"Na praia" TAG Curadoria - Março/2024

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MAR 2024 Na praia



Ao leitor

A

aventura de ler pode se dar por inúmeros caminhos diferentes: pode ser por apresentar uma terra estrangeira, uma comunidade com leis próprias, um universo impensável, uma história de amor (e um casal não é, em si mesmo, um universo?), uma viagem, um sentimento. Se a gente lê porque a vida não basta, ler uma história é um jeito de viver minimamente, numa centena de páginas que seja, uma vida diferente da nossa. O livro do mês é estranhamente próximo e absurdamente distante: o homem e a mulher que formam o casal protagonista são como tantos outros que já lemos em filmes, séries, novelas. Mas a dor deles, o impasse, o grande abismo em que se encontram são únicos, circunscritos a um tempo e um espaço muito específicos, e nessa singularidade está o momento que vivem, a particularidade de cada um e, sobretudo, a literatura. Ian McEwan é um dos autores mais notáveis do mundo, hoje. Por sua imensa capacidade de descrição, pela habilidade de criar climas, pelo poder de convencimento. E, nessas páginas, temos todos esses ingredientes em grande forma.


MAR 2024

Experiência do mês Mimo

POIMÃ — Uma espécie de quebra-cabeça poético, todo construído com as palavras que colhemos nos títulos dos livros enviados pela TAG: essa foi a ideia inicial, e ficamos encantados quando vimos que um título se desdobra em outros, formando frases, piadas, truques, poemas. E não é isso mesmo a literatura? A gente lê um monte de livros, rearticula o que colhe deles de acordo com a nossa própria experiência, e daí saem frases e ideias. Divirta-se!

Projeto gráfico

O estúdio Alles Blau, responsável pelo projeto gráfico deste mês, captou com maestria a delicadeza e sensibilidade da escrita de McEwan. Na ilustração da famosa praia na qual a história se passa, vemos duas silhuetas que representam os protagonistas perdidos em meio a uma paisagem que à primeira vista é monocromática, mas, quando vista mais de perto, percebemos ser cheia de nuances e subtons - uma bela metáfora visual para um livro igualmente repleto de camadas e detalhes. PODCAST

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Para quem sabe que o livro sempre rende boas conversas

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TAG — Experiências Literárias Tv. São José, 455 – Porto Alegre, RS (51) 3095-5200 (51) 99196-8623 contato@taglivros.com.br www.taglivros.com @taglivros

Publisher Rafaela Pechansky Edição e textos Ana Lima Cecilio Colaboradoras Laura Viola e Sophia Maia Designer Bruno Miguell Mesquita Capa TAG Revisores Antônio Augusto e Liziane Kugland Impressão Impressos Portão


sumário

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Por que ler este livro Bons motivos para você abrir as primeiras páginas e não parar mais

O autor Um retrato caprichado da cabeça por trás da história

Entrevista com o curador Um pouco mais sobre a escolha do curador

Cenário De onde veio, do que fala, o que é o livro que você vai ler

Universo do livro Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

Da mesma estante Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês

Leia. Conheça. Descubra. Philip Roth

Vem por aí Para você ir preparando seu coração

Madame TAG responde Dor de amor? Dúvidas na vida? Nosso consultório literosentimental responde com dicas de livros


4 Por que ler este livro

“Soberbo… Os protagonistas têm tudo a perder, e sua jornada vacilante em direção a um ponto sem retorno ganha vida com sutileza, tato e força irresistíveis.” Financial Times

“Este é o estilo maduro de McEwan. É um estilo polido e civilizado, e muito distante das táticas de choque de seus primeiros trabalhos... McEwan traz Florence e Edward de forma tocante para nós; e sua seriedade, seu idealismo e seu desejo de amor nos atraem para eles.” Natasha Walter, The Guardian


Por que ler este livro 5

Por que ler este livro A força da literatura é espantosa, seja para nos tirar do lugar com que estamos acostumados, mostrando dramas diferentes dos nossos, ensinando que há sempre uma metáfora por trás de uma boa história, seja para provar o poder da linguagem quando ela cria uma tensão inominável, descreve com muita precisão paisagens que nem imaginamos e nos faz até ouvir o barulho das ondas. Este livro é, por tudo isso e muito mais, uma aula admirável de literatura.


