1
2
Ao Leitor É tempo de celebrar. Todo mês de julho, a gente aqui na TAG busca uma surpresa para celebrar, com você, o nosso aniversário. São seis anos de curadoria – mas, há alguns julhos, abdicamos da figura do curador para trazer uma obra inédita de um grande autor. No ano passado, enviamos um livro escrito para a TAG pelo premiado José Luis Peixoto. Em 2018, você recebeu em primeira mão um livro da Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch. No anterior, pensamos em uma coletânea de contos escritos para a TAG pelos maiores nomes das letras brasileiras. Então, leitor, e aqui falamos com a modéstia à parte, precisamos dizer que este nosso aniversário é um sucesso ainda maior. Mandar uma obra de Haruki Murakami sempre foi um sonho. E a edição de Sul da fronteira, oeste do sol que chega até você é cheia de surpresas, como gostamos que sejam as nossas experiências. Nesta parte da revista, que você lê antes de começar a obra, você vai conhecer o premiadíssimo autor japonês que a assina, vai ler um pouco sobre o livro que recebeu e vai entender as inspirações da capa e das ilustrações internas desta edição exclusiva, assinada pela talentosa Sabrina Gevaerd. Prepare-se para uma história de muitos mistérios – alguns solucionáveis, outros não. Boa leitura!
julho/2020
TAG Comércio de Livros Ltda. Rua Câncio Gomes, 571 | Bairro Floresta Porto Alegre — RS | CEP: 90220-060 (51) 3095-5200
taglivros contato@taglivros.com.br www.taglivros.com
Edição
Impressão
Fernanda Grabauska
Impressos Portão
Redação
Projeto Gráfico
Daniel Silveira Fernanda Grabauska Laura Viola Hübner Maurício Lobo Nicolle Ortiz
design@taglivros.com.br
Bruno Miguell M. Mesquita Gabriela Heberle Kalany Ballardin Paula Hentges
produto@taglivros.com.br
Capa
Revisão
Sabrina Gevaerd
Antônio Augusto da Cunha Gustavo Lembert da Cunha Rafaela Pechansky Liziane Kugland
hello@sabrinagevaerd.com
Como manusear a nova revista
Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.
Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!
Sumário prefácio
3
05
O livro indicado: Sul da fronteira, oeste do sol
13
Entrevista com Sabrina Gevaerd
16
A relação da literatura com a música
4
O livro indicado
Sul da fronteira, oeste do sol de Haruki Murakami
Texto: Maurício Lobo Ilustração: Sabrina Gevaerd
Era uma tarde límpida de abril em Tóquio quando Haruki Murakami, prestes a completar 30 anos de idade, foi ao estádio do Yakult Swallows para acompanhar a partida de beisebol de sua equipe de coração. Entre copos de cerveja, despreocupadamente deitado sobre a grama, assistiu ao americano Dave Hilton acertar uma bela rebatida que ecoou no estádio e provocou aplausos dos presentes. Nesse exato momento, sem contexto ou fundamento plausíveis, uma revelação atravessou sua mente de súbito: talvez ele pudesse escrever romances. Verdade ou fabulação, essa é uma história bastante célebre da trajetória do escritor japonês. Além de obviamente curiosa, talvez o motivo dessa anedota ser tão repetida e difundida por jornalistas e pelo próprio Murakami seja o caráter de conexão, ainda que indireta e sutil, com seu universo literário e sua forma tão característica de contar histórias. Afinal, as circunstâncias altamente casuais e aleatórias dessa epifania experimentada por Murakami sugerem que há algo nela de mágico. Seja como for, o insight de Murakami o levou ao caminho de se tornar um dos autores mais lidos no Japão e um dos mais traduzidos no mundo. Sua extensa obra, que abrange romances, contos e diferentes textos de não ficção, acumula prêmios há muitas décadas, tornando-o parte do seleto grupo de escritores mais
5
6
vendidos reconhecidos positivamente pela crítica acadêmica. Já é comum vê-lo especulado, ano após ano, como candidato ao Nobel de Literatura. Com um estilo de escrita tão único quanto lapidar, Murakami é conhecido por empregar em suas narrativas elementos da cultura popular globalizada e por abordar reflexões sobre temas universais, como família, sexo, amor, solidão e as infindáveis angústias humanas. Uma combinação que evoca cenários muito familiares para o leitor ocidental, mas que nunca perde sua aura tipicamente japonesa. Um dos encantos mais evidentes de seus romances e contos está em abordar esses assuntos banais a partir de uma ótica que transcende a realidade. Seus protagonistas, geralmente homens de seus trinta e poucos anos, são indivíduos solitários e fora de sintonia com o mundo, prestes a embarcar em aventuras surreais e estranhamente redentoras, forçados a se verem (por vezes, literalmente) no fundo do poço para então atingirem um novo e libertador entendimento sobre a própria condição. Nesse arco de aventuras e desventuras fantásticas, não são raras imagens de pessoas sem rosto, chuvas de peixes e aparições em cenários oníricos. Tudo isso ao som de jazz. E cercado de gatos, muitos gatos.
“Em vez de histórias de ‘coisas anormais acontecendo a pessoas anormais’ ou histórias de ‘coisas normais acontecendo a pessoas normais’, eu gosto de ‘histórias de coisas anormais acontecendo a pessoas normais’.”
