Jun2020 "Todos os nossos ontens" - Curadoria

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prefรกcio



Ao Leitor Você se lembra de, quando era criança, ter “livros de histórias”? O livro que chega às suas mãos este mês é um que, em grande parte, pode ser lido como as histórias da infância. Ao ver com os olhos de Anna, a narradora, o leitor é transportado para um território em que as discussões familiares se assemelham a batalhas campais, em que se adequar e pertencer ao mundo parece complicado, em que sonhar é o melhor de estar vivo. Mas toda infância é atravessada pela tragédia da vida adulta. Se, para alguns, a transição é natural, Natalia Ginzburg mostra um cotidiano de súbito alterado pela escalada fascista e pelo início da Segunda Guerra. Este prefácio lhe ajudará a entender um pouco quem é Natalia, autora de Todos os nossos ontens e de outras ficções familiares. Falamos com o responsável pela nova edição da obra para entender a atualidade da escrita de Natalia, nome que vem sendo redescoberto, um pouco na esteira do fenômeno Elena Ferrante. Você também vai conhecer a gênese da resistência antifascista, algo fundamental para entender a história do livro de junho e a ficção de sua autora. Mais do que tudo, a gente espera que você, como nós, leia Todos os nossos ontens com a sensação crescente de ter encontrado em Natalia Ginzburg uma nova amiga. Boa leitura!


junho/2020

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Como manusear a nova revista

Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.

Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!


Sumário prefácio

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O livro indicado: Todos os nossos ontens

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Unboxing

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Resistência antifascista – a participação do povo nos rumos da guerra

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A máxima verossimilhança


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O livro indicado

Todos os nossos ontens de Natalia Ginzburg

Texto: Maurício Lobo Fotografia: Recorte da box de Todos os nossos ontens

Já é um cenário conhecido no meio literário: toda vez que vem à tona um novo nome, subgênero, eixo temático – sempre que algo modifica nosso zeitgeist, uma redescoberta de interesses esquecidos toma conta. O mercado editorial aproveita as brechas, obras antigas são relançadas e leitores acabam por descobrir maravilhas do passado. Nesse sentido, Elena Ferrante e sua tetralogia napolitana são responsáveis pelo resgate, no Brasil e em outras partes do mundo, da literatura italiana escrita por mulheres. O recorte, na verdade, é ainda mais específico, pois Ferrante apresenta referências bastante evidentes e costuma mencionar suas principais inspirações. Uma delas, em processo de redescoberta no Brasil, é Elsa Morante, autora de A ilha de Arturo, de quem Ferrante é discípula confessa. Morante, que escreveu entre os anos 1940 e 1980, seguia uma linha estética singular, aproximando-se do universo das fábulas e dos mitos e escapando da objetividade do mundo real. Embora parte dessa estética ressoe de forma semelhante, a outra face de Ferrante, mais sóbria e cotidiana, bebe fundamentalmente da literatura de outra mulher. Natalia Ginzburg, contemporânea e amiga de Elsa Morante, foi esquecida injustamente, mas finalmente recebe atenção no Brasil. Ginzburg faz parte de um seleto grupo de escritores italianos do pós-guerra que, inflamado por ideologias antifascistas e por um desejo de expressar uma realidade crua e essencial, ficou conhecido como representante do neorrealismo, movimento que flertava também com o cinema da época. Mas Ginzburg era, ao mesmo

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tempo, uma voz distinta e original. Em seus ensaios, contos, peças teatrais, poemas, crônicas e romances (ou mesmo híbridos entre esses gêneros), ganhou reconhecimento por escrever frequentemente em um tom ameno, dando espaço a certa melancolia sem apelar a sentimentalismo – pincelando, também, ironia e humor em sua escrita. Está no centro de suas obras uma preocupação com as ações e os sentimentos cotidianos, com a dinâmica entre familiares, amantes, vizinhos e amigos. Sua escrita, que renega a tradicional ornamentação literária italiana para favorecer um estilo mais sucinto, costuma deixar os elementos históricos como pano de fundo.

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A guerra, é claro, sempre esteve lá como um trauma irreparável e insistente, mas jamais ganhou protagonismo frente aos afetos de seus personagens. Até por isso, muitos críticos costumam traçar paralelo entre a escritora e a tradição russa de romance, em especial Anton Tchekhov, que a própria Ginzburg considerava um de seus autores favoritos. Outra característica fundamental da obra de Natalia Ginzburg é o tom predominantemente memorialístico. E que chegou a um de seus ápices em 1963, com a publicação do aclamado Léxico familiar. Nesse livro de difícil classificação, centrado na realidade da casa da autora, entre pais e irmãos, ao longo dos anos 1930, somos levados ao íntimo da escritora, que expõe ao leitor o vocabulário afetivo criado por sua família e que se contrapõe à realidade exterior – um contexto especialmente violento e perigoso para a família Ginzburg, formada por judeus antifascistas e ativos na luta contra Mussolini. Para essa narrativa, a autora conservou nomes, fatos e lugares, embora admita que a mesma não possa ser entendida como um documento histórico, “porque a memória é lábil, e porque os livros extraídos da realidade frequentemente não passam de tênues


Fotografia: Divulgação 7

vislumbres e estilhaços de tudo o que vimos e ouvimos”. O livro que você recebe neste mês parte de um lugar semelhante. Uma de suas diferenças primordiais, entretanto, está em sua maior abertura para o coletivo. Como o próprio título escancara, Todos os nossos ontens fala de um passado em comum, que conecta narrativas pessoais ao seu interlocutor, explora a memória coletiva, mas também fala do íntimo; fala de si, dos seus e novamente se dirige a quem o lê, fazendo da vagueza de seus personagens e lugares a justificativa perfeita para estabelecer arquétipos tão únicos em suas miudezas quanto universais em sua humanidade. Todos os nossos ontens, publicado em 1952, é o terceiro romance de Natalia Ginzburg, e pode ser considerado o marco de uma nova fase em sua carreira. Dividindo a narrativa em duas partes principais, a autora constrói um conjunto de eventos intimistas centrados em duas famílias no norte da Itália durante o regime fascista que precedeu e protagonizou a Segunda Guerra Mundial.


São examinados os universos afetivos dessas famílias e suas reações ao caos político em que vivem – este, por sua vez, descrito de forma sutil, como uma névoa que paira ao redor dos personagens, mas quase nunca é encarada de frente.