6 O autor

Ian McEwan: o mais espantoso é o que está ao nosso alcance Um escritor que aprendeu a ver nos fatos mais banais o que há de maravilhoso e terrível na aventura humana e a prever o surgimento desse espanto quando tudo parece estar dentro da ordem. Ian McEwan entra em qualquer lista de principais escritores contemporâneos, e isso é resultado de uma construção bastante cerebral e de uma imensa dedicação à criação literária. McEwan é autor de formação, ou seja, sua genialidade vem em grande parte do estudo e da construção racional de um estilo — ao contrário, por exemplo, de autores mais intuitivos e de estilo livre. O resultado é uma literatura em que nada parece fora do lugar.

LUZ E SOMBRAS Foi no começo dessa trajetória de estudos literários, aos 22 anos, quando ele foi fazer mestrado na Universidade de East Anglia (onde fingia que queria ser crítico, mas já alimentava o sonho de escrever ficção), que teve um desses momentos de grande realização criativa ao escrever um conto que faria parte da sua primeira coletânea Primeiro amor, úlltimo sacramento & Entre Lençóis: Dentro de uma hora, uma voz estranha estava falando comigo da página. Eu deixei ela falar. Trabalhei noite adentro, cheio de uma sensação romântica de mim mesmo, o escritor heroicamente movido por uma ideia convincente, avançando até o amanhecer enquanto a cidade dormia. Terminei por volta das 6 horas.


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O conto se chamava “Conversa com um homem-armário”. O narrador era um homem que não queria crescer — e havia nisso já uma contradição, porque, aos 22 anos, aquele era um momento em que McEwan começava a sentir que tinha alcançado a independência adulta. Mas essa não seria a única história insólita que assolaria seu universo: outros personagens estranhos ou miseráveis surgiram naquele ano para assombrar ou infestar sua ficção. Violentos, sexualmente perversos, solitários, eles estavam distantes da vida que ele levava na época, uma vida de conhecer novos amigos, se apaixonar, ler com atenção toda a ficção que interessava. Ainda assim, sempre que voltava à máquina de escrever, um selvagem e sombrio impulso tomava conta de seu imaginário: incesto entre irmãos, um rato que atormenta jovens amantes, atores fazendo amor no meio do ensaio, crianças assando um gato, abuso infantil e assassinato, um homem que mantinha um pênis em um pote de vidro e usava geometria esotérica para hipnotizar a esposa.

Fronteiras do Pensamento | Luiz Munhoz

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Essa experiência profunda, ainda que juvenil, de um imaginário selvagem, era, segundo ele mesmo, uma tentativa de luta contra o “romance burguês de divórcio do qual as pessoas reclamavam”, como ele contou no brilhante artigo “When I was a monster” [Quando eu era um monstro], publicado no jornal inglês The Guardian justamente na época da reedição desse primeiro livro de contos.

“Uma pessoa é, entre outras coisas, uma coisa material, que é facilmente quebrada e não é facilmente reparada.”


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No mesmo artigo, entretanto, ele reconhece que essa atração por um imaginário caótico vinha justamente da recusa do mundo de onde ele vinha. Tudo que lhe era muito familiar não lhe parecia digno da ficção e por isso ele buscava no terrível e no assustador elementos que pudessem lhe servir de assunto. Com o amadurecimento, entretanto, McEwan acabou por fazer o movimento que lhe rendeu as melhores características da sua literatura: a compreensão profunda de que o que há de mais estranho e assustador é nossa vida cotidiana, com as cenas circunscritas a um tempo específico, mas com sentimentos e reações inesperados, que nos transforma, a todos, em seres excepcionais.