Tentar aproximar elementos de biografia e obra desse autor não é uma tarefa simples, visto que Murakami prefere levar uma vida reclusa e é avesso a entrevistas. Ainda assim, vez por outra, ele acaba compartilhando detalhes de sua trajetória que ajudam a compreendê-lo um pouco mais. Nascido em Quioto, no Japão do pós-Guerra, Murakami era filho único em uma época tomada pelos baby boomers. A juventude sem irmãos, combinada com uma personalidade reservada, proporcionou conexões com atividades solitárias, o que eventualmente conduziu a um fascínio pela literatura e pela música. Talvez por influência dos pais, professores de literatura, Murakami cultivou um especial apreço pela arte ocidental, e cresceu lendo autores como Franz Kafka, Gustave Flaubert, Kurt Vonnegut, Fiódor Dostoiévski e Richard Brautigan. Na Universidade de Waseda, decidiu estudar cinema e artes cênicas, mas levou o curso com pouca convicção, faltando aulas enquanto tentava sobreviver trabalhando em uma loja de discos. Depois de conquistar o diploma, unindo suas necessidades financeiras à obsessão por música e a um pouco mais de ambição na vida, Murakami e sua esposa Yoko Takahashi abriram um bar de jazz; Peter Cat era o nome do estabelecimento que se tornou a principal fonte de renda do casal por quase uma década. Esse período marcou também os anos formativos de Murakami, aos quais se refere hoje como de muito trabalho e praticamente nenhum lazer, mas que lhe garantiram grande experiência e uma certa resiliência frente ao mundo. Foi nesse contexto sem grandes perspectivas que lhe aconteceu a já mencionada epifania. Naquela mesma noite, Murakami sentou-se à mesa da cozinha de casa e deu início a um processo de escrita paciente e metódico que levaria à primeira versão do romance Ouça a canção do vento. Insatisfeito com o resultado, ele empregou um método inusitado para aprimorá-lo (outra das famosas anedotas que compreendem seu folclore): reescreveu suas primeiras
7
8
páginas em inglês, idioma no qual escrevia com dificuldade, e finalmente traduziu a nova versão de volta para o japonês, empregando a simplicidade da versão traduzida. Descobriu, assim, a voz, o ritmo e a concisão que procurava, e, com esse combo, veio o primeiro prêmio da carreira. Por um período que compreendeu a publicação de seus quatro primeiros romances (O impiedoso país das maravilhas e o fim do mundo, de 1985, é o único não disponível no Brasil), Murakami consolidou-se como um dos favoritos dos jovens leitores do Japão, adquirindo status de autor cult e vanguardista. Não encontrou boa receptividade, contudo, nos críticos e escritores mais tradicionais, que inicialmente não se convenceram com a literatura de um japonês influenciado pela cultura ocidental – Kenzaburo Oe, Nobel de Literatura de 1994, foi um de seus críticos mais contundentes. Murakami, por diversas vezes, defendeu-se com o argumento de que era simplesmente um escritor diferente, e que isso bastaria para incomodar. Sua reputação deu um novo salto com a publicação de Norwegian wood (1988), um de seus romances mais celebrados, que vendeu cerca de dois milhões de exemplares à época e atingiu um público de diferentes gerações. Curiosamente, esse é o único de seus escritos de ficção sem elementos fantásticos, e elaborado como uma experimentação que nem o próprio Murakami sabia se encontraria êxito. Desde então, o autor emplacou inúmeros fenômenos de vendas e angariou um contingente de leitores fiéis. Alguns deles são os romances Minha querida Sputnik (1999), Kafka à beira-mar (2002) e a trilogia 1Q84 (2009-2010). Destacam-se também a coletânea de contos O elefante desaparece (1993) e o livro de não ficção Underground (1997-1998, não disponível no Brasil), no qual entrevistou pessoas envolvidas com os atentados ocorridos no metrô de Tóquio em 1995, quando um grupo terrorista japonês espalhou gás sarin, matando doze pessoas e ferindo mais de 6 mil. Entre os poucos romances não traduzidos para o português do Brasil, estava Sul da fronteira, oeste
9
do sol (1992), que finalmente desembarca em território brasileiro na exclusiva edição de aniversário da TAG. Envolvente, com um ritmo narrativo que se desenvolve sem pressa até agarrar completamente a atenção do leitor, Sul da fronteira, oeste do sol é uma obra que também encarna particularidades introspectivas e convida a refletir. No centro da trama está Hajime, o narrador que recapitula sua vida desde a infância e reflete sobre seus principais acontecimentos. Nascido em 1951, filho único, Hajime cresceu com um sentimento de incompletude, num pequeno universo onde todas as crianças têm irmãos com quem dividir experiências. Julgado pelos outros como uma criança mimada (e, indignado, tendo de se reconhecer como tal), o protagonista encontra conforto ao se aproximar de Shimamoto, uma menina de seu colégio que divide com ele a excêntrica condição de filha única. Juntos, eles passam tardes ouvindo discos da coleção do pai
“Uma meditação profunda sobre a fragilidade humana, o domínio da obsessão e o enigma impenetrável e eroticamente carregado que é o outro” - The New York Times
10
