A biblioteca da meia-noite
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julho de 2021
COLABORADORES
FERNANDA GRABAUSKA
RAFAELA PECHANSKY
LAURA VIOLA HÜBNER
Editora-chefe
Publisher
Assistente
SOPHIA MAIA
CAROLINE CARDOSO
PAULA HENTGES
Assistente
Revisora
Designer
KALANY BALLARDIN
GABRIELA BASSO
Designer
Designer
Impressão Impressos Portão 2
LAÍS FONSECA Designer
Capa Filipa Damião Pinto / Foresti Design
ALERTA DE GATILHO: este livro contém cenas com menções e ideações suicidas. Se você estiver precisando de ajuda, entre em contato com o CVV (Centro de Valorização da Vida) pelo 188 ou acessando www.cvv.org.br
OLÁ, TAGGER Você já parou para se perguntar sobre a vida que gostaria de ter? Claro que sim. Quem não? É em meio a exatamente esse tipo de questionamento que vive Nora Seed, personagem central de A biblioteca da meia-noite. Nós entendemos que perguntas assim são enlouquecedoras. E se eu não tivesse agido assim? E se eu tivesse feito de outra maneira? Às vezes, é fácil de se perder. A gente se esquece de viver o agora. E o agora, tagger, é esse mês de julho, nosso aniversário: a edição da revista sai um pouco do seu usual e centraliza seus temas na questão de Nora. E se a vida fosse outra? E se a TAG não existisse? E se Matt Haig não fosse escritor? As respostas para essas e outras perguntas você encontra nas próximas páginas. Esperamos que o convite ao pensamento leve você a um novo ciclo: de prestar atenção ao presente e de observar as belezas do caminho, mesmo quando o caminho está repleto de agruras. Um ciclo novo para crescermos juntos, como comunidade de leitores, sim, mas também como seres humanos em nossa individualidade. Obrigada por tudo. Parabéns para nós. Boa leitura! 1
MIMO DE ANIVERSÁRIO! A TAG está comemorando sete anos, mas quem recebe o presente são os taggers. Neste aniversário, celebramos grandes autores que formaram nossos leitores. Com estampas sortidas, o mimo é uma ecobag para você carregar sempre consigo. As ilustrações são de autoria de Carol D’Ávila, cujo trabalho você pode conhecer na página @ atumrabisca, no Instagram.
SUMÁRIO 5 O livro do mês
7 Entrevista com Matt Haig
10 E se vendêssemos vegetais?
13 E se eu não tivesse pedido ajuda?
16 E se eu não escrevesse?
19 Projeto gráfico
20 Próximo mês
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O livro do mês
É O NÃO SABER QUE NOS ENLOUQUECE "Adianta sofrer pelas vidas que poderiam ter sido?" É o que nos questiona Matt Haig em A biblioteca da meia-noite
FERNANDA GRABAUSKA
Recorte do kit A biblioteca da meia-noite Filipa Damião Pinto / Foresti Design
A única coisa que posso contar sobre o livro do mês é que o gato da protagonista tem muitas mortes possíveis. Na verdade, ele chega a ser quase como o célebre experimento mental do gato de Schrödinger, aquele que, uma vez dentro de uma caixa, pode tanto estar vivo quanto estar morto. É o não saber que nos enlouquece. Depois de certo tempo de vida, nossas metafóricas melancias cumprem sua sina de acomodação no balançar da carroça. E o que nos resta é uma biblioteca daquilo que quase fomos cada vez mais ampla em relação ao livro daquilo que enfim vamos ser. Em A biblioteca da meia-noite, Matt Haig nos apresenta de forma magistral o conceito da Grande Coleção de Quases a partir de Nora. A personagem central dessa obra já quase foi muitas coisas: nadadora olímpica, filósofa, glaciologista, estrela do rock. Mas, no momento em que nossa história começa, ela parece simplesmente não ser. 5
Frustrada com o rumo de sua vida, Nora vive seus dias em uma modorra de ressentimento. Desligada da família e dos amigos, sente-se tão só no mundo que sua única companhia disponível e responsiva é o gato citado no início da revista. E eis que o bichano, por um descuido, lança Nora em divagações dolorosas a respeito do sentido da existência que a farão tomar uma atitude drástica. Mas e se Nora tivesse a chance de refazer seus passos? É aí que entra a biblioteca. Magicamente, a personagem é apresentada a prateleiras e prateleiras de vidas possíveis. Cada livro da Biblioteca da Meia-noite é uma vida que Nora poderia ter vivido caso tivesse tomado decisões diferentes. Uma oportunidade de resolução para os conflitos internos que a levaram até aquelas estantes. É para essa jornada mágica – às vezes doída, às vezes repleta de alegrias inusitadas – que Matt Haig nos convida. Você está onde queria estar? O que você faria diferente? Temos a tendência de nos penalizar por não trabalhar mais, por não sermos mais disponíveis para amigos e famílias, pelas coisas que não dissemos ou pelas coisas que dissemos a mais... Mas quanto disso é realmente decisivo? A Biblioteca da Meia-Noite e seus livros de possíveis memórias podem parecer um grande exercício de escapismo. Não se engane: trata-se justamente do contrário. Ao colocar sua personagem central em uma situação tão delicada – a de finalmente precisar decidir seu destino de forma ativa –, Matt Haig nos instiga a viver o presente atentos para a beleza do caminho. É mais simples do que a gente pensa.
