"Em algum lugar lá fora" TAG Curadoria - Novembro/2023

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EM ALGUM LUGAR LÁ FORA

NOV 2023



OLÁ, TAGGER Olá, tagger É

novembro, mês da consciência negra, e a obra que você acaba de receber narra a história de pessoas escravizadas em um ângulo não tão tradicional. Trata-se do livro Em algum lugar lá fora, publicado no ano passado pelo estadunidense Jabari Asim. Em um mundo dividido entre Sequestrados, os escravizados, e Ladrões, os proprietários brancos, acompanharemos uma narrativa centrada nas relações entre pessoas cuja situação de cativeiro é apenas um dos aspectos que as circundam, sendo também uma história sobre afetos (desafetos), amizade e resistência. Ao longo das páginas, seremos envolvidos por uma história que mescla passagens alegóricas entrelaçadas a duras verdades, tudo isso enquanto delineia a trajetória de personagens marcantes. Para complementar a leitura de Em algum lugar lá fora, trazemos conteúdos que aprofundarão sua experiência. Nas páginas seguintes, você encontrará os textos de apresentação do livro e contexto histórico, escritos pela jornalista Iarema Soares. Além disso, preparamos uma entrevista com a curadora do livro, Micheliny Verunschk. Boa leitura!

Alerta de gatilho Esse livro contém cenas de racismo e violência gráfica. Se você estiver precisando de ajuda, entre em contato com o CVV (Centro de Valorização da Vida) pelo 188 ou acessando www.cvv.org.br.


NOV 2023 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200

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Por que ler o livro

O livro indicado

Entrevista com a curadora

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posfácio

Ilustração do mês

Para ir além

Agenda

sumário

prefácio

Experiência do mês


4 EXPERIÊNCIA DO MÊS

VAMOS LER

ACESSAR O APP

OUVIR PLAYLIST

Em algum lugar lá fora

C

riamos esta experiência para expandir a sua leitura. Entre no clima de Em algum lugar lá fora colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!

Leia até a página 55 Boas-vindas à experiência literária de novembro! Já conhecemos a história de Cato e agora nos familiarizamos com todos os personagens que irão compor a narrativa do livro deste mês. Estão prontos para seguir em frente? Leia até a página 109 Conforme nos aprofundamos na obra, fica nítido que cada um dos personagens resiste ao ambiente opressor à sua própria maneira. Além disso, a morte de uma figura muito importante (e igualmente terrível) gera consequências ao grupo. Leia até a página 148 Nos despedimos do personagem que inspira a capa de Em algum lugar lá fora. Mudanças causadas pela morte do antigo capataz começam a se consolidar no grupo. O que estão achando do livro até aqui? Comentem suas impressões no aplicativo da TAG! Leia até a página 179 A chegada de um novo integrante na família de William mexe com a sua cabeça. Também ficamos sabendo que o pastor Ransom faz mais do que “rezar a missa”, e o grupo decide seguir por um caminho ousado. Leia até a página 220 Outro personagem muito querido nos deixa, cumprindo seu destino de "voar"... Estamos quase no final do livro, avante!


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EXPERIÊNCIA DO MÊS

projeto gráfico O projeto gráfico deste mês foi concebido por Bruno Miguell e Laura Viola, da equipe da TAG. A ideia da capa, representando ao mesmo tempo um muro e uma tela, foi inspirada no personagem Milton, homem escravizado que tinha o ofício de pedreiro na fazenda, mas, entre os outros escravizados, era conhecido por seu talento artístico. O mosaico de tijolos é colorido por obras de Malvin Gray Johnson, artista da Carolina do Norte, que representam as múltiplas vozes que serão lidas no livro Em algum lugar lá fora.

mimo O mimo deste mês homenageia a máquina de escrever. Inventada no mês de novembro de 1861 por um padre paraibano, o equipamento foi premiado com uma medalha de ouro com a efígie de Dom Pedro II em uma feira. Um objeto promissor, que transformou a forma de contar histórias no Brasil, mas que não foi enviado para feiras internacionais… Para saber o motivo dessa peculiaridade, acesse o vídeo do mimo no aplicativo da TAG! Celebrando esse episódio que ocorreu 162 anos atrás, o mimo pode servir como enfeite em árvores de natal, para os entusiastas da data, ou como chaveiro literário.

