Marรงo de 2015 Duas Narrativas Fantรกsticas
REDAÇÃO
Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Tomás Susin dos Santos tomas@taglivros.com.br
REVISÃO ORTOGRÁFICA
Antônio Augusto Portinho da Cunha Adriana Kirsch Trojahn
PROJETO GRÁFICO
Bruno Miguell M. Mesquita brunomiguellmesquita@gmail.com
ILUSTRAÇÃO DA CAPA Laura D. Miguel lauradep@gmail.com
IMPRESSÃO
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AO LEITOR
N
este mês, conversamos um dos filósofos brasileiros de maior renome da atualidade sobre seus livros favoritos. Luiz Felipe Pondé é especialista em Dostoiévski, e é evidente que alguma obra desse grande autor estaria presente nessa lista. Engana-se, porém, quem esperava que ele indicasse um dos clássicos do autor russo. De toda a sua vasta obra, Pondé elegeu o emblemático Duas Narrativas Fantásticas como indicação à TAG. Enquanto no mês passado a obra enviada foi leve, com um tom cômico, o livro de março penetra no âmago do leitor, e de lá dificilmente sairá. Entre as novelas, um tema em comum: o suicídio. De fácil compreensão, porém lenta absorção, a profundidade dos contos é alcançada ao nos impregnarmos na alma dos personagens. Duas Narrativas Fantásticas é um livro como poucos, temos certeza de que agradecerão a Pondé pela escolha. Equipe TAG
FOTO: MELANCHOLICHART
A INDICAÇÃO DO MÊS
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Uma Filosofia Selvagem O curador: Luiz Felipe Pondé O livro indicado: Duas Narrativas Fantásticas
ECOS DA LEITURA
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Panorama da Obra O Fantástico em Dostoiévski A ficção na literatura Woody Allen e a Literatura Russa Reza a lenda...
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Sarah Hrdy
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UMA FILOSOFIA SELVAGEM Capítulo do livro A Filosofia da Adúltera, de Luiz Felipe Pondé, cedido pela editora Leya à TAG.
Lembro-me de um filme que vi há muitos anos, um filme francês no qual o personagem principal, um perfumista, foge de sua vida em Paris. Ele é um gênio em perfumes e sua mulher, uma chata, cuida da parte comercial. Ele vai para a América Latina e se torna feirante. Resolve romper com o ciclo de desgosto de uma vida que não era a que ele queria viver. Romper uma vida de desgosto talvez seja o maior dos sonhos, claro, para quem não morre de fome. Nosso selvagem dá sorte e ganha Catherine Deneuve como nova mulher. Maravilhas do cinema. O que me marcou naquele filme foi a coragem do protagonista de abandonar uma vida que detestava. Acho que esse é um desafio para qualquer um que queira ter uma vida menos idiota. Para tal, é necessário olhar a vida como ela é ao invés de se enganar e enganar os outros. O nome desse filme é O Selvagem. Outra referência que me marcou sobre o significado de ser selvagem na filosofia foi o personagem “o Selvagem” do grande romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. O personagem irrompe no admirável mundo científico da felicidade programada. Sua trajetória, infeliz, é aquela da tragédia da liberdade num mundo obcecado pelo progresso científico da vida feliz: é destruído. Este é o mundo em que vivemos: povoado por idiotas que comandam o mundo sob a tutela de sua obsessão pela felicidade científica calculando suas calorias. Somo Nelson Rodrigues, um filósofo selvagem, a esses dois selvagens para compor minha filosofia selvagem. Só uma filosofia selvagem se dá ao luxo de dizer a vida como ela é.
