"Em fogo lento" - Revista TAG Inéditos Set/21

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Em fogo lento 1


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TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200

setembro de 2021

COLABORADORES

RAFAELA PECHANSKY

LAURA VIOLA HÜBNER

Publisher

Assistente

LUÍSA SANTINI JANUÁRIO

CAROLINE CARDOSO

Assistente

Revisora

PAULA HENTGES

GABRIELA BASSO

Designer

Designer

Impressão Impressos Portão 2

LAÍS FONSECA Designer

Diagramação Gabriela Heberle


OLÁ, TAGGER Londres, um barco, um corpo esfaqueado: o livro que chega à sua casa neste mês de setembro é um thriller da melhor qualidade. Considerada uma das mestras do suspense contemporâneo, Paula Hawkins traz neste livro um mosaico de personagens complicados e uma história à la Agatha Christie. Quem matou Daniel? Descobrir a resposta para esta pergunta é o desafio que propomos ao leitor. Trata-se de um lançamento em primeira mão pela TAG no mesmo mês em que o livro chega às livrarias na Inglaterra (leia a última frase em tom animado, porque este é o nosso sentimento!). Para a revista, trazemos um mapa de Londres com as localidades citadas no livro (recomendamos a consulta para fins de expansão da experiência), uma entrevista com a autora (!) e uma análise do pesquisador Guilherme Almeida sobre os fenômenos (literários e cinematográficos) que colocam a mulher – às vezes como vítima, às vezes como heroína - no centro das narrativas de suspense. Por fim, a revelação (de um segredo nosso, não se preocupe com spoilers): enviar um livro inédito de Paula Hawkins aos nossos associados é um antigo sonho da TAG. Literalmente há anos idealizávamos o dia em que os taggers receberiam uma obra da mesma autora que encantou incontáveis leitores com A garota no trem (2015), livro que vendeu mais de 15 milhões de cópias pelo mundo. Um brinde aos bons thrillers e aos sonhos que se tornam realidade!


Unboxing

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Em fogo lento traz uma narrativa sobre assassinato, passados misteriosos e reviravoltas inesperadas. Finalizada a leitura, ficamos nos perguntando: como representar o suspense da história em uma edição inesquecível para os taggers? Foi quando o time de Design da TAG teve a ideia de elaborar uma capa inspirada nas histórias em quadrinhos, estética de ilustração utilizada por um dos personagens: “[...] ainda havia alguns objetos pessoais em seu antigo quarto, cadernos de desenho, principalmente. Ele era um artista talentoso. Ilustrava histórias em quadrinhos, sabe. Em formato de livro”. Os elementos ilustrados na capa representam pistas que permeiam a busca pela resolução do assassinato — como o barco, o chaveiro, o relógio, a faca e a medalha. A máquina de escrever, por sua vez, alude às passagens de Aquela que escapou, livro fictício, enquanto a placa de Londres ambienta o cenário na capital inglesa. Para a luva, além dos desenhos em quadrinhos, escolhemos criar uma padronagem tipográfica com a mesma fonte estilizada do título. Em detalhes que lembram metal e madeira, as letras apresentam uma certa dissonância, remetendo à tensão dos desdobramentos narrativos. Misturando tons de vermelho, amarelo queimado e roxo, a paleta de cores também faz referência ao sangue e a folhas de livros antigos.

Nesta história, nada é o que aparenta ser. Por isso, desenvolvemos um mimo que é peça-chave para solucionar o mistério da trama: um chaveiro personalizado no formato de pássaro e feito em metal, mas com textura e cor de madeira. A embalagem, visualmente parecida com uma caixinha de fósforos, evoca diretamente ao título da obra. Esperamos que você goste do kit!


