"O mapeador de ausências" - Revista TAG Curadoria Jul/21

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O mapeador de ausências

PREFÁCIO



OLÁ, TAGGER No momento em que a caixinha deste julho festivo chegar à sua casa, preste atenção: estamos completando sete anos. Mais de um milhão e trezentas mil caixinhas chegaram a taggers de todos os cantos do Brasil desde que três jovens acharam que a curadoria de livros poderia mudar os rumos da literatura no país. No total, quase cento e quinze mil pessoas fizeram parte do nosso clube – número que quase dobra (!!!) se somarmos quem já passou pela TAG Inéditos, irmã mais nova da Curadoria. Neste mês de aniversário, a TAG Curadoria expede exatas trinta mil duzentas e uma caixinhas para seus associados, tornados parte de uma mesma comunidade pelo simples ato de abrir um livro. Quem diria? Como todas as histórias, a nossa foi uma de perseverar. Perseverar na ideia de que os livros mudam o mundo porque mudam as pessoas; perseverar na ideia de uma grande irmandade afetiva, nas histórias de cada um de nós unidas por uma história ao mês. É mentira dizer que não pensamos em desistir, que o pavor não tomou conta, que não pareceu mais seguro tomar outro rumo. Mas aqui estamos: um dos personagens de O mapeador de ausências, livro inédito de Mia Couto que você recebe este mês, afirma que “não saber para onde fugir é tão triste como não ter casa”. Assim como para o par de personagens centrais do romance que você lerá em breve, a literatura sempre foi nosso refúgio. Sem ela, não teríamos casa – porque também, sem ela, não teríamos você. Convidamos você a conhecer mais sobre a terra, o mar e o universo que cercam o protagonista Diogo Santiago no prefácio desta edição. O formato mudou ligeiramente: agora, apresentamos o livro e, em seguida, passamos a uma explanação de pontos importantes para que você faça sua leitura de forma mais embasada. O posfácio, é importante dizer, continua sendo seu espaço para explorar os sentimentos aflorados ao bater o olho no ponto final. Com isso, só nos resta desejar que a travessia seja suave, onírica, bela como tudo o que Mia Couto põe em palavra escrita. Parabéns a você, tagger. Parabéns pra nós.


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julho de 2021

COLABORADORES

FERNANDA GRABAUSKA

RAFAELA PECHANSKY

Editora-chefe

Publisher

ANTÔNIO AUGUSTO

LIZIANE KUGLAND

Revisor

Revisora

PAULA HENTGES

KALANY BALLARDIN

GABRIELA BASSO

Designer

Designer

Designer

Impressão Gráfica Ipsis

Capa Mônica Barbosa


SUMÁRIO prefácio

5 O livro indicado

8 Unboxing

9 O que você precisa saber antes de ler

14 Uma história de muitos lugares



O livro indicado

A MEMÓRIA É UM CICLONE Mergulhado em lembranças da própria vida, Mia Couto precisou reinventá-las para chegar ao livro da TAG Curadoria deste mês

IGOR NATUSCH

Recorte do kit O mapeador de ausências Mônica Barbosa

Usar a realidade para escrever uma história é, convenhamos, a coisa mais comum do mundo na literatura. Bem menos frequente é a realidade fazer uso de um escritor para reimaginar a si mesma. Estava tudo acertado: Mia Couto iria à Beira. Há tempos o autor moçambicano trabalhava em um enredo em torno de sua cidade natal, e decidiu reservar o primeiro semestre de 2019 para deixar Maputo, onde reside, e passar algumas semanas nas ruas familiares de sua infância e adolescência. Desejava, entre outras coisas, revisitar a igreja de Macuti, na qual se passaria um dos capítulos decisivos de seu novo livro. Na noite de 14 de março de 2019, Couto conversava por telefone com um amigo da cidade, que pretendia visitar quando lá estivesse, quando a ligação se encheu de ruído e, em seguida, caiu. O escritor achou, por alguns momentos, que fosse o efeito de uma simples ventania. Só conseguiu refazer a ligação quatro dias depois, aliviado ao saber que o amigo ainda estava vivo. Não era uma simples ventania. Era o Idai, que tinha chegado para mudar tudo. Ao todo, a passagem do ciclone pela costa sudeste da África deixou pelo menos 700 mortos e quase 2 milhões de pessoas atingidas. Países como Madagascar, Malawi e Zimbabwe sofreram com violentas tempestades e alagamentos. Em Moçambique, local onde o Idai tocou o solo, a destruição foi ainda mais severa: Beira, em especial, foi arrasada pelos ventos de até 205 km/h, e quase nenhuma 5