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OUVIR PODCAST

Em algum lugar lá fora pode ter terminado, mas a experiência não!

Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.

Leia até o final Um final de resistência e esperança, ainda que com tristes perdas... Apesar de ser uma história ficcional, esperamos que em algum universo nossos personagens estejam desfrutando o futuro que merecem.


6 POR QUE LER O LIVRO

“Em ALGUM lugar lá fora mostra que os sonhos e o amor negro sempre foram ferramentas de sobrevivência na busca para alcançar um lugar fora de alcance.” Vanessa Riley, para The New York Times

“Não é deprimente, é maravilhosamente honesto – oferecendo esperança e empoderamento.” Evangeline Lawson, para The Washington Post

“Todos os componentes narrativos estão ali para envolver o leitor na jornada de personagens que podem não ter existido de verdade, mas que com certeza foram muitos e muitas durante a escravidão nos Estados Unidos.” Ana Carolina Aguiar, tester da TAG


POR QUE LER O LIVRO

POR QUE LER O LIVRO De autoria do escritor, poeta e dramaturgo Jabari Asim, Em algum lugar lá fora mostra as várias subjetividades que compõem um grupo de escravizados: William, Cato, Margaret e Pandora. Apesar de serem forçados a aprender línguas e crenças dos que têm sua posse, eles encontram maneiras de resistir com suas próprias linguagens e rituais. É um trabalho elegante e poderoso sobre os sentimentos de pessoas privadas de sua liberdade, ao mesmo tempo que pondera, também, sobre o papel do amor e da comunidade.

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8 O LIVRO INDICADO

Para além da sobrevivência, há vivência IAREMA SOARES

"Tenho uma cabeça pra mostrar pro sinhô Tenho outra cabeça pra quem eu sei que sou."

E

sse trecho de uma música dos negros estadunidenses, publicado logo no início da obra Em algum lugar lá fora, é um grande spoiler do que vem pela frente, é uma amostra de como a narrativa será amarrada e conduzida pelo escritor Jabari Asim. Isso porque as histórias dos escravizados, de maneira geral, são contadas sob um viés reducionista e ainda mais desumanizante, porque elas resumem a trajetória dessas pessoas ao seu sequestro no continente africano, ao trabalho forçado, aos castigos e à sua morte. Aqui, por outro lado, é contada a história dos — e pelos — escravizados para além dos marcadores temporais já citados. Com a alternância de narradores conforme o passar dos capítulos, acessamos a história sob o olhar de quem viveu aquele terror diário. Entretanto, para além disso e justamente por o livro ser narrado pelos escravizados, acessamos seus pensamentos, seus sonhos e seus medos. A sobrevivência vem da simulação emocional à qual os Sequestrados se submetiam em uma tentativa de superar a violência e a desumanização que lhes era imposta. Os personagens lutam contra seus sentimentos, com medo de que, se essas emoções fossem reveladas, elas seriam exploradas como ponto de fraqueza e, consequentemente, extintas à força, porque o amar não cabia aos negros, como é dito pelo capitão do mato ao longo das páginas. Em meio à desolação, porém, há resiliência e ternura entre os Sequestrados, um fio de espiritualidade e manutenção das tradições.


O LIVRO INDICADO

"Tenho uma cabeça pra mostrar pro sinhô Tenho outra cabeça pra quem eu sei que sou."

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10 O LIVRO INDICADO

ENQUANTO TEVE ESCRAVIZAÇÃO, TEVE RESISTÊNCIA Ideias falaciosas de que o sistema escravista estadunidense era benigno ainda são reproduzidas e jogadas ao vento, contudo, tais concepções devem ser constantemente desmentidas, porque os escravizadores estão longe de serem gentis. Como poderia ser gentil alguém que trata o outro como objeto, que machuca, fere, castiga, maltrata, separa e vende os familiares dessa pessoa? Os afro-americanos queriam a liberdade para fugir dessa dinâmica de vida; eles se recusaram a aceitar que essa era a sorte que lhes havia sido reservada. E mesmo quando a liberdade se mostrou impossível de obter, eles se esforçaram para fazer a vida minimamente viável, mesmo sob as condições desumanas. Em artigo publicado, o professor de História da Ohio State University Hasan Jeffries aponta que a rebelião não foi a única maneira pela qual os afro-americanos escravizados reagiram. "Sua resistência assumiu muitas formas, desde tentativas altamente visíveis de fugir da escravidão até atos quase imperceptíveis de sabotagem." Como, por exemplo, quando tentavam minimizar a quantidade de energia que gastavam trabalhando nos campos diminuindo o ritmo de trabalho, fingindo estar doentes, quebrando implementos agrícolas e sabotando colheitas. A rebelião almejava a abolição, a libertação total e irrestrita dos escravizados. Entretanto, a maioria das formas de resistência lutava por algo muito menor, mas de extrema importância, porque buscava tornar o cotidiano menos sufocante e mais suportável até que chegasse o prometido dia da abolição, aponta o historiador.