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Entrevista
"EU GOSTARIA MUITO DE UMA VIDA EM QUE..." Em Primeiro lugar: como você inventou a ideia de uma biblioteca entre a vida e a morte? Como as histórias de Nora ganharam forma?
FERNANDA GRABAUSKA
Matt Haig - Uma biblioteca parece o portal perfeito para entrar no multiverso – a passagem para outros mundos. Assim que tive a ideia, percebi que precisava escrevê-la. Quais são as suas crenças sobre a vida após a morte? Você espera uma biblioteca, ou deve haver outra coisa?
Eu gosto da ideia de uma Biblioteca da Meia-Noite, mas tem uma outra versão que aparece no livro, de uma videolocadora. Bibliotecas e videolocadoras eram meus dois santuários quando eu era criança. Então, se não fosse uma biblioteca, seria uma videolocadora dos anos 80.
"UMA BIBLIOTECA PARECE O PORTAL PERFEITO PARA ENTRAR NO MULTIVERSO – A PASSAGEM PARA OUTROS MUNDOS." 7
Como foi o processo de encaixar tantas histórias dentro de uma história? Havia outros enredos que você decidiu não incluir?
Sim, havia alguns. Foi bem difícil conseguir o equilíbrio exato. Uma coisa que eu quis me certificar era que havia uma mistura de vidas comuns junto a outras mais loucas e versões extremas de realização de desejos, como ser uma estrela do rock, medalhista olímpica ou glaciologista. Também incluí um capítulo que passou por centenas de versões da vida de Nora em poucas páginas, o que foi uma boa maneira de dar vazão a todas as diferentes possibilidades.
"EU ACHO QUE ESCREVER É UMA FORMA DE TERAPIA, E FOI PARTICULARMENTE INTERESSANTE EXPLORAR ESTAS IDEIAS NA FICÇÃO." Sua escrita de não-ficção gira em torno de ansiedade, desespero, depressão – temas que são cruciais em A biblioteca da meia-noite. O que o motiva a pesquisar tais sentimentos com esta profundidade?
Eu acho que escrever é uma forma de terapia, e foi particularmente interessante explorar estas ideias na ficção, pois foi libertador e eu não precisava ficar restrito diretamente à minha própria experiência, ou a de pessoas que conheço. Acredito que todos nós estamos nos sentindo tão isolados e sem esperança quanto Nora, considerando a situação do Covid no mundo (ainda mais no Brasil, como você deve saber). Qual é o seu conselho para lidar com tal forma de solidão? 8
Sim, me solidarizo a todas as pessoas no Brasil, e acredito que o principal desafio para mim foi aceitar a incerteza da situação. Li um livro de Pema Chodron chamado Quando tudo se desfaz que me ajudou bastante. Acredito que essa crise toda tem sido uma verdadeira lição sobre como controlar as expectativas. Fingir ser um alienígena recém-chegado à Terra é uma provocação criativa muito popular. No entanto, você conseguiu escrever um livro inteiro sobre isso, com Os Humanos. Como se mantém criativo? Como encontra inspiração?