estrutura da cidade restou sem danos. Calcula-se que mais de 90% da cidade foi devastada, resultando em cerca de 200 mil desabrigados. Ao sobrevoar o local, dias depois da passagem do Idai, Mia Couto percebeu que a cidade que desejava narrar só restava em suas lembranças. As ruas da juventude estavam cobertas de detritos e água marrom; da igreja de Macuti, restava apenas uma parede. Tudo precisaria ser reconstruído do zero: a cidade, a vida, as memórias afetivas. A história. Quando você, tagger, mergulhar nas páginas do livro deste mês, terá a chance de ver o resultado dessa reconstrução toda. O mapeador de ausências é, ao mesmo tempo, o livro que estava pela metade quando o ciclone chegou e um outro, revisto e, até certo ponto, reinventado pela tragédia. Diante da cidade em ruínas, o autor chegou a pensar em desistir de tudo. Achava que seria quase um insulto transformar em literatura a dor de quem estava sem casa, sem água potável, sem os lugares de sua vida. Porém começou a ver as mãos ajudando umas às outras, reerguendo paredes e drenando alagamentos, e sentiu que a história imaginada também se reconstruía em sua mente. Enquanto a Beira voltava a ser a Beira, o livro virava outro livro, juntando memória e ficção, existir e imaginar. Em O mapeador de ausências, Mia Couto remete a si mesmo na figura de Diogo Santiago, escritor e filho de poeta que volta à Beira para receber uma homenagem. Na viagem, busca também um reencontro com o próprio passado, apagado desde sua mudança para a capital e que pretende usar em um novo livro. Logo de início, surge Liana, mestre de cerimônias do evento que o homenageia e que traz consigo um verdadeiro dossiê sobre o falecido pai de Diogo, também poeta e visto como subversivo pela polícia política dos anos 1970. A própria Liana traz pontas soltas em seu passado, e logo nos vemos enredados de forma irresistível nessas duas trilhas rumo a um passado que precisa não apenas ser recordado mas reconstruído. Lembrar não é apenas ser capaz de recordar: a seu modo, trata-se também de fazer uma escolha. Não apenas escolhe Mia Couto o formato mais ou menos ficcional que dará às suas lembranças, como opta por manter viva nelas 6


a memória da guerra pela independência, envolvendo os guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e as Forças Armadas de Portugal. Foram dez anos de conflito armado, entre 1964 e 1974, que se encerraram no ano seguinte com um acordo negociado de independência – um adeus às armas que, para tantas e tantos moçambicanos, deveria ser também um sinal para que o passado desaparecesse. Benedito Fungai, então empregado da família Santiago e mais tarde líder político da região, acha correto que se esqueça; Diogo, como o próprio Mia Couto, acha importante lembrar. Muitas memórias, como se sabe, estão em disputa – e uma das ausências mapeadas nesse livro é a do massacre em Inhaminga, atrocidade das tropas portuguesas no começo dos anos 1970 que só se faria visível muitos anos depois. Recém-recordada, já ameaça desaparecer. O problema, como quem vive em meio às histórias bem sabe, é que as coisas esquecidas não somem, apenas ressurgem em outros formatos. Hoje, Moçambique testemunha a violência em Cabo Delgado, onde uma série de horrendos ataques terroristas causam uma crise humanitária que já colocou mais de 700 mil pessoas em fuga. O mapeador de ausências é também, e de forma paradoxal, um livro sobre presenças. Talvez se possa dizer que é uma obra sobre o confronto entre o que se escolhe e o que se impõe. Mia Couto escolheu escrever sobre a Beira, ou foi a Beira que exigiu ser literatura? Diogo e Liana buscam o passado, ou é a memória que faz uso deles para lembrar de si mesma? A guerra acabou, ou apenas esqueceu que estava presente? Nessa história de memórias e escolhas, o ciclone Idai está sempre presente, ao mesmo tempo em que nunca se concretiza. Mesmo que o livro só exista por causa dela, a força da natureza assiste ao desenrolar dos fatos em silêncio. É como se a narrativa estivesse sempre a nos lembrar: esta é a história, mas apenas por enquanto. A qualquer momento, tudo pode mudar de lugar, como folhas de papel que se dispersam na ventania. Mesmo que se junte tudo de novo, nunca mais será a mesma coisa: os olhos não serão mais os mesmos, as palavras não estarão mais no mesmo lugar. 7


Unboxing

Mônica Barbosa é uma artista piauiense cujos murais carregam poesia – ela faz muros falarem. E foi com o olhar poético que ela criou uma pintura exclusiva para a capa de O mapeador de ausências. Diz Mônica: “uma das reflexões que o livro me trouxe foi sobre a presença tão marcante da personagem Maniara, parteira e enterradora de mortos que atravessa todo o livro, costura todas as histórias”. O pano vermelho alude aos mortos e às dores da guerra, e é ele o território da costura hidrográfica da personagem: “ela costura nesse tecido, em forma de rios, as cicatrizes de um tempo no qual muitos foram silenciados”. As árvores são uma metáfora para a busca familiar de Diogo, com os manuscritos que atravessam a história transformados em papéis ao vento. “É sobre essa profusão de sentires”, resume a artista. Além da obra de Mônica, a edição deste mês vem com outros presentes para os olhos: você deve ter percebido que as páginas estão coloridas por fora, no processo chamado de pintura trilateral, e que a capa tem algumas partes em relevo – acabamento chamado hotstamping. Um fitilho também ajuda a marcar onde você parou sua leitura. Conheça a obra da Mônica no Instagram @_monica.barbosa

Taggers recebem uma ecobag de presente neste mês de aniversário. A estampa, sortida, celebra grandes autores – só que do jeitinho TAG. As ilustrações são de autoria de Carol D’Avila, cujo trabalho você pode conhecer no Instagram @atumrabisca.