O LIVRO INDICADO 11

Livro The underground railroad, enviado pela TAG em 2018

ROTAS DE FUGA Existiam tentativas de rebelião, atitudes que visavam a mitigar o sofrimento nas plantations e havia ainda a underground railroad, ou ferrovia subterrânea. Muitos escravizados começaram sua jornada de busca pela liberdade sem ajuda de ninguém e muitos alcançaram sua autoemancipação sozinhos, mas, com o passar das décadas, houve um aumento nos esforços ativos para ajudar na fuga e uma verdadeira rede de apoio foi criada. Esses espaços seguros de transição de escravizados em fuga eram formados por casas, celeiros, igrejas e empresas e contavam com o apoio de negros escravizados e libertos, índios americanos e pessoas de diferentes grupos religiosos e étnicos simpáticos ao propósito abolicionista.


12 O LIVRO INDICADO

As "ferrovias", na verdade, eram uma rede de rotas, lugares e pessoas que ajudavam os escravizados do sul dos EUA a escapar para o norte. E, além disso, não era uma ferrovia de verdade, mas tinha o mesmo intuito: transportar pessoas por longas distâncias — geralmente, eram percorridos de 16 a 19 quilômetros entre cada parada.

A underground railroad não era uma ferrovia real, mas uma rede de rotas secretas e casas seguras usadas por negros escravizados nos Estados Unidos.

Os trajetos tinham como principal destino o norte dos EUA e o Canadá, mas havia rotas para o México, Flórida espanhola, território indígena, oeste, ilhas do Caribe e Europa. As rotas seguiram modos de transporte naturais e mecânicos — rios, canais, baías, Costa Atlântica, balsas e travessias de rios, estradas e trilhas. Devido ao perigo associado à captura, eles realizavam grande parte de suas atividades à noite. Talvez a condutora mais conhecida seja Harriet Tubman, também chamada de "Moisés do seu povo". Ela foi escravizada, escapou e ajudou outras dezenas de pessoas, ao longo de 13 incursões, a ganhar sua liberdade.


O LIVRO INDICADO 13

ENTREVISTA Em algum lugar lá fora traz, em uma espécie de mosaico, diversos elementos que compõem a cultura dos escravizados, como a religiosidade e os rituais. Para entender mais sobre a formação e o papel dessas expressões culturais, conversamos com Luciana Brito, doutora e pós-doutora em História pela USP e pela City University of New York. É professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, pesquisadora sobre a escravidão e a liberdade no Brasil e nos Estados Unidos e colunista do Nexo Jornal. A escravização influenciou o desenvolvimento de uma cultura única entre os negros escravizados nos EUA? Quais elementos culturais foram preservados, adaptados ou criados durante esse período? Tem a criação, sim, de uma cultura própria nos EUA e de cada lugar por onde pessoas africanas foram traficadas. Mas, embora tivessem essa matriz comum da cultura africana em cada lugar, inventaram formas próprias de produzir cultura e de produzir reminiscências, lembranças dessa forma africana de viver. Foram se adaptando, se adequando e, de certa maneira, preservando também. Quais eram as principais formas de expressão cultural utilizadas pelos negros escravizados nos EUA para resistir à opressão e manter sua identidade? Importante dizer que a escravidão em qualquer lugar das Américas foi algo muito violento e muito traumático. Então, além de resistir, as pessoas inventaram formas de existir, de suportar, de viver, a despeito da condição de total violência em que elas viviam. Nos EUA, a mesma coisa, mas por meio da música, danças e histórias orais. O tráfico de africanos acabou nos EUA em 1808. Nesse país, há produção cultural ligada ao continente africano, mas que é feita a partir de elementos afro-americanos, de uma preservação africana que é muito fruto de uma produção local das pessoas descendentes de africanas nascidas nos EUA. Há danças que originaram o jazz e o blues.