da menina, trocando confidências e alimentando uma cumplicidade e conexão únicas na vida do protagonista. A amizade entre os dois, contudo, chegará ao fim com uma súbita mudança de cidade. Hajime continuará seu percurso, com altos e baixos, levando a uma vida adulta relativamente feliz, mas com uma persistente sensação de inautenticidade, recheada de culpas e arrependimentos pelo caminho. Essa angústia leva a um ponto de inflexão na narrativa, quando uma série de acontecimentos colocará o protagonista de frente com suas questões mais profundas de seu passado. Guiado principalmente pelas experiências sentimentais e sensoriais do protagonista, esse é um romance onde fantasia e realidade se misturam de maneira quase imperceptível. Sul da fronteira, oeste do sol nos leva por diferentes ondas de dissociação, melancolia, timidez e solidão. Tudo engenhosamente arquitetado por uma escrita marcada por um ritmo narrativo dinâmico. Os leitores mais acostumados com os textos de Murakami logo perceberão diversas semelhanças. A composição das experiências do protagonista, em especial quando Hajime
volta-se para dentro de si e examina-se sem censuras, é capaz de gerar no leitor sensações de familiaridade. É também recorrente a utilização de imagens contemplativas e marcadas por elementos da natureza, como o deserto e a chuva, que, combinados com os quadros sentimentais do protagonista, constroem uma atmosfera cheia de nuances, sem necessariamente alongar-se em descrições desnecessárias. É assim, combinando obsessões com o passado, questionamentos sobre o intrincado relacionamento entre desejos e sonhos distantes, e incorporando uma robusta potência poética, que Sul da fronteira, oeste do sol evidencia-se como uma das obras mais misteriosas da obra de Murakami. E também uma das mais evocativas e simbólicas. Engana-se, porém, quem pensa que Murakami deseja ver seus livros desvendados tal qual um simples jogo de adivinhação. Segundo ele, sua brincadeira enquanto cria narrativas se dá com o próprio subconsciente, que traz à tona miragens que não acarretam necessariamente significados evidentes. A utilização de símbolos nesse livro, e em quase todo texto de Murakami, destaca-se muito mais pelo poder de incitar interpretações do que por uma busca de significados encerrados em si. Por meio desse ponto de vista, talvez seja mais fácil compreender a inquietação provocada pelo universo de Murakami – ele ajuda a entender até mesmo o poder da história de sua epifania durante o jogo de beisebol. A cada ano, a anedota parece se confundir mais e mais com o mundo criado por ele nos livros. No lugar de se vangloriar pela revelação ocorrida naquela marcante tarde em Tóquio, talvez Murakami prefira apenas contá-la no intuito de simplesmente evidenciar o poder mágico e, muitas vezes, inexplicável desses eventos fortuitos, algo que costumamos ignorar nas nossas realidades cotidianas. Interpretá-las não é tarefa fácil, mas – Murakami parece já ter entendido há muito tempo –, certamente, uma das mais prazerosas.
11
12
Entrevista: Sabrina Gevaerd
“Você sente muito quando lê Murakami” Sabrina Gevaerd desenha motivada nem tanto por imagens e mais por sensações. Não à toa, o convite para criar as ilustrações que compõem a capa e o miolo de Sul da fronteira, oeste do sol a motivaram a mergulhar num manancial de sentimentos. Nesta entrevista, concedida durante o isolamento em virtude do novo coronavírus, a ilustradora de Brusque (SC), radicada há dois anos em Londres, fala sobre sua leitura de Murakami, sobre sua rotina de trabalho e sobre a inspiração para a capa do livro que você recebe. 13
TAG — Como foi ler esse livro?
Ilustrações: Sabrina Gevaerd @sabrinagevaerd
Sabrina Gevaerd — Eu me atirei de cabeça. Peguei o livro e li em um dia, Murakami é muito fácil de ler. E muita coisa do trabalho dele é referente àquilo que não acontece, ao que você não fica sabendo. Tudo fica no plano de ideias, você supõe o que aconteceu e isso tem muito a ver com meu trabalho, que sugere as coisas mais do que propriamente mostra. Entrei de cabeça nas coisas que poderiam ser. Ao ler o livro, formulei uma lista que me vi imaginando conforme lia e que não estavam na página. E queria saber como eu poderia retratar essas sensações. Você sente muito quando lê Murakami. Você sente a tristeza, você sente aqueles momentos. O desafio era representar essas sensações com o que a história dá. Aquela cena da água, em que Shimamoto está na montanha, eu pensei em como deixar aquela cena o mais melancólica possível. Então há a mão dentro da água, o vento passando... tentei ir pelo caminho do não dito.
Qual das ilustrações do conjunto é a sua favorita? Que difícil! Eu não sei qual é. Eu fico entre a capa e a da água. Essa passagem do livro é super triste, fiquei super triste fazendo. Mostrei para o meu marido, que não tinha lido o livro, e perguntei: “o que você sente vendo isso?”. Ele respondeu: “eu fico triste”. Daí eu soube que era isso mesmo.
Quando fui me informar sobre seu trabalho, gostei muito de como você faz o uso dos quadrinhos mesmo quando a arte não é sequencial. Também gostei de ver que você imprime em riso! Você pode falar um pouco do seu trabalho atual?
14
A riso (tipo de impressora que imprime uma cor por vez) é uma das minhas paixões. Tudo impresso nela fica muito delicado. Eu estava fazendo muitas coisas antes de isso tudo acontecer, estava organizando uma exposição de artistas do Brasil em Paris, que foi cancelada. Eu estava lá há três dias quando tive que voltar. Eu estava lançando um livro com outros ilustradores brasileiros. Eu ia ao Brasil em abril, o livro seria impresso em riso, eu o traria a Londres para participar de alguns eventos... tudo isso está não acontecendo agora. Durante a quarentena, comecei a fazer um tarô. Acordava e desenhava o que me vinha à cabeça na hora, um pouco sobre como era passar por isso tudo de forma global. Mas depois veio o livro, me joguei nisso e agora estou nos meus dias de férias pós-projeto.