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A TRAJETÓRIA Foi nessa toada que McEwan se tornou um dos mais importantes ficcionistas da sua geração. Desde a publicação do livro de contos acima mencionado, ele passou a ser um autor cujos livros eram esperados pelo público e pela crítica. Com O jardim de cimento (1978), ele já testa uma experiência literária áspera e visceral, apontando para a prosa que o tornaria um escritor do tamanho que é. Com sua prosa extremente cerebral e uma seriedade para narrar que muitas vezes insinua uma ironia inglesa requintada, ele é pai de personagens inesquecíveis, e não necessariamente queridos, porque eles podem ser terríveis, e pela criação de climas tensos de cortar com faca, sempre pondo no centro impasses éticos e uma moral no mínimo volátil, sem medo de tratar temas como incesto, vingança e redenção. Em 1998, ganhou o Man Booker Prize pelo romance Amsterdam, um thriller que põe em embate dois velhos amigos que precisam lidar com a morte de uma ex-amante de ambos enquanto vivem momentos cruciais de suas vidas, fazendo os dois revelarem o caráter e compondo uma ferina crítica social. Mas talvez seu livro mais conhecido seja Reparação (2002), indicado a inúmeros prêmios e adaptado ao cinema em 2007, uma espécie de releitura cruel e vingativa de certo universo de Jane Austen. Em sua obra não faltam thrillers, livros sombrios e a construção de um universo único, como acompanhamos em suas traduções aqui no Brasil: Lições, A barata, Cães negros, Serena, Enclausurado e A balada de Adam Henry, entre outras. Nessa coleção, temas como racionalidade científica, fundamentalismo religioso, espionagem e sempre o ser humano no centro, um tanto perdido, um tanto responsável pela própria perdição.


Entrevista com o curador 11

O curador do mês Antônio Xerxenesky Nascimento: Porto Alegre, 8 de dezembro de 1984. Profissão: Escritor e editor. Uma curiosidade: Ganhou o Prêmio São Paulo de Lite­ ratura 2022, com Uma tristeza infinita. Livros: Areia nos dentes (2008), F (2014), As perguntas (2017) e Uma tristeza infinita (2021).

Duas ou três coisas sobre ele: 1F Em um dos seus romances, uma impressionante visita ao universo do cinema e da música, uma assassina de aluguel tem a missão de executar Orson Welles.

2 OFICINAS LITERÁRIAS Costuma dar aulas de escrita criativa e cursos de literatura e filosofia, em que foca em autores como Walter Benjamin para falar de Teoria Crítica.

3 BOLAÑO Leitor apaixonado do escritor chileno, dedicou sua tese de doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada ao romance 2666, tratando da sua relação com narrativas enciclopédicas.


© Renato Parada


Entrevista com o curador 13

Antônio Xerxenesky: tomar o caminho longo para falar das coisas que estão perto Nascido em Porto Alegre, Xerxenesky estudou Letras e trabalha como editor. Seu interesse na literatura está em escritos menos óbvios, mas sempre com um texto profundamente bem trabalhado — e talvez a busca desse equilíbrio venha justamente das duas medidas entre o escritor e o editor. Conversamos com ele sobre seu livro mais recente, Uma tristeza infinita, que foi vencedor do prêmio São Paulo de Literatura de 2022, e buscamos coincidências entre os seus romances e o Na praia, de Ian McEwan, escolhido por ele para nossos associados.

O seu livro Uma tristeza infinita logo chama atenção pelo cenário muito distante do que se poderia esperar de um “escritor tropical”. Como foi ambientar o romance na Suíça, e mais, com um protagonista francês? Meus livros sempre tomam o caminho mais longo para falar de um assunto. Sempre fui avesso à ficção direta, que aborda experiências pessoais sem filtros. Assim como tive que criar uma história mirabolante de terror para falar do luto por uma amiga em meu romance As perguntas (2017), quis abordar a chamada “crise de saúde mental” que assolava o Brasil voltando meus olhos para quando foram criadas as primeiras drogas psiquiátricas e tratando também de temas políticos relevantes no Brasil, cuidadosamente disfarçados com metáforas em uma Suíça pós-Segunda Guerra. Não é um romance histórico, mas um livro muito pessoal sobre o que eu via e vivia em 2018–2020.