14 O LIVRO INDICADO

Luciana Brito, doutora e pós-doutora em História pela USP e pela City University of New York.

“A escravidão [...] foi algo muito violento e muito traumático. Então, além de resistir, as pessoas inventaram formas de existir, de suportar, de viver, a despeito da condição de total violência em que elas viviam.”


O LIVRO INDICADO 15

Há invenções também, como, por exemplo, o ritual de pular a vassoura. Uma vez que nos EUA não era possível formalizar casamento entre pessoas escravizadas, para marcar a passagem da condição de solteira para casada, foi estabelecida essa cultura de pular a vassoura entre comunidades escravizadas. Mas, além disso, tinha a música, a dança, a produção agrícola também desempenha um papel importante por meio da forma de se cozinhar os alimentos, que é diferente entre negros e brancos estadunidenses. E há ainda as tradições orais de pessoas que viveram até o começo do século XX. Essas tradições vivas são rememoradas oralmente a partir de depoimentos que foram feitos desses afro-americanos mais velhos. A religião desempenhou um papel na construção da resiliência e da esperança entre os negros escravizados? Quais eram os principais temas espirituais que eles abordavam em suas práticas religiosas? Vemos religiões de matriz africana na América Latina e Caribe. Nos EUA, por sua vez, tem a incorporação muito acentuada da religiosidade cristã protestante. Surgem as igrejas negras que se apropriam de passagens da Bíblia que denotam escravidão, cativeiro, opressão, humilhação e redenção à experiência de pessoas escravizadas. Nas comunidades afro-americanas escravizadas e libertas, a Bíblia é usada como palavra de incentivo na luta por liberdade; não tem formação de uma religião de matriz africana, como no Brasil, por exemplo. Porém vemos no sul dos EUA, em Nova Orleans, nas comunidades quilombolas da Carolina do Sul, da Geórgia e da Louisiana memórias de cultos que faziam antepassados, e vemos manifestações de religiosidade africana, mas que é sobretudo aglutinada no cristianismo negro, e ele é caracterizado pelos spirituals. Os spirituals, que eram canções que privilegiavam passagens da Bíblia que descrevem momentos de redenção, resiliência, resistência e de uma liberdade em uma vida pós-morte. Essas músicas inspiraram a luta pela liberdade na era escravista e, mais tarde, quando foram gravadas no século XX por nomes como Aretha Franklin e Nina Simone, inspiraram lutas pelos Direitos Civis.


16 ENTREVISTA COM A CURADORA

“Não há escravizados, mas sequestrados. Não há senhores, mas ladrões.” SOBRE A CURADORA DO MÊS Micheliny Verunschk é pernambucana e nasceu em 1972. Escritora e historiadora, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura com o livro Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (Patuá, 2014), além de ter sido duas vezes finalista do Prêmio Rio de Literatura. Também foi finalista do antigo Prêmio Portugal Telecom, hoje Prêmio Oceanos. Com o romance O som do rugido da onça, em que joga luz sobre a história de duas crianças indígenas raptadas no Brasil do século XIX, Micheliny venceu o Prêmio Jabuti de 2022 na categoria “Romance Literário”.

JÚLIA CORRÊA


ENTREVISTA COM A CURADORA 17

A curadora do mês, Micheliny Verunschk. Crédito: Melissa Guimarães

Pode nos contar de sua experiência de leitura da obra de Jabari Asim? Quais são suas impressões sobre a escrita do autor? Em algum lugar lá fora é um livro que me tomou. O primeiro impacto se dá por aquilo que vou chamar de vocabulário contracolonial . Não há escravizados, mas sequestrados. Não há senhores, mas ladrões. Esse uso contracolonial da linguagem na literatura abre aos leitores novas formas de compreender não apenas as engrenagens da máquina colonial, mas principalmente suas feridas, que persistem nas relações sociais, culturais, políticas e afetivas do mundo de hoje. Jabari Asim faz uso de uma escrita clara e magnética. Muito embora haja uma profusão de personagens, cada um contando aquela história sob sua própria perspectiva, não há, no entanto, uma distinção na pluralidade dessas vozes. O que pode a princípio parecer uma falta me parece uma escolha peculiar e muito acertada: todas as personagens fazem uso de uma única e grande voz que fala por todos. Acho também muito interessante o fato de que o pensamento elegante e bem elaborado dos personagens negros não alcance a tradução sensível quando diante dos interlocutores brancos. Isso é maravilhoso, pois dá bem a medida do quanto o exercício da alteridade é falho em relações de opressão.