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Para ir além

O QUE VOCÊ PRECISA SABER ANTES DE LER Para conhecer novos horizontes, às vezes todos precisamos de uma ajudinha. Neste espaço, veja alguns pontos que lhe ajudarão a entender melhor o enredo do livro do mês

HENRIQUE SANTIAGO

UM PARTIDO REVOLUCIONÁRIO A Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) é um partido político criado em 25 de junho de 1962 a partir da fusão de três organizações: a União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO), a União Nacional Africana de Moçambique Independente (UNAMI) e a União Nacional Africana de Moçambique (MANU). Como o nome sugere, o movimento nasceu para lutar pela independência de Moçambique, colônia de Portugal havia mais de 450 anos, mas com uma diferença: a união de todos os moçambicanos – negros e brancos, homens e mulheres, ricos e pobres. Sua principal liderança quando de sua fundação era o professor e antropólogo Eduardo Mondlane. O grupo, que surgiu com ideais comunistas, tinha como objetivo o desligamento dos laços forçados com os portugueses de forma pacífica, ou seja, através de negociações com o governo local. Com a negativa dos colonizadores, comandados sob o braço forte da ditadura salazarista, a FRELIMO decidiu entrar de vez para a luta armada em setembro de 1964. 9


As estratégias adotadas pelos moçambicanos foram inspiradas na Revolução Chinesa, ao trazer a população a atuar na frente de libertação. “Para os portugueses era impossível distinguir quem era da FRELIMO e quem não era, e eles recrudesceram ainda mais a violência porque não sabiam quem apoiava os ‘rebeldes’, quem era do movimento ou quem nada tinha a ver com ele”, diz o professor e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Guilherme Ziebell. UM MASSACRE CRUEL Moçambique viveu praticamente 10 anos de conflitos armados desde que a FRELIMO adotou essa forma de combate. Desde 1970, o movimento contava com uma nova liderança, Samora Machel, pois Mondlane havia sido assassinado pelos portugueses em um ataque a bomba na Tanzânia orquestrado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) um ano antes. 10


Machel era considerado mais radical do que o líder antecessor, por isso os ataques foram intensificados dos dois lados. Como consequência, os episódios de violência se tornaram mais frequentes e o ápice foi o Massacre de Inhaminga. A resistência moçambicana atacou, no final de 1973, a ferrovia construída na vila de Inhaminga, à época um importante centro de desenvolvimento econômico e que gerava riquezas para Portugal. Naquela década, a comunidade internacional já tinha conhecimento da – e repudiava a – atuação portuguesa, por isso o país repensou o uso da força armada contra a população de Moçambique. Dessa maneira, os militares colocaram em prática um plano de extermínio a longo prazo, aos poucos, sem dizimar a população em apenas uma ofensiva. Segundo Ziebell, o exército de Portugal acrescentou novas formas de execução para além de fuzilamentos em massa. As vítimas do massacre eram enterradas vivas após cavarem suas próprias covas e eram assassinadas e tinham seus corpos expostos em praça pública, por exemplo. Até 25 de abril de 1974, a estimativa é que cerca de 30 mil moçambicanos perderam as vidas – entre crianças, mulheres e idosos. EDUCAÇÃO E DESEDUCAÇÃO Após Inhaminga, Moçambique ainda guerreou por quase um ano até conseguir sua independência, decretada oficialmente em 25 de junho de 1975. No entanto, Ziebell diz que o que culminou na saída de fato dos portugueses foi a Revolução dos Cravos, que pôs fim ao governo militar de António de Oliveira Salazar após 41 anos. Mesmo sem interferência externa, os tentáculos lusitanos permaneceram em diversos aspectos, como a educação. O país tinha um projeto, transmitido pela Igreja Católica, de implementar dois sistemas de ensino: um para os negros moçambicanos e outro para os brancos europeus. A educação colonial tinha como objetivo criar mão de obra de analfabetos funcionais, frisa Ziebell. Na prática, o pensamento crítico nunca foi entregue aos moçambicanos, que aprendiam da boca de missionários católicos que a população branca era exemplo de civilização. Os europeus, por sua vez, tinham acesso ao sistema 11


educacional com professores europeus e acesso a universidades do continente. Para se ter uma ideia, intelectuais africanos, como Mondlane, estudaram e fizeram carreira acadêmica no exterior. “A educação colonial em Moçambique jamais foi pensada para qualificar essas pessoas, era para não criar condições de emancipação, de ser ruim, assim como foi na África do Sul [durante o Apartheid]", explica o especialista.

Moçambique após o ciclone Idai World Vision

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O CICLONE QUE RONDA Em março de 2019, o ciclone Idai atingiu uma série de países da África, entre os quais Moçambique, o mais afetado. Em duas semanas de fortes tempestades, o