Vi que você andava desenhando cartas de tarôt e ouvindo o novo da Fiona Apple. O que mais tem te inspirado na hora de criar? Nos primeiros dias eu tinha muita energia. Normalmente, quando preciso criar alguma coisa, o que mais me inspira é a música. Assim como para o livro, o jeito que mais gosto de desenhar é ouvir alguma música até entrar em uma condição de espírito em que eu sinta alguma coisa específica. Daí eu posso começar a desenhar. Eu não parto de uma imagem específica, mas sim de uma sensação específica. Música é muito importante quando estou desenhando e, quando começo a entrar em um ritmo, eu escuto muitas vezes a mesma música. Às vezes, ouço a mesma música por três dias (risos). Então, no começo (da pandemia), estava mais inspirada pelas coisas que estava sentindo, estava explorando mais minha psique... até que veio esse projeto incrível da TAG e eu consegui pegar toda essa vontade e canalizar em um projeto só. Desde que acabei o livro, confesso que estou um pouco “desinspirada”, estou naquela parte da quarentena em que estou cansada de ficar em casa, sabe?
15
A relação da literatura com a música
16
Texto: Daniel Silveira
As fronteiras que separam a música da literatura muitas vezes podem ser tênues devido aos aspectos familiares que as constituem. A ópera, por exemplo, funde elementos da poesia narrativa, música e performance teatral. Outro exemplo diz respeito ao gênero canção que, no mínimo, necessita de uma mobilização entre letra e melodia para fins estéticos. Não foi à toa que, em 2016, o cantor e compositor Bob Dylan levou o prêmio Nobel de Literatura. Essa relação de intimidade artística entre música e literatura em termos de recursos expressivos acaba também por proporcionar que artistas como Chico Buarque, Leonard Cohen e Patti Smith, reconhecidos musicalmente, empreendam trabalhos literários. Em Sul da fronteira, oeste do sol, Murakami utiliza-se das potencialidades da música como auxiliar para a construção atmosférica das cenas. Os eruditos Rossini, Beethoven, Liszt, assim como os populares Nat King Cole, Bing Crosby e Duke Ellington, são alguns dos nomes que aparecem com suas músicas na obra. Há ainda outras formas de se aproximar de elementos musicais na literatura, apropriando-se de elementos como estrutura, ritmo, melodia e harmonia. Ou, ainda, como acessória à tematização da trama. Vejamos algumas obras literárias que estabelecem esses tipos de vínculo:
Machado de Assis é um dos autores que bebeu das fontes musicais em suas obras. Um exemplo conhecido é "Um homem célebre" (1883), um de seus contos mais angustiantes, embora repleto de pitadas irônicas. Nele, Pestana, um reconhecido compositor popular de polcas, vive a dolorosa condição de não conseguir realizar seu grande sonho: ser um compositor erudito. Aqui, a música é utilizada como elemento que interfere decisivamente no estado de espírito do personagem, criando um embate tão abordado por Machado em suas obras: o choque entre idealização e realidade.
Ulisses (1922), de James Joyce, é um romance conhecido por sua complexidade estética. São 24 horas vividas intensamente pelo protagonista. Em um desses momentos, no intuito de realizar uma refeição, Leopold Bloom, às 16 horas, entra em um bar preferido por músicos amadores de Dublin. As onomatopeias do local, a cantoria, 17 assim como as conversas paralelas, constroem uma polifonia em que temáticas e melodias se contrapõem. A fuga, técnica musical de inspiração de Joyce, funciona aqui como um artifício estético, mas há também uma série de operetas e canções sendo executadas no momento.
O escritor argentino Julio Cortázar era um aficionado por jazz. "O perseguidor" (1959) é um de seus contos revestidos por essa temática. Inspirado em Charlie Parker, traz a perspectiva de Bruno, um crítico musical, que empreende um trabalho a respeito da carreira de Johnny Carter, seu amigo saxofonista que vive aturdido pelo uso de drogas e álcool. Em seus shows, enquanto executa suas notas, Carter distorce o sentido do tempo. A música, mais precisamente o dinamismo jazzístico, serve de revestimento temático nessa busca obsessiva por evadir-se da normalidade instaurada no mundo, alterando os hábitos de percepção e modos de vivência.
Jazz (1992), história de obsessão e violência, é dos romances mais celebrados da americana Toni Morrison, primeira mulher negra a receber um Nobel de Literatura. A narrativa de Jazz se passa em 1926 no Harlem, bairro de Nova York aonde à época chegavam pessoas do campo em busca de novas oportunidades e onde começava a se popularizar o famoso gênero musical. Entre idas e vindas no tempo, vamos conhecendo a história do casal Violet e Joe Trace, um homem que assassina sua amante adolescente. Além da referência no título, esse romance recria a temática e as estruturas musicais, passando pelos típicos lamentos do blues, pela aceleração alegre do ragtime, e experimentando com os improvisos do jazz.
18
A morte de Carlos Gardel (1994), romance do respeitado escritor português António Lobo Antunes, nos coloca no centro de uma família lisboeta em plena crise relacionada aos laços afetivos. Álvaro, o patriarca, fã de Gardel, acredita que o cantor não teria morrido, como noticiado em todo o mundo, em um acidente de avião. Cada capítulo da trama traz o título de uma canção do nome mais reconhecido na história do tango. Na obra, esse artifício funciona como sugestão dos dramas vividos por cada personagem.
