"Lar em chamas" TAG Curadoria - Maio/2023

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MAI 2023 LAR EM CHAMAS

olá, tagger Olá, tagger

Você não acha fascinante que um texto escrito há mais de dois mil anos seja capaz de falar tanto conosco ainda hoje? Um belo exemplo desse diálogo pode ser encontrado no livro deste mês, que propõe uma releitura atual de uma emblemática peça de Sófocles, Antígona, para trazer à tona questões como a identidade, o luto e as relações familiares.

Em Lar em chamas, a paquistanesa Kamila Shamsie expõe o drama de três irmãos muçulmanos na Inglaterra, país em que a própria autora é radicada. Nesse romance premiado, as dimensões íntimas e políticas colidem-se de modo impactante.

Para ampliar a sua experiência, apresentamos a seguir artigos de contextualização e análise crítica da obra. Você ainda encontra entrevistas com a autora e a nossa curadora do mês, a escritora brasileira Nara Vidal, além de recomendações de outros títulos com temáticas e propostas semelhantes.

Boa leitura!

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MAI 2023
RAFAELA PECHANSKY Publisher LIZIANE KUGLAND Revisora BRUNO MIGUELL Designer JÚLIA CORRÊA Editora ANTÔNIO AUGUSTO Revisor
sumário posfácio prefácio 28 30 Análise crítica Para ir além 32 Agenda 10 Entrevista com a curadora 6 8 15 Por que ler o livro O livro indicado Contextualização 4 Experiência do mês 20 Ilustração do mês 22 Entrevista com a autora

VAMOS LER Lar em chamas

Criamos esta experiência para expandir a sua leitura. Entre no clima de Lar em chamas colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!

Leia até a página 65

O início do livro nos situou na vida de Isma. Britânica muçulmana, ela passa por uma situação bastante delicada quando está tentando embarcar de Londres para os EUA, onde fará um doutorado em Sociologia. Em sua nova rotina, sua vida se cruza com outro importante personagem da história. Isma tem dois irmãos gêmeos mais novos — Parvaiz e Aneeka. Esta última fica furiosa quando descobre uma atitude da irmã mais velha. Em meio a tudo isso, detalhes do passado da família começam a ser revelados.

Leia até a página 124

Acompanhamos, nas últimas páginas, o ponto de vista de Eamonn. Filho de Karamat Lone, um polêmico político britânico de origem islâmica, ele fica cada vez mais envolvido com a família de Isma, sobretudo com Aneeka, que, por um motivo muito particular, tenta tirar proveito da sua relação com o rapaz. O que você está achando do livro até agora? Comente lá no app!

Leia até a página 193

Agora, o foco se deslocou para Parvaiz, e, a partir de sua história, descobrimos os perversos mecanismos de cooptação dos grupos jihadistas. As últimas cenas foram de fazer roer as unhas, não é mesmo?

Leia até a página 228

Aneeka, cujo ponto de vista dominou as últimas páginas, mostra-se inconsolável mas incansável. Enquanto isso, a imprensa explora cada vez mais o drama vivido por ela.

ACESSAR O APP 4 EXPERIÊNCIA DO MÊS
OUVIR PLAYLIST

projeto gráfico

Para refletir a sensibilidade e a complexidade do livro, a designer Paula Hentges, responsável pelo projeto deste mês, optou por um caminho mais abstrato e conceitual. Uma flor, no entanto, surge como elemento em destaque na composição: aparentando delicadeza, ela remete a momentos surpreendentes da obra, representando também as ambiguidades humanas tão bem reveladas por Kamila Shamsie.

mimo

Em maio, é comemorado o Dia da Língua Portuguesa e da Cultura pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Pensando nisso, o mimo destaca um autor muito querido pelos taggers, José Saramago. Celebramos sua visão peculiar do mundo com um abridor de garrafas no formato de seus famosos óculos.

Lar em chamas pode ter terminado, mas a experiência não!

Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.

Leia até a página 282

Acompanhamos algumas reflexões sobre a trajetória de Karamat, cujas atitudes, especialmente uma última decisão bastante drástica, são reprovadas pelo próprio filho. E a trama chega a um emocionante e surpreendente desfecho! Compartilhe no app as suas impressões!

2023 jul fev ago mar set abr out mai nov jun dez jan
5 EXPERIÊNCIA DO MÊS
OUVIR PODCAST

“Uma exploração poderosa do choque entre sociedade, família e fé no mundo moderno, acenando para o mesmo dilema no mundo antigo.”

The Guardian

“Não é apenas a habilidade com que Shamsie envolve a história em torno de uma estrutura sofocliana que torna Lar em chamas um livro distinto; é também o cuidado com que ela humaniza seus personagens.”

Prospect

“Ocasionalmente, você sabe que um escritor vivo na mesma época que você escreveu o livro que nasceu para escrever. Lar em chamas acendeu uma luz que nunca se apagará. A versão de Antígona de Shamsie revela a tragédia antiga que estamos vivendo agora.”

6 POR QUE LER O LIVRO

Por que ler o livro

Com uma trama que aborda questões como identidade, terrorismo e islamofobia, Lar em chamas é um eletrizante drama familiar que bebe da fonte da mitologia grega.

A paquistanesa Kamila Shamsie, radicada na Inglaterra, toma como inspiração a história da personagem Antígona para abordar questões complexas do mundo atual.

Publicado originalmente em 2017, o livro foi indicado ao Man Booker Prize no mesmo ano e venceu o Women’s Prize for Fiction de 2018.