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O CURADOR: LUIZ FELIPE PONDÉ
Essa filosofia selvagem é o que caracteriza – e diferencia – o nosso curador deste mês. Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé nasceu na capital pernambucana, em 1959, e hoje é considerado um dos principais filósofos brasileiros. O filósofo e escritor, porém, não começou sua carreira aspirando a nenhum desses títulos. Formou-se primeiramente em Medicina na Universidade Federal da Bahia. A Filosofia veio somente em um segundo passo, na Universidade de São Paulo, mas para ficar. Concluiu o doutorado na USP, em parceria com a Universidade de Paris, e o pós-doutorado na Universidade de Tel-Aviv. Foi durante essa época de aprofundamento acadêmico que Pondé elaborou a tese do homem insuficiente, que se tornou seu primeiro livro, em 2001. A partir de então, o filósofo passou a adquirir cada vez mais a perspectiva de escritor, com destaque para o Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, no qual emprega sua ácida ironia para condenar a “censura fascista” do politicamente incorreto, questionando religiosos, ambientalistas, políticos e apontando os defeitos da democracia. Publicado em 2012, o livro logo atingiu grande sucesso e tornou-se um dos mais vendidos do país, segundo a revista Veja. Ao tratar de temas de origem filosófica – como o niilismo, religião, felicidade, sofrimento – com linguagem contemporânea, Pondé passou a ganhar notoriedade fora do âmbito acadêmico. Seu papel de instigador do pensamento, porém, não se resume aos seus livros, mas assume perspectiva mais ampla. Colunista da Folha de São Paulo, e frequentemente solicitado para debater questões de relevância atual, Pondé possui papel chave nas discussões a respeito do atual estágio da democracia brasileira, propondo uma reflexão filosófica sobre temas polêmicos como representação popular, legitimidade do parlamento e dos governantes eleitos, e sobretudo acerca das garantias às liberdades individuais. A Copa
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do Mundo e outros eventos de grande repercussão pública também são alvo de sua crítica rigorosa, mas sempre bem humorada. Leitor apaixonado e dostoievskiano fervoroso, Pondé não escolheria outro autor para indicar à TAG. “Você gosta de Dostoiévski?”, questiona o filósofo, em seu texto Ler ou Não Ler, Eis a Questão, publicado na Folha de São Paulo. “Se a resposta for ‘não’, o problema está em você, nunca nele. Uma coisa que qualquer pessoa culta deve saber é que Dostoiévski (e outros grandes como ele) nunca está errado, você sim. Se você o leu e não gostou, minta. Procure ajuda profissional. Nunca diga algo como ‘Dostoiévski não está com nada’ porque queima seu filme.”
Dostoiévski é eterno como a morte. Ele e Shakespeare são melhores do que quase tudo o que a humanidade produziu em literatura. -Luiz Felipe Pondé
Mais do que um apreciador, Pondé é um estudioso do autor russo. Em 2003, publicou o livro Crítica e profecia: filosofia da religião em Dostoiévski. De todas as milhares de páginas já lidas do autor, qual de suas obras seria a recomendada? Para a TAG, Pondé indicou uma pequena preciosidade. Ou melhor, duas pequenas preciosidades: Dois de seus mais brilhantes contos – A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo – que foram reunidos e publicados pela Editora 34 como Duas Narrativas Fantásticas, excelente para quem deseja inserir-se no maravilhoso universo de um dos maiores escritores da história e indispensável para qualquer apreciador dostoievskiano.
(2001) O homem insuficiente Comentários de Psicologia Pascaliana (2003) Crítica e profecia Filosofia da religião em Dostoiévski (2004) Conhecimento na desgraça Ensaio da Epistemologia Pascaliana (2009) Do pensamento no deserto Ensaio de Filosofia, Teologia e Literatura (2010) Contra um mundo melhor Ensaios do Afeto (2011) O Catolicismo Hoje (2012) Guia Politicamente Incorreto da Filosofia (2012) Por que virei a direita Três intelectuais explicam sua opção pelo conservadorismo (2013) A filosofia da adúltera Ensaios Selvagens
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Dostoiévski
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O LIVRO INDICADO: DUAS NARRATIVAS FANTÁSTICAS Foi em Moscou, em 1821, que nasceu um dos maiores romancistas de todos os tempos: Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, que mergulhou no subterrâneo da alma humana e desvendou-a como poucos escritores já o fizeram, juntando-se a nomes como Shakespeare, Cervantes, Alighieri, Goethe, Camões e Vitor Hugo. Suas obras foram alvo de admiração de Nietzsche, que o considerava “o único psicólogo com quem tinha algo a aprender”; objeto de estudos de Freud , em seu notório artigo “Dostoiévski e o parricídio”; e serviram de inspiração para diversos vencedores do Nobel de Literatura, como Faulkner, Hemingway, Garcia Márquez e Albert Camus.