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A ponta do iceberg

Entrevista com Paula Hawkins

De vítimas a protagonistas

Mapa de Londres

Próximo mês



O livro do mês

Recorde da box de Em fogo lento Design TAG

EM FOGO LENTO DÉBORA SANDER

Quando tomamos conhecimento de um crime terrível, surge em nós um misto de aversão com uma estranha curiosidade mórbida. Se na vida real queremos distância de potenciais criminosos, é na arte que podemos nos sentir seguros para buscar compreender o que pode construir a mente de um assassino. Na literatura e no cinema não faltam exemplos de obras-primas que mobilizam a mesma pergunta: como uma combinação de acontecimentos pode marcar a vida de uma pessoa a ponto de ela estar disposta a matar? Esta também é a questão incitada por Paula Hawkins no livro deste mês. 5


HAWKINS

Em fogo lento é um thriller psicológico ambientado em Londres, e desenrola uma investigação sobre o assassinato brutal de Daniel Sutherland, um jovem de 23 anos encontrado por sua vizinha Miriam Lewis em uma casa-barco no Regent’s Canal. A principal suspeita do crime é Laura Kilbride, uma garota de 25 anos que foi vista deixando o local do crime. Com um histórico de registros na polícia por situações de violência causadas por seu temperamento explosivo e inconsequente, tudo aponta contra Laura. A jovem, no entanto, tem uma condição psicológica particular em decorrência de um grave acidente sofrido na infância. A equação do mistério fica cada vez mais complexa quando entram em jogo as perspectivas de outros O NOVO THRILLER ABRASADOR DA personagens: Carla Myerson, tia e única familiar viva AUTORA BEST-SELLER DE A GAROTA de Daniel; ex-marido NO TREM seu E EM ÁGUAS SOMBRIAS Theo, um famoso escritor de romances criminais; Angela Sutherland, mãe de Daniel, falecida dois meses antes do assassinato do garoto; e sua vizinha amiga Irene, uma senhora expansiva e “QUAL É OeSEU curiosa que vai desvendando junto ao leitor os fatos PROBLEMA?” que envolvem o passado família e que, gradualmente, Laura passou a maior parte da vida da O NOVO THRILLER ABRASADOR DA sendo julgada. Alguns a consideram AUTORA BEST-SELLER A GAROTA jogamuma luz sobre o enigma da morte deDEDaniel. pessoa esquentada, outros a enxergam como problemática, e todos NO TREM E EM ÁGUAS SOMBRIAS “Eua veem sou eu e minha circunstância, e se não salvo como uma alma solitária. ainda há os que a julguem capaz a ela,Edenão salvo a mim”, afirmou o filósofo espanhol cometer atrocidades. José Ortega y Gasset. Ao“QUAL anunciar É O SEU o lançamento de Miriam tem noção de que o simples fato de Laura ter sido flagrada Em fogo lento, a autora PROBLEMA?” do livro afirmou ter intedeixando o local de um crime cruel suja de sangue não passou a maior parte da vida quem somos. resse com ema roupa entender como Laura nos tornamos significa que ela seja assassina. Miriam sendo julgada. Alguns a consideram esquentada, outros a sabe, por experiência o que é uma pessoa Nas palavras deprópria, Hawkins, seu terceiro livro busca enxergam como problemática, e todos estar no lugar errado na hora errada. a veem como umatragédia alma solitária. “explorar o modo como nenhuma acontece de E ainda há os que a julguem capaz Carla está sofrendo com o assassinato de cometer atrocidades. formabrutal isolada”. Após de seu sobrinho. Ela não conquistar os holofotes em nível confia em ninguém: pessoas boas tem noção de que o simples mundial com o terríveis. sucesso deMiriam seus dois primeiros livros, são capazes de atos fato de Laura ter sido flagrada deixando o local de um crime cruel A garota nooutrem Em a autora oferece com asombrias, roupa suja de sangue não Inocentes culpadas,e todas são águas significa que ela seja assassina. Miriam perturbadas. Mas perturbadas a ao público uma nova trama de camadas e revisabe, repleta por experiência própria, o que é ponto de matar? estar no lugar errado na hora errada. ravoltas, narrada por múltiplos pontos de vista, com Carla está sofrendo com o assassinato brutal de seu sobrinho. Ela não personagens complexos e confia profundamente humanos. em ninguém: pessoas boas são capazes de atos terríveis. Ao longo da história, Paula Hawkins faz uso da Inocentes ou culpadas, todas são metalinguagem para incrementar as percepções do perturbadas. Mas perturbadas a ponto de matar? leitor sobre a trama. Assim, percebemos que a relação dos personagens com a literatura está presente em vários momentos da narrativa. A partir disso, a autora

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“QUAL É O SEU PROBLEMA?”