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Uma tristeza infinita é um livro sombrio e, de certa forma, violento. Na praia também pode carregar um pouco essa ideia. Se tivesse que definir em uma ideia um e outro, como você definiria? Diria que há relações mais sutis entre o meu livro e o de McEwan, em especial ao final de ambos os livros; para evitar spoilers, contarei apenas que os dois tratam de arrependimento, de como lidar com o fato de que cometemos erros no passado, seja por ação ou omissão, e o que fazer com a culpa, se é possível transformá-la em uma mudança em nós mesmos, se somos capazes de aprender com nossos erros e assim por diante. Esse tema é muito caro a McEwan e domina Reparação, meu romance favorito do autor e que teve um grande impacto em minha formação literária. Na praia é um romance escrito em 2007. Algumas questões postas no romance não são exatamente questões ultracontemporâneas, como a questão do casamento tradicional ou da perda da virgindade. O que essa questões podem significar para o leitor de hoje? Eu vejo Na praia como um romance sobre a dificuldade de comunicação entre duas pessoas, tema tão querido por artistas como Michelangelo Antonioni e, por que não?, a Elena Ferrante. É claro, o puritanismo inglês retratado no livro é alienígena para a sociedade brasileira de 2024, mas ainda sofremos com as mesmas questões, isto é, a nossa incapacidade de transmitir nossas angústias mais íntimas, de ter conversas sinceras capazes de passar por centenas de barreiras de julgamento, muitas delas talhadas pela cultura em que estamos inseridos. Na praia foi um livro de imenso sucesso quando foi lançado. Você, que hoje também trabalha como editor, consegue ter uma ideia de como seria a recepção dele hoje, dezessete anos depois do lançamento? Acho que ele é o caso típico de um livro fenomenal que infelizmente foi esquecido por boa parte do público leitor, como A história do amor, de Nicole


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Krauss e outros sucessos anglófonos do período. A prosa de McEwan seguiu outros caminhos, preocupado com questões de tecnologia e dilemas morais que passam por instâncias jurídicas, mas nunca é tarde para lembrar que todas as fases desse autor são interessantes, sejam os contos sombrios do começo de carreira ou essa fase mais realista “tradicional”. Pelas características mesmas tanto do seu livro como de Na praia, dá para imaginar que você espera do leitor uma postura que não é apenas de contemplação. Como você imagina que seria o leitor ideal? Para além do pensamento crítico, espero que o leitor ideal tenha um forte senso estético e reconheça que McEwan é, acima de tudo, um grande mestre do estilo. Isso está claro desde as primeiras linhas do livro, quando somos tomados por um repentino “Mas nunca é fácil”. Costumo usar esse começo em minhas aulas de escrita criativa: ele sintetiza o conflito inerente a toda narrativa, a vasta gama de sentimentos complicados e conflitantes que moldam a experiência humana. Do que você sente falta na literatura contemporânea? Acho que estamos vivendo um período maravilhoso na literatura brasileira, especialmente pela abertura a diferentes vozes e um foco menor na produção do Sudeste. Dito isso, sinto falta de mais experimentação de gêneros: assim como as autoras argentinas se apropriaram do terror, gostaria de ver mais escritores brasileiros de ficção literária flertando com ficção científica, fantasia etc.

MINHA ESTANTE O livro que estou lendo: Racismo e antissemitismo, de Leo Spitzer. O livro que mudou minha vida: O peso e a graça, de Simone Weil. O livro que eu gostaria de ter escrito: Noite e dia desconhecidos, de Bae Su-ah. O último livro que me fez rir: O inconsciente corporativo, de Vinícius Portella. O último livro que me fez chorar: O xale, de Cynthia Ozick. O livro que dou de presente: Valis, de Philip K. Dick.