fenômeno causou diversos estragos no país, sobretudo em Beira (cidade onde Mia Couto nasceu), com a morte de 600 pessoas e ferimentos em mais de 1,6 milhão de moradores. Dois anos após o acontecimento, o país ainda guarda marcas da tragédia, que deixou um rastro evidente de pobreza, fome e de doenças na pele causadas pela falta de vitaminas. Para Ziedell, o ciclone Idai trouxe à tona problemas estruturais causados em uma nação explorada por séculos, que não se ergueu por completo após o processo de descolonização. Na época, chamou atenção a divulgação de informações de cadáveres boiando em meio à inundação nas ruas de Beira. Ele compara a tempestade em Moçambique com o acidente nuclear de Fukushima (Japão), em 2011, que, na sua leitura, é um país mais preparado financeiramente para se reorganizar após tragédias. “O Estado [moçambicano] tem pouquíssimas condições de atender a sua população e isso redunda, entre outras coisas, em atendimento público. Não tem saneamento público, asfalto, rede elétrica em regiões como um todo. O impacto do ciclone em geral é muito grande porque tem implicações econômicas, sociais e de reorganização da população”, afirma. QUEM É MIA COUTO O mapeador de ausências é o 20º livro do escritor moçambicano Mia Couto publicado no Brasil. Nascido em 5 de julho de 1955 na cidade de Beira, Mia Couto é filho de imigrantes portugueses. Biólogo de formação e prática, aventurou-se no jornalismo, mas encontrou sua vocação definitiva na literatura. Foi curador da TAG Curadoria em dezembro de 2020, com a indicação de Moisés negro, de Alain Mabanckou. Único escritor africano membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Mia Couto ocupa a cadeira número 5. Venceu uma série de prêmios, entre eles o prestigiado Camões, em 2013. Sua escrita versa sobre as riquezas de sua terra natal, carregada por neologismos e atribuição de símbolos fantásticos a uma realidade brutal. No posfácio, você lê uma entrevista exclusiva com Mia.

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Para ir além

UMA HISTÓRIA DE MUITOS LUGARES


Diferentes famílias e diversos passados compõem os caminhos de O mapeador de ausências. Neste mapa, pontuamos as localizações citadas ao longo da história – para você ter mais um gostinho da Moçambique de Mia Couto. Também preparamos um guia dos personagens, que você pode encontrar na página 12 do Posfácio (as descrições são breves, mas não recomendadas aos leitores mais sensíveis a spoilers!).

ARTE: GABRIEL RENNER


Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.

Ilustração do mês Bárbara Dantas é formada em Desenho Industrial pela ESDI/UERJ e trabalha como ilustradora e designer freelancer no Rio de Janeiro. "A natureza, o universo fantástico e a cultura brasileira me inspiram sempre para novos trabalhos" complementa. @zonizom A pedido da TAG, a ilustradora interpretou uma passagem do livro do mês: "Nas noites de lua cheia, mulheres voadoras atravessam os céus e, aos poucos, se confundem com as estrelas cadentes. Os portugueses acreditam que, depois do último suspiro, as pessoas sobem ao firmamento. É o inverso. No escuro da noite, o céu se ajoelha para entrar nos nossos sonhos. É então que nos tornamos deuses". 16




O mapeador de ausências

POSFÁCIO



OLÁ, TAGGER O quanto de si é possível despejar em uma página? Para Mia Couto, o livro inteiro que você leu. “Fui descobrindo que o território da minha infância não é da ordem da geografia”, diz o autor de O mapeador de ausências à jornalista Lu Thomé. “Como acontece com todos, eu tinha inventado o meu passado”. A literatura é uma eterna reinvenção de passados e presentes, taggers, em que aprendemos a aprender, em que olhamos o que é nosso com olhos de arqueólogo. Ou de geógrafo, como o fez Mia Couto. E é sobre essa reinvenção que fala o repórter Igor Natusch: a escrita literária é feita de lembrar, esquecer e inventar aquilo que poderia ter sido. Quantas histórias não se agarram a essa máxima? De Raul Pompeia a Sylvia Plath, examinamos outros passados inventados na literatura. De onde vem a necessidade de revisitar a própria vida pelos meios da ficção? É sobre isso que fala o jornalista e escritor Mateus Baldi, que estreia nesta edição nas páginas da revista da TAG: “o retorno à juventude, se não pacifica a existência, no mínimo ajuda a reconstruí-la ao tornar possível ler territórios esquecidos como os mapas que são.” O pai de Diogo lhe escreve em mensagem que escreveu livros pois jamais soube ser autor da própria vida. “Espero que sejas autor dos teus sonhos”, lega ele ao filho. Esperamos que a leitura do mês lhe inspire a isso, tagger: a ser autor dos seus sonhos. Boa leitura!


"Somos aquilo que recordamos e também o que esquecemos." IZQUIERDO, Ivan. "A arte de esquecer"


SUMÁRIO posfácio

4 Entrevista Mia Couto

9 Quem lembra um conto aumenta um ponto

12 Uma história de muitas árvores


Entrevista

A METÁFORA É TÃO RIGOROSA COMO A ARITMÉTICA A literatura foi o barco no qual Mia Couto subiu para desvendar o próprio passado. Num período presente abalado pela pandemia e outros eventos, ele se descobriu filho de um mar natal: um local de terra coberto pelo mar. É a partir do passado familiar, das travessias – e especialmente das ausências – que ele escreve suas narrativas. Leia a íntegra da entrevista exclusiva concedida para a TAG.

