"Menino mamba-negra" - Revista TAG Inéditos Nov/2021

Page 1

Menino mamba-negra


taglivros contato@taglivros.com.br www.taglivros.com

TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200

novembro de 2021

COLABORADORAS

RAFAELA PECHANSKY

JÚLIA CORRÊA

LAURA VIOLA HÜBNER

Publisher

Editora

Assistente

LUÍSA SANTINI JANUÁRIO

CAROLINE CARDOSO

PAULA HENTGES

LAÍS FONSECA

Assistente

Revisora

Designer

Designer

PÂMELA MAIDANA

LUANA PILLMANN

GABRIELA BASSO

Estagiária de Editorial

Estagiária de Design

Estagiária de Design

Impressão Impressos Portão Capa Leticia Quintilhano Revisão sensível desta edição Etiene Martins


OLÁ, TAGGER Na apresentação da obra de Nadifa Mohamed presente nas páginas a seguir, descobrimos que Jama, protagonista de Menino mamba-negra, tem a vida marcada pelo deslocamento forçado, que o deixa à mercê da truculência dos colonizadores europeus. Ao mesmo tempo, destaca a jornalista Iarema Soares, que assina o texto, uma linha quase invisível de esperança atravessa o enredo em momentos mágicos, “permeados por um lirismo envolvente”. Nadifa Mohamed nasceu na Somália e migrou na infância para a Inglaterra. A própria autora, portanto, vivenciou a experiência da diáspora, comum a tantos indivíduos somalis que, ainda hoje, sofrem com traumas da colonização, com guerras civis e com o fundamentalismo religioso. Para entendermos o cenário desse país localizado no leste africano, pano de fundo para importantes momentos da trama, convidamos Paulo Roberto Baqueiro Brandão, professor na Universidade Federal do Oeste da Bahia, a contextualizar os aspectos históricos e geopolíticos mais relevantes da região. Se a crise humanitária é persistente por lá, diz ele, não podemos esquecer da "capacidade de resistência e de luta" de seu povo. Convidamos também a tradutora Marina Della Valle a explicar o significado de expressões somalis frequentes em Menino mamba-negra. Embora escreva em inglês, Nadifa Mohamed recorre à língua materna para imprimir potência poética em seu romance. E é com essa poesia que a autora é capaz de transmitir a mensagem de esperança, ainda que tênue, que permeia a sua obra. Boa leitura!


Unboxing

PROJETO GRÁFICO Letícia Quintilhano é a designer responsável pelo projeto gráfico do kit. Quem figura a capa é o personagem principal, Jama, em um fundo em tons de laranja que busca simbolizar o calor presente em toda a narrativa. O menino é representado com seu rosto atravessado por um contorno sinuoso fazendo referência à cobra mamba-negra, elemento importante para a história e que nomeia a obra. A luva foi criada a partir de padronagens de tecidos utilizados pela cultura somali e a revista também rememora a mamba-negra, porém, dessa vez, sem evocá-la diretamente, utilizando apenas de suas escamas para criar um padrão.

MIMO Além de ser o pedido favorito do tagger (livro em dobro!), o mimo do mês é o fechamento perfeito do kit de novembro, construído para homenagear a autoria negra. Escritos negros: textos contemporâneos reúne reflexões de grandes nomes da atualidade como Jeferson Tenório, Teresa Cárdenas e da própria autora do mês, Nadifa Mohamed, em uma edição exclusiva e inédita. Ao final do livro, você encontra uma lista de verbetes sobre algumas das referências mencionadas nos textos.