16 Cenário

Alguns minutos antes de tudo Poucos romancistas têm a destreza de Ian McEwan para dissecar a verdadeira natureza dos relacionamentos com coragem de falar sobre o delicado equilíbrio entre o medo e a esperança. São poucos os romances que se passam, inteiros, em um mesmo cenário. Podemos lembrar, claro, dos claustrofóbicos romances de Samuel Beckett, na chamada trilogia do pós-guerra, e do não menos angustiante A metamorfose, de Franz Kafka, mas, em geral, centrar a história em apenas um ambiente é um recurso muito mais utilizado na dramaturgia, e aí são inúmeros textos teatrais com esse recurso — claro, faz sentido focar a produção num mesmo ambiente. O romance Na praia é desse tipo. Ainda que o narrador faça várias digressões, justamente para caracterizar os dois protagonistas contando as histórias de suas breves vidas até ali, o centro da narrativa está todo no hotel em que o jovem casal vai passar a lua de mel, com algum movimento entre o restaurante e o quarto e uma grande explosão na cena final, propriamente na praia. Mas, quando pensamos num quadro geral do romance, não menos importante que o onde é o quando. O livro se passa no frio verão inglês, em julho de 1962, e a data não é nada aleatória: o ponto central da discussão — a virgindade e a ingenuidade, o desejo e a repulsa pelo sexo — ganha um papel definidor das relações de um modo muito mais contundente do que se se passasse, por exemplo, dez anos depois.


Cenário 17

ANTES DOS BEATLES Em 1962, a Inglaterra (e a Europa como um todo) já podia sentir uma leve brisa do que se transformaria no poderoso vento de mudança que varreria o mundo a partir dali. Mas era apenas uma brisa: o Partido Conservador, sob o comando do primeiro-ministro Harold Macmillan, estava no poder. Mais que um cenário político, isso ainda denotava uma sociedade fortemente presa a valores tradicionais, numa distribuição sem muita mobilidade e ainda apegadíssima a uma moral que começava a não fazer sentido. Enquanto EUA e URSS brigavam silenciosamente na Guerra Fria, com ameaças de mísseis e bombas nucleares, a juventude parecia perdida, numa época em que não se exaltava o valor de seu frescor e inventividade e, aos jovens, o melhor conselho era aquele famoso dado pelo brasileiríssimo Nelson Rodrigues: “Envelheçam”. É exatamente nesse lugar que os dois jovens protagonistas do livro se encontram. Aos 22 anos, eles já tinham fechado bastante seus horizontes de possibilidades: Florence empenhadíssima na carreira de musicista profissional, Edward com um conformado emprego na indústria do sogro. Esse apego prematuro a um futuro desenhado vem justamente de uma época em que não se pregava ainda o imaginário da vida em liberdade, do amor livre, do “cabelo ao vento, gente jovem reunida”. O que restava, portanto? A troca de promessas de fidelidade eterna, algum vislumbre de independência das tradicionais garras da família e a possibilidade de uma vida sexual: sim, o casamento.


18 Cenário

NO PRINCÍPIO, ERA O SILÊNCIO “Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite, sua noite de núpcias, e viviam num tempo em que conversar sobre as dificuldades sexuais era completamente impossível.”

A história de amor e tragédia entre Edward e Florence começa justamente por esse silêncio, todo posto nessa frase lapidar, que já guarda em si tudo que o leitor precisa saber — e eis então um primeiro gesto narrativo brilhante. McEwan é muito preciso ao descrever a dança triste dos relacionamentos, e não seria diferente com a valsa deste livro. A partir dos desajeitados passos de dança de um jovem casal, ele transforma um drama de uma banalidade burguesa em algo muito mais perturbador. É assim que o sol do matrimônio que parece tão auspicioso passa a ser eclipsado por uma sombra não menos démodé: a suposta “frigidez” de Florence. Esse conceito, tão antigo quanto a sociedade de que nasce esse casal, fará os jovens noivos se depararem com um estado de aflição (ou maldição) sem remédio. Nos premiados livros do autor — de Reparação a Cães negros —, o olho do furacão, o turning point narrativo é sempre uma espécie de deterioração da inocência, como se corações puros, por mais bem-intencionados e devidamente educados que sejam, não pudessem sobreviver a um mundo sombrio. Em Na praia, não é diferente, e o catalisador da deterioração é o impulso do desejo e seu descontentamento. A partir dessa queda primordial, vamos assistindo ao casal afundar silenciosamente na frustração e no constrangimento.