Dostoiévski é, se não o maior, decerto o mais poderoso escritor do século XIX; ou do século XX, pois a sua obra constitui o marco entre dois séculos da literatura. Literariamente, tudo o que é pré- ano é pré-histórico; ninguém escapa à sua influência. -Otto Maria Carpeaux, crítico literário Dostoiévski teve uma infância humilde e severa. Aos quinze anos, viu sua mãe morrer precocemente de tuberculose. A perda devastou seu pai, que mergulhou na depressão e no alcoolismo, morrendo dois anos depois, assassinado pelos próprios serviçais, enfurecidos com os maus tratos. Aos vinte e dois anos de idade, graduou-se em engenharia e obteve o grau militar de subintendente. A escrita tomou proporções vocacionais durante essa época, quando, para quitar uma dívida com um agiota, dedicou-se a traduzir Eugénie Grandet, de Balzac. Encantado, abandonou a carreira militar e dedicouse à escrita de corpo e alma, publicando seu primeiro
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romance, Gente Pobre, aos vinte e quatro anos de idade, despertando críticas positivas e recebendo o título de “a mais nova revelação do cenário literário do país”. Enquanto intensificava sua relação com as palavras, aproximou-se também de ideias democráticas, ligando-se a grupos revolucionários. Com vinte e sete anos, foi detido e preso, acusado de conspirar contra o imperador russo Nicolau I. Durante a prisão, Dostoiévski teve seu primeiro ataque epilético, que não só o acompanharia pelo resto de sua vida, como também a de diversos de seus personagens – Príncipe Míchkin (O Idiota), Kiríllov (Os Demônios) e Smerdiákov (Os Irmãos Karamázov). Após oito meses encarcerado, foi sentenciado à morte por fuzilamento. No dia 23 de dezembro de 1849, Dostoiévski e outros membros do grupo revolucionário foram levados ao local da execução. No último minuto, porém, antes de a primeira bala ser disparada, chegou uma ordem do Czar para que a pena fosse substituída por trabalhos forçados e exílio. Com os pés acorrentados, partiu para a Sibéria na noite de Natal. Dez anos depois, estava livre do exílio e dos serviços forçados, retornando à Rússia e dando início à sua fase mais prolífica como escritor (ver panorama geral da obra na página 18). As terríveis atribulações que vivenciou ressoam fortemente em suas obras, como em Memórias da Casa dos Mortos (1862), que retrata a vida dos condenados nas prisões siberianas, ou em O Jogador (1866), que narra a história de um personagem que, a exemplo de seu autor, era um viciado em jogos de azar. Seus romances de maior prestígio são Memórias do Subsolo (1864), Crime e Castigo (1866), O Idiota (1869) e, por fim, seu último romance publicado, e considerado por muitos sua obraprima, Os Irmãos Karamazov (1981). Em meio à abundância de romances, contos e novelas, os denominadores comuns da literatura dostoievskiana são a profundidade psicológica e o peso do enredo subjetivo de suas obras. Dostoiévski penetra na carne e chega ao âmago da alma humana, e é de lá que saem suas palavras. “Percebe-se que Dostoiévski não expõe nunca o exterior de suas personagens”,
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afirma o crítico literário Otto Maria Carpeaux, “que ele não descreve quase nunca a paisagem russa. [...] O que ele fixa – e com que segurança! – são as paisagens da alma”. E esse retrato das “paisagens da alma” é realizado por meio das cenas febris e dramáticas, atmosferas explosivas e personagens que se encontram próximos à loucura, ao suicídio, à morte, às situações em que a vida mostra seu maior grau de intensidade. O enredo não está no ambiente, mas na cabeça dos personagens – muitos dos trabalhos do autor se passam em uma cronologia de poucos dias ou até poucas horas – onde chocam-se pensamentos e emoções, em diálogos (ou monólogos) socráticos apaixonados que buscam a redenção divina ou a fuga dos sofrimentos.
Dostoiévski é sempre essencial. Apenas quando encaramos o mal em nós é que recuperamos a vontade de viver. Só esmagando o orgulho com a humildade de quem se sabe insignificante é que vale a pena apostar no dia a dia. [...] O ser humano tem de passar pela decomposição, pela dor, não há como recusar o mundo: é preciso aceitar e atravessar o mundo. -Luiz Felipe Pondé A obra escolhida por Pondé não é nenhum dos famosos romances, mas dois brilhantes contos publicados nos últimos anos que precederam a morte de seu autor, em 1881. Na condição de ex-presidiário, era-lhe proibido escrever memórias e relatos, portanto apoderou-se da ficção para estabelecer conversação crítica, e utilizouse de seus canais jornalísticos como veículos de várias de suas publicações. Na época, Dostoiévski publicava mensalmente para o jornal O Cidadão, em seu espaço denominado Diário de um Escritor. Foi nessas publicações mensais que surgiram as duas narrativas fantásticas que compõem o livro escolhido.