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O estilo simples da linguagem enfatiza o cotidiano dos personagens a partir de uma narração sem diálogos e em tom de confidência, como se a voz que narra estivesse envolvida diretamente com os anseios e aflições tratados na história, embora nunca se manifeste ativamente. A narrativa, a princípio, é centrada em Anna, Ippolito, Concettina e Giustino, irmãos que vivem em uma casa com a senhora Maria, uma governanta um tanto mal-humorada, e seu pai, senhor de temperamento volúvel que há anos escreve um livro de memórias em que critica a opressão fascista. Aos poucos, suas rotinas começam a se entrelaçar com a dos jovens da casa em frente, onde mora uma rica família industrial: são Emanuele, Amalia e Giuma. Enquanto acompanha os dias de seus personagens, inicialmente repletos de eventos, a narrativa põe nas entrelinhas a gradual inserção dos jovens nos assuntos da guerra, realidade até então muito distante. Entretanto, muito embora a herança ideológica do pai reflita fortemente na visão de mundo dos jovens – e alguns deles até reúnam-se para confabular contra os perigos do fascismo –, o que predomina entre os personagens é um acentuado clima de alienação. Mesmo em momentos de interesse em relação ao assunto, suas ações de engajamento são caracterizadas, geralmente, por planos ingênuos e utópicos, marcas de ausência de experiência ou mesmo de maturidade. Em um segundo momento, entretanto, ocorrerá uma reviravolta na história devido à concretização


da Segunda Guerra. De forma geral, abre-se o ângulo narrativo: do norte italiano, socioeconomicamente mais abastado, passamos ao sul, região de camponeses abalados pelos escassos recursos sociais; de um panorama familiar marcado por pequenas divergências, muitas vezes extravagantes, sobrevimos ao prisma de Anna, que é concebida como uma personagem conformada com a realidade que a cerca. E junto a ela, abre-se uma nova perspectiva, que abrange e explora a vida em uma comunidade que tenta sobreviver com alguma dignidade diante da invasão nazista sobre suas terras. Ainda que a crítica, por uma questão de contexto histórico, procure abordar o romance de Ginzburg pela ótica da resistência, a narrativa também demanda um aspecto sarcástico em relação à postura dos personagens diante dessa situação. Há um tom de bravata, por exemplo, no título que o pai de Anna, talvez o personagem mais crítico politicamente, dá a seu livro: Nada mais que a verdade. Já Cenzo Rena, outro personagem que será decisivo na narrativa, é construído por Ginzburg no intuito de demonstrar certas imperfeições morais contidas em atitudes aparentemente benéficas socialmente. Homem rico e consciente politicamente, Rena pode auxiliar de maneira prática pessoas em situação de vulnerabilidade social. No entanto, tais ações não são capazes de coibir seu paternalismo: ao mesmo tempo em que ajuda, ele demonstra certo orgulho em ter o poder de controlar e remediar situações de injustiça. Em síntese, fica evidente que, em Todos os nossos ontens, a mobilização dos fatores históricos está a serviço da construção de pujantes dramas humanos. Ginzburg opta por se voltar para as complexidades subjetivas dos personagens, criando uma gama de personalidades agindo de modos distintos diante de situações-limite, mas também banais. Tendo em vista a história de vida de Ginzburg, mulher que cresceu e atingiu a maturidade em meio ao caos e à perda de entes queridos e amigos, não é de se estranhar que o foco de sua literatura tenha sido a das particularidades de cada ser humano. É como se, em suas páginas cheias de afeto, ela estivesse sempre insistindo: quando tudo acabar, é disso que sentiremos saudade.

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Cronologia 1916 - Nasce Natalia Levi em Palermo, filha de Lidia Tanzi e Giuseppe Levi. 1919 – Aos três anos de idade, muda-se com a família para Turim. Embora filha de pai judeu e mãe católica, Natalia e seus quatro irmãos foram criados ateus, vivendo em um lar de muita cultura, com visitas de amigos intelectuais, cientistas e ativistas. 1927 – Após ter receber educação em casa por anos, Natalia vai para uma escola de ensino médio em Turim.

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1933 – Publica seu primeiro conto, I bambini, na revista Solaria. Vê seu pai e um de seus irmãos serem presos pelo regime fascista. 1935 – Breve passagem pela Universidade de Turim. Outro de seus irmãos é preso pelos fascistas. 1938 – Casa-se com o escritor e ativista antifascista Leone Ginzburg, com quem tem três filhos: Alessandra, Andrea e Carlo, que se tornaria um renomado historiador. Leone era titular de literatura russa da universidade em Turim, e de lá foi expulso quando se recusou a prestar juramento de fidelidade ao fascismo. 1938 – Começa a trabalhar como editora na Einaudi. 1940 – Acompanha o marido no exílio na vila de Pizzoli, na região dos Abruzos, ao sul da Itália, onde ficam até 1943. 1942 – Publica seu primeiro romance, O caminho que leva à cidade, sob o pseudônimo Alessandra Torninparte, para escapar da censura fascista a judeus. A Itália estava em seu maior momento de antissemitismo.


1943 – Foge para Roma durante a ocupação nazista. Na capital, o casal Ginzburg edita secretamente o jornal antifascista L’Italia Libera. Leone é capturado, preso e levado aos alemães. Ele morre em 1944, após sofrer tortura na prisão. Natalia foge com os filhos para Florença, onde voltará a trabalhar na Editora Einaudi. 1945 – Retorno a Turim. 1947 – Publica Foi assim – no original È stato così; vence o prêmio literário Tempo. 1950 – Casa-se novamente, dessa vez com o professor de literatura em língua inglesa Gabriele Baldini, com quem viveu em Roma e teve uma filha, Susanna. O casal esteve profundamente envolvido na vida cultural da cidade. 1952 - Publica Todos os nossos ontens. 1957 – Publica os livros Valentino e Sagittario. 1961 – Publica Le voci della sera, um retorno à narrativa familiar semelhante à produzida em Todos os nossos ontens. 1962 – Publica As pequenas virtudes. A obra é dividida em duas partes, cobrindo dezoito anos, datados de 1944 a 1962, e alterna crônicas e ensaios. 1963 – Publica Léxico familiar, umas de suas obras mais celebradas, com a qual vence o importante prêmio literário italiano Strega.

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1964 – Faz o papel de Maria de Betânia em O evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini. 1966 – Escreve sua primeira peça teatral, Ti ho sposato per allegria. 1970 – Um ano após perder seu segundo marido, publica Mai devi domandarmi [Nunca me perguntes isso]. 1973 – Publica Caro Michele. 1974 – Publica Vita immaginaria [Vida imaginária]. 1977 – Publica Famiglia. 12

1983 – Eleita para a Câmara dos Deputados, pelo Partido Comunista Italiano. Natalia seria reeleita em 1987; em sua atividade parlamentar, a escritora lutou arduamente por causas humanitárias, como reduzir o custo do pão, ajudar crianças palestinas, perseguição legal em casos de estupro e insistiu em uma reforma das leis para adoção. Enquanto isso, lançou A família Manzoni, saga familiar sobre a célebre família italiana de mesmo nome. 1984 – Lança o romance La città e la casa. 1990 – Publica seu último texto em vida, Serena Cruz o la vera giustizia [Serena Cruz ou a verdadeira justiça]. A obra critica a burocracia das leis italianas sobre a adoção de crianças carentes e o abuso de poder do estado que resultaram numa tragédia no caso real de Serena Cruz, uma criança filipina, e da família que a adotou. 1991 – Morre em 7 de outubro, em Roma, vítima de câncer, não sem ter terminado seu último trabalho, uma tradução de Uma vida, de Guy de Maupassant, finalizada dois dias antes de sua morte.


unboxing Mimo:

Apesar de ser também uma narrativa repleta de historicidade, Todos os nossos ontens é uma obra de ficção - paixão compartilhada pelos associados do clube. Por isso, no mês de junho, dois livros estão presentes no kit: o romance de Natalia Ginzburg e, para acompanhá-lo, o mimo é um livro inédito, intitulado Sobre a ficção: entrevistas a romancistas. Ricardo Viel, jornalista e diretor de comunicação da Fundação Saramago, organizou nessas páginas entrevistas a dez grandes escritores contemporâneos, utilizando como fio condutor, além da adorada temática da ficção, o questionamento de seu papel (e poder) para a humanidade.