Laura passou a maior parte da vida sendo julgada. Alguns a consideram uma pessoa esquentada, outros a enxergam como problemática, e tod a veem como uma alma solitária. E ainda há os que a julguem capaz de cometer atrocidades.

EM foGo leNTo

Miriam tem noção de que o simple fato de Laura ter sido flagrada deixando o local de um crime cruel com a roupa suja de sangue não significa que ela seja assassina. Miri sabe, por experiência própria, o que estar no lugar errado na hora errada

desenha caminhos que ora dão pistas ao leitor, ora jogam com suas impressões e acrescentam novas Carla está sofrendo com o assassina seu sobrinho. Ela não camadas de complexidade à história. brutal Os demúltiplos confia em ninguém: pessoas boas pontos de vista são alternados com passagens do livro são capazes de atos terríveis. fictício Aquela que escapou. Registros de histórias em Inocentes ou culpadas, todas são quadrinhos criadas pela vítima do assassinato, perturbadas.Daniel Mas perturbadas a matar? Sutherland, também têm papel importanteponto na de narrativa. Miriam Lewis, a vizinha de Daniel, trabalha em uma livraria no Regent’s Canal e guarda um registro escrito de memórias traumáticas que viveu na adolescência e que marcaram sua vida. Irene, a vizinha da falecida Angela Sutherland, cultiva um apreço por livros de mistério, que costumava trocar com Angela. Sem reduzir seus personagens a algozes, vítimas ou salvadores, a autora nos apresenta suas histórias de vida. Enquanto nos deparamos com as incoerências, a rigidez, a impulsividade e o temperamento difícil de alguns personagens, pouco a pouco são expostos também os graves traumas, inseguranças, frustrações e sofrimentos solitários de cada um deles, derrubando os julgamentos e as pré-concepções do leitor. Antever a solução do complexo mistério que centraliza a trama do livro não é tarefa fácil, uma vez que os personagens de Paula Hawkins se assemelham a pessoas reais: por vezes, amáveis e bem-intencionados; em outras circunstâncias, insuportáveis até para si mesmos, moldados por suas feridas e traumas. Transtornados pela dor, quem deles seria capaz de matar? 7


DÉBORA SANDER

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Perfil

A PONTA DO ICEBERG

Ao ler as obras de Paula Hawkins, a sensação que temos é de que a autora escreveu thrillers durante toda a sua vida. Chama a atenção sua nítida habilidade em construir personagens consistentes e em descrever os paradoxos e as profundas marcas das relações humanas, além da minúcia da escritora ao introduzir detalhes estratégicos que instigam o leitor e desdobram viradas surpreendentes em suas histórias. Tais virtudes são dignas do extraordinário reconhecimento que Hawkins conquistou nos últimos anos, mas foram desenvolvidas em uma trajetória profissional não exatamente linear. A autora de Em fogo lento nasceu e cresceu no Zimbábue e migrou para Londres em 1989, aos 17 anos. Influenciada pelo pai, professor de economia e jornalista de finanças, ela estudou Filosofia, Economia e Ciências Políticas na Universidade de Oxford e trabalhou no jornal The Times cobrindo a área de negócios. Após alguns anos trabalhando como freelancer, publicou em 2006 o livro The Money Goddess: the complete makeover, um guia de finanças para mulheres. Em 2009, criou o pseudônimo Amy Silver, com o qual publicou quatro obras de comédia romântica a convite de uma editora. A baixa repercussão dos livros e a frágil situação financeira de Hawkins a levaram a arriscar sua cartada final na literatura em uma transição para o thriller, gênero que ela mesma gostava de ler. Somos todos gratos por essa última chance que a escritora deu ao ofício e que resultou no lançamento de A garota no trem (2015), um sucesso absoluto de vendas e crítica. A obra alcançou o primeiro lugar da lista de best-sellers do jornal New York Times e permaneceu 100 semanas no ranking, com 23 milhões de