Cenário 19

A VIDA INTEIRA EM UM MOMENTO Uma das técnicas impressionantes de McEwan é isolar um momento aparentemente discreto e banal de uma vida e imprimir nele um significado espantoso. Toda a estrutura de Na praia constrói-se em torno de três desses momentos: o jantar nupcial, a urgência da consumação do ato e a conversa final na praia. As três cenas são levadas com constrangimento e timidez, em passos titubeantes, como se tentassem se equilibrar nos seixos arredondados que cobrem o chão da praia. Mas o casal nitidamente só se dá conta do terreno frágil e instável em que pisam depois do casamento: se antes tudo se desenhava com uma impressionante segurança — a promessa da vida confortável, o sonho com a filha que seria musicista como a mãe, um passado familiar levemente nebuloso (mas não o suficiente para ser empecilho para o casamento) —, tudo isso passa a desmoronar com a maldição que é a ausência do desejo em Florence. Durante o jantar, eles ainda têm em mente os planos preconcebidos de passearem pelas pedras da praia com uma garrafa aberta de vinho francês: a ideia era catar pedrinhas na praia, comparar seus tamanhos e ver se a tempestade realmente havia trazido ordem à praia. O que eles descobrem, entretanto, é um tipo selvagem de desordem, onde nada significa o que eles pensam. Como na vida deles.

TRISTE CONTO DE FADAS O livro tem um quê de conto de fadas, pois tudo o que acontece parece inevitável. As minúsculas correntes de tensão que mudam uma conversa e uma vida são tão cruciais para o método de McEwan que seria injusto revelar cada detalhe de sua narrativa. Perto do final, quando o destino está selado, parece a Edward “que uma explicação da sua existência ocuparia um minuto, menos de meia página”. Tal é a hábil compressão da arte de McEwan aqui que, nas suas mãos, essa formulação não parece longe da verdade.


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Universo do livro Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

Uma DR que pode mudar tudo como na série CENAS DE UM CASAMENTO, de Hagai Levi

A absoluta falta de perspectiva de uma vida mais feliz como na série MARE OF EASTTOWN

A música tem um papel central como no filme WHIPLASH

Uma discussão sobre a sexua-​ lidade feminina e a frigidez como no filme BLISS


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Num cenário de praia, mas que não é nada solar, como no filme A FILHA PERDIDA

Mostrando a infelicidade da classe alta como no filme MATCHPOINT, de Woody Allen

Uma bebida para harmonizar com a leitura: VINHO FRANCÊS

Um filme clássico que trata do tema da frigidez da mulher: REPULSA AO SEXO, de Polanski

O cenário que queremos buscar ao ler o livro: CHESIL BEACH

A trilha sonora perfeita para embalar essas páginas: SINFONIA HAFFNER, de Mozart


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Da mesma estante Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês, para quem quiser continuar no assunto ATÉ QUE A VIDA OS SEPARE Narrativas de desencontros, mas sempre com a esperança de que haja vida após o divórcio

DEPARTAMENTO DE ESPECULAÇÃO, Jenny Offill Um desconcertante mosaico de cartas entre marido e mulher que compõe um cotidiano quase banal, não fosse o humor (e o desespero?) que brota quase intencionalmente.

DIAS DE ABANDONO, Elena Ferrante Uma história comum, de uma mulher comum, passando por uma dor comum. Mas a autora consegue preencher cada espaço vazio da casa com sua capacidade impressionante de descrever a psique feminina. Doloroso e bonito como uma separação.

UMA SEPARAÇÃO, Katie Kitamura Com um estilo elegante e implacável, a história de uma separação que deveria ser mantida em segredo, até que o marido desaparece. O cenário é desolador, o olhar é frio, e o livro é espantosamente atraente.


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A SEXUALIDADE, ESSA DESCONHECIDA Livros que botam em evidência essa parte tão importante da vida, e de que pode ser tão difícil falar

O TEATRO DE SABBATH, Philip Roth Um velho manipulador de bonecos desempregado, gordo, sujo e trapaceiro arrasta o leitor a seu labirinto de adultério e morte. Romance desbragado e comovente que põe à prova os limites do conhecimento e do sexo na ficção.