Projeto gráfico:

A face da mulher olhando para baixo na capa revela um dos grandes potenciais da narrativa de Ginzburg: intimista, sensível, velada e exposta ao mesmo tempo. O arco remete a um pórtico, somos convidados, ao abrir o livro, a entrar na casa de Anna, Ippolito, Concettina e Giustino. A simplicidade do projeto espelha a linguagem direta e essencial, com apenas uma tipografia, três cores e poucos elementos visuais. Na quarta capa, no lugar da sinopse habitual, está ilustrado um recorte de jornal italiano, datado da II Guerra Mundial, indicando ao leitor o grande motivo do romance – a guerra.

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RESISTÊNCIA ANTIFASCISTA a participação do povo nos rumos da guerra

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Texto: Maurício Lobo Fotografias: Divulgação

Um dos sonhos mais recorrentes da personagem Anna, em Todos os nossos ontens, é se ver escondida nas montanhas, armada, atacando os fascistas e nazistas que ocupavam a Itália. Essas imagens, por mais assustadoras que possam parecer, trazem-lhe uma sensação de heroísmo, fazem a vida parecer algo pelo qual valha a pena lutar. Embora ela e a maioria dos jovens personagens do romance tenham deixado esse desejo restrito à imaginação, uma pequena parcela da juventude italiana aderiu, na realidade, ao combate contra os exércitos de Benito Mussolini e Adolf Hitler. Durante os anos finais da Segunda Guerra Mundial, esse grupo de guerrilheiros e colaboradores antifascistas ficou conhecido como Resistência Italiana. Sua participação no conflito acabou mudando os rumos da história, decidindo as políticas futuras do país, transformando a narrativa interna pós-guerra – por isso, segue sendo motivo de acalorados debates. O surgimento da Resistência foi reflexo da insatisfação política crescente que corria a Europa nos anos 1930 e 1940; diferentes grupos armados surgiram ao longo do domínio nazifascista em países como Espanha, França e Alemanha (onde o famoso logotipo antifascista foi criado pela Associação de Artistas Visuais


Revolucionários Max Keilson e Max Gebhard). O caso italiano, entretanto, resulta de um sentimento de revolta que se estendeu por mais de vinte anos, de 1922 a 1943, ao longo do regime autoritário de Mussolini. A imensa maioria dos partigiani – como ficaram conhecidos os guerrilheiros da Resistência – era de cidadãos italianos jovens que cresceram sob o cerceamento total da ditadura fascista. Enquanto liberdades sociais diminuíam, negócios locais eram controlados e leis raciais segregavam minorias no país, revolucionários encontravam-se para criar grupos como o Concentrazione d’azione antifascista e o Giustizia e Libertà, no final da década de 1920 e durante a década de 1930, que procuravam alertar sobre os perigos do autoritarismo e conduzir as massas na luta antifascista. Entre esses grupos de oposição que se formavam, naturalmente surgiam as mais diversas discordâncias ideológicas. Ainda assim, o sentimento geral foi de união quando a guerra chegou ao território italiano – ao menos em um primeiro momento. Católicos, socialistas, liberais, comunistas, anarquistas, monarquistas e outros grupos uniram-se em um movimento armado, baseado em estratégias de guerrilha, quando a Itália foi invadida pela Alemanha após o estabelecimento do

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Armistício de Cassibile em 8 de setembro de 1943, numa súbita virada de mesa que fez a Itália se unir aos até então inimigos Aliados. Mussolini, já deposto neste momento, refugiava-se ao norte da Itália, proclamando uma República-fantoche da Alemanha nazista, conhecida como República de Salò. Para enfrentar o que havia sobrado do fascismo, foi criado o Comitê de Libertação Nacional (CLN), que, com o apoio dos exércitos dos Aliados e do rei Vítor Emanuel III, uniu os diferentes partidos de oposição ao nazifascismo italiano e centralizou a maioria das operações das regiões central e norte do país. Calcula-se que, em seu período de maior atividade, cerca de 150 mil pessoas – contingente que misturava civis e soldados (incluem-se aí desertores e ex-prisioneiros de guerra), homens e mulheres – participaram dos combates contra as tropas nazistas e fascistas, e outras 150 mil participaram como colaboradoras. Essa segunda metade foi de fundamental importância, pois servia como uma arma ideológica em contato direto com diversos setores da população italiana. Nesse sentido, parte da divulgação da mensagem antifascista nasceu da criação de jornais clandestinos. Leone Ginzburg, marido de Natalia, judeu e antigo crítico do regime Mussolini, era o principal responsável pela escrita do L'Italia Libera, periódico clandestino produzido em Roma. Em Turim, Ada Gobetti, professora e jornalista, viúva do escritor Piero Gobetti, liderava uma rede e um grupo de mulheres que furtivamente transportava impressos, escrevia artigos e distribuía o jornal La Riscossa Italiana pelo território da Itália. A grande adesão de civis era fundamental não apenas em número, como também por fortalecer as reivindicações de autoridade moral e representação nacional da Resistência. Seu modus operandi baseou-se no sistema de voluntariado, uma nobre tradição nacional que vem desde os tempos da Unificação Italiana – uma das unidades partidárias da Resistência chamava-se Garibaldi em homenagem a um dos mais notáveis líderes do processo de unificação, da qual participou também como voluntário. A participação do cidadão comum, por outro lado, trouxe uma consequência altamente dramática para um contexto tão singular quanto o que a Itália vivia: sua divisão ideológica interna ganhou contornos de guerra civil. Ao mesmo tempo que lutavam contra o avanço dos alemães, os partigiani


se viam obrigados a combater vizinhos, amigos de infância ou até mesmo familiares que se mantiveram fiéis à ideologia nazifascista. Somam-se a isso os conflitos dentro da própria Resistência, formada também por inimigos ideológicos unidos em tempos de exceção, e as diversas histórias de traições registradas. Existiam, por exemplo, espiões infiltrados agindo como partigiani. Também houve assassinatos dentro do movimento, entre guerrilheiros de diferentes facções políticas. É importante lembrar, contudo, que boa parte dos guerrilheiros se juntou à Resistência somente nos últimos momentos da guerra, quando a sorte estava virando para o lado dos Aliados. E que 300 mil pessoas, de um total de quase 45 milhões, representam menos de 1% da população italiana. Não é possível ignorarmos a omissão e mesmo a participação ativa de grande parcela da sociedade italiana nas iniciativas racistas e antidemocráticas do regime de Mussolini. Um grande número de judeus italianos foi entregue aos nazistas e encaminhado aos campos de extermínio. Além disso, socialistas, comunistas e homossexuais, dentre outros, eram perseguidos e presos, com a conivência da população e de parte significativa da Igreja e dos meios de comunicação. A narrativa de heroísmo dos guerrilheiros pela libertação de seu povo, reforçada ao longo dos anos por diferentes governos italianos, serve para lembrar, mas também omitir, as atrocidades permitidas ao longo de muitos anos no país.