SUMÁRIO 5 O livro do mês

9 Leitura atenta

12 Somália: um país em busca de um destino

16 Próximo mês



O livro do mês

A DIÁSPORA DE JAMA Nadifa Mohamed une a poesia falada e a literatura escrita em romance inspirado na trajetória de seu próprio pai

IAREMA SOARES

Recorte da capa de Menino mambanegra Leticia Quintilhano

Prepare-se, busque fôlego e comece sua jornada neste livro que é uma mescla de romance histórico com contos de aventura. Ao se deparar com a primeira página de Menino mamba-negra (2010), o leitor deve estar ciente de que precisará lidar com a opacidade e a crueldade de uma vida marcada pelo deslocamento forçado, mas também com momentos mágicos, regados por sorte e permeados por um lirismo envolvente. O livro, escrito pela somali-britânica Nadifa Mohamed, nos pega pela mão e, por meio de sua narrativa arrebatadora, nos guia até guerras, travessias de desertos e mares, enclausuramentos e, assim, nos vemos frente à perversidade do processo da colonização na África. Em meio a essa terra inóspita, encontramos — juntamente com Jama, o protagonista — pequenos oásis constituídos por amizades temporárias que servem de impulso para que o personagem siga em frente em busca daquilo que não é oferecido ou encontrado onde se está. O enredo é baseado na vida do pai de Nadifa, que foi marinheiro mercante pela Grã-Bretanha. A trajetória do personagem Jama é marcada por rupturas trágicas logo no início de sua vida. Isso faz com que o garoto, ainda na infância, saia mundo afora em busca daquilo que seu coração e sua mente dizem que é necessário alcançar. A história do protagonista começa a ser narrada em 1935, 5


em Aden, no Iêmen. Porém, este é somente o ponto de partida da criança nômade que passa por Abissínia, Eritreia, Sudão, Palestina e Egito até alcançar o Reino Unido em uma peregrinação que se estende aos anos 1940. O romance é narrado em terceira pessoa pela voz da filha de Jama, que reside em Londres no ano de 2008, mas que está determinada a contar e cantar a vida de alguém que sobreviveu a toda brutalidade à qual a África foi submetida pelos países europeus. Com o avançar das páginas, o tom épico da história se acentua e isso não é à toa. Inclusive, foi explicitado pela narradora logo no primeiro capítulo. Ela confessa que se propõe a ser uma griô do próprio pai. Ou seja, ela vai louvar essa figura paterna, porque essa é uma das funções dos griôs — eles narram poesias de louvor. Ao mesclar a poesia falada com a literatura escrita, Nadifa coloca em diálogo duas vertentes que a constituem como mulher negra em diáspora. Em diáspora porque sua presença na Inglaterra se deve à guerra que eclodiu em seu país natal quando ainda era uma criança. A palavra escrita, suporte usado para verbalizar a história que ela deseja contar, foi aprendida na Inglaterra, porém, o modo como isso é feito remete à poesia feita em seu país de origem. Além da forma como o enredo é relatado, ganha destaque a perspectiva pela qual a vida de Jama é contada. Por ser fruto dessa grande geração de romances pós-coloniais, Menino mamba-negra não é, necessariamente, sobre quem subjugou a vida dos somalis, mas sobre esses desconhecidos que foram ameaçados e coagidos, sobre essa geração de meninos que nada tinham e sobre os impactos provocados pelas colônias europeias na África. Para o mundo, Jama era ninguém e, por se encontrar nesse não-lugar, o garoto se esgueira pelas ruas em busca de trabalho, comida, algumas moedas e um teto. Após um evento trágico — um entre tantos outros que viriam —, o protagonista se veste de coragem e de motivação para sair em busca de um encontro, mas também atrás de esperança de novas perspectivas. Nessa peregrinação, ele desbrava a África, o Oriente Médio e chega 6


