é possível perceber resquícios da Guerra da Secessão, temas como a escravidão — inclusive com comentários pre conceituosos no livro — e a forma como a família desaprova — direta e indiretamente — a escolha de Mame como esposa. A cena do caótico passeio a cavalo evidencia os problemas dessa relação. As raízes dessa disputa estão nas diferenças do norte dos EUA, com mais indústrias e defensor do trabalho assalariado, e do sul, com economia agrária e apoiador do trabalho escravo. Isso levou a uma guerra que deixou mais de 700 mil mortos e feridas abertas no imaginário dos dois lados. Em 1865, a abolição da escravidão é decretada no país.

ANTICOMUNISMO

A Revolução Russa de 1917 causou medo em muitos norte-americanos. Eles temiam que o mesmo poderia ocorrer em seu país, com o fim da propriedade privada e os trabalhadores e sindicatos tomando o poder. Difundiu-se na sociedade, através da imprensa e do governo, o “medo vermelho” (Red Scare). Naquele momento, o país vivia com greves gerais e alguns ataques de anarquistas — a greve mais famosa chegou

CONTEXTUALIZAÇÃO
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a paralisar 60 mil trabalhadores em Seattle. A perseguição no clima político chegou à sociedade e impregnou-se na cultura. Nos anos 1940, como relata James West Davidson, autor de Uma breve história dos Estados Unidos, o acirramento das tensões internacionais fez a política interna do país se acalorar. Cientistas e oficiais do governo eram acusados de espionagem, e atores de Hollywood, convocados a depor ao Comitê de Atividades Antiamericanas, acusados de retratar os comunistas de maneira favorável. A mulher do século faz algumas referências indiretas ao tema, como quando Sr. Upson, pai de Gloria, noiva de Patrick, esbraveja contra “revistas comunistas”, mas o que mais salta aos olhos é o antissemitismo dele e da esposa.

ANTISSEMITISMO

Entre 1865 e 1915, cerca de 25 milhões de imigrantes chegaram aos EUA, o que mudou radicalmente a estrutura social do país em muitas regiões. Nos anos 1920, apesar de toda a modernidade e da efervescência cultural que o país vivia, havia movimentos como a Ku Klux Klan, que chegou a ter 4 milhões de participantes e combatia não apenas negros, mas outras minorias, como chineses e judeus. É importante destacar que alguns grupos étnicos, como os judeus, acabaram progredindo mais do que outros, especialmente quando contavam com qualificações profissionais. Isso fez crescer o estereótipo do “judeu ganancioso” e sentimentos antissemitas. “Noções como raça inferior e superior infiltraram-se em muitos aspectos da sociedade e da cultura norte-americana, criando sensíveis distinções socioeconômicas na população”, indica História dos Estados Unidos: das origens ao Se o antissemitismo é perceptível na família Upson, não faltam também passagens que revelam preconceitos contra outros grupos. Quando chegam a Nova Iorque, Patrick e Norah são recebidos por Ito, um funcionário japonês de Mame, ao que a babá exclama: “Deus do céu, um chinês!”. E, claro, a própria forma estereotipada como Mame e seus convidados apropriam-se da cultura oriental evidencia, em alguma medida, preconceitos existentes na época.

CONTEXTUALIZAÇÃO 23

OS EUA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Embora a Segunda Guerra tenha começado em 1939, os EUA entraram no conflito apenas em dezembro de 1941, após o ataque dos japoneses contra a base de Pearl Harbor. Em dado momento do livro, Patrick relata: “A Europa já estava toda envolvida nela e parecia questão de minutos até os Estados Unidos se envolverem também. O dia em que devolvi o anel para a Cartier foi também o dia em que me tornei voluntário no Batalhão de Ambulâncias. Duas semanas depois, embarquei para o Norte da África enquanto Tia Mame chorava na Washington Square”. A guerra mobilizou diferentes setores da indústria norte-americana, que passou a ser estratégica para os aliados, e melhorou o padrão de vida de milhões de famílias. De acordo com dados do governo, foram criados cerca de 17 milhões de novos empregos naquele período. Do outro lado, no entanto, cerca de 330 mil norte-americanos morreram no conflito. Para além das mortes, a guerra provocou processos massivos de migração, como é possível observar no momento em que Patrick e Mame recebem crianças inglesas refugiadas (motivo, aliás, de muita dor de cabeça para os personagens!).