Uma curiosidade musical também adentra a história da Resistência Italiana: foram seus participantes que popularizaram a canção Bella Ciao, hoje famosa no mundo todo e símbolo da luta antifascista. A versão entoada pelos guerrilheiros foi adaptada para a ocasião: “Esta manhã, eu me levantei / adeus querida, adeus querida / Adeus, adeus, adeus querida / esta manhã, eu me levantei / e encontrei um invasor” são os seus primeiros versos.

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A máxima verossimilhança O meio literário italiano, na última década, sofreu uma erupção midiática e mercadológica com a ascensão da escritora que carrega o pseudônimo de Elena Ferrante. Sua Tetralogia Napolitana acabou conquistando a simpatia da crítica e dos leitores de todo o mundo, ultrapassando as cifras de 1,5 milhão de exemplares vendidos na Itália e 2 milhões nos EUA. Essa febre literária pode ser entendida se analisarmos elementos de ordem interna e externa à literatura. Atentando para o âmbito artístico, seu estilo de escrita é agradável ao grande público, pois se fundamenta na simplicidade formal – uma longa tradição na literatura canônica italiana. Inclusive, Ferrante é hoje recorrentemente comparada aos escritores neorrealistas do pós-guerra, dos quais Natalia Ginzburg é contemporânea (embora a mesma, como veremos no posfácio desta revista, tenha tido um ciclo criativo à parte do movimento). Para que seja possível compreender como o neorrealismo surgiu na literatura italiana e qual sua relação com Ginzburg, é necessário retornar uns passos e mirar o início do século XX. Nessa época, a Itália acompanhou e participou ativamente da emergência de uma onda vanguardista de renovação estética que ocorria na Europa. Ainda na primeira década, o Futurismo proposto por Filippo Tommaso Marinetti trouxe em seu escopo a euforia com o progresso do ocidente juntamente com

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Texto: Daniel Silveira


ideias fascistas. O desenvolvimento prometido não deslanchou e o mundo viu surgir a Primeira Guerra em 1914. Seguindo as intempéries, nos anos 1920, uma forte crise econômica cristalizou a instabilidade mundial, alçando governos totalitários por todo o mundo. Nesse contexto, mais precisamente em 1933, foi criada na Itália aquela que se tornaria uma das maiores difusoras de livros do país, a Giulio Einaudi Editora. De matriz antifascista, o grupo editorial abrigou publicações de intelectuais, como Gramsci, e escritores que se tornariam referências em todo o mundo. Entre eles, Natalia Ginzburg, Cesare Pavese, Italo Calvino, Elio Vittorini e Primo Levi. Leone Ginzburg, marido de Natalia, também colaborou com a editora, que logo se tornou alvo de Mussolini: Gramsci, Pavese e o próprio Leone acabaram perseguidos, reconhecidos como inimigos do Estado e, por fim, tornaram-se presos políticos.

Regimes totalitários prendem corpos, mas não são capazes de enclausurar ideias. Logo após o fim da Segunda Guerra, uma nova literatura surgiu das ruínas provocadas pelo combate: o neorrealismo. Reagindo às aventuras formais do modernismo, artistas de diversas áreas trouxeram a arte para um estilo relativamente límpido e, portanto, mais habitual à sociedade que não conseguira penetrar em obras de modernistas por considerá-las herméticas. Na Itália, une-se a esses aspectos a inclinação por analisar, seja de maneira documental ou subjetiva, os danos sociais causados pela injustiça ideológica e bélica do fascismo. Em que pese a relativa multiplicidade de obras da primeira metade do século, é possível ver no escritor Curzio Malaparte o embrião dessa literatura pós-guerra efetivada por Ginzburg e companhia. Dono de um estilo jornalístico, Malaparte publica, em 1925, o romance Itália Bárbara, e expõe, ao mesmo tempo em que denuncia, o cotidiano de uma sociedade de desvalidos tomada pelo crime. O crítico austríaco

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naturalizado brasileiro Otto Maria Carpeaux, em sua História da literatura ocidental (1959), destaca o nome de Alberto Moravia como um nome que também influenciará a geração de neorrealistas. Seu primeiro romance, Os indiferentes (1929), traz um retrato da hipocrisia sustentada no meio burguês, assim como o colapso de suas instituições. A simplicidade formal, as referências autobiográficas, a força do acaso nas relações humanas e o pessimismo como perspectiva analítica são elementos que permitem a aproximação da obra de Moravia com Todos os nossos ontens, de Ginzburg, publicada mais de vinte anos depois. A tendência em trazer a público o lado não pitoresco do país, afastando-se das utopias otimistas de sua época, fez com que esses escritores se tornassem fonte para os neorrealistas mais tarde. Um dos primeiros a mergulhar nesse estilo foi Elio Vittorini, que escreveu Conversas na Sicília (1941), sua obra mais lembrada até hoje. Nela, Silvestro, o protagonista do romance, depois de quinze anos morando no norte, retorna à sua região natal, a Sicília. É lá que ele relembra a infância enquanto absorve a realidade local. De maneira semelhante à literatura de sua contemporânea Ginzburg, só compreendemos a realidade de precarização social que cerca o protagonista devido à sua subjetividade. Ou seja, não se trata de um mero retrato sociológico, pois é necessária a particularidade humana para entender a conjuntura sócio-histórica. Outro grande nome do neorrealismo italiano é Italo Calvino. Hoje reconhecido mundialmente, Calvino, que depois acabou tomando os caminhos do realismo mágico, estreou com o romance A trilha dos ninhos de aranha


Filme Roma, Cidade Aberta (1945)