até a Europa. Obstáculos quase intransponíveis se agigantam diante dele, mas o personagem nunca deixa de seguir em frente. Jama é nômade por sobrevivência, e tais andanças catapultam o protagonista para uma série de desventuras e aventuras. A pé, de trem, de caminhão ou de navio, o garoto está sempre em movimento, não para, não tem uma noite tranquila de sono e não tem certeza sobre a sua segurança durante o dia, quando está à mercê da truculência dos colonizadores. Aliás, essa é uma perspectiva importante carregada por Nadifa. Ela inverte a narrativa hegemônica sobre os somalis trazendo para o centro da atenção o caos e a violência provocados pela presença europeia na África. A política tirana de intimidação e de humilhação é colocada como o agente causador das tragédias vividas por milhares de pessoas negras. A causa da migração forçada vivida por milhares de pessoas tem um fenótipo definido, e ele é branco. Por isso, as guerras entre italianos e britânicos — que arrastaram para dentro de suas respectivas tropas homens e meninos negros — não são apenas pano de fundo para o que é narrado da vida de Jama. Esses conflitos são a causa do que é contado, responsáveis por colocar dezenas de famílias nômades no caminho do protagonista. Por estar eternamente em diáspora, ainda muito jovem Jama viu de perto as vítimas da ocupação italiana do líder fascista Benito Mussolini na Eritreia e, posteriormente, se juntou à massa de homens que trabalhavam no navio que transportava refugiados judeus de campos de concentração alemães. Ao trazer o viés somali, bem como ao descrever o quanto a guerra branca travada em território africano era cruel e uma verdadeira máquina de moer sonhos, Nadifa rompe com a desajustada relação de poder alicerçada séculos atrás pelos europeus. Relação essa que busca estender seus tentáculos de dominação ainda hoje por meio do reforço de um discurso paternalista sobre os fatos, mas que ao mesmo tempo exime os culpados de suas responsabilidades. Ao mesmo tempo em que o livro é cortante por fazer um menino franzino atravessar situações difíceis, nas 7


A autora, Nadifa Mohamed Sean and Seng/Penguin Randomhouse

8

quais ele tenta se esgueirar da fome, da morte e da violência, a história é permeada por uma linha quase invisível de esperança, mas que se faz presente nos momentos de extremo apuro. Essa costura delicada é adornada pelo lirismo cinematográfico de Nadifa, pois é ele quem dá fôlego à história, pois, quando tudo parece perdido, entra em ação o fantástico. Menino mamba-negra é o livro de estreia de Nadifa Mohamed. Com essa obra, ela ganhou o prêmio Betty Trask, foi cotada para o Prêmio Orange e indicada aos prêmios Guardian First Book, Dylan Thomas, John Llewellyn Rhys e PEN/Open Book Award. Além disso, foi elencada entre os Melhores Jovens Romancistas Britânicos de 2013 pela revista Granta, renomada publicação literária inglesa. O segundo romance da autora, O pomar das almas perdidas (2013), segue a mesma linhagem familiar e se passa em Hargeisa, capital da Somália, no final da década de 1980, período da guerra civil do país. No enredo, a vida de três mulheres se cruza em uma história que registra as brutalidades contra essas mulheres, mas também as praticadas por elas. Nadifa Mohamed nasceu em Hargeisa, em 1981. Porém, mudou-se ainda criança para a Inglaterra, em 1986, quando a guerra estourou na Somália. No Reino Unido, ela estudou História e Política na Universidade de Oxford. A escrita de Nadifa despontou como um expoente da nova geração em uma antologia do projeto Africa39, em 2014. A iniciativa nomeou os 39 escritores mais promissores com menos de 40 anos com potencial e talento para definir tendências no desenvolvimento da literatura da África e da diáspora africana. O mapeamento destes autores levou a construção do livro Africa39: New Writing from Africa South of the Sahara, que conta ainda com nomes como Chimamanda Ngozi Adichie e Taiye Selasi.


LEITURA ATENTA O livro de novembro traz uma série de palavras do vocabulário somali que podem ser desconhecidas dos leitores brasileiros. Por isso, pedimos a Marina Della Valle, tradutora de Menino mamba-negra, que explicasse o significado das expressões mais recorrentes na obra de Nadifa Mohamed. Confira a seguir.