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DUAS NARRATIVAS FANTÁSTICAS A primeira novela deste livro surgiu a partir de um caso noticiado por um jornal russo, a respeito do suicídio de uma jovem que se mudou para Moscou em busca de uma vida melhor, mas acabou encontrando apenas pobreza e miséria. Dostoiévski perturbou-se com o caso, e um mês depois publicava A Dócil (1876). Escrita in media res – expressão cunhada pelo poeta latino Horácio, que significa “no meio dos fatos” –, a história inicia pelo final, revelando ao leitor o já consumado suicídio da jovem. Perambulando de um lado para o outro do quarto, ao lado do cadáver, encontra-se o perturbado marido, que retorna aos primórdios da relação, na tentativa de concatenar os pontos em busca do motivo de sua esposa ter se suicidado. A morte lhe serve como um espelho, que devolve o questionamento ao personagem: terá sido ele próprio o motivo? Talvez mais do que acompanhar a busca da verdade, o narrador nos conduz pelos pensamentos de um homem de orgulho ferido, que se casou com a fragilidade de uma pequena menina de dezesseis anos na tentativa de, por alguma vez na vida, triunfar sobre alguém. Assim como Dostoiévski, o personagem de O Sonho de um Homem Ridículo (1977) também sobreviveu à morte. Niilista putrificado pelo horror do mundo, decide alcançar a liberdade que somente o suicídio pode oferecer. Carregou sua arma com a certeza de quem já antecipava o puxar do gatilho, sentou-se à mesa mas, com a arma em mãos, adormeceu segundos antes do grande ato. Com o sono, vem o sonho utópico e fantástico, trazendo consigo a revelação, a descoberta de uma verdade espiritual que o alçará para além do nada. Essas duas pérolas da literatura foram publicadas em conjunto sob o título Duas Narrativas Fantásticas, em uma edição esmerada e com tradução direta do russo, que selecionamos para enviar a você. As novelas são curtas e de fácil compreensão, apesar de serem, assim como toda grande obra-prima, de lenta absorção.
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LEMOS UM CLÁSSICO PARA SABER QUEM SOMOS. ENQUANTO VOCÊ LÊ O LIVRO, O LIVRO LÊ VOCÊ. É COM ESSE ESPÍRITO QUE PROPONHO A LEITURA DE DOSTOIÉVSKI. -Luiz Felipe Pondé
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Àqueles que se encantarem pelo autor russo e desejarem aventurar-se na leitura de outros livros, elaboramos um Panorama da Obra, para que conheçam melhor suas notórias obras-primas. A linha divisória que pretende separar a fantasia da realidade, a ficção da não-ficção, frequentemente falha em seu papel, e permite que os dois mundos se misturem. O Fantástico em Dostoiévski e A Ficção na Literatura acabam cumprindo um papel de carregar em si profunda realidade. Woody Allen e a Literatura Russa expõe um pouco da obra de um dos principais cineastas contemporâneos, largamente influenciado por Dostoiévski. Reza a lenda que Nietzsche reproduziu uma das cenas do protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski, exatamente no momento em que perdeu a sanidade mental. Descubra que cena é essa em nosso quinto e último eco deste mês. Equipe TAG contato@taglivros.com.br
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PANORAMA DA OBRA
Expomos aqui alguns de seus principais romances, para o associado que não quiser limitar-se ao livro enviado neste mês poder escolher sua próxima leitura do brilhante escritor russo. Todos foram publicados pela Editora 34, assim como Duas Narrativas Fantásticas. 1864 – MEMÓRIAS DO SUBSOLO Após seu jornal ter sido proibido por publicar um artigo sobre a Revolução Polaca de 1863, Dostoiévski conseguiu editar outro jornal, Época, no qual publicou esse romance, considerado a primeira obra existencialista do mundo. “A voz do sangue fez-se ouvir de imediato e minha alegria não teve limites” – Nietzsche, sobre o livro.
1866 – CRIME E CASTIGO Uma de suas obras-capitais, publicada em 1866, narra a célebre história de Raskólnikov, um jovem estudante que comete um assassinato e se vê perseguido pela incapacidade de continuar sua vida após o delito. Nietzsche, Sartre, Freud, George Orwell e Aldous Huxley já expressaram seu apreço pela obra.