CONTEXTUALIZAÇÃO
Os EUA entraram na Segunda Guerra em 1941.
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Crédito: Louis R. Lowery

Ilustração do mês

Gabriel Renner é ilustrador freelancer e designer. Passou pelas redações de Zero Hora, Diário Gaúcho, Notícias do Dia e Grupo Editorial Sinos, além de ter ilustrado para as revistas Superinteressante, Mundo Estranho e Sexy. @rennergabriel

A pedido da TAG, o artista interpretou uma passagem do livro do mês: “Tia Mame me recebeu no seu quarto, que ficava no segundo andar. Era um aposento amplo, com paredes pretas, carpete branco e teto dourado. Os únicos móveis eram uma enorme cama dourada, em cima de uma plataforma, e uma mesa de cabeceira. Era um quarto que deixaria a maioria das pessoas deprimida, mas não era o que acontecia com Tia Mame. Ela estava tão vibrante quanto um pássaro. Na verdade, ela de fato se parecia com um pássaro, graças à camisa do seu pijama, feita de penas rosas de avestruz. Tia Mame estava lendo Os moedeiros falsos, de Gide, e fumando cigarros Melachrino em uma piteira de resina”.

26 ILUSTRAÇÃO DO MÊS

POSFÁCIO

Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página. A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.

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Mame Dennis e suas sucessoras

Livro de Patrick Dennis rendeu uma série de adaptações para as telas e os palcos — a mais icônica foi estrelada por Rosalind Russell, que fez de Tia Mame uma das personagens femininas mais emblemáticas da história do cinema

Um dos grandes desafios da adaptação de livros para as telas é o recorte dos eventos da trama. Uma regra que se aplica a praticamente todas as adaptações, desde o nascimento do cinema, é a eliminação de partes da história original. O tempo do livro é elástico e dilatado; em duzentas ou trezentas páginas, cabem trama e subtrama, personagens principais e secundários, passado, presente e futuro. Ou seja, um livro tem mais tempo para contar uma história. Já um filme tem, em média, duas horas e, diferentemente do livro, nele não cabe tudo. Roteiristas e diretores precisam fazer escolhas que valorizam alguns eventos da narrativa em detrimento de outros. É justamente essa característica que, muitas vezes, gera a sensação de frustração nos espectadores. Esperando fidelidade total ao livro, o público não hesita em dizer que o filme falhou, uma vez que deixou de fora personagens queridos e, não raro, capítulos inteiros da narrativa impressa. Um filme é a tradução audiovisual de uma história, e, nesse sentido, a escolha dos atores e locações é fundamental. Com o sucesso de A mulher do século, não faltaram adaptações para o cinema, o palco e a televisão.

PARA IR
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ALÉM

Uma das mais famosas é o filme de 1958, com Rosalind Russell no papel principal. Sua atuação recebeu uma merecida indicação ao Oscar, pois Russell consegue imprimir à personagem toda a energia e o otimismo que são parte fundamental de Mame. Conhecida pelo seu magnetismo e pela capacidade de dar vida às mulheres fortes, o sorriso aberto de Rosalind Russell, aliado à sua postura altiva, são elementos que funcionam muito bem na composição dessa personagem tão cheia de vida. Russell também interpretou Mame em um musical de sucesso na Broadway. Como esperado, algumas partes da narrativa ficaram de fora do filme dirigido por Morton DaCosta. Não vemos Mame acolhendo as crianças refugiadas nem se divertindo com os amigos de faculdade do seu sobrinho. Também ficou de fora todo o capítulo em que Mame e Patrick convivem com as arrogantes irmãs Maddox. As partes suprimidas não fazem falta, pois o filme conseguiu preservar as características mais importantes da personagem e suas relações de afeto. Para nós, espectadores do século XXI, o filme pode ser um pouco teatral. Além disso, algumas piadas têm pouca graça — o humor, afinal, acompanha as mudanças históricas e culturais, porque se trata da expressão de uma cultura de um determinado tempo e lugar. Mas Tia Mame, a despeito das mudanças das convenções do cinema, continua viva e pulsante na tela.