LU THOMÉ

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O mapeador de ausências é um livro sobre um personagem e suas bagagens do passado. O quanto suas experiências e a própria genética contribuem para a sua literatura? Mia Couto — Esse livro prossegue essa procura de falsidades que são vividas como certezas: a ideia da identidade, do passado, das raízes. Pensamo-nos parentes das árvores, criaturas de um único chão. Desenhamos o nosso passado familiar e chamamos-lhe de “árvore genealógica”. Não é uma árvore. Tudo em nós é feito de trocas, travessias e viagens. Fomo-nos dissolvendo nos outros de tal modo que existimos mais fora do que dentro de nós mesmos. Para escrever esse livro, embarquei nessa cruzada impossível de buscar o meu passado. Acreditava que esse tempo tinha uma morada. Fui descobrindo que o território da minha infância não é da ordem da geografia. A minha


infância é talvez o mais recente dos meus tempos. Como acontece com todos, eu tinha inventado o meu passado. A minha cidade natal, uma cidade costeira no centro de Moçambique, está localizada abaixo do nível médio das águas do mar. As marés vivas faziam da minha casa uma arca de Noé. Os outros têm uma terra natal. Eu tenho uma água natal. Esse espaço fluido, essa geografia líquida foi o chão onde aprendi a não ter medo da incerteza e do imprevisível. Como foi escrever um livro ficcional inspirado na trajetória do seu pai e em episódios reais de Moçambique? No início eu pensava que iria celebrar o lugar encantado da minha infância. Tive uma infância tão feliz que agora é impossível encontrar uma outra pátria. A primeira versão do livro era sobretudo uma celebração da cidade da Beira, esse lugar aonde volto sempre que tenho que nascer. As versões seguintes do texto foram centrando-se na figura do meu pai. Eu e os meus irmãos temos a ideia de que a presença do nosso pai era tão leve, tão gentil e delicada que ele nunca chegou verdadeiramente a existir. As nossas lembranças giram em redor da poderosa figura da nossa mãe, que combinava uma incomparável força telúrica a uma poderosa imaginação que fazia dela uma infinita contadora de histórias. Os ensinamentos do nosso pai foram essenciais e nunca foram apresentados como lições. Ele parava na rua e falava com gente anônima e a todos se entregava com igual cuidado. Nós perguntávamos se ele conhecia esse interlocutor e ele respondia, displicente: é uma pessoa. Fui em busca de presenças. E percebi que as ausências, as falsas ausências, foram quem mais me tatuou a alma. O meu pai foi esse mapeador de ausências. As cicatrizes do colonialismo estão presentes no seu romance. Esse é outro tipo de herança coletiva, especialmente no continente africano. A literatura pode ajudar a combater o racismo estrutural? Sim. E aqui é preciso estar atento. Não existe um único caminho para combater o racismo. As grandes soluções para superar o racismo implicam mudanças estruturais 5


Mia Couto Fronteiras do Pensamento

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que estão bem para além do assunto da raça. Não se trata apenas de uma questão de maior representatividade numa sociedade que continua a fabricar o preconceito e a discriminação. O caso de Moçambique é um bom exemplo: a raça deixou de ser um assunto porque se rompeu com tudo o que lhe era subjacente: a economia, a política, a sociedade inteira. Felizmente, nós não importamos estratégias e conceitos fundados noutras realidades históricas. Por essa razão, o caso moçambicano – que é um bom exemplo de superação do racismo – não pode ser replicado noutros contextos. E a literatura é uma ferramenta imprescindível na luta contra o preconceito. Sobretudo porque sugere uma identidade fundada na pessoa individual. Todas as pessoas têm direito a ser mais do que uma categoria racial: são o resultado único de um percurso feito de histórias.


Seu livro fala sobre o “idioma anterior a todas as palavras”. Ou seja, a poesia. Qual a importância da poesia? A poesia é mais do que um gênero literário. É a licença que damos a nós mesmos para pensar o mundo através do sentimento. Drummond falava desse “sentimento do mundo” que é tão vital e profundo e que foi sendo desvalorizado como algo que pertence ao departamento das artes. O pensamento é masculino, a sensibilidade é feminina. É isso que nos querem dizer. A maior parte das vezes, a realidade chega-nos por vias que escapam ao pensamento racional. A metáfora é tão rigorosa como a aritmética. Nos dias atuais, estamos ansiosos e com medo da realidade, especialmente no Brasil, onde o cenário do coronavírus é mais crítico. Nós, leitores, precisaremos ser “inventores de esquecimentos”, como o personagem do seu livro? Neste momento, já há entre os governantes brasileiros suficientes propostas para esquecer a realidade. Todo o discurso genocida de Bolsonaro é um apelo para enterrar antecipadamente a realidade viva do Brasil. No caso brasileiro, é preciso não esquecer a ditadura, a escravatura, o genocídio dos povos indígenas. Mas não basta não esquecer. Lembrar é mais do que um ato passivo de resistência. É uma construção feita com materiais do tempo presente. No caso de Moçambique, a construção de um presente humanizado, mais justo e democrático implica a busca de soluções inovadoras, com alianças e consensos fundados em premissas que não são apenas a repetição do que serviu num passado recente. A nostalgia serve pouco quando se trata de provocar mudanças pessoais ou sociais. Além da história moçambicana na década de 1970, com os massacres das tropas portuguesas, o livro também inclui a tragédia do ciclone Idai, que atingiu o país em 2019. Como é trabalhar literariamente com fatos recentes? Para mim, é essencial que essas realidades não sejam apenas contadas em segunda mão. Preciso de viver essas tragédias, de ir aos lugares onde sucederam, escutar as pessoas que sofreram. E deixar que essa vivência dos outros se incorpore em mim. Aconteceu nas guerras que massacraram e continuam a massacrar inocentes. 7


Aconteceu nos ciclones, nas inundações. Percebi que sofria mais sendo apenas um espectador. E por isso, saí da minha cidade e fui ao encontro dos lugares e das pessoas que viveram na carne esses dramas. Descobri, então, histórias que não eram apenas de sofrimento, mas de superação, de solidariedade, de esperança. As viagens a esses lugares não foram nunca uma excursão piedosa nem um ato de penitência. Foram um modo de me salvar a mim mesmo.