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1867 – UM JOGADOR Considerado um “romance maravilhoso” por Thomas Mann, O Jogador conta a história, relatada em primeira pessoa, de Aleksei Ivanovitch, um jovem com grande caráter crítico que, no entanto, carece de objetivos na vida. Com prazo pressionado pelos editores, Dostoiévski contratou uma estenógrafa chamada Anna Snítkina, a quem dedicou essa obra. Casaram-se nesse mesmo ano.
1869 – O IDIOTA Nesse livro, Dostoiévski constrói um dos personagens mais impressionantes de toda literatura mundial, o humanista e epilético Príncipe Míchkin. Assim como A Dócil, O Idiota também foi inspirado em uma notícia de jornal. Quando Dostoiévski leu que uma jovem de quinze anos havia posto fogo na casa da família após anos de maus tratos, transformou-a na personagem Nastássia Filipóvna, por quem o príncipe Michkin, um homem destituído de qualquer maldade, percebe-se atraído.
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1881 – OS IRMÃOS KARAMAZOV Considerado por Freud o melhor romance já escrito, essa é sua obra de maior destaque. Enquanto expõe os embates entre pais e filhos, o drama inclui diversas discussões a respeito da fé e da razão. Alguns meses depois de sua finalização, Dostoiévski faleceu. Estima-se que sessenta mil pessoas tenham assistido ao funeral. Em sua lápide, pode-se ler os versos de São João, que também serviram de subtítulo para Os Irmãos Karamazov: “Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto” (12:24)
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O FANTÁSTICO EM DOSTOIÉVSKI O fantástico em Dostoiévski é permeado por uma ironia sutil – o próprio autor discorre sobre a escolha desse subtítulo para suas duas narrativas. Na apresentação de A Dócil, ele resgata a obra de Victor Hugo, O Último Dia de um Condenado à Morte: “como poderia um condenado à morte, já no seu último dia de vida, se não na sua última hora, ou até no seu último minuto, escrever as suas impressões e pensamentos (e ter tempo para isso)? Mas, se não se tivesse valido dessa suposição fantástica, não teria podido escrever essa obra, e esta é, apesar de tudo, a mais real e verdadeira, a mais autêntica de todas as suas obras”. Somente seria possível se o personagem possuísse um estenógrafo, que transcrevesse seus pensamentos enquanto eles ocorriam – “essa hipótese, de que um estenógrafo pudesse ter ouvido e transcrito (e cuja transcrição estivesse em meu poder) viria a ser o que eu chamo de ‘fantástico’ nessa narrativa.” À exceção do fato de que registrar os pensamentos, minuto-aminuto, de um homem desesperado frente à morte de sua esposa, seria impossível sem um estenógrafo, o que resta de fantasioso no conto? Seria impossível a um condenado narrar seu último minuto de vida, visto que morreria e não teria tempo de escrever. Mas e se, no último milissegundo, ele fosse absolvido? Nesse caso, ele teria vivido aquele minuto como se verdadeiramente fosse seu último minuto de vida. Mas ele continuaria vivo para escrever o que pensou e o que sentiu durante aquele último suspiro. Foi isso o que aconteceu com Dostoiévski, ao ter sua pena de morte revogada momentos antes de sua execução; em sua vida, a suposição fantástica tornou-se verdadeira, o que o possibilitou enxergar a morte de uma perspectiva única. Em O Sonho de um Homem Ridículo, a linha tênue entre fantasia e realidade é traçada de forma
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curiosa. O personagem, convicto de seu suicídio, acaba adormecendo com a arma em mãos. Em seu sono, sonha que morreu; mas sobrevive à morte, visita outro planeta e conhece um povoado que vive em uma utopia de paz e amor. Mas, se esse cenário fantasioso se passa dentro de um sonho, não seria então algo plausível? A divisória torna-se mais nebulosa ainda quando o autor alega que, durante o sonho, o personagem encontra uma grande resposta para seu dilema. A verdade foi sonhada, mas não se encerrou com o término do sonho. Ela permaneceu no narrador após ter despertado; continuou retumbando nele após ter aberto os olhos e descoberto que estava vivo. Essa verdade é menos real, por ter sido originada no sonho, se permanece fazendo sentido ao personagem?