A

Abtiris: ancestrais Alaaqad: xamã Anjero: pão fermentado somali típico Aqal: tipo de oca de palha e peles Arbegnoch: literalmente “patriotas”, eram membros da resistência etíope na África Oriental italiana (conhecidos aos italianos como shiftas) Askari: soldado Ayah: babá

B

Barako: bênção Barwaaqo: prosperidade Bawab: porteiro/zelador Bedu: habitante do deserto Bismillah: “em nome de Deus”, interjeição árabe

C D

Choli: blusa curta usada junto com um sári Dabke: dança folclórica típica Darbucka: instrumento musical de percussão Dhow: veleiro tradicional usado no Mar Vermelho e no Oceano Índico

F

Ferengi: forasteiro Futo: veste que envolve as pernas, masculina

G

Gaadhi dameer: condutor de jumento Gabay: poema épico 9


G

Gali gali: de rua Gumbo: quiabo Guntiino: veste

H

Habashi: membros de grupos étnicos falantes de línguas semíticas que habitam principalmente a Etiópia e a Eritreia Hajj: peregrinação a Meca durante o mês de Dhu al-Hijja Halwa: doce típico da Ásia Ocidental e arredores Hammal: carregador Haram: algo proibido pela fé islâmica Hooyo: mãe

J

Jannah: paraíso Jinn: na mitologia árabe, um espírito sobrenatural abaixo do nível dos anjos e demônios

K

Kaahin: vidente Kitab: livro Khol: pó preto, geralmente sulfeto de antimônio ou sulfeto de chumbo, usado como maquiagem dos olhos

M

Maalin wanaagsan: bom dia Ma’awis: peça de roupa masculina somali tradicional, parecida com um sarongue Mansaf: prato tradicional árabe feito de cordeiro cozido em molho de iogurte seco fermentado e servido com arroz ou bulgur Meher: dote Miskiin: pobre, coitado Mukhadim: dono das terras, patrão Mêlée: uma situação especialmente confusa

N

Nabad: paz Nikaab: véu que cobre o rosto, exceto pelos olhos, usado por mulheres muçulmanas

P 10

Paisa: centavo (da rúpia) Punkahwallah: serviçal


Q R

Qat: planta que, mascada, produz euforia Rababa: instrumento musical de cordas

S

Saar: espírito Sadhu: eremita Saqajaan: pessoa gananciosa Sambo: termo depreciativo e ofensivo para se referir a pessoas negras Shamma: veste estilo toga Sharshuf: veste Shayddaan: demônio Shifta: bandido/guerrilheiro Suldaan: sultão, em árabe, usado especialmente na região somali Suq: mercado

T

Tahrib: migração Tarboosh: chapéu estilo fez Tobe: tunica somali Tukul: casa redonda Tusbah: conjunto ou cordão de 33, 66 ou 99 contas de oração usadas pelos muçulmanos como um auxílio de contagem na recitação dos 99 títulos de Alá e na meditação

W

Wadaad: religioso Wagar: escultura sagrada da mitologia somali Wallahi: "juro por Deus" Walaalo: irmão

Y

Yahudi: judeu Ya salam: expressão de surpresa Yalla: vamos Yeshiva: instituição que se foca no estudo dos textos religiosos tradicionais, principalmente o Talmude e a Torá 11


Para ir além

SOMÁLIA: UM PAÍS EM BUSCA DE UM DESTINO Terra de origem da autora e do protagonista do livro deste mês, localidade é marcada por persistente crise humanitária

PAULO ROBERTO BAQUEIRO BRANDÃO

12

A recente eclosão de mais uma instabilidade política no Afeganistão eleva a curiosidade da opinião pública sobre temas geopolíticos e, com isso, invariavelmente a lembrança da Somália também vem à tona. O paralelismo é justificável, pois ambos os países têm suas histórias marcadas pelo colonialismo europeu, foram palcos de conflitos típicos da Guerra Fria e suas sociedades vivem sob constante ameaça do fundamentalismo político-religioso. Mas as paridades cessam por aí. A despeito das convergências apontadas, nos últimos pouco mais de trinta anos as histórias desses países bifurcam-se: enquanto o Afeganistão passou por duas décadas sob tutela das potências ocidentais, exercendo certa centralidade na pauta geopolítica de países como EUA, China e Rússia, no caso da Somália, tão logo a incursão das forças de segurança que visavam levar ordem em meio à guerra civil ocorrida na década de 1990 tenha fracassado, a sociedade somali foi praticamente deixada à própria sorte, obtendo apenas um certo amparo protocolar da ONU. Embora para ambos os países a tragédia seja igualmente dramática, a intervenção estrangeira fez uma notável diferença quando se considera os efeitos de uma suposta normalidade das instituições, de um lado, e do seu quase total desaparecimento, do outro. O escritor Nuruddin Farah certa vez afirmou que a Somália é uma nação órfã. De fato, considerando apenas