(1947). Nessa história, o autor se vale de eventos biográficos importantes em sua formação política como plano de fundo. Para narrá-los, empresta a perspectiva de observação a um jovem infrator, Pin, que vivencia os duros momentos envolvendo os embates entre as guerrilhas armadas contra os nazistas alemães e fascistas italianos. Cesare Pavese também foi um escritor que engrossou o coro descontente neorrealista. A lua e a fogueira (1950) é um romance carregado de elementos autobiográficos sobre a busca de identidade de um homem que enriquecera nos EUA. Para se reencontrar no mundo, o protagonista retorna à pequena vila na Itália onde passou sua infância. Nessa obra, publicada no mesmo ano do suicídio do autor, Pavese constrói uma narrativa que alia um teor intimista à análise das relações sociais em uma zona rural da Itália. Ainda que o movimento neorrealista na Itália tenha proporcionado grandes obras literárias, o cinema também teve seu reconhecimento, inclusive, antes mesmo da literatura. Vittorio De Sica, Roberto Rossellini, Luchino Visconti e Cesare Zavattini foram alguns dos principais diretores dessa estética. Denunciando a desigualdade social e o clima de desalento pós-guerra, firmaram o pacto com uma ideia de cinema democrático. Em uma tentativa de verossimilhança máxima, criou-se a proposta de gravar as cenas nas ruas, recorrendo ao que elas tinham para oferecer – incluindo atores não profissionais. Roma, Cidade Aberta (1945) é a primeira criação a ganhar projeção no meio cinematográfico. O filme de Rossellini, que inaugura sua trilogia sobre o pós-guerra, retrata a aflição da sociedade italiana sob ataque das tropas nazistas em 1944. Paisà (1946) reformula o momento em que as tropas aliadas aparecem na Itália, que, no momento, era evacuada por tropas nazistas. Alemanha, Ano Zero (1948) retoma a tentativa de uma reformulação nos modos de vida dos alemães, em Berlim, após o caos provocado pela guerra. No mesmo ano em que Rossellini encerrava sua trilogia, Vittorio De Sica lançava sua obra máxima, Ladrões de Bicicleta, retratando, de maneira comovente, a falta de oportunidades gerada pela desigualdade social e a consequente tentativa de saída da situação através do crime.

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Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.


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Ao Leitor Como você está? Acompanhar os personagens de Todos os nossos ontens é como folhear um álbum de família. É notável que o olho de Natalia Ginzburg não perde nada – tão clínico quanto seu olhar é a sua capacidade de dar ou tirar detalhes de determinadas situações. É sobre esses e outros temas que Ricardo Viel, jornalista que assina o livro de entrevistas que você recebeu como mimo, conversa com Andrés Barba, curador do mês. A cadeia de acontecimentos históricos romanceada, que se convencionou chamar de metaficção históriográfica, é objeto de análise em um artigo neste posfácio. Você vai entender um pouco mais sobre as características que definem o gênero e outras obras que se enquadram aí. Para aprofundar ainda mais a experiência, convidamos uma especialista em literatura italiana para dar suas impressões sobre o livro deste mês. E não pule a última página! Temos algumas revelações sobre as surpresas do mês de aniversário da TAG. Boa leitura!


É engraçado. Nunca conte as coisas pros outros. Se você conta, começa a ficar com saudade de todo mundo. (J.D. Salinger, "O apanhador no campo de centeio")

Ilustração do mês Túlio Cerquize é designer gráfico e ilustrador. Trabalha com livros desde que pisou pela primeira vez em um escritório. Pela TAG já contribuiu nos projetos de The Underground Railroad, Fique Comigo, Todas as cores do céu e Uma nova chance para o Sr. Doubler. Vive em São Paulo e crê que a leitura é um grande agente de transformação pessoal e social. Para a ilustração, a TAG pediu a Túlio que fizesse sua leitura das conversas entre Cenzo Rena, Emanuele e Ippolito (mais o cão) na casa de campo. "Quis mostrar Cenzo Rena agitado ao explicar, apontando para uma mosca, que, para o resto do mundo a Itália é como um inseto, e Mussolini, seus dejetos". As cores da ilustração vêm do futurismo, "movimento artístico diretamente ligado ao fascismo italiano", diz Túlio.


Sumário posfácio

Natalia Ginzburg

ISBN 978-85-359-3352-9

9 788535 933529

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Entrevista com Andrés Barba

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Discurso histórico, discurso literário

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O lírico desassossego

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Entrevista com Emilio Fraia

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Haruki Murakami: O autor de julho

Tradução de Maria Betânia Amoroso das memórias Posfácio de Vilma Arêas

Todos os nossos ontens

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Entrevista: Andrés Barba

“Natalia Ginzburg foi amor à primeira vista.” A Madri que Andrés Barba vê da janela enquanto responde a esta entrevista é muito diferente da cidade que ele aprendeu a amar desde a infância. A pandemia do novo coronavírus* fez o escritor antecipar o final da temporada que passaria em Nova Iorque e regressasse às pressas à cidade natal. Foi de um apartamento alugado no Airbnb, sem os seus livros, sem poder frequentar os cafés e lugares onde costuma trabalhar e encontrar amigos, que o autor de República luminosa (Todavia) contou sobre as suas leituras, o seu trabalho como tradutor e os seus livros. Ainda pouco conhecido do público brasileiro, o ensaísta, romancista e poeta espanhol nascido em 1975 acumula prêmios importantes (como o Torrente Ballester, o Juan March e o Herralde) desde que estreou na literatura com La hermana de Katia, em 2001.

TAG — Vi você dizer numa entrevista que na infância e adolescência não se sentia atraído pelos livros. Em que momento eles começaram a fazer parte da sua vida? Houve alguma situação, algum episódio que aproximou vocês? Texto: Ricardo Viel Fotografia: Daniel Mordzinski

Andrés Barba — A verdade é que não houve, ou pelo menos eu não me lembro, nenhuma situação em particular. Acho que posso dizer que sou o exemplo de que a melhor maneira de criar novos leitores é deixar que

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eles se aproximem de maneira natural e espontânea da leitura, sem pressão. No meu caso, comecei a ler quando a obrigação de ler acabou.

Você escolheu Natalia Ginzburg para os associados da TAG lerem. E você traduziu alguns livros dela. Como surgiu essa atração? Foi ao traduzi-la que se encantou ou já estava apaixonado por ela e por isso traduziu seus livros? Comecei a ler os seus livros há uns dez anos por recomendação da minha mulher. Gostei tanto que procurei saber quais livros ainda não tinham sido traduzidos na Espanha e propus ao Jaume Vallcorba, da editora Acantilado, que eu os traduzisse. Enfim, foi amor à primeira vista e até hoje continuo encantado por ela.

O que a Ginzburg tem que tanto o atrai? O que acha que alguém como eu, que ainda não a conhece, vai descobrir ao mergulhar nos seus livros? 6

Só alguém muito sábio é capaz de descrever as coisas com a simplicidade com que ela faz. É preciso ter pensado muito e muito bem sobre a vida para escrever daquela forma.