MULHERES FORTES QUE DESAFIAM AS CONVENÇÕES RENDERAM EXCELENTES FILMES, DESDE A

ERA DE OURO DE HOLLYWOOD ATÉ OS DIAS ATUAIS

Impossível não lembrar de Bette Davis e Anne Baxter interpretando, respectivamente, Margo Channing e Eve Harrington em A malvada, escrito e dirigido por Joseph L. Mankiewicz. O filme recebeu quatorze indicações ao Oscar e é lembrado por suas excelentes atuações e diálogos afiados. Enquanto Margo Channing amarga um final de carreira decadente e fala sobre o quanto uma mulher precisa ser forte para conseguir seu lugar ao sol, Eve Harrington usa de dissimulação e manipulação para conquistar a atenção com que sempre sonhou. Ambas são mulheres à frente do seu tempo, que desejam para si mesmas algo bastante difícil de conseguir.

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Outra personagem extravagante e icônica, capaz de encher a tela com seu carisma e personalidade única, é Holly Golightly, interpretada pela estrela Audrey Hepburn em Bonequinha de luxo, dirigido por Blake Edwards em 1961. O roteiro de George Axelrod foi inspirado no livro de mesmo nome de Truman Capote. Golightly se casa aos quatorze anos para escapar da pobreza e fugir de casa; está disposta a correr atrás do sonho de ser atriz. Morando em Nova Iorque, conhece o escritor Paul Varjak, para quem, aos poucos, conta seus sonhos e devaneios. A comédia romântica tornou-se um clássico, e a interpretação de Hepburn dá à personagem toda a autenticidade que ela merece.

Na história do cinema, porém, não há equivalente para as protagonistas de Thelma & Louise (1991), interpretadas por Geena Davis e Susan Sarandon. Com roteiro de Callie Khouri e direção de Ridley Scott, Thelma e Louise são mulheres que se recusam a se adequar e estão dispostas a pagar o preço pela liberdade. As amigas saem para uma pequena viagem de um final de semana e, a partir de um evento de violência, terão suas vidas transformadas para sempre. Descrito por alguns críticos como um road movie feminista, Thelma & Louise continua a cativar os espectadores das novas gerações.

Com as mulheres conquistando mais espaço na indústria do cinema, nas diferentes funções criativas e de produção, podemos esperar novas personagens extravagantes, fortes e donas do seu próprio destino. Sucessoras de Tia Mame, Holly Golightly, Thelma, Louise e tantas outras.

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Uma mulher à frente do seu tempo

Não é exagero dizer que Tia Mame representa o impulso por liberdade que levamos dentro de nós

Onarrador de A mulher do século logo conta ao leitor que sua tia é uma mulher com ideias heterodoxas. Esse é o traço mais encantador, subversivo e envolvente do livro. Quando Mame passa a ser sua responsável legal, um mundo inteiramente novo se abre para o pequeno Patrick, que, pela primeira vez, se sente verdadeiramente querido. “[…] Tia Mame e eu aprendemos a nos amar da maneira mais rápida e indolor possível. Que sua personalidade impressionante iria me atrair [...] era um desfecho inevitável. Seu charme um tanto quanto caótico era, no final das contas, notório, e ela também era a primeira família de verdade que eu conhecia.” Se, com o pai, Patrick experimentava frieza e distanciamento, com a tia, passará a viver de forma intensa, autêntica e interessada. Tia Mame é uma mulher entusiasmada que gosta de envolver os outros em suas paixões e descobertas.

O começo da narrativa se passa na década de 1920, período em que vigorou, nos EUA, a Lei Seca. Tia Mame dá festas em seu apartamento e sempre tem um fornecedor que providencia a matéria-prima para os bons drinques. Mas essa é apenas a camada superficial da subversão da personagem. Tia Mame tem espírito crítico, quer pensar e julgar por conta própria e não tem medo de se posicionar em relação aos assuntos importantes da sociedade; além disso, deseja encontrar seu lugar em um mundo dominado por homens. Tudo isso em uma época em que o debate sobre os direitos das mulheres mal despontava no horizonte. Entre as ideias arrojadas da personagem estão a defesa da escola mista — para meninos e meninas —, um espaço de acolhimento para crianças refugiadas da guerra e o franco interesse nos novos campos do saber da época, como a psicanálise e a estética das vanguardas artísticas.