7 POR QUE LER O LIVRO

A presença duradoura dos mortos

Narrado a partir de diferentes pontos de vista, Lar em chamas fala de amor, luto e lealdades

Quando o diretor do Tara Arts convidou Kamila Shamsie a adaptar Antígona para seu teatro, a peça imaginada nunca chegou aos palcos. Instigada pela leitura de traduções contemporâneas do texto de Sófocles (de Seamus Heaney e de Anne Carson, citados nos agradecimentos), a autora deixou a proposta de lado e tratou de investigar com as próprias palavras o que ele lhe sugeria. Shamsie, que é nascida no Paquistão e radicada na Inglaterra, presença assídua em colunas sobre política e literatura no Guardian, percebeu que tinha ali uma estrutura potente sobre a qual desdobrar alguns temas de interesse em seu formato preferido: o romance.

Vencedor do Women's Prize for Fiction em 2018, Lar em chamas nos coloca na interseção das trajetórias de duas famílias britânico-paquistanesas que, apesar da semelhança de origem, habitam mundos distintos. Isma e os gêmeos Aneeka e Parvaiz Pasha cresceram no subúrbio da cidade, escondendo-se da sombra vergonhosa do pai jihadista e conscientes da vigilância do Estado. Do outro lado, o aristocrático e ingênuo Eamonn é filho de Karamat Lone, novo ministro do Interior do Reino Unido, distanciado de suas origens muçulmanas em favor da carreira política. O encontro entre o recrutamento de Parvaiz pelo Estado Islâmico e as privações de cidadania anunciadas por Karamat (inspiradas em uma declaração de Theresa May em 2014) é narrado em cinco partes, cada uma escrita do ponto de vista de um dos personagens.

Shamsie narra a história de uma forma simultaneamente poética e documentada — suas descrições são minuciosas, trazendo à superfície movimentos íntimos

O LIVRO INDICADO 8

dos personagens e expondo o ridículo das operações do poder. Exemplo disso é a cena do interrogatório de Isma no aeroporto, em que sentimos todo o seu nervosismo enquanto ela tem sua britanicidade medida por opiniões sobre um reality show de culinária; ou a bela passagem em que a descoberta do barulho do gelo contra o gelo a faz sentir a dor pelo irmão. A precisão do texto quando se debruça sobre detalhes é contrabalançada pela natureza elíptica da narração. Assim como os personagens não enxergam partes significativas da vida de seus entes queridos, o leitor também tem uma visão parcial: aprendemos os fatos aos saltos, sempre colados ao entendimento de alguém em um momento específico, em posição de constante surpresa.

Antígona deslocada, Lar em chamas fala de amor e de luto, de lealdades e da presença duradoura dos mortos. O livro demonstra que a radicalização política e a paixão amorosa descrevem o mesmo arco, e investiga aquelas decisões que acionam consequências sem retorno. Fala de tudo o que não sabemos sobre aqueles que pensamos conhecer melhor e de como um único momento pode ser vivido de formas bem diferentes. Fala de política, de islã e de cidadania, e do impacto que esses termos têm em uma história geracional, individualizados nos sonhos sonoros de Parvaiz. Fala de duas mulheres diferentemente fortes, de pequenas e grandes belezas, dos sons inesperados que irrompem quando silenciamos os estereótipos, do murmúrio constante e explosivo do desejo.

SAIBA MAIS

Antígona é uma tragédia grega escrita por Sófocles e representada pela primeira vez em 441 a.C. A peça conta a história de Antígona, filha de Édipo, que desafia o rei Creonte para enterrar o corpo do irmão Polinices, contra as leis de Tebas. Com medo de ser punida, Ismênia, também irmã de Antígona, recusa-se a ajudá-la. Leia mais sobre as relações entre a peça e o romance de Kamila Shamsie em análise crítica na página 28.

O LIVRO INDICADO
“Shamsie narra a história de uma forma simultaneamente poética e documentada — suas descrições são minuciosas, trazendo à superfície movimentos íntimos dos personagens e expondo o ridículo das operações do poder.”
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“Escrever de forma límpida é

Curadora do mês, Nara Vidal destaca a qualidade do texto e a profundidade de Lar em chamas , comenta a sua própria experiência como imigrante na Inglaterra e fala de projetos e referências literárias

Radicada em Londres, a escritora brasileira Nara Vidal, nossa curadora do mês, já havia lido resenhas elogiosas sobre Kamila Shamsie na imprensa britânica. Durante um evento literário português, acabou conhecendo melhor a paquistanesa: “Fiquei absolutamente fascinada por ela, pela fala dela, pelo livro, que fui logo ler”, relembra na entrevista a seguir.

Mineira de Guarani, nascida em 1974, Nara é um nome de destaque na cena contemporânea brasileira. Formada em Letras pela UFRJ, com mestrado em Artes e Herança Cultural pela London Met University, conquistou o 3º lugar do prêmio Oceanos com o romance Sorte, publicado pela editora Moinhos em 2018. Foi também finalista do Jabuti com o livro de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva, 2020) e, no ano passado, lançou seu segundo romance, Eva, publicado pela Todavia, cujo enredo gira em torno de uma mulher que precisa lidar com os fantasmas de uma mãe controladora.

Em conversa com a TAG, ela justifica a sua indicação ao clube, reflete sobre o tema da identidade britânica (presente em sua própria trajetória), fala de seu processo criativo e compartilha referências e outras leituras atuais.

ENTREVISTA COM A CURADORA
extremamente difícil”
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Como você entrou em contato com a produção de Kamila Shamsie? Já conhecia outras obras dela antes de ler Lar em chamas?