Mia Couto Fronteiras do Pensamento

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Eventos como o ciclone e a pandemia nos mostram que precisamos, cada vez mais, valorizar a empatia, o social e o coletivo. E o poeta é aquele que conversa com as sombras. É enxergando o lado sem luz que podemos ultrapassar os períodos difíceis? Como já disse, essa ausência total de luz é, quase sempre, uma construção de quem assiste na margem da realidade, uma projeção dos que sofrem por verem sofrer os outros. Recordo-me que visitei uma aldeia, no centro de Moçambique, onde acabara de haver um massacre. Estávamos na guerra civil e eu era jornalista. Cheguei à noite e surpreendi um grupo de músicos juntando tambores em redor de uma fogueira. Ocorreu-me que estariam lançando os tambores para dentro do fogo, numa espécie de ritual fúnebre. Acontecia o inverso: estava-se a afinar os tambores para se dar início a uma dança que celebrasse a vida. Não queremos dar força aos espíritos da tristeza, disseram-me. Nos países africanos que conheço, e são vários, domina essa atitude de não dar alimento ao desespero. Estou certo que o Brasil herdou essa capacidade de, mesmo em meio ao desalento, se levantar e sacodir a poeira para se dar a volta por cima.


Para ir além

QUEM LEMBRA UM CONTO AUMENTA UM PONTO Lembrar, esquecer, inventar o que pode ter sido: são com esses fios que se costuram as teias da literatura e da vida

IGOR NATUSCH

Na mitologia grega, Mnemosine personifica a memória. Filha de Urano e Gaia, a deusa é também uma das muitas consortes de Zeus – e mãe das nove musas, responsáveis por toda a inspiração artística entre os humanos. A música e a dança, a comédia e a tragédia, a história e a poesia: tudo nasce da deusa da lembrança, da guardiã das coisas que devem ser rememoradas ou esquecidas. Natural, portanto, que a literatura fale tanto de memória e que tantas palavras sejam usadas para lembrar do que foi e do que, não tendo sido, parece tão real que merece ser lembrança. Em O mapeador de ausências, Mia Couto empresta as próprias memórias a Diogo Santiago. Ou seria Diogo quem, na busca de seu passado, acaba relembrando a si mesmo? Talvez Mia Couto esteja apenas tomando as vivências do personagem para si. Eis um ponto onde memória e literatura se misturam: ambas não fazem tanta questão de ter clareza. Pode até não parecer, mas estamos falando também sobre você, tagger. É reconfortante trazer à mente memórias queridas, momentos mágicos que nos fazem avançar pela maior ou menor dificuldade dos dias, não é? Pois bem. Algumas das mais renomadas universidades inglesas se reuniram, em 2018, para entrevistar quase 7 mil pessoas sobre suas mais antigas memórias de infância. Quase 40% delas mencionaram recordações anteriores ao segundo ano de vida – coisas como uma travessura no berço, ou uma de suas primeiras tentativas de andar. O problema é que, pelo que a ciência conhece atualmente, o cérebro humano é incapaz de guardar memórias complexas antes de alcançar os 3 anos de idade. Ou seja, estamos diante de 9


uma coleção de memórias fofas, agradáveis, mas também implausíveis e potencialmente falsas. Se as pessoas parecem gostar de lembrar do que talvez nunca tenham vivido, é igualmente natural que os livros falem insistentemente sobre aquilo que se esqueceu. Em Esperando Godot, Samuel Beckett nos fala sobre o que não acontece, mas também sobre a fragilidade da memória: o diálogo fragmentado entre Vladimir e Estragon é costurado justamente pelas coisas que um deles lembra, ou acha que lembra, ou que ambos se esforçam para lembrar. No best seller Antes de dormir, S. J. Watson usa o esquecimento como ferramenta de suspense: Christine sempre acorda esquecendo tudo que viveu até então, sendo incapaz de confiar até mesmo naqueles que deveriam ajudá-la. "Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado". A frase de 1984, de George Orwell, é um alerta contra o totalitarismo enquanto destruidor das nossas lembranças – o que não deixa de ser também um comentário sobre nossa disposição em impor esquecimentos aos outros e a nós mesmos. Em O gigante enterrado, por sua vez, Kazuo Ishiguro faz do esquecer uma maldição de origem fantástica. Uma névoa liberada por um dragão faz com que a população perca suas memórias – situação que complica a busca de um casal por seu filho desaparecido, já que não recordam quase nada sobre ele, sobre o mundo, sobre a própria história. No fundo, trata-se de uma grande reflexão sobre a memória enquanto elemento indispensável ao amor. É nesse ponto que nossa jornada nos impõe uma importante questão: até que ponto o escritor se lembra de si mesmo? Talvez ele esteja, na verdade, querendo se fazer esquecer, forjando memórias tão atraentes que nos fazem ignorar o real. Raul Pompeia foi de fato enviado pelo pai a um internato, experiência de juventude que marcou sua vida – e história reinventada nas memórias de Sérgio, personagem-narrador do clássico impressionista O Ateneu. O russo Fiódor Dostoiévski esteve de fato preso, escapando por pouco da execução – mas quem poderá, ao ler suas Recordações da casa dos mortos, separar o que é autobiografia ou memória emprestada, o que foi vivido ou apenas imaginado a partir de sua experiência na prisão? 10