Os senhores dir-me-ão, agora, que se tratou apenas de um sonho. Mas é completamente indiferente que fosse um sonho ou não fosse, uma vez que este sonho me tivesse revelado a verdade? Brincando com a fantasia, a obra de Dostoiévski pode ser, para seus leitores, como o sonho do personagem: narrativa ficcional e fantasiosa que deixa marcas ao ressoar em nossa própria alma, e crava-se em nós como verdadeira mesmo – e talvez principalmente – após o término da leitura.
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A FICÇÃO NA LITERATURA A distinção entre realidade e fantasia, que o fantástico (tão verdadeiramente real) de Dostoiévski coloca à prova, assemelha-se às discussões a respeito da tênue separação entre os universos da ficção e da não-ficção.
Eu escrevo ficção e dizem que é autobiografia. Eu escrevo autobiografia e dizem que é ficção. Então, como eu sou tão estúpido e eles tão inteligentes, deixo que eles decidam o que é e o que não é. -Philip Roth
A ficção é estória: não divulga a pretensão de possuir algum paralelo com a realidade. O que acontece, porém, é que a trama inventada origina-se de emoções, vivências, fatos e emblemas da vida por vezes tão autênticos que registram a realidade de forma surpreendente: não foi Salman Rushdie ameaçado de morte por sua obra Versos Satânicos, um romance “ficcional” que expõe a intolerância religiosa? E quanto a Jane Austen, com Orgulho e Preconceito, enviado em dezembro pela TAG, que retrata com perfeição os costumes da aristocracia inglesa do século XVII? Dessa forma, a literatura ficcional ostenta um reconhecido papel de retratar a realidade a partir do que é “ficção”. Se ela registra a realidade objetiva, tais como os fatos ocorridos, os costumes, os trajes e os hábitos de uma sociedade, evidencia, também, aspectos mais subjetivos, como lembra o escritor mineiro Rubem Alves, em excerto do livro Do Amor à Beleza:
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Na histórias as coisas aconteceram uma vez para não acontecerem mais. Nas estórias as coisas não aconteceram nunca para acontecerem sempre. O que não aconteceu nunca, aquilo que só foi sonhado, é aquilo que sempre existiu e que sempre existirá, que nem nasceu, nem morrerá, e a cada vez que se conta acontece de novo... -Rubem Alves
Seja em fábulas, romances, ou contos, na cabeça do leitor, a ficção é realidade. Identificar-se com o personagem, sentir sua angústia, partilhar seus dilemas, refletir sobre a história, isso tudo é muito real. Acostumamo-nos a chorar a morte de um protagonista, celebrar a derrota de um vilão ou, ao acabar um bom livro, sentir falta de sua companhia. Esses personagens, enredos, contextos, podem não existir. É verdade. Mas os sentimentos que eles despertam não são menos reais por causa disso. A tristeza, a alegria, a saudade... tudo isso existiu, e foi tão genuíno quanto qualquer outro sentimento produzido pela vida “de verdade” do leitor. Os livros são apenas uma janela para novas realidades.
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WOODY ALLEN E A LITERATURA RUSSA Woody Allen faz, frequentemente, referências a autores clássicos, diretores de cinemas, compositores ou instrumentistas em seus trabalhos. Em muitos filmes, por exemplo, percebemos sua apreciação pelo cineasta Ingmar Bergman, pelo Jazz e, principalmente, pela literatura russa.
A ÚLTIMA NOITE DE BÓRIS GRUSHENKO
Em 1975, Woody Allen lançou um filme intitulado Love and Death, paráfrase em referência ao clássico Guerra e Paz, de León Tolstoi – até foi traduzido, em português de Portugal, como Nem Guerra, Nem Paz. O nome do protagonista, Bóris Grushenko, interpretado pelo próprio ator e diretor, remete a Fiodor Dostoiévski – Grushenka é a principal personagem feminina de Os Irmãos Karamázov. Alguns diálogos do filme mencionam outros romances do autor russo, como Crime e Castigo, obra que futuramente viria a inspirar outras versões cinematográficas de Woody Allen: Crimes e Pecados (1989) e O Sonho de Cassandra (2007). Porém “talvez o melhor filme que eu já fiz”, inspirado em Crime e Castigo, “foi Ponto Final”, lançado em 2005, afirmou Allen na época.