A infância é um assunto muito presente na sua obra. Não só na República luminosa, que saiu no Brasil no ano passado, mas em outros livros, como por exemplo Las manos pequeñas. Por que essa fase da vida o interessa tanto? O que podemos aprender ao prestarmos atenção à nossa infância? A infância é um lugar interessante não só pelo que ela constitui, mas pela maneira como, ao longo da História, a nossa relação com ela foi se modificando. Atualmente é inevitável pensar nela como um paraíso perdido, uma concepção que vem do Iluminismo e da morte de Deus no pensamento ocidental: ao perder a ideia do paraíso ,foi preciso criar a ficção de que há um paraíso na terra, e esse paraíso é a infância. Essa é uma ficção quase


universalmente aceita e que gera uma constelação de ficções paralelas: umas muito idealizadas e outras concretamente falsas ou perversas.

A questão da linguagem também está bastante presente na sua obra. Além de romancista e ensaísta, você é tradutor. A tradução tem, para você, o sentido de preparação, ensinamento para os seus livros, ou é um trabalho à parte, que não se mistura com a criação literária? Sim, claro que sim, a tradução é a maneira mais atenta de se ler. E eu tive a sorte de traduzir grandes autores. Da Natalia Ginzburg foram quatro livrod, por exemplo. E tenho outros troféus como Moby Dick e os relatos completos de Conrad. Traduzir alguns desses textos, para alguém que escreve, é como assistir à sua gênesis. Algumas vezes sou capaz de adivinhar as dúvidas que os autores tiveram no momento em que escreviam aquelas páginas. E é estranho, mas muitas vezes me lembro melhor dos textos que traduzi do que dos meus próprios livros.

O seu livro Las manos pequeñas tem uma relação com Clarice Lispector, como é essa história? Há mais autoras e autores do Brasil que chamam a sua atenção?

No fechamento desta edição, em abril de 2020, a pandemia de covid-19 assolava o mundo. Nova York foi a cidade mais atingida dos Estados Unidos e a Espanha, um dos países mais atingidos da Europa.

A minha fixação pela Clarice Lispector durou muitos anos. Numa das suas crônicas, ela relata um episódio que aconteceu num orfanato no Rio de Janeiro. Esse episódio se converteu na base do meu livro. Não posso contar mais sem revelar a história, mas posso dizer que, assim como Ginzburg, Lispector tem um invejável dom literário de ler a realidade a partir de uma perspectiva sempre realista que, paradoxalmente, ganha uma dimensão mágica. A metafísica de Lispector nasce sempre da física. A realidade, ao se saturar da sua consciência, se torna estranha, hiper-real. Além da Lispector, eu sou super fã de Carlos Drummond de Andrade e de Machado de Assis. E obviamente preciso conhecer mais coisas, alguma sugestão?

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A estante do autor O último livro que li foi: Os testamentos traídos, de Milan Kundera O livro que estou lendo: Mentira romântica e verdade romanesca, de René Girard O livro que eu gostaria de ter escrito: A paixão segundo G.H, de Clarice Lispector

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O último livro que me fez chorar: O livro das horas, de Rilke O último livro que me fez rir: O mestre e margarida, de Mikhail Bulgákov O livro que eu não consegui terminar: Guerra e paz, de Lev Tolstói O livro que eu dou de presente: Livros da Natalia Ginzburg em geral O livro que mudou a minha vida: Folhas de relva, de Walt Whitman


Discurso histórico, discurso literário

Texto: André Luiz Costa Escritor, mestre em Escrita Criativa pela PUCRS

O termo metaficção historiográfica foi cunhado no fim dos anos 1980 pela teórica canadense Linda Hutcheon. A proposta da autora foi separar, a partir de uma perspectiva pós-moderna, o clássico romance histórico de obras contemporâneas que revisitam a história de forma crítica. Sabemos que, muitas vezes, os grandes fatos ocorridos foram contados por pessoas de alta hierarquia, e a metaficção historiográfica, além de revisar essas autoridades e as colocar sob suspeita, busca dar enfoque ficcional às pessoas “comuns” que sofreram sem voz ativa com acontecimentos do passado. Ou seja, a proposição de Linda Hutcheon é considerar essas narrativas como autorreflexivas, questionadoras de verdades históricas tidas antes como inquestionáveis. O pós-modernismo, que se opõe a certas noções herméticas do modernismo, por si só já revisita sujeito e narrativa com ironia, acrescentando novas possibilidades estéticas à criação artística. Para Hutcheon, a mescla entre metaficção e ficção histórica, em conjunto com a ideia de intertextualidade cunhada por Julia Kristeva, é justamente o que aproxima o sujeito da história, possibilitando uma nova compreensão. Todos os nossos ontens, livro de Natalia Ginzburg que o associado da TAG recebe este mês, é um exemplo dos muitos romances que podem ser lidos sob o prisma da metaficção historiográfica. Em seus livros, Ginzburg costuma abordar questões referentes à Segunda Guerra Mundial, privilegiando o olhar daqueles que sofreram com o confronto, principalmente os que ficaram na Itália ocupada pelos alemães. A própria autora viveu os anos opressivos do fascismo em seu país – envolvida com o marido, Leone Ginzburg, na resistência ao regime

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Natalia e Leone Ginzburg

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de Mussolini e à ocupação nazista, sua consciência política foi forjada em uma época hostil, e parte dessa experiência está presente no que escreveu. Leone Ginzburg foi, inclusive, um dos muitos italianos presos e torturados até a morte nesse período, deixando a autora viúva para criar os três filhos do casal, um deles o historiador Carlo Ginzburg. De fato, a obra de Natalia traça um panorama do que era a vida entre os anos 1930 e 1940, a ascensão nazista e a ameaça da guerra pairando como mau agouro sob pessoas simples. Situando a narrativa de Todos os nossos ontens no pré-Segunda Guerra e no período do conflito, Ginzburg narra a vida de duas famílias, uma rica e a outra pobre. Diversas catástrofes ocorrem entre os membros dessas famílias: suicídio, traição, brigas. Enquanto isso, no plano geral, cidades são bombardeadas e a Alemanha ocupa a Itália, causando ansiedade e incerteza em relação ao futuro. É como se a autora colocasse tanto a tragédia pessoal quanto a coletiva no mesmo plano, equalizando as consequências. Além disso, o leitor perceberá que o discurso presente no livro é sempre crítico ou desconfiado. Apesar de Natalia Ginzburg expor o socialismo italiano em seus estertores pré-guerra, não há desistência, e é a partir dessa perspectiva que ela revisita os acontecimentos. As personalidades históricas, decisivas no rumo existencial de milhões, são construídas apenas pela voz dos próprios personagens, sem concessão ou condescendência. Linda Hutcheon encontra no amálgama entre ficção e história uma possibilidade expansiva, potencializando a leitura que será feita de ambas. Nesse sentido, não somente Todos os nossos ontens mas toda a obra de Ginzburg é exemplar. Não deve haver limite para a revisão da história, tão múltipla e orgânica, e a metaficção historiográfica, como tantas outras em diferentes áreas, é a forma que a narrativa contemporânea desenvolveu para equilibrar minimamente as vozes no avanço desenfreado dos acontecimentos.