A OBSCENA SENHORA D, Hilda Hilst Uma prosa revolucionária, pois carregada de poesia e de filosofia, inventa um jeito de narrar as questões mais profundas da humanidade, revestidas pela condição da mulher, do desejo e da relação com o sagrado.

PORNOPOPEIA, Reinaldo Moraes Um sujeito que vaga pela cidade à mercê do seu desejo, do mesmo modo que nós, leitores, ficamos à mercê de uma narrativa enlouquecida. Uma experiência literária única e que ainda rende caudalosas risadas.


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LEIA. CONHEÇA. DESCUBRA: Philip Roth

Se o autor do mês carrega em cada linha a contenção britânica para tratar de dilemas éticos milimetricamente desenhados, a prosa de Philip Roth é uma espécie de antídoto: é caudalosa, exagerada, numa verborragia exuberante que parece gritar com o leitor. Eis aqui uma ótima chance de conhecer um pouco mais sobre ele e embarcar nessa obra tão oposta, mas tão complementar.


Leia. Conheça. Descubra. 25

Nome Philip Milton Roth

Nascimento Nova Jersey, 19 de março de 1933

Morte Nova York, 22 de maio de 2018

Sobre ele: “Roth é o culminar de um quebra-cabeça não resolvido na literatura judaica dos séculos 20 e 21. As influências complexas de Kafka e Freud e o mal-estar da vida judaico-americana produziram um novo tipo de síntese em Philip.” Harold Bloom

Filho de uma tradicional família de judeus que teve uma vida relativamente próspera (ou ao menos protegida da pobreza) em Newark, nos arredores de Nova Jersey. Como várias outras fases da vida dele, a infância aparece em alguns de seus livros, como O complexo de Portnoy e Complô contra a América — quem é leitor de Roth tem uma visão quase palpável das casas de subúrbio que enquadravam sua infância, com mães donas de casa e pais funcionários de companhias de seguros, além das férias de verão sempre no equilíbrio delicado entre a sensação de segurança e os ataques antissemitas. Durante toda a sua vida adulta, dividiu o tempo entre as aulas de literatura e escrita criativa e sua própria escrita. O ambiente da academia foi fundamental para ir moldando um estilo que até hoje é considerado como um dos mais originais da literatura americana, e avalizado, desde sempre, por colegas e amigos, como Saul Bellow. Em seu primeiro livro, Adeus, Columbus (1959), Roth já derramava um humor único, que o acompanharia por toda a vida, e questões que sempre nortearam sua obra: a moralidade hipócrita americana, o conflito de classes dentro de uma relação, a luta entre o intelectualismo e uma vontade imensa de aprender.


É difícil, se não impossível, explicar a algumas das pessoas que afirmam ter sentido meus dentes afundando que em muitos casos elas não foram mordidas.


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A PSICANÁLISE E A IMAGINAÇÃO SELVAGEM Depois de se mudar para Nova York, Roth é contaminado por um jeito de olhar a época extremamente ligado aos avanços da psicanálise e do amor livre. Depois de um tempo sem escrever, mudou-se para a Pensilvânia para dar aulas, e desse período nasceu O complexo de Portnoy, talvez seu maior sucesso e o livro que mudaria o imaginário dos EUA desde então. O complexo de Portnoy vendeu quase 400 mil cópias e fez de seu autor uma celebridade, não só pela crueza do seu humor, com uma carga altamente ofensiva, mas por arrebatar leitores sedentos de uma literatura que os fizesse pensar, rindo. O monólogo confessional de Portnoy ao seu psicanalista levantou hipóteses lascivas sobre sua vida pessoal, e a atenção recebida o levou a morar fora da cidade. A partir daí sua vida foi um incessante publicar livros, recebidos com espanto e delícia, e construir uma das obras literárias mais impressionantes dos últimos tempos.