Por morar na Inglaterra e lendo sempre jornais e os suplementos culturais, eu já tinha ouvido falar da Kamila. Uma vez, li uma resenha muito elogiosa de Lar em chamas no Guardian e, imediatamente, tive vontade de ler. Coincidentemente, logo depois disso, recebi um convite da FLIMA, a Festa Literária Internacional da Mantiqueira, para compor uma mesa justamente com a Kamila. Em novembro de 2021, eu estava cumprindo uma residência literária em Cascais, quando, então, gravamos a nossa participação. Ela, de Londres; eu, de Portugal. Falei sobre Sorte, meu primeiro romance, e a Kamila, sobre o Lar em chamas. Fiquei absolutamente fascinada por ela, pela fala dela, pelo livro, que fui logo ler.

Por que você decidiu indicar esse livro à TAG? Quais são, em sua opinião, as principais qualidades do romance?

Além de a prosa, a linguagem, o estilo da Kamila serem de uma elegância que eu valorizo muito e que me atraem demais em literatura, o tema central, mas que também permeia toda a história, é muito interessante. Mas ainda sobre o estilo, a linguagem, gostaria de destacar o que mais gosto em literatura, talvez fazendo referência ao que não me chama tanto a atenção. O rebuscamento, a tentativa de dificultar um texto através dos meandros da narrativa são elementos que, na minha opinião, contraditoriamente, acabam empobrecendo um projeto. Escrever de forma límpida é extremamente

ENTREVISTA COM A CURADORA
A curadora do mês, Nara Vidal.
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Crédito: Raquel Sol/ Leo Melo

difícil. Talvez por isso eu me atraia tanto por narrativas aparentemente simples, por serem raras e por eu saber da dificuldade que é esse exercício. A Kamila faz isso em Lar em chamas. Há uma descomplicação no contar da história que se equilibra lindamente com a profundidade do tema. É um livro, fundamentalmente, sobre a natureza problemática da junção entre fé, religião, tradições familiares e a sociedade, também a partir de diferenças políticas. A própria autora, durante o evento do qual participamos juntas, diz que o livro pode ser considerado uma releitura de Antígona, de Sófocles, no sentido de ser uma história de dilemas familiares, ou seja, laços e convenções postos igualmente à prova. Também é, na minha opinião, um livro amplo e político, claro, sem a pretensão de sê-lo e, por isso mesmo, é tão potente, porque trata de uma questão que está muito presente na literatura contemporânea inglesa: a reflexão sobre a identidade britânica. Bernardine Evaristo, Zadie Smith, Monica Ali fizeram isso em Blonde Roots, White Teeth e Brick Lane, respectivamente, para citar apenas alguns. Shamsie, tendo nascido no Paquistão, propõe essa questão de pertencimento, que é uma questão que também me ocupa. Nós, imigrantes, igualmente, mas com motivações de vinda que podem ser muito diversas, pertencemos a Londres tanto quanto qualquer britânico que tenha nascido aqui e cuja família também já tenha existido aqui há mais tempo. Pertencemos a Londres, à Inglaterra porque a vastidão desse território também nos pertence. O conceito do inglês ou britânico puro não existe há muito tempo. Mas o preconceito e o racismo ainda fazem disso questões a serem postas. O livro dela é sobre esse pertencimento conquistado diariamente e as dificuldades de compreensão das noções identitárias.

Quem acompanha o seu trabalho sabe de sua paixão por autores como Shakespeare (e suas personagens femininas!) e Virginia Woolf, sobre a qual você chegou a escrever um texto para a nossa coletânea

“Volta ao mundo em 7 clássicos”. O que despertou o seu interesse pela literatura inglesa? Foi alguma obra em especial? Você acompanha a produção atual? Como, desde bem pequena, eu tinha vontade de sair das redondezas, entendi logo que a língua estrangeira me serviria como um através. Estudei inglês sozinha dos

ENTREVISTA COM A CURADORA
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Crédito: Raquel Sol/Leo Melo

sete aos treze, quando, então, fui fazer um cursinho. Ali, eu já virava a cabeça para coisas inglesas, sempre rejeitando tudo que fosse norte-americano. Tinha mesmo aversão a tudo que me remetesse aos Estados Unidos. Quando entrei na faculdade de Letras, cheguei a pensar em fazer um documento pedindo para não frequentar aulas de literatura norte-americana. Ainda bem que o tempo nos retorce e entendemos o ridículo dos nossos pensamentos. Veja que sou louca por Plath, Dickinson, por exemplo. Mas Shakespeare foi meu primeiro e, ainda, constante amor. Nunca deixei de pensar nele, nunca deixei de acompanhá-lo, ler, estudar. Vejo na obra de Shakespeare tudo o que somos, tudo o que temos vergonha de ser, tudo o que queremos ser, tudo o que não sabemos ser. É uma obra sem fim. Virginia veio mais tarde. Acreditei por anos que era difícil demais, experimental demais, só para depois me apaixonar exatamente pela complexidade, a modernidade, a genialidade dela. Em relação à literatura contemporânea, acompanho, sim. Não tão de perto quanto a brasileira, mas, por morar aqui, ter acesso direto e rápido ao que acontece nas artes, acabo me interessando e acompanhando, naturalmente. Há coisas excelentes por toda parte. Mas confesso, e sem qualquer cerimônia, que dou preferência à literatura escrita por mulheres.

Para não ficar apenas na língua inglesa, vale falarmos de um projeto seu muito interessante — a Capitolina Revista, dedicada à literatura contemporânea escrita em língua portuguesa. Qual é o balanço que você faz dessa sua empreitada na divulgação literária?