A autora, Paula Hawkins Phoebe Grigor

exemplares vendidos em mais de 50 países. O thriller que lançou Paula Hawkins de uma vez por todas ao topo do mercado editorial foi traduzido para 46 idiomas e adaptado ao cinema em uma mega-produção estrelada por Emily Blunt. Dois anos mais tarde, a escritora publicou seu segundo livro do gênero: Em águas sombrias (2017) repetiu a impressionante marca de obra mais vendida na lista do New York Times e conquistou também o primeiro lugar entre os best-sellers do jornal Sunday Times, com 4 milhões de cópias vendidas. Os direitos do livro já foram adquiridos pela DreamWorks para ganhar uma adaptação para o cinema. Em Fogo lento, Paula Hawkins volta a oferecer ao público aquilo que ela faz de melhor: captura a atenção do leitor com uma narrativa profunda e desconcertante enquanto explora assuntos que tocam em problemáticas partilhadas por muitos de nós, mas que são frequentemente silenciadas. Em suas obras anteriores, a autora abordou temas como o alcoolismo e a violência física e social contra as mulheres. O livro deste mês passa por questões como traumas, perdas, conflitos familiares, solidão, abuso sexual e negligência parental, investigando como todas essas mazelas, quando associadas, podem levar a grandes tragédias. Uma das características que marcam os três thrillers de Hawkins é a narrativa de múltiplos pontos de vista -, o que pode tornar mais desafiador o trabalho do escritor, já que os enigmas e acontecimentos da trama são revelados de forma não necessariamente linear, mas também garante uma relação mais íntima do leitor com a subjetividade de cada personagem. Para a autora deste mês, é importante que mais de uma perspectiva dê voz à narrativa para que o público ouça um pouco de cada um. Ao chegar à última página de cada obra de Paula Hawkins, fica evidente que as tragédias ali narradas são apenas a ponta do iceberg de problemas sociais maiores, situando a escritora não apenas como uma autora de sucessos de vendas, mas como uma testemunha lúcida de seu tempo, que não abdica de exercer esse papel com sensibilidade e competência. 9


Entrevista

"EU SEMPRE TIVE UMA SENSIBILIDADE MACABRA"

FERNANDA GRABAUSKA

TAG – Você começou a escrever como jornalista e passou a autorar comédias românticas sob um pseudônimo. Como você acabou escrevendo uma história tão macabra como A garota no trem? Paula Hawkins – Eu sempre tive uma sensibilidade bem macabra – eu estava muito mais confortável escrevendo A garota no trem do que escrevendo comédias românticas. A voz de Rachel me pareceu autêntica de imediato, eu sabia que ela era o tipo de personagem com quem poderia viajar e tinha certeza de que, perturbada como ela era, seria o tipo de personagem que deixaria os leitores intrigados também. E você esperava que o livro fosse um hit? Como você diria que se sentiu quando quebrou o recorde, que antes era de Dan Brown, de livro que passou mais semanas no topo dos best-sellers? Não! Havia muita excitação sobre o livro antes da publicação, mas eu acho que ninguém esperava que o livro fosse ser tão bem recebido como foi. Foi uma época extraordinária para mim, e para ser perfeitamente honesta, olhando para trás, parece quase irreal. Em fogo lento joga outra vez com a inconfiabilidade da memória e com a instabilidade da confiança nos relacionamentos. Todos mentem. O que a motivou a explorar esses sentimentos outra vez? A realidade da memória é que ela é fundamentalmente inconfiável – confiamos nas nossas próprias memórias completamente, mas, se interrogarmos elas cuidadosamente, descobriremos que aquilo de que lembramos não pode ser tomado como verdade objetiva. Essa é uma ideia à qual eu retorno em todos meus livros, me parece