Sugestões de leitura O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago (1984): Nesse romance de atmosfera densa e sombria, Saramago imagina como foi o final da vida de Ricardo Reis, um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa, no ano de 1936. O autor narra desde o momento em que Reis chega a Lisboa, vindo de um longo período no Brasil, até as implicações da ditadura salazarista ao povo português, considerando o início da Guerra Civil Espanhola e a gestação da Segunda Guerra Mundial. Inicialmente mera testemunha dos fatos, o protagonista se vê cada vez mais imerso em angústia, ao mesmo tempo em que tenta compreender o que o levou a deixar uma vida tranquila no Brasil e mergulhar na densidade caótica da Europa entre guerras.

Írisz: as orquídeas, de Noemi Jaffe (2015): Noemi Jaffe é conhecida por seu trabalho rigoroso e metódico com as palavras. Em Írisz: as orquídeas, a autora narra a história de Írisz, que foge de Budapeste após a entrada da União Soviética na Hungria e vai para São Paulo com o objetivo de estudar as orquídeas. Quando a protagonista desaparece, deixando apenas relatórios que tratam da crise na utopia comunista, memórias e algumas ideias pessoais sobre as plantas, Martim, o diretor do Jardim Botânico, precisa reconstruir a figura de Írisz baseado nos fragmentos possíveis.

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O lírico desassossego das memórias

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Texto: Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade Professora de Língua e Literatura Italiana da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Natalia Ginzburg pertenceu à geração da literatura italiana do período da Segunda Guerra, do Holocausto e da Resistência. Naquele momento, o cenário literário e intelectual italiano, além dela, era formado por nomes como Italo Calvino, Elsa Morante, Cesare Pavese, Alba de Céspedes, Primo Levi e Renata Viganò, entre outros. No entanto, a narrativa ginzburguiana se desvincula, ao contrário de parte da produção de outros escritores do período, do contexto neorrealista, referência literária daqueles anos. Nesse sentido, segundo Vittorio Foa, a escritora sempre teve seu próprio ciclo criativo. Por esse motivo, é importante destacar que a escrita de Ginzburg é muito particular e apresenta um estilo singular e inconfundível e, como afirmou Franco Antonicelli, inimitável. É, portanto, a partir de um estilo ímpar que a escritora produziu uma obra marcada por características também singulares que são repetidas em toda a sua produção, assemelhando-se, de acordo com Antonicelli, a uma espécie de balbuciar gracioso e confidencial. É uma escrita na qual, de um modo geral, as frases são curtas e as informações rápidas e sintéticas, evidenciando, a partir dessa concisão, apenas o essencial. No entanto, é justamente essa marca textual, esse estilo direto, que praticamente obriga seu leitor a refletir sobre a importância das coisas corriqueiras e prosaicas, dos afetos, das relações familiares e sobre o sentido da existência. É, enfim, uma escrita lúcida e lírica, carregada da determinação e da persistência dessa escritora diante da vida. Tal resiliência é abordada por Cesare Pavese em seu diário O ofício de viver, ao declarar que Natalia Ginzburg tinha diante da vida e das forças da natureza sempre “o coração na mão – o coração músculo”. Tal como em Todos os nossos ontens, grande parte dos enredos da obra ginzburguiana gravita em torno de um ou mais núcleos familiares. Nesse sentido, destacamos A estrada que leva à cidade, primeiro romance


da autora, publicado em 1942 com o pseudônimo, devido às leis raciais, de Alessandra Tornimparte; o romance Le voci della sera, (As vozes da noite), publicado em 1961; e a narrativa autobiográfica Léxico familiar (1963). Assim, a partir desses núcleos, ampliam-se as relações interpessoais e efetivam-se as trocas entre o mundo interno, a história privada, e o externo, a história coletiva. Nessa troca, se instaura o questionamento acerca da vida e revelam-se os dramas existenciais. Todos os nossos ontens, ao contrário das obras acima mencionadas, não é narrado por um dos membros do clã, mas por um narrador externo, que relata com olhar agudo e crítico o cotidiano desses personagens. A fábula desse romance é constituída por dois núcleos familiares: o primeiro é formado por Anna, a protagonista, pelo pai antifascista e pelos irmãos Ippolito, Concettina e Giustino. Já o segundo é composto por um empresário, vizinho de Anna, dono de uma fábrica de sabão, por sua mulher e seus três filhos, sendo que um deles, Emanuele, também é antifascista. A narrativa está dividida em duas partes: Norte e Sul do país, representadas pelo espaço urbano e pelo campo. A primeira parte do romance tem como ambiente uma cidade não nomeada na qual vivem as duas famílias principais, ambas burguesas. A segunda parte se desenvolve em uma cidade do subdesenvolvido Sul para a qual Anna, a protagonista, se muda após casar com o amigo de seu pai, Cenzo Rena, intelectual de esquerda sensível às dificuldades das pessoas de sua região. A narrativa não apresenta datas específicas e o tempo histórico do romance pode ser identificado pelas informações sobre o rumo da guerra.

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O cotidiano dessas famílias é invadido aos poucos pela ascensão do fascismo, pelo desenrolar da guerra, pelas ações da Resistência e pela maneira como os fatos históricos mudam as relações familiares e humanas. Um dos exemplos dessa situação acontece quando Anna e Giustino vão visitar a irmã mais velha, Concettina, recém-casada com um fascista e grávida, e eles não conseguem mais reconhecer a irmã naquela mulher. Nota-se, assim, o estremecimento dos relacionamentos e as mudanças de paradigma. O narrador registra o momento, ao afirmar que “agora, entretanto, parecia que Concettina não estava em parte alguma do mundo; parecia que aquela mulher grávida não era a Concettina verdadeira”. Dessas incompreensões irrompe um silêncio entre os membros desses clãs. O silêncio, uma característica muito presente na produção ginzburguiana, surge com muita força nesse livro, relacionado aos vazios que se ampliam entre as pessoas. Esse calar-se pode ser, ainda, associado à inércia, ao medo de expressar sentimentos e angústias. Assim, percebemos que as relações vão se perdendo em meio à guerra. Os personagens desse romance são caracterizados como pessoas comuns, superficiais, presas aos valores burgueses e indiferentes a tudo aquilo que é alheio ao mundo com o qual estão acostumados. Desse modo, é compreensível que Anna e, por extensão, os outros membros dos dois núcleos familiares, seja comparada, por Cenzo Rena, a um inseto que não conhece nada “além da folha” sobre a qual está suspenso, “com seus olhos pequenos e tristes, as patinhas imóveis e a respiração curta, pequena e triste”. Porém, à medida que a guerra invade seus cotidianos, provocando uma dolorosa angústia existencial, eles são tomados por inquietação e desconforto, o que faz com que cheguem a um estado de desassossego. Exemplo dessa inquietude pode ser percebido na frase “quem sabe teremos novamente um abajur sobre a mesa e um vasinho de flores”, do ensaio “O filho do homem”, da coletânea As pequenas virtudes – imediatamente após a leitura, percebemos a presença da dor pela perda dos entes queridos, a importância das pequenas coisas que, como as madeleines proustianas, remetem a uma cadeia de lembranças e sensações que vão do singular ao plural, do particular para o universal. É a dor coletiva de toda uma geração, da história da humanidade e que, portanto, ultrapassa o tempo histórico.