A Capitolina já quase não existe. Foi um projeto lindo, que me ocupou muito e de forma prazerosa, mas há pouco tempo para trabalhos voluntários na literatura. Minha prioridade é a minha autonomia. Ou eu dou aulas particulares e traduzo livros para viver, ou edito a revista e me encontro em alguma dificuldade. O que a Capitolina me proporcionou não foi pouca coisa. Através das edições, conheci a literatura de muita gente incrível. Tive sempre a mão estendida de amigos e amigas que estavam dispostos a ajudar, passei a entender mais sobre edição, trabalho que foi até mesmo reconhecido com um prêmio APCA. Mas há momento para tudo. Agora, ela precisa descansar, deixar de existir um pouco. Um dia, quem sabe a ideia renasça.

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Sua trajetória na literatura inclui a publicação de dois romances — Sorte e o recente Eva — e do livro de contos Mapas para desaparecer. Como é a experiência de transitar entre as formas breves e longas? Você se sente mais à vontade em uma ou outra? São formas diversas de desenvolver uma narrativa. Muitas vezes, começo um romance e o texto acaba virando um conto. Alguns contos também já entraram, ainda que modificados, em romances. Escrever é a atividade que mais faço. Não que isso reflita na qualidade, mas não penso necessariamente se me sinto mais ou menos à vontade em alguma forma. Muitas vezes, sinceramente, nem penso tanto enquanto escrevo. Só depois, quando aquele jorro acaba. Há um respiro, um tempo, uma distância, e aí, sim, penso sobre a escrita e o que escrevi. Na maioria das vezes, penso tanto que muita coisa acaba no lixo.

Pode aproveitar para nos falar um pouquinho de seu processo criativo de um modo geral?

Eu gosto dessa pergunta porque, quando ela é feita, eu me dou conta de que nada mudou. Ou seja, continuo sem ter uma rotina criativa a ponto de ser identificada como processo. Escrevo no caos. Escrevo, principalmente, quando não escrevo. Tenho, é verdade, um papel na bolsa e uma caneta. Ideias que surgem e anoto. Umas entram em textos. Outras são indignas de qualquer coisa. O trabalho, os horários, as incumbências, a vida doméstica são limites que me distanciam de um processo. Também dedico tempo a ficar com os meus filhos, a viajar, a namorar, a construir relações. Pode ser que tudo isso seja o processo da escrita. Pensando bem, acho até que é.

O primeiro livro que eu li: O amante, de Marguerite Duras. Acho que esse é o que vale porque li aos 13 anos, escondida, e foi o primeiro livro que deu um nó na minha cabeça e o primeiro de que nunca mais me esqueci.

O livro que estou lendo: Double Blind, de Edward St Aubyn.

O livro que mudou a minha vida: Um teto todo seu, de Virginia Woolf.

O livro que eu gostaria de ter escrito: Todos os contos de Katherine Mansfield.

O último livro que me fez rir: Não é exatamente um livro, mas as crônicas do Ivan Lessa sempre me fazem rir. Não gargalhar, mas é aquele riso como resposta à inteligência e sagacidade que tinha o escritor.

O último livro que me fez chorar: Eu sempre me emociono demais com Romeu e Julieta. Sempre.

O livro que eu dou de presente: Qualquer um do Machado ou da Clarice. Até porque estão traduzidos para o inglês e são encontrados por aqui.

O livro que eu não consegui terminar: Os sertões, do Euclides da Cunha. Mas ainda vou tentar de novo uma hora dessas.

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MINHA ESTANTE

Identidades em conflito

EDUARDO PALMA

Paquistaneses e seus descendentes são a segunda maior minoria étnica no Reino Unido, mas assimilação ainda é desafio

As histórias narradas em Lar em chamas mostram um pouco da realidade de milhares de imigrantes do Sudeste Asiático e seus descendentes em um mundo onde florescem sentimentos de xenofobia. As experiências de Isma, de sua irmã Aneeka e de Parvaiz no Reino Unido revelam estereótipos e preconceitos enfrentados em uma rotina desgastante. E apresentam os dilemas de se estar entre dois universos culturais tão distintos — tradições islâmicas milenares e o multiculturalismo de uma capital europeia.

Apesar de ser britânica, a jovem estudante Isma enfrenta um duro interrogatório no aeroporto de Londres quando vai embarcar para fazer seu PhD nos EUA. Apenas por estar usando um hijab e ser muçulmana. Um relatório da Comissão de Igualdade e Direitos Humanos do país identificou em 2013 que pessoas de origem paquistanesa têm 52 vezes mais chances de serem paradas e interrogadas em aeroportos do país.

Ao longo do livro, ficam claros os medos, as ameaças (reais ou falsas) de perder os direitos de viver em solo britânico e de acessar serviços públicos. Apesar disso, ao preconceito enfrentado pelas classes mais baixas soma-se o fato de que algumas famílias preferem permanecer com descendentes de paquistaneses e de Bangladesh, em seus grupos e bairros.

É preciso destacar, no entanto, que descendentes de origens ricas não têm essa mesma experiência de xenofobia. Desde 2016, por exemplo, o prefeito de Londres é Sadiq Khan, britânico, filho de imigrantes paquistaneses. E o atual primeiro-ministro, Rishi Sunak, tem pais indianos.

CONTEXTUALIZAÇÃO 15

Mulheres protestam contra a islamofobia na Inglaterra.

Crédito: Tim Dennell

CIDADANIA COMO DIREITO

Há cerca de 1,5 milhão de paquistaneses no Reino Unido. Esse número torna os paquistaneses a segunda maior minoria étnica em solo britânico. Mas questões de cidadania têm se tornado uma dor de cabeça no país, especialmente depois que o governo retirou a de Shamima Begum, uma britânica de origem bengali que se uniu ao Estado Islâmico em 2015. Ela está na prisão em Bangladesh e não tem permissão para voltar.