Em sua luta contra a depressão, Sylvia Plath achou no semiautobiográfico A redoma de vidro a chance de organizar as próprias memórias. A personagem Esther vive a mesma espiral descendente da autora que a imaginou, quase como se permitisse à escritora enxergar a si mesma do lado de fora da dor que a consumia. James Joyce fez, em Retrato do artista quando jovem, uma maldisfarçada autobiografia – mas, ao mesmo tempo, usou Stephen Dedalus para reinventar a si mesmo: é impossível ler essa obra sem misturar as duas figuras, permanentemente, na imaginação. E, se todas as histórias são sobre amor, natural que as palavras sejam usadas para lidar com amores que nunca puderam ser – que o diga Ernest Hemingway, que ergueu o monumental Adeus às armas em torno de uma paixão impossível vivida por ele durante os horrores da Primeira Guerra Mundial. Além de nos prover com a memória e as artes, Mnemosine era uma das figuras presentes no reino de Hades. Ela era responsável por uma fonte no mundo dos mortos, cujas águas eram capazes de trazer a plena consciência e, em consequência, interromper o ciclo de renascimento. Uma espécie de contraponto ao Lete, rio dedicado ao esquecimento, do qual as almas prestes a reencarnar bebem para esquecer suas vidas passadas. Águas nas quais Funes, o memorioso do clássico conto de Jorge Luis Borges, certamente adoraria mergulhar. Dotado de memória abissal e interminável, carregava tanta informação dentro do cérebro que se via incapaz de pensar – uma biblioteca ambulante, talvez, lotada de livros e ausente de leitores para decifrá-los. Haverá relação entre morrer e esquecer? A depender de Brás Cubas, personagem inesquecível de Machado de Assis, o caixão é um espaço dos mais confortáveis para lembrar – e, é claro, para inventar as próprias lembranças. Afinal, quem vai cobrar de um morto que se atenha à verdade dos fatos? Mesmo com a eternidade à disposição, ninguém pode ler tudo que existe, nem rememorar à perfeição tudo aquilo que viveu. De certa forma, a literatura talvez seja a arte de construir pontes entre o que existe e o que existiu, uma das filhas de uma memória permanentemente inalcançável e, por isso mesmo, profundamente humana. 11


Para ir além

UMA HISTÓRIA DE MUITAS ÁRVORES São muitos os personagens que povoam "Mapeador de ausências". Neste guia, Igor Natusch apresenta quem é quem nessa história.

BEIRA DIOGO SANTIAGO Filho de Adriano e Virgínia Santiago. Escritor e poeta, reside em Maputo, mas volta à cidade natal para uma homenagem e para uma jornada de memória, que pretende usar em seu novo livro.

VIRGÍNIA SANTIAGO Esposa de Adriano, mãe de Diogo. Tem uma relação difícil com a sogra Laura. Sofre com as infidelidades e o espírito sonhador do marido, ao mesmo tempo que é muito benquista pelo sobrinho Sandro e pelos negros da vizinhança.

SANDRO SANTIAGO ADRIANO SANTIAGO Primo de Diogo. Tem uma história Pai de Diogo. Poeta e jornalista, de vida misteriosa e, pelo comporenvolvido com movimentos de tamento afeminado, é visto como esquerda. Vai a Inhaminga duas "doente". Vai para a guerra, e seu vezes: primeiro para fazer fotos das desaparecimento faz Adriano ir atrocidades lá cometidas, depois em para Inhaminga pela segunda vez – busca do sobrinho Sandro. É monito- virando, mais tarde, mistério também rado pelo PIDE. para Diogo. 12


LAURA SANTIAGO Avó de Diogo, mãe de Adriano. Procura proteger o filho das investigações das autoridades portuguesas. FAUSTINO PACHECO Amigo de Adriano Santiago. Companheiro de atividades subversivas. LIANA CAMPOS Filha de Almalinda, neta de Óscar Campos. Conhece Diogo como mestre de cerimônias da homenagem por ele recebida e começa um envolvimento amoroso com o escritor, ao mesmo tempo que se alia a ele na busca da história dele – e da sua própria.

ERMELINDA (ALMALINDA) Filha de Óscar. Sua tentativa de suicídio (e a chegada boiando, ainda viva, à Vila do Búzi) se torna importante elemento do imaginário local. Permanece um tempo escondida em Inhaminga, e seu segundo mergulho no espaço cria uma crise política. ÓSCAR CAMPOS Delegado do PIDE, pai de Almalinda, avô de Liana. Investiga e, por fim, prende Adriano Santiago. Suas ações influenciam a vida de personagens como Almalinda, Sandro Santiago e Capitine Fungai.

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ROSINDA SARMENTO Vizinha dos Santiago. Patroa de Jerónimo Fungai, esposa de Vitorino, mãe de Camila. Denuncia atividades dos Santiago para a polícia. Vinga-se, em silêncio, da morte de Jerónimo. VITORINO SARMENTO Pai de Camila, marido de Rosinda. Mata Jerónimo ao encontrá-lo com sua filha e enlouquece em meio ao remorso pelo crime. CAMILA SARMENTO Filha dos Sarmento, amante de Jerónimo. Sofre o trauma da morte do amante, evento que tira sua vida inteira dos eixos.