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que ela está no meio de muitos mal entendidos nos relacionamentos. Em Fogo lento, vemos personagens mentindo uns para os outros por muitas razões: algumas vezes em uma tentativa de proteger a si mesmos, porém, mais frequentemente na esperança de proteger uns aos outros. Às vezes, nós mentimos por amor. Laura, Miriam e Carla são três mulheres movidas por vingança: como você construiu essas personagens? Como concebeu as diferentes abordagens de vingança? Todas as três mulheres sofreram terríveis traumas no passado e todas as três tentaram seguir suas vidas de maneiras distintas. Eu não diria que Laura é motivada pela vingança: ela foi machucada, sofre de deficiências físicas e mentais, mas é essencialmente uma pessoa positiva, alguém que faz o seu melhor para seguir em frente. Ela falha frequentemente, mas não é amarga, não é vingativa. Miriam é muito diferente. Ela sente raiva e culpa; acima de tudo, ela sente impotência. Miriam fará quase qualquer coisa para ganhar de volta um pouco de poder sobre as pessoas que ela vê como inimigas. Carla também é diferente: ela passou anos tentando perdoar, tentando não ser vingativa; é uma batalha em andamento para ela. Eu achei que Irene era uma parte tão interessante da história, quase como uma espécie de Miss Marple –aparentemente ingênua, mas incrivelmente esperta no final das contas. Quais são seus sentimentos sobre Irene? Eu senti muita vontade de passar mais tempo com ela. Irene talvez seja minha personagem favorita do livro: ela é inteligente, curiosa, gentil e compreensiva. Também é uma leitora voraz – eu e ela temos o mesmo gosto por livros! Eu queria escrever sobre uma personagem mais velha que olha para frente ao invés de olhar para trás. É verdade que Irene sente muita saudade de seu marido e que lamenta a morte de sua amiga Ângela, mas ela não está conformada em decair lentamente até sua morte. Ela ainda quer fazer coisas e visitar lugares. 11


Falando da Miss Marple, Em fogo lento presta homenagem a vários livros e à própria ficção, já que tem literalmente um livro dentro de si. O seu sucesso editorial prejudicou a sua escrita e leitura? Do que você se alimenta para escrever suas histórias? Encontrar tempo para escrever enquanto fazia a turnê para A Garota no Trem foi com certeza difícil, mas não acho que o sucesso tenha prejudicado minhas leituras – pelo contrário, eu tenho lido uma maior variedade de livros. Eu fui apresentada a tantos autores novos, inclusive porque fui juíza no The Women's Prize, o que significou ler dúzias e dúzias de livros ao longo de alguns meses. Eu li tantos romances brilhantes enquanto escrevia Em fogo lento – é um pouco difícil escolher apenas alguns, mas fui inspirada pelo trabalho de Miriam Toews, Anne Enright, Jacqueline Woodson, Laura Lippman, Vendela Vida e Evie Wyld. Você pode mandar uma mensagem para os mais de 30 mil leitores brasileiros que estarão lendo seu livro em setembro? Olá, Brasil! Espero que vocês gostem de Em fogo lento e que encontrem algo em Laura, Carla, Miriam e Irene que intrigue e inspire vocês. 12

A ESTANTE DA AUTORA O primeiro livro que você leu: O primeiro?! Eu não tenho certeza se lembro. Pode ter sido algo como Beatrix Potter. Eu adorava suas histórias quando era pequena. O livro que você está lendo agora: Apeirogon, de Colum McCann. O livro que mudou sua vida: São tantos! O Conto da Aia, de Margaret Atwood, que eu li quando tinha dezoito anos, teve um impacto duradouro em mim. O livro que você gostaria de ter escrito: Idaho, de Emily Ruskovich. O último livro que fez você chorar: No One Is Talking About This, de Patricia Lockwood (esse me fez chorar também). O livro que você dá de presente: Recentemente, The Weekend, de Charlotte Wood. O livro que você não conseguiu terminar: Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis.