“Esta é uma nova maneira de definir a cidadania: nascer em algum lugar não importa mais”, explica a cientista política paquistanesa Ayesha Siddiqa, especialista em Sudeste Asiático do King’s College de Londres, dizendo que a cidadania não depende mais de um documento, e sim dos valores adotados. “Há uma tensão entre o Estado, que sente que representa os valores europeus, e os migrantes do sul da Ásia, que estão sempre lutando para converter o sistema de valores”, avalia.

A FORMAÇÃO DO PAQUISTÃO

O Paquistão é o segundo país islâmico mais populoso do mundo. São 212 milhões de habitantes. Como nação, foi criado em 1947, após a partição do subcontinente indiano em dois países. De um lado, o Paquistão passou a ser a casa dos muçulmanos após um movimento bem-sucedido para criar um país islâmico. Do outro, a Índia tornou-se um Estado hinduísta.

CONTEXTUALIZAÇÃO
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A identidade muçulmana foi também uma forma de unificar os diferentes grupos étnicos e linguísticos — são cerca de 70 línguas, com predominância para urdu, inglês, pashto, punjabi e sindi. Há paquistaneses de origem persa, turca e de outras culturas que predominaram no sul da Ásia nos últimos séculos. A região foi dominada por muçulmanos com a chegada do Império Mugal, no século XVI, até a vinda dos britânicos, no século XIX.

TERRORISMO

O livro também aborda o tema do radicalismo. Parvaiz entra no Estado Islâmico seduzido por um recrutador que explora suas inseguranças e promete um futuro honrando a memória de seu pai, um muçulmano que entrou para as guerras religiosas (jihad). O discurso sedutor de honrar um pai herói que “lutou contra a injustiça” e “enxergou além da mentira das fronteiras nacionais” convence Parvaiz a aderir ao grupo. Nas falas do recrutador, há elementos da rivalidade entre islã e cristianismo e críticas à “criação de estados-clientes, seus limites descabidos projetados para causar instabilidade”. Além de promessas de pertencimento, uma nova vida com mais sentido e uma persuasiva “causa” para viver e morrer.

O EI surgiu em 2004, durante a presença norte-americana no Iraque, a partir de uma visão conservadora e extremista do islã. Seu objetivo é construir um grande

CONTEXTUALIZAÇÃO
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califado para unificar a civilização islâmica e forjar uma identidade árabe. Sem fronteiras nacionais, com o argumento de que não há legitimidade nos países existentes, já que foram nações criadas a partir de interesses externos.

Ganhou força nos idos dos anos 2010, quando conseguiu controlar territórios no Iraque e na Síria, que já vivia o início de uma guerra civil. O grupo, contudo, foi enfraquecendo em combates com outros países, especialmente os EUA. Se, por um lado, tem perdido ímpeto, o mesmo não se pode dizer de outras redes, como a Al Qaeda, fundada em 1988 e atuante principalmente na Nigéria, Moçambique, Mali, Níger, Chade e Somália. Da mesma forma, os extremistas do Talibã controlam o governo do Afeganistão e exercem influência em regiões do Paquistão.

Todas essas redes contam com suporte nos países onde atuam e no exterior. Para Ayesha Siddiqa, há outro elemento fundamental para compreender o Estado Islâmico em solo britânico: o governo permitiu que extremistas visitassem o país sem grandes restrições. “Fecharam os olhos enquanto eles realizavam conversões em madraças e ginásios muçulmanos, e então eles recrutaram jihadistas. O Reino Unido não administrou essas paixões, deixou a militância entrar em seu território e abrir suas asas.”

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Extremista porta bandeira do EI. Crédito: akg images

Ilustração do mês

Gabriel Renner é ilustrador freelancer e designer. Passou pelas redações de Zero Hora, Diário Gaúcho, Notícias do Dia e Grupo Editorial Sinos, além de ter ilustrado para as revistas Superinteressante, Mundo Estranho e Sexy. @rennergabriel

A pedido da TAG, o artista interpretou uma passagem do livro do mês: “ISMA IA PERDER O VOO. A passagem não seria reembolsada porque a companhia aérea não se responsabilizava por passageiros que chegavam ao aeroporto três horas antes do horário de partida e eram escoltados para uma sala de interrogatório. Ela previra o interrogatório, mas não as horas de espera que o precederiam, nem que seria tão humilhante ter o conteúdo de sua mala inspecionado. Ela assegurou-se de que não carregaria nada que pudesse suscitar comentários ou perguntas — nada de Alcorão, nada de fotos de família nem livros sobre suas áreas de interesse acadêmico —, mas, mesmo assim, a policial pegou cada peça de roupa de Isma e a passou entre o polegar e os demais dedos, não tanto para procurar bolsos escondidos, mas para avaliar a qualidade do material. No fim, apanhou a jaqueta de grife que Isma havia dobrado sobre o encosto de uma cadeira quando entrou e a ergueu, segurando um ombro em cada mão. “Isto não é seu”, disse ela, e Isma tinha certeza de que a policial dissera isso não porque é no mínimo um tamanho maior, mas, sim, porque é bonita demais para alguém como você.”

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POSFÁCIO

Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página. A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.