18 ENTREVISTA COM A CURADORA

Cada vez mais obras têm abordado as feridas do colonialismo e da escravização. Qual você acredita que seja a particularidade de Em algum lugar lá fora no tratamento desses temas? Creio que Em algum lugar lá fora tem um grande trunfo ao descentralizar o protagonismo. O romance conta a história de um grupo de pessoas escravizadas em algum lugar remoto dos Estados Unidos, uma fazenda ironicamente chamada Placid Hall, e coloca em foco todos os horrores da desumanização do sistema escravagista colonial. Ora, isso é sabido pela documentação histórica, ficcional e fílmica, mas ao conduzir o leitor pelos medos, anseios, atos, emoções e, principalmente, pelos impactos que a escravização tem nas vidas de cada um dos indivíduos que faz parte desse grupo, o autor consegue fazer um mapeamento sensível do horror, dando a exata medida da humanidade de cada um.

Crédito: Pio Figueiroa


ENTREVISTA COM A CURADORA 19

O autor não situa Placid Hall, a fazenda de Cannonball Greene, em nenhum lugar específico, o que parece nos permitir transpor aquelas experiências, em certo grau, para a realidade brasileira. Nesse sentido, você acredita que o livro pode ganhar novos contornos a partir da leitura pelo público daqui, que conhecerá a obra agora por meio de sua curadoria? Sem dúvidas, Placid Hall pode ser em qualquer lugar. Quando li O reino deste mundo, de Alejo Carpentier, lembro das ligações que fiz entre aquela paisagem social e emocional do Haiti e dos embates de sua independência capitaneada por Mackandal com os acontecimentos do Quilombo dos Palmares e a liderança de Zumbi dos Palmares. Essas convergências não acontecem por acaso. As conquistas e derrotas dos povos que vieram escravizados para as Américas se espalhavam por redes comunicacionais não oficiais e murmurantes. Não tem como ler Em algum lugar lá fora sem pensar em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, ou em Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, para falar apenas em obras da literatura brasileira. São obras que criam um tecido literário cujas dobras se comunicam em costuras muito profundas. Com foco nos povos originários, O som do rugido da onça, livro de sua autoria que venceu o Jabuti, também traz personagens “sequestrados” — em outras palavras, trata, ao seu modo, das relações de colonialismo e dominação. Quais você considera os principais desafios ao transformar esses temas em matéria literária, considerando ainda sua preocupação em destacar a perspectiva indígena? Creio que o maior desafio no tratamento desses temas é escapar de qualquer estereotipação e solução fácil. Infelizmente, no caso dos povos originários, percebemos que resistem ainda, em certas instâncias, alguns mitos deletérios, como o mito do bom selvagem, o mito


20 ENTREVISTA COM A CURADORA

do indígena indolente, e em ampla medida ainda uma infantilização e folclorização de crenças, cosmologias e filosofias de vida. Ao colocar atenção, escuta e tradução respeitosas e profundas do pensamento e atuação indígenas em várias áreas, de nomes como os de Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Célia Tupinambá e Sonia Guajajara, para citar alguns nomes mais conhecidos, se torna fácil escapar dessas armadilhas. É preciso deixar que o mato fale, mas é preciso sobretudo aprender a escutá-lo, e isso significa demolir essas construções ideológicas perversas. Embora vivam num ambiente muito hostil, os Sequestrados, em Em algum lugar lá fora, encontram espaço para o amor, o afeto e seus rituais. Como você vê a relação entre eles? Algum personagem chamou a sua atenção em especial? Os lugares de afeto são os lugares da alegria, da força que todos tiramos para sobreviver aos tempos mais sombrios. Isso é muito bonito em Em algum lugar lá fora, porque dá a dimensão política do amor, da festa, da amizade, da espiritualidade. O personagem com que mais me identifiquei é o Pequeno Zander, o garoto que acredita em reaver a capacidade de voar. Recomendaria outras obras para quem gostar do livro e quiser ampliar a experiência de leitura? Para além dos livros já citados aqui, nesta entrevista, indico também O crime do Cais do Valongo, de Eliana Alves Cruz, A cabeça cortada de dona Justa, de Rosa Amanda Strausz e Eisejuaz, de Sara Gallardo. Depois de O som do rugido da onça, você lançou neste ano Caminhando com os mortos, romance que traz à tona o tema da intolerância religiosa. Como você tem sentido a recepção desse novo livro? O livro foi lançado há muito pouco tempo, mas já percebo uma recepção calorosa, interessada. Há um leitor inquieto, que tem toda a disposição para os temas que venho tratando. O livro foi lançado em começo de junho e já está na sua primeira reimpressão.