Para ir além

DE VÍTIMAS A PROTAGONISTAS GUILHERME ALMEIDA

Trancada em um sobrado de vários andares em Nova Iorque, a psicóloga Anna Fox (Amy Adams) passa os dias sozinha, observando os vizinhos pela janela da sala de estar. Anna sofre de agorafobia, e suas únicas companhias ocasionais são seu psiquiatra, o inquilino que mora no porão e o adolescente e sua mãe que se mudaram para a casa em frente. É esta mulher, Jane Russell (Julianne Moore), que a doente e alcoólatra Anna vê ser assassinada uma noite. Mas terá mesmo visto ou apenas imaginado?

A pergunta é respondida no filme A Mulher na Janela (2021, direção de Joe Wright), lançamento da Netflix e adaptação do best-seller de A. J. Finn, o mais recente de uma série de filmes de suspense protagonizados 13


Cena de A Mulher na Janela Joe Wright

Cena de Janela Indiscreta Alfred Hitchcock

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por personagens femininas e que destacam as relações entre silenciamento, machismo e feminicídio na sociedade contemporânea. O filme estrelado por Amy Adams não esconde a influência das obras de suspense, especialmente Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock, em que um fotógrafo (L. B. Jeffries, papel de James Stewart), cuja perna quebrada não lhe deixa sair de seu apartamento em Nova Iorque, também passa os dias observando os vizinhos pela janela e acredita que um deles matou a esposa. Mas se Janela Indiscreta é exemplar enquanto suspense sutil e cativante, que sugere mais do que mostra, A Mulher na Janela oscila entre sutileza e violência explícitas, na tentativa nem sempre bem-sucedida de manter a atenção do público. Ao contrário do fotógrafo do clássico de Hitchcock, que apesar de trancado no apartamento, é construído como um condutor constante das ações da trama, Anna Fox está sozinha. Desde o princípio, ela aparece isolada no sobrado, até que Jane quebra esse isolamento ao ajudar a protagonista após uma crise. As duas se aproximam em uma noite de conversa e vinho, o que parece retirar por alguns momentos a protagonista da posição de mulher doente. É esta Jane que Anna vê ser assassinada na noite seguinte. Dias depois, outra mulher (Jennifer Jason Leigh) se apresenta como a verdadeira Jane Russell, ao lado do marido, Alastair (Gary Oldman), e todos parecem acreditar nisso, da polícia ao seu psiquiatra, o que faz com que Anna também duvide de si mesma. Caminhando cada vez mais em direção a um suspense explícito e violento, A Mulher na Janela


prioriza a redenção da protagonista, especialmente nos momentos finais da trama. Ethan (Fred Hechinger), o filho de Jane (cujo verdadeiro nome era Katherine), se revela como um serial killer em formação para Anna, que, após ser perseguida pelo adolescente no terraço de sua casa, consegue jogá-lo pela claraboia. A redenção de Anna é completa: ela sobrevive à perseguição de Ethan, recuperando-se após passar alguns dias no hospital, muda-se do enorme sobrado solitário e perde o medo do mundo exterior. A DETETIVE NO TREM

Cena de A Garota no Trem Tate Taylor

Lançada em 2016, outra adaptação de um sucesso literário apresenta uma protagonista que observa a vida alheia pela janela e se vê impelida a resolver um crime misterioso. Em A Garota no Trem, dirigido por Tate Taylor e baseado no romance de Paula Hawkins, Rachel (Emily Blunt) passa todos os dias em frente à casa onde já morou, e na qual o ex-marido, Tom (Justin Theroux), vive com a nova esposa, Anna (Rebecca Ferguson), e a filha bebê do casal. Pela janela do trem, Rachel também vê a casa dos vizinhos de Tom e Anna, Meghan (Haley Bennett) e Scott (Luke Evans), que fantasia como um casal perfeito. Assim como Anna Fox, Rachel é construída como a inconfiável condutora do olhar do público: além de ser alcoólatra e de assediar constantemente a nova família do ex-marido, ela sofre de constantes apagões de memória. Chocada pelo que vê certo dia pela janela do trem – Meghan beijando outro homem –, Rachel logo se vê em meio a uma história turbulenta: Meghan é encontrada morta pouco tempo depois. Em seu movimento detetivesco, Rachel chega à verdade tanto sobre a morte de Meghan quanto sobre ela mesma, desvendando o que 15