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Kamila Shamsie detalha a concepção de Lar em chamas, avalia o seu teor político e destaca os ecos contemporâneos de Antígona

JÚLIA CORRÊA

Quandose cresce no Paquistão, não é possível separar o público do privado, avalia Kamila Shamsie, nossa autora do mês, que nasceu em Karachi, em 1973, e vive na Inglaterra desde os 35 anos de idade. O fato de ter migrado quando adulta distingue sua experiência daquela dos personagens de Lar em chamas, que vivem desde sempre em Londres e, mesmo assim, sofrem preconceito. “Mas é claro que morar no Reino Unido me deixou ciente do racismo que permeia todas as camadas da sociedade”, declara Shamsie, que, no livro, explora as relações familiares e amorosas em um contexto marcado por tensões identitárias e radicalismo religioso. De 2017, a obra vem na esteira de outros cinco romances de sua autoria, como Sombras marcadas, publicado no Brasil em 2011 pela Alfaguara, com um enredo que entrelaça eventos como o bombardeio de Nagasaki e o atentado às Torres Gêmeas. Em 2022, a autora publicou ainda Best of Friends, que narra o drama de duas amigas crescidas em Karachi.

À TAG, Shamsie dá mais detalhes da concepção de Lar em chamas — desde a sua escolha por aludir a uma peça como Antígona até a pesquisa que precisou realizar sobre grupos terroristas. Leia a entrevista a seguir.

ENTREVISTA COM A AUTORA
“Os mitos podem dar uma estrutura familiar ao que nos poderia parecer novo e estranho”
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Originalmente, o romance seria uma peça de teatro, certo? Você poderia nos contar um pouco mais sobre a concepção do livro? O que a inspirou a escrevê-lo?

Em 2015, recebi um e-mail de Jatinder Verma, diretor artístico do teatro Tara Arts, em Londres, pedindo que eu fosse tomar um café com ele. Ele havia gostado dos diálogos em meus romances e queria que eu escrevesse uma peça para seu teatro. Foi ele quem sugeriu a adaptação de uma das peças da Grécia antiga, e uma das sugestões foi Antígona. Comecei a pensar no caso e rapidamente vi muitos ecos contemporâneos nela. Os jornais daquela época estavam cheios de histórias sobre jovens britânicos indo para a Síria para se juntar ao Estado Islâmico e sobre as medidas que o governo estava tomando em resposta (privando-os de sua cidadania). Havia também algumas histórias sobre as famílias daqueles meninos que estavam na Grã-Bretanha sabendo que dificilmente veriam seus irmãos e filhos novamente. Eu vi tudo isso em Antígona. E, uma vez que sou uma romancista e não uma dramaturga, meu cérebro rapidamente começou a pensar na “minha” Antígona como um romance.

ENTREVISTA COM A AUTORA
A autora do mês, Kamila Shamsie.
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Crédito: Zain Mustafa

Na sua opinião, qual é a importância de histórias mitológicas, como Antígona, para compreender o mundo contemporâneo?

Frequentemente, agimos como se estivéssemos enfrentando uma série de problemas muito excepcionais — e exigimos uma série excepcional de soluções para lidar com eles —, e é útil voltar a um conjunto muito antigo de histórias para ver que estamos apenas reencenando as tragédias de sempre. Outra maneira de dizer isso é que os antigos mitos podem dar uma estrutura familiar ao que, de outra forma, nos poderia parecer novo e estranho.

Seu livro aborda temas como família, política e identidade. Quão desafiador foi combinar a dimensão íntima e a política em seu romance? Bem, cada aspecto da escrita é desafiador em alguma medida, ou deveria ser. Eu não estou interessada em escrever coisas que pareçam fáceis. Mas eu realmente nunca pensei o íntimo e o político como entidades separadas — você não tem esse tipo de ilusão quando cresce no Paquistão —, então sempre me pareceu orgânico para uma história traba lhar com a interação do público e do privado.

Em que medida o livro reflete sua experiência pessoal como imigrante paquistanesa? Você teve experiências semelhantes à do interrogatório no aeroporto, por exemplo? Minha experiência como britânica é marcadamente diferente da dos personagens do romance, porque eles cresceram em Londres, sentin do-se inteiramente britânicos, mas sabendo que são considerados estranhos por muitas partes da sociedade britânica. Eu me mudei para a Grã-Bretanha aos 35 anos, então ser consi derada uma estranha nunca foi um problema para mim — mas é claro que morar no Reino Unido me deixou ciente do racismo que permeia todas as camadas da sociedade. Fiquei interessada em como seria crescer com esse racismo/islamofobia em vez de entrar nele em uma idade em que seu senso de

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quem você é já está bem estabelecido. Às vezes, você escreve romances para explorar suas próprias experiências, e outras vezes, você os escreve para explorar vidas além da sua.

Que tipo de pesquisa você fez para o livro, considerando os aspectos relacionados a atividades radicais, por exemplo? Aliás, essa pergunta nos lembra aquela questão que aparece na história sobre ser um “Muçulmano Pesquisando no Google” (“MPG”).

Eu me vi bastante nervosa com a pesquisa para o romance. Tinha acabado de me tornar uma cidadã britânica, cresci no Paquistão… Eu percebia como todas essas coisas poderiam me sinalizar como suspeita se eu começasse a pesquisar o recrutamento do EI. Além disso, eu realmente não queria ver nenhuma das imagens violentas que o EI estava postando online, do ponto de vista ético. Mas tive muita sorte, porque uma amiga, a escritora Gillian Slovo, estava trabalhando em uma peça sobre o recrutamento do EI ao mesmo tempo que comecei a pensar em meu romance. Ela não tinha nenhuma ansiedade de ser uma “MPG” e acabou me indicando recursos secundários que eu poderia usar e alguns vídeos que foram úteis. Também li a peça dela, que incluía entrevistas com famílias daqueles que deixaram a Europa para se juntar ao EI. Além disso, contei com o trabalho de jornalistas que documentavam, na medida do possível, a vida em Raqqa sob o EI. A VICE News tinha um vídeo particularmente útil, filmado disfarçado em Raqqa, que me permitiu ver coisas realmente importantes para um escritor, como “como são as ruas?”, “como as pessoas estão vestidas?” etc.