Kazuo Ishiguro, escritor japonês premiado com o Nobel em 2017, é conhecido principalmente por seus romances. No entanto, também escreveu coleção de contos, como Noturnos – Histórias de música e anoitecer (2009). Desde o título, referência ao estilo erudito de caráter melancólico, passando pelos personagens e temática, a obra de Ishiguro encarna o universo musical. De modo geral, o livro aborda situações embaraçosas de quem necessita de música para viver. Além disso, o leitor encontrará excelentes referências musicais norte-americanas na obra, como Ray Charles, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Chet Baker.
A americana Jennifer Egan recebeu os prêmios Pulitzer e National Book Critics Circle Award por A visita cruel do tempo (2010), uma obra dividida em 13 capítulos que também funcionam como histórias individuais, narradas através de diferentes perspectivas. Todos os personagens e ações do livro conectam-se com a trajetória de Bennie Salazar, um ex-integrante de uma banda punk e agora executivo da indústria fonográfica, e Sasha, sua assistente cleptomaníaca. A música é uma constante em cada página desse romance, que nos conduz pela São Francisco dos anos 1970 até a Nova York de um futuro próximo e reflete a autodestruição, a redenção e os imprevisíveis caminhos da vida.
Através de Nick Hornby, a literatura inglesa presenteou uma geração íntima da cultura pop com o romance Alta fidelidade (1995). Dono de uma loja de discos, Rob Fleming é o protagonista da história. Desiludido amorosamente após encerrar mais um namoro, Rob faz um balanço de seus términos no intuito de compreender aquilo que considera ser uma sina nociva em sua vida. Tendo poucos amigos para conversar francamente sobre o assunto, Rob estabelece uma relação íntima com a música, que, na trama, apresenta um poder reconfortante para o personagem. Canções de Madonna, Al Green, Peter Frampton, Stevie Wonder, Aretha Franklin, entre outras, aparecem na obra de Hornby.
19
Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.
21
22
Ao Leitor O que você achou da leitura? Estamos ansiosos para saber quais foram suas impressões a respeito da história de Hajime e Shimamoto. Mas, antes que você vá discutir no aplicativo da TAG sobre o misterioso elo entre os dois, fique conosco mais um pouco! Nesta parte de aprofundamento de leitura, você lê a respeito da simbologia de água e deserto na história de Sul da fronteira, oeste do sol. Você também encontra uma entrevista exclusiva com Rita Kohl, tradutora do livro do mês, que assina o posfácio. Ela conta à TAG sobre a experiência de traduzir Murakami, suas percepções a respeito da história... e sobre sua palavra favorita em japonês (a gente adorou!). Aqui na TAG, somos movidos pela vontade de tornar a literatura uma paixão nacional. Cada livro que editamos, cada curador com quem conversamos, tudo o que fazemos é para ver realizado o sonho inicial dos nossos fundadores: que a literatura se torne conversa de bar. Os últimos meses, sabemos, limitaram nossas possibilidades de interação presencial. Mais do que nunca, os livros se tornaram o nosso refúgio. Este aniversário é nosso abraço, a distância, em você. Você pode se lançar ao abraço de um livro e também pode sempre conversar conosco. Mais do que tudo, não se esqueça de que estamos aqui. Estamos sempre juntos.
“A escuridão não se dissipa, mas se adensa enquanto penso como é pouco o que logramos conservar na memória, como tudo cai constantemente no esquecimento com cada vida que se extingue, como o mundo por assim dizer se esvazia por si mesmo, na medida em que as histórias ligadas a inúmeros lugares e objetos por si sós incapazes de recordação não são ouvidas, não são anotadas nem transmitidas por ninguém.” (SEBALD, W.G., Austerlitz)
Ilustração do mês Mari Duarte é ilustradora brasiliense que vive e trabalha em São Paulo há 9 anos. O imaginário coletivo popular e a valorização da ancestralidade brasileira pontuam suas pesquisas e práticas artísticas. Por meio da síntese, entende que há um lugar entre abstrato e figurativo para o trabalho de ilustração. Vê na literatura uma forma de se manter em viagem e combater os excessos de nós mesmo. A TAG deu à Mari o desafio de representar a suntuosidade do bar de Hajime, onde ele aprecia o melhor do jazz e tem longas conversas com a misteriosa Shimamoto.
Sumรกrio posfรกcio
3
04
Ao sul das รกguas, a oeste do deserto
08
Entrevista com Rita Kohl
14
Jhumpa Lahiri: A curadora de agosto
Ao sul das águas, a oeste do deserto O drama psicológico de Hajime é o grande sustentáculo da narrativa de Sul da fronteira, oeste do sol. É interessante notar que, desde o início, o cenário mental do protagonista é cercado por uma realidade de cenários evocativos e poéticos – nos quais alguns elementos insistem em se repetir. É o caso da música e de alguns animais, como rãs, caramujos, urubus e abutres. Outros dois elementos, no entanto, surgem com maior destaque e são definidores do turbulento universo interior do protagonista. O primeiro diz respeito ao deserto, representativo da perene sensação de incompletude e solidão de Hajime. Já o segundo envolve seus laços afetivos fora do âmbito familiar e conecta-se a analogias com a água. Esperamos que o que apresentamos aqui ajude-o a interpretar, a seu modo, as belas imagens da obra de Murakami.