TUDO É ASSUNTO PARA DESTRUIÇÃO Quando Philip Roth morreu, em 2018, os jornais literários já estavam cansados de publicar reportagens sobre sua vida, depoimentos e celebrações à sua obra. Nada mais justo: uma voz única, incontornável para qualquer pessoa que tenha interesse em literatura, durante mais de 50 anos deleitou e provocou leitores pelo mundo. Seus livros, sempre retratos complexos de personagens irritados com as restrições das convenções, são fontes inesgotáveis de humor, inteligência, seriedade moral e social. São reflexões assustadoramente visionárias sobre a tensa relação entre nossas vidas


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privadas e o interesse público, sobre nossas atitudes em relação a sexo, raça, fé e à identidade judaica em particular; sobre os limites do discurso, a transgressão religiosa, o politicamente correto, a indignação, a vergonha, a traição, a lealdade e a nossa obsessão implacável pelo prestígio. Nenhum aspecto do comportamento foi poupado ao seu olhar fulminante — tudo e todos eram um alvo fácil. Incluindo ele mesmo. Repetidas vezes Roth foi atacado pelos seus críticos, e repetidas vezes ele inverteu essas críticas para nos lembrar que o “antagonista mais implacável” tendia, no final, a ser ele próprio.

PARA COMEÇAR

O COMPLEXO DE PORTNOY Um dos livros mais engraçados que você vai ler, é iconoclasta, inteligente, divertido. Retrato de um país com uma ironia rara. Imperdível.

“Viver é entender as pessoas errado, entendê-las errado, errado e errado, para depois, reconsiderando tudo cuidadosamente, entender mais uma vez as pessoas errado. É assim que sabemos que continuamos vivos: estando errados.”

OBRA-PRIMA

A MARCA HUMANA Uma resposta ao puritanismo americano, usa dos preconceitos intrínsecos do país para combater seu moralismo vazio. Finíssimo.

PARA SE APAIXONAR DE VEZ

O TEATRO DE SABBATH Um dos melhores livros sobre a vida sexual e suas perversidades. Engraçado e trágico, brilhante e safado. Uma obra-prima corajosa, inteligente e desconcertante.


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Vem por aí Dicas sobre o livro de abril da TAG Curadoria: Emicida, que você já deve ter visto por aí nas nossas redes falando sobre a importância da leitura, foi o nosso curador e indicou um livro especialíssimo, muito brasileiro, que das dores e das delícias da construção do nosso país.


30 Consultório literosentimental

Madame TAG responde Madame Tag, Estou vivendo uma dúvida terrível. Sempre fui leitor compulsivo, e a TAG é sempre a melhor surpresa do mês. Mas, em casa, só eu leio — minha mulher não lê nem uma página. E já tem dois meses que meus livros estão marcados, com manchas que eu não fiz, e nitidamente outra pessoa anda lendo. Estou sendo traído? Meu caro, meu caro, Se você, como diz, é um leitor compulsivo, já está com os olhos gastos de saber que isso que te perturba é o monstro irrefreável do ciúme — o equivocadamente chamado “perfume do amor”. Do infeliz Otelo, o mouro de Veneza, ao desgraçado carioca Bentinho, o ciúme deixou apenas um rastro de desencontros e miséria humana. Mas, como o sábio Vinicius de Moraes, esse especialista em amores e outras mumunhas, já notava com razão e sensibilidade, o ciúme é como o medo do avião cair: se o avião cai, não adiantou de nada; se não cai, muito menos. Sua ambivalente mensagem, entretanto, deixa esta Madame em dúvida: o que você mais teme? Que sua iletrada esposa esteja botando suas asinhas de fora e agora devore seus queridíssimos exemplares da TAG? Ou que ela tenha emprestado debaixo das suas barbas para um outro leitor, tão ávido quanto você? No primeiro caso, meu caro, apenas agradeça. Quem tem um companheiro leitor, ou um leitor companheiro, tem um parceiro de viagens para trocar ideias, discutir teorias e dividir sua assinatura TAG. E essa, acredite, meu querido, é das maiores alegrias da vida. Já no segundo, querido, paciência. Uma ou outra leitura para a desconstrução, tentar ser um homem mais atento e, por que não?, uma boa dose de poemas românticos. Quer um conselho de Madame TAG? Escreva para madametag@taglivros.com.br.



“O casamento é a pior ou a melhor coisa do mundo.” – MACHADO DE ASSIS


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