havia feito antes de sofrer os apagões de memória. Ao encontrar a esposa do antigo chefe de Tom dentro de um trem ela descobre que, diferentemente do que o ex-marido havia contado, ele havia sido demitido por sua conduta sexual no escritório, e não pelo suposto escândalo que Rachel teria causado enquanto estava bêbada em uma festa. Essa revelação faz com que ela suspeite do ex-marido, logo chegando à solução do crime. Rachel vai à casa de Anna e Tom, que havia assassinado Meghan, sua amante, ao descobrir que ela estava grávida e queria ter o bebê. A descoberta da culpa de Tom é inserida em uma discussão mais ampla do que a resolução do mistério em um filme de suspense, envolvendo homens abusivos que manipulam emocionalmente e matam mulheres, dando espaço para Rachel libertar as três: ela, Anna e a filha desta, de tal ciclo de abuso. Ao prender as três na casa e tentar também assassinar a ex-esposa, Tom é golpeado por Rachel. Com seu agressor morto, Anna e Rachel se unem em seus relatos à polícia, consagrando a versão de legítima defesa. O PRECURSOR

Cena de Garota Exemplar David Fincher

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Adaptação do romance de Gillian Fynn, Garota Exemplar (2014, direção de David Fincher) é considerado um dos principais responsáveis pela recente popularização de filmes de suspense com protagonistas femininas. No dia do aniversário de cinco anos de seu casamento com Nick (Ben Affleck), Amy Dunne (Rosamund Pike) desaparece. Nick comunica o desparecimento à polícia, mas logo torna-se o principal suspeito. Esta suspeita é reforçada pela narração de Amy, que lê trechos do seu diário: são revelados, então, os detalhes de um relacionamento que desanda após crises financeiras e conjugais. Nick é


descrito como violento e controlador e tem uma amante bem mais jovem, que anuncia em uma entrevista coletiva que está grávida. Em Garota Exemplar, contudo, a reviravolta da trama é distinta da dos outros dois filmes: no momento em que a culpa de Nick parece definida, a narração de Amy é acompanhada de suas imagens após forjar o próprio desaparecimento. Sentindo-se infeliz e traída em um casamento fracassado, ela decide se vingar do marido. Além das pistas que deixou para a polícia (o diário com os relatos forjados de abuso, os resquícios de sangue propositalmente mal limpos na cozinha de casa, dívidas no cartão de crédito), Amy conta com a cobertura midiática a seu favor. Numa virada de eventos, Amy retoma o casamento e impõe a continuidade deste a Nick, inocentado e novamente preso ao matrimônio infeliz. Para consolidar a farsa midiática da união refeita, Amy conta ao marido que está grávida. Em Garota Exemplar, portanto, o casal de protagonistas é construído como personagens ambíguos, complexos e confusos. Nick é o marido egoísta e covarde, manipulado pelos planos de vingança da esposa. Amy, por outro lado, é a mulher brilhante e implacável e com traços de psicopatia, ao mesmo tempo em que é movida pelo rancor e pela vulnerabilidade de estar sozinha e se submeter a uma união infeliz, com um homem que a despreza, mas de quem ao mesmo tempo não consegue se separar. Ao trazer as mulheres para uma posição de protagonismo das tramas e condutoras dos olhares do público, os três filmes as retiram de uma posição passiva de vítimas de violência: Anna e Rachel testemunham e desvendam crimes cometidos por homens; Amy é a própria autora de um crime e do seu desparecimento. Todas elas não deixam de estar sozinhas, em maior ou menor grau, alienadas dentro de casa ou de si mesmas, em circunstâncias que parecem estar diretamente relacionadas ao fato de serem mulheres como forma de justificar seus atos e sofrimentos, mas não de construí-las como personagens frágeis e indefesas. 17