4
DESERTO
Texto: Daniel Silveira Maurício Lobo
Murakami é como um alquimista: transforma as experiências mundanas em símbolos capazes de insinuar as aflições sensitivas de seus personagens. Em Sul da fronteira, oeste do sol, a imagem do deserto, tão utilizada como metáfora na história da arte, expressiva por seu sentido hostil à vida, torna-se central para Hajime.
O personagem fará, em mais de um momento, referências a essa paisagem a fim de reforçar seu sentimento desconcertante de vazio existencial. O primeiro momento em que a imagem desértica figura como símbolo na obra ocorre após um ex-colega de Hajime mencionar o filme O drama do deserto. A intenção desse velho conhecido do protagonista é trazer conselhos a respeito das angústias que permeiam a vida. No filme, discorre ele, a chuva, em um ambiente tão árido, traz vida, enquanto a seca significa o sumiço de tudo, sobrando somente o deserto. Dois sentidos primordiais dessas observações são absorvidos por Hajime: a incapacidade de lutar contra a imprevisibilidade natural do destino, além, é claro, da consequente sensação de incompletude advinda dessa situação. Com efeito, a ideia por trás do conceito de deserto é bastante instrutiva tanto para Hajime como para nós leitores. A partir daí, é possível compreender a sensação de solidão do protagonista por crescer sendo filho único. Ou, ainda, seu sofrimento após distanciar-se de Shimamoto, vínculo afetivo mais profundo que manteve durante a pré-adolescência. Há uma certa demora para compreender essa perda, mas, no momento em que toma consciência do significado que essa presença tinha em sua vida, desponta “a impressão de que o mundo se esvaziara de súbito”. Não há triunfos quando o destino ignora os desejos, traçando, assim, um caminho direcionado ao deserto. Hajime torna-se ciente dessa situação, pois nem a construção de sua família, aliada à estabilidade financeira, foram capazes de alterar o sentimento de insaciabilidade do narrador. Contudo, sua angústia não está limitada somente às questões amorosas mal resolvidas do passado. A forma como o personagem se embrenha no mercado financeiro por influência do sogro é uma das causas dessa espécie de consternação sentida por ele. Sua consciência de não pertencimento é mobilizada, gerando uma certa aversão ao sistema no qual está inserido. Assim, é possível afirmar que a inadequação social fundamentada na sensação de falta é constante em Hajime. Se voltarmos para sua adolescência, quando pela
5
primeira vez beija uma menina, Izumi, que se tornaria sua namorada, não encontraremos a satisfação digna da grandeza tradicionalmente depositada nesse momento. Pelo contrário, Hajime se sente “como uma torre sem alicerces”. Nem mesmo o retorno de Shimamoto, mais tarde, traz a paz necessária, pois, assim como a chuva, sua presença é instável. Resta uma única certeza e ela está relacionada diretamente com o vazio da existência:
“Cada um vive do seu jeito, morre do seu jeito. Mas isso não importa muito. No fim, sobra apenas o deserto. A única coisa viva de verdade é o deserto”. ÁGUA
6
Sejam suaves ou tempestuosas, as chuvas (e de maneira geral, a água) são elementos da natureza muito presentes na narrativa de Hajime e estão intimamente conectadas à presença feminina em sua vida. Não por acaso, a água estabelece um contraste óbvio com o deserto e, nesse sentido, age como um elemento proporcionador da vida. Talvez até mais do que isso: considerando a importância das mulheres nos livros de Murakami, elas seriam um motor capaz de impulsionar alegrias, decepções, tristezas, enfim, a vida e a morte. Tais conexões se estabelecem desde o início da vida amorosa de Hajime. O nome de Izumi, sua primeira namorada, significa “nascente de água”. Anos mais tarde, o protagonista conhece Yukiko, sua futura esposa, justamente quando estava se protegendo de uma chuva de verão. Chama a atenção, nessa passagem e na própria observação de Hajime, o forte poder da casualidade na sua vida, e o quanto ele se sente vulnerável a ela. De qualquer forma, é Shimamoto, mulher que estimula sentimentos intensos em Hajime, a personagem que mais se apresenta como relacionada à água pelo protagonista ao longo do romance. Seu súbito
surgimento no bar do narrador, já em sua fase adulta, acontece durante uma noite de chuva, e assim permanece durante todas as suas aparições, o que em certo momento passa a interferir na própria relação do protagonista com o clima. Na viagem secreta dos dois para Ishikawa, o objetivo de Shimamoto é encontrar um lugar com rio de correnteza rápida e que leve até o mar. É lá que a personagem deixa as cinzas de sua filha para que, depois de percorrer as águas, evapore e torne-se, enfim, chuva. Mais tarde, será também com água que o protagonista salvará a vida de Shimamoto, ao derreter a neve e fazê-la engolir seu remédio. Murakami reforça essa conexão também nos detalhes: curiosamente, a personagem sempre se veste em tons azulados, o que acaba chamando a atenção de Hajime. A exceção acontece quando o narrador a segue pelas ruas da cidade no estranho episódio anos antes do reencontro dos dois no bar de jazz: naquele momento, cujo desfecho é quase onírico, Shimamoto veste um sobretudo vermelho.
“Eu a olhei nos olhos. Eram como a água de uma nascente silenciosa, à sombra de uma rocha, fora do alcance do vento. Tudo estático, sem nenhum movimento. Tive a impressão de que, se ficasse olhando, conseguiria ver os reflexos na superfície da água.” Tendo essas questões em mente, fica evidente a escolha de Murakami para o título do romance, pois ele reforça a dicotomia trabalhada exaustivamente ao longo de toda a narrativa. Enquanto “sul da fronteira” faz menção à canção que o protagonista ouvia com Shimamoto (o outro, a água, o mistério, a vida), “oeste do sol” remete à histeria siberiana provocada pela paisagem desértica, explicada em um diálogo entre os dois personagens (o mundo interior, a angústia, a falta).