Cada capítulo do livro é contado a partir do ponto de vista de um personagem. Por que você escolheu esse formato? Você sabia desde o começo que

Eu soube consideravelmente cedo. Minha ideia inicial era contar a história do ponto de vista de Isma — a

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MINHA ESTANTE mais velha dos três irmãos —, mas percebi que havia muita coisa que ela simplesmente não saberia, veria ou estaria presente. Foi quando me lembrei do romance A bofetada, de Christos Tsiolkas, que tem cada seção contada por um personagem diferente. Quando o li pela primeira vez, pensei em experimentar essa estrutura um dia, e assim que comecei a conceber Lar em chamas, que tem tantos segredos e mal-entendidos, vi como esse estilo “passar o bastão” pode ser útil.

Lar em chamas vem sendo descrito como um romance “atual” e “urgente”. Há alguma mensagem que você espera que os leitores tirem dele?

Nunca escrevo um romance esperando que os leitores tirem dele uma mensagem específica. Se um romance está funcionando, ele deve permitir muito espaço para diferentes respostas e interpretações. Então, só espero que faça as pessoas pensarem e sentirem — e, mais especificamente, com Lar em chamas , espero que faça as pessoas pensarem e sentirem mais profundamente sobre histórias que podem apenas conhecer como notícias sensacionalistas.

O primeiro livro que eu li: Os mais remotos que eu lembro são Ursinho Pooh e Peter Pan.

O livro que estou lendo: The Furrows, de Namwali Serpell.

O livro que mudou a minha vida: Um romance chamado All Dogs Go to Heaven, que li quando tinha onze anos e que levou a mim e a minha melhor amiga a coescrever nosso próprio livro sobre o paraíso canino. Escrevo ficção desde então.

O livro que eu gostaria de ter escrito: Versões melhores de todos aqueles que já escrevi.

O último livro que me fez chorar: Girl Meets Boy, de Ali Smith, um dos meus romances favoritos, que eu acabo de reler.

O último livro que me fez rir: Também Girl Meets Boy.

O livro que eu dou de presente: Depende inteiramente de quem vai receber. Não dá para impor o seu próprio gosto aos outros.

O livro que eu não consegui terminar: Costumo deixar livros inacabados por um motivo ou outro — a primeira vez que fiz isso foi com Underworld, de Don DeLillo. Eu amo DeLillo e adorei o início do romance, mas, à medida que avançava, senti meu entusiasmo diminuir. Não parecia justo nem para DeLillo nem para mim lê-lo por obrigação e não por prazer.

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Tragédia contemporânea

Uma leitura de Lar em chamas à luz da peça de Sófocles permite compreender a força indomável das protagonistas de ambas as obras

“Aloucura do amor”. É assim que Lar em chamas Kamila Shamsie, classifica a decisão de deixar um cadáver apodrecendo no calor. O enredo é emprestado da peça Antígona, da trilogia tebana de Sófocles, em que a personagem principal coloca o amor familiar acima das leis ao desrespeitar o rei Creonte para dar um funeral digno ao irmão, considerado inimigo do Estado. Na trama de Kamila Shamsie, são os muçulmanos britânicos que ocupam as posições de vilões, heróis e justiceiros(as). Os irmãos gêmeos Aneeka e Parvaiz foram criados pela irmã mais velha, Isma, desde a morte da mãe. O pai foi um jihadista que nunca conheceram; sabe-se que foi lutar no Afeganistão no início dos anos 2000 e que também está morto. Parvaiz tenta seguir os passos de seu pai juntando-se ao Estado Islâmico na Síria, cooptado por jihadistas que prometiam uma volta às heranças familiares — ele teria o que nunca teve, uma identificação direta com o pai. No entanto, percebe que cometeu um erro grave. Assim, Aneeka decide buscar a ajuda de Eamonn Lone, filho do ministro do Interior britânico Karamat Lone. O político revela uma repulsa à sua origem muçulmana em prol do conservadorismo de seus eleitores.

As irmãs ocupam um espaço vital na trama. Assim como Ismênia, irmã de Antígona, Isma não concorda com o espírito transgressor da irmã mais nova, presente em um imaginário conflituoso entre mulheres que compartilham o mesmo sangue. A diferença de temperamento entre as duas culmina no ato maior de resistência de Aneeka. Há a ideia de Isma de que se deve seguir a lei, comprovada por quando avisa ao governo britânico sobre a partida de Parvaiz. O contraste da irmandade aparece quando o afeto imensurável de Aneeka pelo irmão, uma qualidade individual,

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transpassa o coletivo e faz com que o mundo pare para presenciar uma história de amor. O que fica claro aos leitores, principalmente com o trágico final da(s) história(s), é que esse amor tem aspectos autodestrutivos, o que respinga em todos os envolvidos na trama. Masako Hirai entende o conflito de moralidade de Antígona como o fio condutor da história, transitando entre “os deveres da cidadania” e a “piedade da irmandade”. Kamila Shamsie soube trazer à atualidade o impacto histórico, pessoal e social de uma passagem antológica da literatura ocidental.