Bandeira nacional da Somália

o período pós-independência, ocorrida em meados do século XX, esse país localizado no Chifre da África, uma das posições mais estratégicas para o controle da navegação no Oceano Índico desde a Antiguidade, já passou por conflitos internos e externos, tragédias naturais, crises migratórias e desmembramentos territoriais, resultando em um processo de ingovernabilidade que o transformou em um pária geopolítico entre o final do século XX e início do século XXI. A controversa história da Somália independente teve início em junho de 1960, quando a autodeterminação sobre um território até então dividido entre o Império Britânico e a Itália finalmente foi alcançada. Contudo, apesar da criação de um Estado para os somalis, essa etnia ocupa também alguns territórios na Etiópia, no Quênia e em Djibuti, algo comum em um continente onde grande parte das fronteiras foi definida ainda no período colonial para atender a interesses imperialistas. Tal estratégia acabou por separar irmãos e juntar rivais históricos, sendo, portanto, a razão de muitos dos conflitos contemporâneos na África. A própria bandeira nacional do país reflete a aspiração pela unificação dos povos somalis sob o nome de Grande Somália: uma estrela branca repousando em campo de um vivo azul cujas cinco pontas representam os territórios historicamente ocupados pela etnia, ou seja, o Distrito Norte do Quênia, as províncias etíopes de Haud e Ogaden, além das antigas colônias europeias denominadas Somalilândia Britânica (atual Somalilândia independente, mas não reconhecida pela comunidade internacional), Somália Francesa (atual Djibuti) e a Somália propriamente dita, antes ocupada pelos italianos. O engajamento e esperança da sociedade somali com a independência logo foram transformados em uma profunda frustração gerada por continuadas crises institucionais e econômicas e até por grandes desastres naturais que contribuíram para alastrar a fome no país. Em menos de uma década de independência, a Somália vivenciou a formação e a dissolução de uma frágil aliança entre clãs, surgimento de organizações separatistas no 13


norte, não reconhecimento de resultados eleitorais, traições partidárias, além do assassinato de Abdirashid Ali Shermarke, presidente democraticamente eleito e, como consequência direta, a proclamação de uma ruptura institucional que levou o militar Siad Barre ao status de ditador. Imerso nesse emaranhado político-institucional, o novo dirigente implantou um governo de contornos socialistas, o que levou a Somália a receber apoio logístico, financeiro, militar e técnico-científico da União Soviética, potência que visava fazer frente às pretensões estadunidenses no Chifre da África e entorno do Golfo de Áden, a estratégica passagem do Oceano Índico para o Mar Vermelho e, daí, ao Canal de Suez. Contudo, diante do realinhamento de Moscou com o governo etíope, que recém depunha o mítico Haile Selassie, a Somália deixou de ser o parceiro preferencial dos soviéticos, levando Siad Barre a uma aproximação com os EUA. Os apoios dados pelas grandes potências antagônicas elevaram o tom das animosidades entre Somália e Etiópia, o que acabou resultando na deflagração do conflito armado que ficou conhecido como Guerra do Ogaden (1977-1978). Se para as grandes potências o confronto era visto apenas como mais um capítulo da Guerra Fria, que já havia produzido milhares de vítimas mundo afora, para a Somália resultou em uma fragorosa derrota e, como consequência, em novos períodos de crises econômica, política e humanitária. Os anos seguintes foram de carestia e repressão política para a população somali: o transcorrer da década de 1980 não foi suficiente para garantir a recuperação econômica, política e militar do país, muito menos os danos e perdas impostos aos cidadãos diretamente afetados e o orgulho de toda a sociedade diante da estrondosa derrota no conflito somali-etíope. O descontentamento foi logo transformado em resistência ao regime de Siad Barre e este, por sua vez, reagiu com mais repressão, criando uma situação de generalizada 14