GOA NATALINO FERNANDES Patrão de Periquito.

INHAMINGA BENEDITO FUNGAI Filho de Maniara e Capitine Fungai. Irmão de Jerónimo. Empregado da família Santiago em Beira, presente nas duas viagens a Inhaminga, onde nasceu. Mais tarde, torna-se importante figura no cenário político local. MANIARA FUNGAI Mãe de Benedito, esposa de Capitine. Colabora em segredo com a guerrilha e acolhe Sandro Santiago por algum tempo.

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CAPITINE FUNGAI Pai de Benedito e Jerónimo, marido de Maniara. Torna-se vigia no cemitério e testemunha da segunda morte de Almalinda. JERÓNIMO FUNGAI Irmão de Benedito. Foge com ele para Beira e vira empregado dos Sarmento. Amante de Camila, é assassinado por Vitorino. JANUÁRIO FUNGAI Tio de Benedito. Vira padre e colaborador da polícia colonial portuguesa. Se envolve no esforço para esconder Almalinda.

MUANZA Sandro faz patrulhas lá.

VILA DO BÚZI Local onde Almalinda surge após sua primeira tentativa de suicídio. PERIQUITO Empregado de Natalino, ajuda Diogo e Liana a chegarem à cidade. FLORÊNCIO ZEMBE Traz a Diogo e Liana informações sobre o dia em que Almalinda foi encontrada. ARLITO MUPOFORETA Pescador. Participa dos esforços para esconder Almalinda e dos traumas futuros de Januário.


Crítica

DIANTE DO CICLONE MATEUS BALDI

Diogo Santiago retorna à Beira, sua cidade natal, a convite de uma universidade. O que parecia uma simples homenagem a um escritor respeitado acaba sendo um retorno aos anos 1970, quando Moçambique se encontrava sob o jugo português. Novo romance de Mia Couto, O mapeador de ausências é a crônica implacável das agruras da colonização e seu efeito tenebroso. Logo nas primeiras páginas, uma dezena de pássaros caídos na estrada prenunciam a tempestade que pode ou não ter sido encomendada. Espécie de fio condutor do romance, o ciclone que se abateu sobre Moçambique em 2019 é imagem definitiva do que o poeta Diogo vai atravessar. Liana, a mestre de cerimônias da homenagem, lhe entrega de presente uma caixa contendo papéis da PIDE, a polícia salazarista. Junto com a caixa, um bilhete: seu avô foi o inspetor que prendeu o pai do poeta. É o suficiente para dar início a uma caçada através do tempo, em que Diogo alterna papéis, diários, interrogatórios e reminiscências em busca da verdade. 15


Certa vez, o escritor William Maxwell escreveu que “há demasiados interesses afetivos conflitantes para que a vida seja inteiramente aceitável, e é possível que seja tarefa do contador de histórias rearrumar as coisas para que elas se conformem a esse fim”. Diogo não faz menos que isso. “Os lugares são como os livros: só existem quando os lemos pela segunda vez”, escreve em carta para Liana. O retorno à juventude, se não pacifica a existência, no mínimo ajuda a reconstruí-la ao tornar possível ler territórios esquecidos como os mapas que são. Mia Couto é especialmente notável na reconstrução dos massacres ocorridos em Inhaminga, um dos centros urbanos da província de Sofala, transformado em ruínas pela guerra civil. "Se havia um inferno na terra, esse inferno era a vila de Inhaminga”, anota a mãe de Diogo em seu diário. Em fevereiro de 1973, foi para lá que o poeta Adriano Santiago levou o filho. Numa praça, avistaram corpos negros amontoados, “nus e cobertos de poeira”. Uma placa alertava: “isto é o que acontece a quem ajuda os terroristas”. Todavia não se trata de um romance embrenhado no horror. A prosa de Mia Couto tem a rara capacidade de amortecer os desvios do autoritarismo através de construções recheadas de um lirismo honesto, sem pirotecnias. Trata-se de alguém que sabe calcular a dose de melodrama e ação. Um dos grandes momentos é o testemunho de Benedito Fungai, antigo empregado da casa de Diogo: “acreditar que toda a nossa vida tivesse sido um inferno seria dar um prémio aos opressores”. Talvez seja esse o sentimento dominante ao fim da leitura: uma paz agridoce, que não invade mas também não perturba. Em 2021, quando parecemos ter “o leito coberto de passado”, tal qual o poeta querendo fugir das lembranças, ler O mapeador de ausências é ter em mãos um manifesto certeiro contra o autoritarismo. Para que nada desapareça. Para que todos saibam de que lado é preciso estar diante do ciclone.

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Jeferson Tenório Carlos Macedo

Agosto Um dos mais aclamados escritores brasileiros da contemporaneidade, Jeferson Tenório indica um livro de memórias que traz um pedacinho do Quênia para a casa dos taggers. Na história, um garoto fará de tudo para cumprir a promessa que fez à mãe e tornar-se um homem educado. Para quem gosta de: memórias, novos horizontes, superação. Setembro A escrita lírica e delicada da paulista Aline Bei ressoa em sua indicação para a TAG. Nesse livro em formato de diário, clássico da literatura uruguaia, um viúvo precisa lidar com uma paixão inesperada que faz cair por terra todas as suas convicções. Para quem gosta de: romance, vozes latinas, emoção.

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