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A personagem cativa o leitor. Trata-se da representação de uma mulher que se deixa levar pelos seus interesses, sempre com o olho no futuro, em novas aprendizagens e culturas desconhecidas. O final do livro, com a referência a uma viagem à Índia, é impagável. Tia Mame não tem medo de se expressar e parecer inadequada, e esse aspecto dá à personagem contornos que sobreviveram ao tempo. Ainda hoje, as mulheres lutam para serem aceitas nos espaços que ocupam e, frequentemente, precisam se perguntar se estão se comportando ou falando de maneira adequada, condizente com as expectativas externas.

O narrador-personagem conta suas experiências com a tia e fala sobre seu amadurecimento, lançando mão de uma narrativa ágil, cheia de viradas surpreendentes e com forte efeito cômico. O exagero, a paródia e a caricatura fazem parte da linguagem do livro; são expedientes necessários para fazer o leitor rir. Vale ressaltar que a obra foi escrita décadas atrás e algumas poucas passagens envelheceram mal; comentários sobre negros e indígenas causam incômodo por conta do teor racista. Mas nada disso apaga o brilho da personagem.

Há uma cena em especial que mostra a contemporaneidade e a potência de Tia Mame. Ela entra em um debate acalorado com a família de Gloria Upson, noiva de Patrick, em uma viagem que todos fazem juntos para celebrar o noivado. Os Upson são um clã conservador e antissemita que nada deixa a desejar aos grupos radicais de extrema direita da atualidade. Assim que percebe a discriminação e a agressividade do Sr. Upson, posiciona-se vigorosamente, enfatizando o absurdo das opiniões descabidas e preconceituosas da família Upson. O noivado é desfeito e Patrick agradece à tia por tê-lo feito abrir os olhos.

Não é exagero dizer que Tia Mame representa o impulso por liberdade que levamos dentro de nós. Quem não deseja poder pensar e agir de forma genuína e menos engessada, levando em conta sua própria autenticidade e visão de mundo? Mas não se trata de uma liberdade irresponsável e individualista, que passa por cima das diferenças, solapando-as. Muito pelo contrário. Ao final da história, Tia Mame deixa um importante recado: é nutrindo um interesse honesto pelo outro, validando sua existência e sua diferença, que podemos, então, viver uma vida mais interessante, vibrante e autêntica.

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“Tia Mame não tem medo de se expressar e parecer inadequada, e esse aspecto dá à personagem contornos que sobreviveram ao tempo.”

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HORA DE CELEBRAR OS NOVE ANOS DA TAG!

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Guia de perguntas sobre A mulher do século

1. O que você achou da estratégia utilizada pelo narrador de comparar sua tia com a personagem da matéria de uma revista? E qual a sua opinião sobre a divisão do livro em pequenas histórias quase independentes?

2. Avalie a evolução da relação de Patrick com Mame. Que tipo de valores você acredita que a tia transmitiu ao sobrinho?

3. Em que medida você acredita que Mame encarna as transformações culturais de seu tempo?

4. O livro é recheado de cenas bastante cômicas. Qual você acha que foi o ponto alto entre elas?

5. Você gostou do desfecho do livro? Como você vê a decisão de Patrick e de sua esposa em relação ao filho?

E, claro, não poderia faltar emoção no mês de aniversário do clube! O livro escolhido para celebrar a data é uma obra inédita no Brasil cuja história acompanha três gerações de uma família negra no sul dos Estados Unidos. Com personagens femininas mais do que marcantes, o romance aborda temas como violência, justiça, amor e perdão.

Para quem gosta de: autoras afro-americanas, dramas familiares, literatura contemporânea Prepare-se para se aventurar em um livro de origem haitiana! Indicada pelo escritor Allan da Rosa, a obra que você recebe em agosto gira em torno de um homem que retorna ao seu país natal depois de 20 anos de exílio e recebe um convite bastante inusitado.

Para quem gosta de: literatura haitiana, literatura caribenha, autoficção

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