7
Entrevista: Rita Kohl
8
“Traduzir é desafiador, ponto” Como estudante de Letras, Rita Kohl pensava que traduzir do japonês era impossível. Qual não foi sua surpresa ao descobrir, anos depois, que era possível, sim. Quer dizer: “era impossível, mas também era possível, porque alguém tem que fazer”, como ela diz. Porque ela pode, Rita traduz o livro que você recebe, no qual também assina o prefácio. No início de maio, ela conversou com a TAG direto de seu escritório em São Paulo, em meio à pandemia do novo coronavírus. Nesta entrevista, a tradutora – que teve Murakami como primeira incursão na literatura japonesa contemporânea – nos fala da sua palavra favorita em japonês e sobre algumas idiossincrasias dessa literatura.
TAG — Há algum desafio em traduzir Murakami? Rita Kohl — Na verdade, eu acho desafiador traduzir Murakami porque é traduzir japonês. Traduzir é desafiador, ponto. Mas, dentro do conjunto de obras literárias, eu não acho particularmente desafiador. Ele tem um texto claro, não tem muitas partes em que você fica em dúvida. Isso acontece muito no japonês, o sujeito está omisso e você não tem certeza do que está acontecendo. Nem tem frases muito compridas, que são muito difíceis de recriar no português. A estrutura do texto dele ecoa às vezes a literatura em língua inglesa, que tem muita influência para ele. Ele também traduz do inglês. Quando a gente vê esse eco, fica mais fácil, quando ele coloca o sujeito em lugares que outros escritores não colocariam. Algo que não é tanto um desafio, mas sim algo em que eu penso muito quando traduzo Murakami é tentar manter um tom de leveza. Não chega a ser coloquial, acho que no inglês às vezes fica mais coloquial do que eu gostaria, mas ele não tem essa coisa mais dura, mais requintada. Então é tentar achar o equilíbrio numa coisa que passe as sutilezas do original, mas que em português não fique um texto duro. Para mim, a fluência é importante. Não é o caso em qualquer tradução, mas acho que nas traduções dele, sim.
Murakami vez que outra traz uma mulher misteriosa que desencadeia os acontecimentos do enredo. Qual seu parecer a respeito de Shimamoto? Eu li esse livro há uns 14 anos, em um momento muito diferente da vida. Então ficou muito forte para mim essa ideia de um romance. Eu foquei muito na relação do narrador com a Shimamoto e nem lembrava da esposa dele. Hoje em dia, vi diferente. Tinha guardado uma sensação de tristeza sobre ela, e isso certamente eu reencontrei. Você comenta que sempre há essas mulheres misteriosas que colocam as coisas em movimento nas obras dele. Eu não sei fazer uma grande afirmação sobre outras obras, mas o que senti nessa obra é que Shimamoto possui uma grande dualidade. Por
9
um lado, ela está completamente escondida, nós não sabemos o que está acontecendo com ela, mas há alguns relances que conseguimos ver, e que são muito intensos, da vida dela, como o episódio do bebê. A gente sente, pelo pouquinho que pode ver dela, dores muito intensas, algo muito preso e contido, mas que você consegue ver. Isso é algo muito importante sobre ela.
Fiquei pensando que não sabia sequer se a Shimamoto do presente era uma personagem real ou uma maquinação de Hajime.
10
Vi muitas leituras nesse sentido, mas para mim isso nunca foi uma questão. Eu acho que é uma leitura plenamente possível. Mas também acho que ele coloca alguns marcadores especificamente para não parecer isso. Ele volta para dentro do bar e o cigarro que ela estava fumando está ali. Parece que tem algumas coisas que ele faz questão de mostrar. O que eu fiquei em dúvida foi em relação à última noite, em que ela aparece, eles vão a Hakone, ali eu achei que ele podia estar viajando (risos).
Um homem tornado louco pelo desejo... Isso (risos). Nessa última parte, achei que ele poderia estar no reino da fantasia. Mas, no geral, acho que ela é uma personagem de carne e osso, embora ache bem aberto a interpretações.
O que você achou do tratamento que o autor dá ao adultério no livro? Muita gente tem essa ideia de que os japoneses são muito privados sobre seus afetos... Mas a maior parte do que eu li de literatura japonesa tem bastante sacanagem (risos). Sim. Eu acho que talvez hoje em dia a gente tenha essa imagem, essa coisa de que lá os jovens não fazem mais sexo, de que eles não querem se casar, de que a falta de nascimentos é efetivamente um problema. Não gosto de fazer grandes análises sobre a sociedade japonesa porque sou tradutora, não antropóloga. Mas, pensando na parte
do adultério especificamente, nessa coisa do sexo, se você for olhar outros grandes autores do período moderno, como Tanizaki, Kawabata, que são mais conhecidos em tradução, adultério e relações sexuais são temas muito recorrentes. E, historicamente, o Japão tinha poligamia – para os homens. Mas a ideia do casamento como instituição é do final do período Meiji, lá por 1800. Se você for ver as narrativas do príncipe Genji, que são bem famosas, você vai ver que até do homem comum era exigido ter filhos. Então, se uma esposa não tinha mais filhos, arrumava outra esposa. E, mesmo assim, lá a relação com o casamento é muito diferente.