Frequentemente é fazendo coisas fora da escrita – tocar piano, ler, cozinhar, assistir a filmes antigos, à natureza, ou fazer perguntas ao meu cão maltês. Estamos fazendo esta revista sobre A Biblioteca da Meia-Noite com textos investigando cenários “e se...”. “E se a TAG não fosse um clube do livro, se seus criadores tivessem, não sei, decidido abrir um hotel na praia ou uma academia de ginástica.” E se você tivesse que escolher outra vida para você, qual vida seria?
O autor Matt Haig Kan Lailey
Eu gostaria muito de uma vida em que eu fosse um bom músico, já que abandonei o piano na adolescência e, às vezes sonho, com uma vida em que eu fosse o Elton John.
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E SE VENDÊSSEMOS VEGETAIS? Antes de ser um clube de livros, a TAG foi pensada como outros empreendimentos. Conversamos com o cofundador e CEO do clube, Gustavo Lembert, sobre os pensamentos que levaram à criação da TAG e sobre futuros possíveis
FERNANDA GRABAUSKA
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A caixinha que você abriu esse mês poderia não existir. Ou poderia ser uma caixinha de outra coisa. Tomás Susin, Arthur Dambros e Gustavo Lembert, os três garotos que resolveram fundar a TAG ao deixar a universidade, poderiam estar recebendo hóspedes no litoral catarinense ou mesmo manejando a produção e a entrega de alimentos orgânicos. É o que conta Gustavo Lembert, cofundador e CEO da TAG. Mas calma lá: embora houvesse outras ideias, os livros sempre estiveram na dianteira quando o assunto era a preferência do trio.
– Pensamos em trabalhar com produtos orgânicos ou entrar no ramo de pousadas em Santa Catarina, em lugares ainda não tão explorados para o turismo. Acho que fomos mais a fundo na ideia dos orgânicos, mas nenhuma dessas ideias me emocionava muito. Trabalhar com livros era um sonho de infância de Gustavo, acalentado em família – mais razão para que ele desse um empurrãozinho em direção à literatura como negócio: – Quando eu era pequenininho, falava para o meu pai que, quando ele se aposentasse, a gente abriria uma livraria juntos. Eu sempre dizia isso, desde que era super pequeno, é algo que sempre me brilhou o olho, lembra. Vale dizer que Antônio Augusto, pai de Gustavo, é um daqueles raros associados que já leram absolutamente todos os livros enviados pela TAG. Atualmente, inclusive, ele integra o rol de revisores da revista da TAG Curadoria. Mas e se o próprio Gustavo tivesse optado por não empreender com os amigos? Se pudesse abrir um livro na Biblioteca da Meia-Noite, ele provavelmente espiaria uma vida em que lutasse por uma educação de qualidade para mais brasileiros. – Sempre tive interesse em trabalhar com educação. Talvez a TAG vá abraçar esses desafios, talvez seja uma oportunidade de carreira para mim em um futuro distante trabalhar com educação de uma forma criativa. Tornar a educação mais acessível é um objetivo que sempre me interessou, oferecer educação de qualidade para quem não tem recursos. A formação dos jovens brasileiros é o que me atrai. É difícil falar de grandes arrependimentos quando sete anos de caminhada nos levam tão longe. Mas, se algo magoa um pouquinho que seja ao olhar para trás, esse algo é não ter atentado para que bonito foi o caminho percorrido: – Como nós começamos nós três (Tomás, Arthur e Gustavo), depois os dois guris que entraram (Álvaro Englert e Pablo Valdez) com muito pouco dinheiro de investimento na própria empresa, nós abrimos mão de muita coisa durante muito tempo. Eu acho que o clima 11
entre nós era de muita pressão. Todas as nossas economias, todas as nossas esperanças eram direcionadas para que a TAG desse certo. É claro que isso funciona como motivador, mas me chateia perceber que tantas conquistas, tantos bons momentos que aconteceram durante o caminho não foram celebrados pois estávamos estressados demais com o que estava por vir, conta Gustavo. – As noites sem dormir foram muitas e as possibilidades de falhar fundaram em si mesmas uma biblioteca de futuros assustadores. O que interessa, no entanto, foi a perseverança no intuito: estamos aqui, exatamente onde escolhemos. O futuro foi bom – e o porvir nos reserva tantos livros quanto celebrações. Que bom desejar que um livro jamais chegue ao final.