DÉBORA SANDER

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Para ir além

MAPA DE LONDRES

As ruas percorridas pelos personagens de Em fogo lento foram inspiradas pela região onde Paula Hawkins vive em Londres. Desde 2016, a autora mora em Clerkenwell, no coração da capital britânica, e a trama de seu terceiro thriller se desenrola justamente nas proximidades do Regent’s Canal, no trecho que corta os bairros de Clerkenwell e Islington. Enquanto os personagens Daniel e Miriam habitam casas-barco no canal, Theo e Carla Myerson moram em casas em Islington, Laura vive em um pequeno apartamento em Islington e Irene ocupa uma casa em Hayward’s Place, no mesmo bairro. A área, bastante residencial, é conhecida por ser movimentada e criativa. Prédios onde antigamente funcionavam indústrias são hoje ocupados por comércios independentes. A proximidade dos principais pontos da metrópole, a animada vida noturna e a variedade de serviços tornam a região atrativa por permitir que tudo seja feito a pé. Assim como outras regiões de Londres, Islington é carregada de história. Os primeiros registros de nomes dados à área datam do século XI, e há rodovias do bairro


que foram abertas ainda no século XIV. O Regent’s Canal começou a ser construído em 1812, em plena Revolução Industrial. Sua função original era o transporte de matérias-primas que movimentavam o funcionamento das indústrias, o que contribuiu com o acelerado crescimento da cidade. Vias importantes de circulação na região, como a New North Road, foram abertas na mesma época e, aos poucos, conforme o transporte por terra foi substituindo a função dos canais, eles passaram a centralizar atividades de lazer, esportes e descanso em seu entorno, e as moradias e comércios em barcos foram se popularizando. Com 13,8 quilômetros de extensão, o Regent’s Canal atravessa a cidade de oeste a leste, iniciando seu curso na região conhecida como Little Venice e desembocando no Rio Tâmisa. Com o aumento da população urbana e a disparada nos valores dos aluguéis, as casas-barco tornaram-se opções viáveis de moradia. Há habitantes que pagam caro para se instalar permanentemente em um ponto do canal, mas muitos optam por um estilo de vida nômade e percorrem o curso d’água, permanecendo por até duas semanas em cada ponto, limite máximo para estacionar o barco sem precisar pagar taxas. O Regent’s Canal passa por alguns dos pontos mais interessantes e estratégicos da cidade, como a estação de trem King’s Cross e o Victoria Park. As tradicionais casas-barco têm, cada uma, um nome próprio e características únicas, dando vida e carisma ao canal – o que contrasta com a atmosfera de tensão e suspense de Em fogo lento, tornando a narrativa ainda mais interessante.

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Próximo mês

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setembro de 2021

VEM POR AÍ COLABORADORES

OUTUBRO

August é uma jovem cética que se muda para Nova Iorque procurando pelo seu lugar no mundo. É lá que vai conhecer três colegas de apartamento muito excêntricos e uma garota misteriosa que veio diretamente dos anos 1970. Como ajudar uma pessoa que está literalmente perdida no PECHANSKY tempo? Para August, LAURA este éVIOLA apenas um dos sinais que HÜBNER RAFAELA indicam que está na hora de acreditar em algumas coisas. Assistente Publisher Para quem gosta de: histórias de amor, personagens LGBTQIA+, viagens no tempo.

NOVEMBRO É oficial: mês temático CAROLINE à vista!CARDOSO Estamos preparando LUÍSA SANTINI JANUÁRIO mais um momento de celebração Revisora na história da TAG: Assistente livros inéditos serão apresentados em primeira mão aos associados, além de eventos e um mimo especial em homenagem à literatura negra. Na TAG Inéditos, apresentamos uma história arrebatadora de um menino somali que embarca em uma jornada épica ao mesmo tempo em que precisa enfrentar as turbulências de uma pela Segunda PAULA HENTGESÁfrica afetada GABRIELA BASSO Guerra Mundial. LAÍS FONSECA Designer

Designer

Designer

Para quem gosta de: leituras e experiências imersivas, conhecer outras culturas, jornadas envolventes. Impressão Impressos Portão 20

Diagramação Gabriela Heberle


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“O passado nunca está morto. Nem sequer passou.” – William Faulkner 22


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