PONTO FINAL – MATCH POINT
Em uma das primeiras cenas do filme, Chris Wilton, personagem principal, ex-jogador e agora instrutor de tênis, aparece lendo Crime e Castigo. No decorrer da trama, encontra-se em situação semelhante à do personagem Raskólnikov, quando é levado a enfrentar as consequências psicológicas de um grave delito por ele praticado. Muito mais do que apenas referências pontuais, Woody Allen capta os questionamentos de Dostoiévski e os insere, em contexto contemporâneo, em seus enredos cinematográficos.
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Woody Allen
FOTO: COLIN SWAN
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REZA A LENDA... Reza a lenda que Nietzsche, em uma manhã de inverno de 1889, em Turim, avistou um camponês espancando brutalmente seu pobre cavalo. Compadecido, o filósofo atirou-se sobre o homem, espantando-o aos berros, em socorro do animal. Abraçou o pescoço do cavalo e começou a chorar compulsivamente até desmaiar. Levado de volta ao seu quarto por transeuntes que o socorreram, Nietzsche acordou de seu colapso depois de alguns minutos, e começou a balbuciar frases ininteligíveis, cantarolar, martelar o piano e soltar ruídos estranhos. Não era mais o mesmo – havia enlouquecido. Reproduzia, assim, inconscientemente, a cena descrita no sonho de Raskolnikov, do livro Crime e Castigo, quando ele, ainda criança, abraça e beija a carcaça ensanguentada de uma égua brutalizada por um bando de bêbados. Foi a derradeira homenagem que Nietzsche fez à ficção de Dostoiévski. Durante os dez anos seguintes, Nietzsche passou por uma série de tratamentos, que não obtiveram resultados. O filósofo morreu, em demência, em 25 de agosto de 1900, na cidade alemã de Weimar.
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[Dostoiévski] é o único psicólogo com que tenho algo a aprender; ele pertence às inesperadas felicidades da minha vida.
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A INDICAÇÃO De ABRIL
O autor do próximo livro que será enviado é um recente ganhador do Prêmio Nobel. “Em minha infância”, afirmou, “eu lia romances não somente para entender e aproveitar aquelas histórias e fantasias, mas também para aprender sobre o mundo. Os livros foram enciclopédias para mim.” Sua experiência como leitor tornou-se sua principal arma como escritor, e talvez o principal motivo de sua condecoração: a capacidade de inserir em seus livros fortes aspectos culturais da Turquia, seu país de origem, retratando ao mundo as nuances locais de maneira que apenas um nativo conseguiria. Suas obras possuem uma forte dicotomia Ocidente-Oriente, servindo para o leitor como um guia para conhecer e compreender os conflitos sempre presentes no Oriente Médio. Mesclando amor, ironia e fortes aspectos culturais, o livro de abril traz a história de um poeta turco, exilado na Alemanha, que volta a seu país de origem devido ao falecimento de sua mãe. Logo que chega a uma pequena cidade, as estradas são bloqueadas pela neve, e nosso personagem encontra-se preso em meio a uma revolução política da qual não consegue omitir-se.
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A CURADORA: SARAH HRDY
O livro me abriu uma janela para a sociedade turca, suas aspirações, tensões políticas e religiosas, que eu sabia tão pouco. Tudo isso com um escritor que é um grande contador de histórias. Além de levar grandes livros aos nossos associados, a TAG também possui o objetivo de trazer novas ideias discutidas ao redor do mundo, a partir da apresentação de curadores provenientes de áreas que não são tão conhecidas pelo público em geral. Nesse mês, selecionamos Sarah Hrdy, uma das primatologistas mais respeitadas da atualidade, que alterou o modo como a biologia evolutiva é vista nos dias de hoje. Suas contribuições para a ciência trouxeramlhe grande reconhecimento, figurando na lista das vinte e uma pessoas mais influentes em sua área. Atualmente, Hrdy é professora na Universidade de Cornell e professora emérita na Universidade da Califórnia. Membro da Academia Nacional de Ciências, Hrdy recebeu em 2001 o Prêmio Howells por suas “incríveis contribuições à Biologia e Antropologia”. Informações completas a respeito do indicante do mês e do livro recomendado podem ser encontradas no www.taglivros.com.br ou então na revista do próximo mês. Caso já tenha lido o livro, envie e-mail para contato@taglivros.com.br para conhecer as alternativas.
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-FiĂłdor DostoiĂŠvski-