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Entrevista
ALERTA DE GATILHO
E SE EU NÃO TIVESSE PEDIDO AJUDA? Nora chega à Biblioteca da Meia-Noite porque desiste de si. Editora das revistas da TAG, Fernanda passou por uma situação semelhante – e conta aquilo que aprendeu
FERNANDA GRABAUSKA
Eu tinha vinte e dois anos e ocupava aquilo que se convencionou chamar de Um Bom Lugar: tinha um emprego de repórter no maior jornal da minha cidade e um namorado que me fazia suspirar. Pela primeira vez desde a formatura, dois anos antes, eu tinha dinheiro para ajudar nas contas de casa – na época, ainda morava com minha mãe – e para viver de forma quase que totalmente independente. Eu era jovem, bonita, cheia de amigos e de potencial. Era uma época de descobrir coisas: pouco a pouco, fui descobrindo muito do que eu era. Me sentia inteligente. Eu intuía que a reportagem era um meio lindo de entender o mundo, de fazer entender o mundo. Mas será que eu era boa? Aquele homem que me acompanhava tinha belos olhos azuis e falava de arte como quem fazia carinho. Mas será que ele me amava? 13
Nós precisamos caminhar muito, muito juntos para não tombar: se nos separarmos demais de quem nos rodeia, se deixarmos de nos reconhecer nos olhares dos outros e soltarmos as mãos, caímos. De repente, senti que tudo aquilo que eu amava virara meu inimigo incansável. Cada crítica ao meu trabalho era um passo para dentro: uma vontade dolorosa de fazer mais, de fazer melhor, de mostrar meu valor. O namorado que eu amava tanto constantemente me dizia coisas em que eu acreditava justamente por crer em amor recíproco: “tu não sabes te lavar, tu não sabes te vestir, tu és arrogante com o teu saber, tu deverias te calar”. Eu não trocava palavra com meu pai há mais de um ano, uma medida para afastar da mente o que machucava o coração depois do fim do casamento de vinte e três anos com minha mãe. Eu deixei de pedir ajuda. Eu resolvi que seria forte e que sairia daquilo tudo sozinha. Eu ia à terapia semana depois de semana e, sentada à frente de um homem careca que, por vezes, me mandava meditar, por vezes me mandava beber uísque antes de dormir, eu falava da vida como se não doesse. Era como viver dentro da letra de Fitter, happier, more productive, do Radiohead: eu frequentava a academia, resolvia meu trabalho fazendo meu melhor, eu doava meu coração sem esperar mais nada em retorno, apenas atenção. E eu queria morrer. Contei quarenta e sete dias em que, ao chegar do trabalho às três da manhã, eu abria a janela do quarto e pensava que a única coisa que se punha entre mim e uma queda do sétimo andar não era morrer. Era não morrer. Entre frequentar a academia obsessivamente e não comer de nervoso, cheguei a pesar trinta e sete quilos. Conseguia trabalhar expedientes inteiros, as oito, nove, dez horas em que por vezes se trabalha em um jornal, aos prantos, sem que ninguém percebesse. Foi numa tarde de um dia indistinto que, ao ver minha mãe indo embora para o trabalho, eu disse “não”. “Por favor, não vai embora. Não vai embora porque, se tu fores embora, eu vou me atirar da janela”. 14
Voluntariamente, passei quinze dias internada em uma clínica psiquiátrica. Li Anna Karenina, veja só que pouco apropriado, e uma pilha de revistas Placar. Testei remédios e descobri alergias. Conversei muito: com um psiquiatra, com minha mãe, com amigos queridos que mandaram carinho. Voltei a conversar com meu pai. Acho que tudo aquilo que ressignifiquei com terapia intensiva e algum acolhimento – em especial das enfermeiras psiquiátricas, profissionais tão delicadas – eu só fui sentir anos depois. Algumas coisas, porém, eu aprendi de cara: pedir ajuda não diminui. Ter ficado confinada em um pátio com uma piscina vazia me ensinou que a vulnerabilidade é o que nos salva. Ao deixar a clínica, cuja fachada parecia um colégio de freiras, consegui olhar para a minha rede de apoio pela primeira vez como isso mesmo: uma rede de apoio. Nunca esqueci do abraço que recebi do meu editor ao voltar à redação: um olhar como o de um pai espantado, “tu voltaste, tu estás aqui”. A promessa de pedir mais ajuda, sem julgamentos. A retomada lenta e estável de uma relação na qual eu, de fato, era filha, e não uma espécie de mediadora de meus pais. O amor de todos os meus amigos. O primeiro passo para sair do relacionamento triste em que eu estava. Hoje, eu posso dizer que ocupo aquilo que se convencionou chamar de Um Bom Lugar: há quase quatro anos, faço o que eu mais amo (isso aqui, escrever para você) cercada de uma equipe incrível. Sou cercada pelo amor da família que tenho e da família que escolhi: dois cães vira-latas, algumas plantas resilientes, um namorado que sorri e empacota a barraca se eu inventar de pedalar duzentos quilômetros até a praia e com quem, quando discordo, discuto – até agora, ficou sempre tudo bem. Eu nunca quis tanto estar viva. Eu buscava tanto ser forte, buscava tanto me provar. Não sabia que a gente prova o nosso valor toda vez que pede ajuda. Eu queria a admiração daqueles que me rodeavam, pessoas cuja atenção me era tão, tão cara. Acontece que, para ser alguém admirável, precisamos de pessoas que caminhem conosco com amor. Se eu não tivesse pedido ajuda, é algo que eu jamais teria descoberto. 15
E SE EU NÃO ESCREVESSE? Pedimos à escritora e professora cearense Socorro Acioli um exercício de imaginação: e se ela tivesse decidido não escrever?