22 ILUSTRAÇÃO DO MÊS

Ilustração do mês Obra Uncle Louis, de Malvin Gray Johnson. O artista foi integrante do movimento artístico Harlem Renaissance e era reconhecido pela dignidade que imprimia a pessoas negras em seus retratos.


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POSFÁCIO Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página. A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.


24 PARA IR ALÉM

Recomendações de livros

"E

m algum lugar lá fora" explora temas de resiliência, amor do romântico ao fraternal, e a busca pela liberdade, de forma igualmente complexa e dolorosa, a partir de experiências de indivíduos que navegam pelas duras realidades da escravização. Para quem quiser estender o tema, aqui estão algumas recomendações de livros que exploram narrativas e emoções semelhantes:

A dança da água, por Ta-Nehisi Coates Esse romance narra todo o desmembramento cruel e atroz de inúmeras famílias negras, compondo um relato comovente e místico sobre destino e propósito, perda e separação. The Underground Railroad, por Colson Whitehead Esse romance vencedor do Prêmio Pulitzer reimagina uma ferrovia subterrânea como uma rede literal de trilhos e túneis, seguindo a jornada de Cora em busca de se libertar da escravização. O caminho de casa, por Yaa Gyasi Esse romance multigeracional traça as vidas de duas meias-irmãs e seus descendentes em Gana e nos Estados Unidos, explorando o impacto da escravização e a luta pela identidade e liberdade.


PARA IR ALÉM 25

Amada, por Toni Morrison Uma exploração poderosa do trauma da escravização, esse romance conta a história de Sethe, uma mulher escravizada que escapou e é assombrada pela memória de seu passado e da filha que matou. Kindred, por Octavia E. Butler Este romance mistura ficção científica com ficção histórica, seguindo Dana, uma mulher negra dos dias modernos que é inexplicavelmente transportada de volta no tempo para uma plantação de Maryland no início do século XIX. Cane River, por Lalita Tademy Com base na história familiar da autora, esse romance traça as vidas de quatro gerações de mulheres, da escravização à liberdade, oferecendo um olhar comovente e íntimo sobre suas lutas e triunfos.


Porque nunca é tarde para ouvir o que elas têm a dizer Esta é uma coleção de livros escritos por mulheres notáveis que buscavam ser visíveis em um mundo que fechava os olhos para elas. Prepare-se para conhecer o cotidiano feminino ao longo de grandes acontecimentos históricos, reconstruindo a história pelos olhos dessas personagens tão impressionantes.

Direcione a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou acesse doispontos.com.br


Gara n a suata coleç ão!


28 AGENDA

vem aí encontros TAG:

2. Temos personagens muito marcantes nesse romance. Qual é o seu favorito? Por quê? 3. A narrativa suscita várias discussões. Uma delas é sobre a importância de utilizarmos o amor como forma de resistência. Como você acha que isso transparece na história? 4. Quais outros livros, filmes, ou séries você indicaria para quem gostou de Em algum lugar lá fora? 5. O que você achou do final da história?

janeiro

1. Quais são os pontos fortes e fracos do livro deste mês?

dezembro

Guia de perguntas sobre Em algum lugar lá fora

Se você gosta de literatura brasileira contemporânea, prepare-se para acompanhar uma curiosa e comovente narrativa escrita por uma autora gaúcha, que inclui uma tartaruga (isso mesmo!) em sua história. Para quem gosta de: literatura brasileira; ficção contemporânea; histórias de amizade Este clássico moderno e inédito no Brasil! - é “um romance duro, terno e amargo de uma garota negra lutando para se tornar mulher” no Harlem dos anos 1930. Para quem gosta de: ficção histórica; literatura afro-americana, clássicos



“Tenha coragem suficiente para confiar no amor mais uma vez e sempre mais uma vez.” – MAYA ANGELOU


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