Existe a ideia do casamento por amor como um dos tipos de casamento, que é muito distinta da ideia que temos aqui no Ocidente. Aqui, você tem que estar perdidamente apaixonado pela pessoa com quem vai se casar. Lá, se você estiver apaixonado, sei lá, é bônus. O casamento é uma instituição, uma unidade da sociedade. E o adultério não tem um peso tão grande quanto para nós, que temos um vínculo muito grande com o cristianismo. E o adultério, especialmente entre os homens, acaba sendo muito menos tabu lá do que aqui. Não sei quanto a esse período em que escreve o Murakami, mas acho que o tema é tratado com uma leveza que não vemos em outras coisas. Com a Shimamoto, ele fica bem mais aflito, mas antes disso ele admite ter traído a mulher quando ela estava grávida, mas tudo bem, não era nada grave (risos). Mas daí a ele abandonar a esposa, eu acho que seria mais pesado. Porque você tem os seus deveres.
11
Tanto que, no final, ele retoma o compromisso com a esposa. A existência da esposa como ser humano é uma diferença nessa obra. Isso foi algo que senti muito nessa leitura atual. Ali no final, ela fala “você acha que só você é complicado, que só você perdeu coisas e sofre?”. Esse narrador não é uma pessoa muito fofa (risos). Então, fiquei feliz de ver essa chamada que ela dá nele ali no final.
Você acha que são escolhas temáticas assim que se relacionam à chancela “literatura mundial” que frequentemente é atrelada a Murakami? Sobre o tom dele, uma vez ele escreveu um prefácio para aquelas duas novelas que traduzi dele, em que ele conta como começou a escrever. Ele conta que não conseguia achar um caminho para escrever e, então, escreveu em inglês, depois traduziu. 12
Sim! Falamos disso na primeira parte desta revista. Acho que isso faz bastante sentido. Mas, ao mesmo tempo, acho interessante que, no Japão, às vezes ele é criticado por não ser japonês o suficiente, ou por ser americanizado, mas na recepção dele pesa o fato de ele ser japonês, de toda essa ideia que temos do Japão. Esse jogo entre as duas coisas eu acho bem interessante. Sobre a literatura mundial, o que mais me interessa não é um cânone de obras, mas uma rede, uma forma de circulação das obras em que entra tradução, editores, prêmios, que fazem a formação do cânone. Nesse sentido, ele pertence a uma literatura mundial, porque é lido por todo o mundo. É interessante observar o contexto disso, como as obras se reinserem em contextos novos, são recriadas em novas línguas, o que acontece nesses movimentos, como elas são recebidas por outras pessoas, do que especificamente olhar para dentro da obra dele. Acho que para você olhar para a obra do Murakami e dizer que isso não é literatura
japonesa, é literatura mundial, primeiro você precisa partir da ideia de uma literatura japonesa que é muito homogênea e fixa. Ainda mais hoje, as influências são muito misturadas, tem muita influência da literatura de língua inglesa.
Tudo bem, mas se você é um escritor brasileiro, você só pode ter influências da literatura brasileira? Muitas vezes, quem diz que não tem Japão no Murakami está vindo de uma noção muito estreita daquilo que é o Japão. Como as pessoas que acreditam que a literatura japonesa não fala sobre afeto e sexualidade. 13
Isso! É aquilo, lá pelas tantas o sujeito está comendo espaguete e dizem que oh, ele está comendo espaguete. Japonês come um monte de espaguete! E aqui no Brasil a gente come um monte de temaki! E não por isso é menos brasileiro. Por isso que gosto de ver como ele é recebido para ver como essas questões brotam. Acho que de fato ele tem referências muito mais globais, mas ele tem referências bem japonesas à cultura, a períodos históricos... nessa obra, a questão da bolha é muito importante para a história japonesa. Tóquio nesse momento da história é um personagem, não poderia estar acontecendo em qualquer lugar a história.
Para fechar, uma curiosidade: qual a sua palavra favorita em japonês? Nunca tinha pensado nisso, então fui com a primeira palavra em que pensei, que foi betsubara. É a barriga extra que você tem para comer as coisas de que gosta muito (risos).
A curadora de agosto
Jhumpa Lahiri
14
Fotografia: Divulgação
A curadora de agosto é uma das autoras favoritas do clube. Trata-se de Jhumpa Lahiri, autora de O xará, publicado em fevereiro de 2017 pela TAG e de O intérprete de males, publicado pelo clube em setembro de 2019. Por este último, a autora, inglesa naturalizada norte-americana, ganhou o prêmio Pulitzer no ano 2000. Lahiri, que nos últimos anos vive na Itália e escreve somente em italiano, indicou para a TAG uma história a respeito de entender seu tempo. Em plena ditadura salazarista, um repórter de meia-idade conhece um jovem com inclinações revolucionárias. Enquanto edita o trabalho do garoto, de quem fica mais e mais próximo, é instado a deixar a passividade e assumir uma posição diante do regime autoritário enfrentado por seu país.
SUA CAIXINHA MAIS RECHEADA! Adicione ao kit de setembro uma case de livros feita em neoprene, material acolchoado e impermeável, para que a leitura marque apenas você, e não o livro!
Limite de 1 item extra por kit.
15
Gostou? Acesse a sua Área do Associado para saber mais e fazer o pedido. Acesse taglivros.com/login ou direcione a câmera do seu celular para o QR Code ao lado.