SOCORRO ACIOLI
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A fila para a inscrição do vestibular era imensa, horas de espera, tempo o suficiente para imaginar o resto da vida. A inocência juvenil nos leva a pensar que é assim: projetamos o futuro, as coisas acontecem naquela ordem e podemos, a partir disso, tomar a melhor decisão. Alguém deveria explicar pra gente, muito cedo, que viver é, sobretudo, aprender a lidar com o inesperado e inventar tudo de novo. Mesmo no susto. Naquele dia, eu ainda achava que poderia deduzir o que estava por vir. Todos nós somos cobaias inocentes de uma aventura. Os adolescentes da fila variavam entre os que não faziam a menor ideia do curso que escolher e os que nasceram sabendo exatamente a profissão ideal para suas vidas. O fato é que um quadradinho abaixo ou acima mudaria a rota inteira, essa era a sensação.
Ninguém sabe decidir isso com dezessete anos. Eu mesma, naquele dia, poderia ter marcado muitas coisas que me fariam mais ou menos feliz do que sou hoje. Na vida real não há qualquer prévia, é só isso mesmo: a cara, a coragem, a caneta nos quadradinhos. Minha situação não era das mais graves. Depois de descartar várias possibilidades, fiquei entre duas opções: a Medicina e o Jornalismo, uma divisão radical nos interesses. Fui a fila inteira imaginando coisas como entrevistar a Madonna versus operar uma cabeça, participar de uma coletiva com o presidente eleito versus salvar a vida de uma criança, apresentar o Jornal Nacional versus segurar um fígado na mão. Faltavam duas pessoas para chegar a minha vez no atendimento do balcão. Marquei Jornalismo. Mas e se eu tivesse marcado Medicina? Toda boa história começa com um bom “e se”. Eu faria o curso como todo mundo faz: exausta, me desdobrando para dar conta de aprender tantas coisas. Mas, lá pras tantas, eu seria muito influenciada por um professor especialista em Medicina da Família, criador de um projeto de atendimento nas comunidades, casa a casa, que acabara de chegar de uma vivência de seis anos em Cuba. Certamente eu iria pedir para fazer parte como voluntária, iria adorar ouvir as suas histórias de como improvisou um torniquete, uma sutura, os milagres que acontecem quando alguém quer fazer muito mesmo tendo pouco. O primeiro dia de estágio na equipe dele seria a entrada em uma comunidade muito pobre e desprovida de atendimento. Frio na barriga, medo e expectativa, um número grande de consultas, a triste constatação de que falta o básico, mas que o mínimo que fazíamos valia muito. Certamente eu choraria voltando para casa. Meu professor perceberia e conversaria comigo sobre a missão que é a Medicina e aquela conversa marcaria meu caminho. Depois de formada, cada vez mais envolvida com o atendimento das famílias, eu iria me inscrever nos MSF, Médicos Sem Fronteiras. E meu currículo seria muito 17
bem avaliado, pois meu envolvimento com a medicina comunitária começou cedo, já eram alguns anos de experiência. Então eu iria para a África. Mais especificamente para Nampula, em Moçambique, colaborar com um programa de vacinação e atendimento pediátrico emergencial. Consigo ver tudo: minhas roupas, meu corpo, o boné, o colete da organização, a estupefação diante do que estava na nossa frente, como pode o mundo ser tão desigual, os bebês nos meus braços, os olhos das mães e dos pais. De Nampula eu já iria para uma outra missão, em Luanda. Aprenderia de tudo: os dialetos, as lendas, a montar e desmontar barracas, a usar os argumentos certos para as famílias, a brincar de jogo do Oril. Aprenderia um pouco de outros idiomas também, por causa da convivência com os colegas do mundo