As preocupações do romance incluem a identidade e a segurança de imigrantes e filhos de imigrantes no Reino Unido. Lembra o professor Amartya Sen, em Identidade e violência, que a aceitação de diversos modos de vida e de prioridades culturais variadas nem sempre foi fácil no país. Desde os primeiros fluxos migratórios, oriundos de um recente período pós-colonial, tem havido uma demanda periódica, mas persistente, de que os imigrantes abandonem seus estilos de vida tradicionais e adotem os modos de vida dominantes na sociedade para a qual migraram. Essa demanda, por vezes, assumiu uma visão notavelmente detalhada da cultura, envolvendo questões comportamentais bastante minuciosas, ilustradas pelo famoso cricket test: um imigrante totalmente “imerso” na cultura britânica torceria pela Inglaterra em partidas-teste de críquete contra o país de origem da pessoa (como o Paquistão) quando os dois times se enfrentassem. Lar em chamas explora esse aspecto. Mesmo em meio à aversão das figuras políticas ao caso de Parvaiz, seus semelhantes lutam para manter suas identidades culturais enquanto britânicos. A presença dos tabloides, que têm a característica de serem superficiais e sensacionalistas no tratamento do que noticiam, demonstra como as vulnerabilidades de uma mulher muçulmana estão à mercê da crueldade da maioria. O que se toma de antemão é a força de Aneeka ao enfrentar todos os desafios, tal como a de Antígona: essas são mulheres que não desistem de seus objetivos e que levam no peito — como a loucura do amor — o sentimento

É certo que nem sempre podemos seguir nossas lutas, mas podemos dizer que as duas protagonistas, como tantas outras dentro e fora das páginas, representam uma força indomável do feminino.

ANÁLISE CRÍTICA
de justiça.
“O contraste da irmandade aparece quando o afeto imensurável de Aneeka pelo irmão, uma qualidade individual, transpassa o coletivo e faz com que o mundo pare para presenciar uma história de amor.”
Ismênia e Antígona por Sébastien Norblin (1825).
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Crédito: Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts

Ecos temáticos

Confira uma seleção de obras que, assim como Lar em chamas, abordam temas como a identidade, o pertencimento, a xenofobia e o radicalismo

O fundamentalista relutante

De Mohsin Hamid, autor do nosso livro de abril e conterrâneo de Kamila Shamsie, o livro aborda a questão da identidade e da assimilação cultural — tão presente em Lar em chamas — a partir da trajetória de um paquistanês que vive há muito tempo nos Estados Unidos, com uma vida praticamente ganha, mas que é transformada pelos atentados de 11 de setembro.

A guerra do fim dos tempos: o Estado Islâmico e o mundo que ele quer

O jornalista Graeme Wood, professor de Ciência Política em Yale e colaborador da revista

The Atlantic, apresenta um aprofundado relato das estratégias e das crenças por trás do Estado Islâmico. Em junho de 2017, na ocasião do lançamento da obra pela editora Companhia das Letras, a revista Piauí publicou um excerto do livro (acesso pelo site piaui.folha.uol.com.br/ materia/a-guerra-do-fim-do-mundo).

O naufrágio das civilizações

O franco-libanês Amin Maalouf, autor de Samarcanda (livro enviado pela TAG em fevereiro de 2022), apresenta um ensaio com reflexões apuradas sobre a atualidade, com foco tanto no islamismo radical quanto no nacionalismo e na xenofobia, cada vez mais presentes em muitos países ocidentais.

PARA IR ALÉM
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Califado

Disponível na Netflix, a série narra em oito episódios um iminente ataque do Estado Islâmico à Suécia. O evento une os caminhos de diferentes mulheres, como uma mãe com dificuldades, uma estudante e uma policial. A produção revela como o extremismo islâmico aproveita-se da vulnerabilidade de muitos jovens.

Layla M.

Escolhido para representar a Holanda no Oscar de 2018, o filme é estrelado por Nora El Koussour, que interpreta uma jovem muçulmana em Amsterdã. Ela é vítima de preconceito constante e lança-se ao fundamentalismo. A direção é de Mijke de Jong.

PARA IR ALÉM
Califado Crédito: Netflix Layla M.
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Crédito: Pief Weyman

vem aí

encontros TAG:

Guia de perguntas sobre Lar em chamas

1. A estrutura do livro é baseada em uma famosa peça grega, Antígona, de Sófocles. Você já conhecia a peça? O que achou dessa inspiração da autora?

2. Em que medida você acredita que Lar em chamas desafia estereótipos sobre os muçulmanos e suas experiências na sociedade ocidental?

3. O que você achou do tratamento dado pela autora à questão da radicalização que leva jovens a integrarem grupos extremistas?

4. Qual é a sua avaliação sobre a construção dos personagens, considerando eventuais contradições e complexidades pessoais, e sobre a escolha da autora em alternar os seus pontos de vista ao longo da narrativa?

5. O que você achou do desfecho da trama?

Indicado pela filósofa e escritora italiana Ilaria Gaspari, o livro de junho é um sucesso norte-americano dos anos 1950. Transformada em filme e em musical da Broadway, a obra apresenta uma narrativa irreverente em torno de um garoto órfão enviado para viver com sua tia em Nova York.

Para quem gosta de: literatura norte-americana, clássicos, comédias

Hora de celebrar os nove anos da TAG! E, claro, não poderia faltar emoção no mês de aniversário do clube! O livro escolhido para celebrar a data é uma obra inédita no Brasil cuja história acompanha três gerações de uma família negra no sul dos Estados Unidos. Com personagens femininas mais do que marcantes, o romance aborda temas como violência, justiça, amor e perdão.

Para quem gosta de: autoras afro-americanas, dramas familiares, literatura contemporânea

AGENDA
Julho
Junho
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“Não tenhas, pois, um sentimento só, nem penses que só tua palavra e mais nenhuma outra é certa, pois se um homem julga que só ele é ponderado e sem rival no pensamento e nas palavras, em seu íntimo é um fútil.”

– ANTÍGONA, SÓFOCLES

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