OCEANO ATLÂNTICO

Legenda Região leste Somália


Somália

OCEANO ÍNDICO

Mapa do continente Africano

hostilidade que resultou na sua própria deposição, em 1991, e em uma dolorosa guerra civil que matou cerca de 800 mil somalis e precipitou a separação da Somalilândia. O estado de ingovernabilidade deu margem à criação da União dos Tribunais Islâmicos, atualmente conhecida como Conselho das Cortes Islâmicas, organização formada por líderes fundamentalistas que assumiu papeis tradicionalmente delegados ao judiciário e às forças policiais, reunindo, portanto, juízes e executores de penalidades baseadas na Sharia, que é uma espécie de jurisprudência fundamentada em interpretações, neste caso, extremadas dos preceitos islâmicos. Esse poder paralelo é responsável por milhares de assassinatos e severos castigos corporais, incluindo mutilações. Nos anos mais agudos do conflito – entre o final da década de 1990 e meados dos anos 2000 – a ONU, a União Africana, o governo etíope e uma coalização militar liderada pelos EUA foram responsáveis por intervenções humanitárias ou militares, mas nada foi capaz de refrear a voracidade dos senhores da guerra que assumiram o poder. Essa aparentemente interminável escalada de violência tornou o país inviável para qualquer tipo de reorganização interna e a consequência mais dolorosa da guerra civil e da anomia vigente é a persistente crise humanitária que transforma milhões de pessoas em vítimas da fome severa, incluindo cerca de 850 mil crianças com menos de cinco anos. Enquanto isso, outros milhões de somalis são lançados na dramática aventura da migração. A Somália é, hoje, um país em busca de um destino. Distante milhares de anos das glórias do Reino Punt, que tanto encantou os antigos egípcios com sua mirra, marfim e perfumes de qualidade inigualável, é um país cujas marcas da violência e desesperança insistem em não cicatrizar. No entanto, resumir a Somália às suas vicissitudes históricas é relegar o país a uma condição de irremediável inviabilidade, algo que a sociedade somali, com sua capacidade de resistência e luta pela vida, demonstra não ser nada além de um falso truísmo.

15


Próximo mês

VEM POR AÍ DEZEMBRO Raça, romance e Brexit: neste livro, escrito por um dos maiores escritores britânicos da atualidade, duas pessoas se encontram em um contexto de turbulência política. À primeira vista, os dois não poderiam ser mais diferentes. Ele é bem mais jovem, ela tem dinheiro; ele é negro, ela é branca; ela é engajada politicamente, ele está preocupado com a sua carreira de DJ. Mas o que parecia um encontro casual vai dando espaço a algo sério enquanto o Reino Unido passa por uma polarização política sem precedentes. Para quem gosta de: imbróglios amorosos, discussões políticas, livros contemporâneos

JANEIRO Para abrir 2022 em grande estilo, convidamos o associado da TAG a viajar até a cidade de Jaipur, na Índia. Também será uma viagem no tempo: seremos transportados para os anos 1950 para acompanhar a história de duas irmãs tentando navegar a vida de luxos e intrigas de uma sociedade presa no meio do caminho entre tradição e modernidade. As protagonistas terão de responder: O que você seria capaz de sacrificar pelo seu bem mais precioso? Até onde você iria pela sua independência? Para quem gosta de: outras culturas, protagonistas mulheres fortes, intrigas e fofocas

16


17


“Ali, no centro daquele silêncio, não estava a eternidade, mas a morte do tempo e uma solidão tão profunda que a palavra em si não tinha qualquer significado.” – Toni Morrison 18


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.