todo. Enfermeiros, médicos, vários profissionais da saúde. Então, uns dois anos depois, minha chefe em Luanda me convidaria para um trabalho na Síria, uma outra conotação de conflito, outras questões entre as crianças. A essa altura eu já seria uma pediatra muito experiente e não recusaria um grande desafio, ainda mais sabendo que eu seria útil. Eu levaria livros comigo, sempre. E trocaria leituras com os colegas, ampliando cada vez mais minha visão de mundo. Nas férias, eu ficaria ali mesmo, pelo continente africano. Talvez fosse para Madagascar tirar uma foto na estrada de Baobás, a coisa mais linda que nunca vi. Meu hobby, além da leitura, seria a fotografia. Eu precisaria para os registros de casos e ilustração dos artigos científicos, mas também para guardar para sempre as imagens deslumbrantes que eu encontraria pelo mundo. Os baobás africanos, os cedros do Líbano, o mar, as ilhas. Provavelmente eu teria, também, um diário. Uma coleção crescente de cadernos onde eu iria escrever sobre tudo. E, em algum momento, eu sonharia: e se, ao invés de médica, eu tivesse sido escritora? Trabalhasse viajando, criando histórias, mergulhando na alma dos personagens? No fim das contas, a nossa verdadeira cura é o poder de imaginar. 18
Unboxing
PROJETO GRÁFICO A história deste mês é uma viagem literária por tudo aquilo que poderia ter sido: Nora Seed é agraciada com a chance de refazer seus passos e trocar sua vida por uma completamente nova. Mas, para além do enredo em si, o romance também fala muito sobre as oportunidades e possibilidades com as quais nos deparamos ao longo das nossas próprias trajetórias. Neste mês tão especial, no qual a TAG completa sete anos de aventuras através da ficção, convidamos o estúdio Foresti Design para representar os múltiplos universos da protagonista. Ao longo da leitura, você poderá identificar todos os elementos que aparecem na capa e na luva do kit. As páginas do livro também trazem mais de 70 ilustrações exclusivas inspiradas na obra. Além disso, a edição especial de aniversário conta com uma pintura trilateral verde, acabamento de luxo que deixa a caixinha ainda mais especial. Além de A Biblioteca da meia-noite, o Estudio Foresti é parceiro de longa data do clube: já assinou outras capas de livros enviados pela TAG Inéditos, como A única mulher (junho de 2019), O dia em que Selma sonhou com um ocapi (outubro de 2019) e Os sonhadores (abril de 2020). “No mundo dos designers gráficos, criar para a TAG é um daqueles sonhos que estão na lista dos trabalhos mais legais que existem por aí.” AS ILUSTRAÇÕES UTILIZADAS NA CAPA
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Próximo mês
VEM POR AÍ AGOSTO Divertido e sensível, o livro de agosto evidencia o que há de melhor no ser humano, trazendo à luz a nossa capacidade de empatia e amizade. Duas mulheres de gerações distintas confrontam a finitude ao mesmo tempo em que decidem rememorar suas trajetórias através de obras de arte. Para quem gosta de: emoção, encontro de gerações, amizade feminina
SETEMBRO Chega na TAG uma das maiores autoras dos nossos tempos, cujo romance de estreia vendeu mais de 20 milhões de cópias, tendo sido publicado em mais de 40 países e adaptado para o cinema em 2016. O livro de setembro, aguardado há anos pelos fãs, tem como ponto de partida um corpo descoberto em um barco, fato que desencadeia uma série de encontros entre personagens complexos que têm suas vidas transformadas para sempre. Para quem gosta de: thrillers, mistérios, conflitos familiares
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Loja
“Talvez querer tudo signifique não querer nada.” – Sylvia Plath