É dessa experiência do mal que surge a necessidade de reunir todo o passado, toda a dor coletiva – e, muitas vezes, a solução para organizar o caos existencial pode surgir justamente do apego à rotina, às coisas mais simples e mais banais. Veja a obsessão de mammina, a mãe de Emanuele, no auge do conflito bélico, em acumular “caixas e mais caixas de sabão do bom”. É a necessidade de se apegar ao máximo às pequenas coisas, que imprimem uma sensação de “normalidade” à vida, na tentativa de manter a sanidade física e mental. Além disso, nesse romance, a reflexão acerca da existência humana é potencializada pela consciência dos acontecimentos históricos e pelo fato de a vida cotidiana dessas famílias ser afetada pelos males causados pela Guerra. A partir do mundo privado dos personagens de Todos os nossos ontens e da convivência íntima entre eles é que percebemos a transcendência do particular para o universal. Isso porque, conforme as coisas miúdas e corriqueiras se transfiguram, escapam daquele espaço e momento específicos e se revelam múltiplas. Tal fato confere à narrativa um caráter universalizante como aquele abordado por Antonio Candido, em Educação pela noite e outros ensaios, que se configura, entre outros, como uma espécie de jogo que passa simultaneamente do menor para o maior, do restrito ao amplo e do singular para o plural. Essa dor coletiva, a urgência de recordá-la e narrá-la, está presente no título, inspirado em uma fala de Macbeth: Todos os nossos ontens, ou seja, todo o nosso passado, todas as lembranças de uma geração que viu suas paredes, literais e metafóricas, ruírem após os bombardeios, que viu seus entes queridos partirem e nunca mais voltarem para suas casas, com ou sem abajures sobre as mesas. É um grito doloroso, carregado de melancolia, embalado pelos versos de Eugenio Montale: “Foi o teu exílio. Relembro o meu também, quando ouvi, de manhã, crepitar, entre os abrolhos, a bomba bailarina”.1 Esse grito, portanto, traz consigo a necessidade de tentar ordenar o caos, não apenas político e social, devido à guerra, mas principalmente o existencial. Fu il tuo esilio. Ripenso/anche al mio, alla mattina/quando udii tra gli scogli crepitare/ la bomba ballerina. MONTALE, Eugenio. Le occasioni. Torino, Eunaudi, 1996.

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Entrevista: Emilio Fraia

“Há em sua prosa um realismo cotidiano nunca óbvio.”

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A realidade familiar é envolvida por amenidades na prosa de Natalia Ginzburg, até que não. O extraordinário se mistura ao cotidiano sem que nenhum alarde seja feito. Não há denúncias, apenas fatos. O editor de Natalia Ginzburg na Companhia das Letras, Emilio Fraia, conversou com a TAG a respeito das alterações feitas na tradução da obra e sobre a importância de ler o que a italiana tem a dizer sobre seu tempo. Leia a íntegra da entrevista, concedida por e-mail:

TAG — No prefácio à edição da Companhia das Letras de Léxico familiar, Alejandro Zambra enumera uma série de razões para ler Natalia Ginzburg. Uma delas é que seus relatos são tão inspiradores que, ao terminar o livro, o leitor tem vontade de escrever o seu próprio relato como forma de agradecimento. E você, por que acha que se deve ler Natalia Ginzburg?

Emilio Fraia é autor de Sebastopol (Alfaguara, 2018) e editor de literatura na Companhia das Letras

Emilio — Em livros como Todos os nossos ontens e Léxico familiar, Natalia Ginzburg narra pequenas histórias da sua família. E somos surpreendidos, ao fundo, com os acontecimentos sangrentos do seu tempo. A retórica de Ginzburg, no entanto, nunca é enfática, documental, de denúncia. Mas ela consegue de um modo singular e emocionante que a atmosfera íntima seja, de repente, atravessada pela guerra, pela imprevisibilidade, pelo


terror. “É mais ou menos como uma guerra”, muitos dizem a respeito do que estamos vivendo hoje, com o vírus. Para além da qualidade estética brutal da sua prosa, ler Natalia Ginzburg nestes dias de preocupação, medo e cansaço é uma experiência única. Nos seus romances, o plano mais doméstico – brigas, alegrias, decepções – convive com uma realidade cruel, que revira a vida de todos. Como neste trecho de Léxico familiar: “E não havia mais ninguém que pudesse fingir que nada estava acontecendo, fechar os olhos e tapar os ouvidos, enfiar a cabeça embaixo do travesseiro, não havia.”

Quais foram as principais mudanças da edição de 1986 para a que sai pela TAG? Por que a mudança de título de Todas as nossas lembranças para Todos os nossos ontens? A Maria Betânia Amoroso voltou à sua tradução dos anos 1980, fez uma revisão diligente, encontrou novas soluções de ritmo, sintaxe, vocabulário. O Fábio Bonillo, tradutor, que trabalha no departamente de texto da Companhia, acompanhou o trabalho, fez ótimas sugestões também. Acredito que tudo tenha ficado mais próximo das intenções da autora. Quanto ao título do romance, o original é Tutti i nostri ieri. A tradução de “ieri” é “ontem”. Achamos importante resgatar essa palavra – e há algo que nunca deveríamos esquecer, como leitores, escritores ou editores: para além do enredo e dos temas, dos personagens e do tom, há sempre as palavras. Embora possa soar um pouco estranho à primeira vista, por conta do plural da palavra “ontem”, é um título mais fiel ao original, mais concreto, tem personalidade. A palavra “lembranças” soa como uma abstração aqui, um tanto sentimental, e Ginzburg é uma autora que caminha no sentido oposto, de desdramatizar o que se narra. Há também uma epígrafe no livro, retirada de Macbeth, que diz: “And all our yesterdays have lighted fools/ The way to dusty death”. Por fim, é preciso notar o aspecto visual e sonoro: a repetição das letras “t”, “i” e “r” do título em italiano encontra uma equivalência bonita nos “t”, “o”, “n” e “s” do nome em português.

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O que você pensa dos paralelos traçados entre Elena Ferrante e Natalia Ginzburg? Elena Ferrante sem dúvida leu muito bem Natalia Ginzburg. E uma geração de leitores de Ferrante está entrando agora em contato com livros como Léxico familiar, As pequenas virtudes e Todos os nossos ontens, o que é espetacular. A chamada Tetralogia Napolitana, de Ferrante, e os principais textos de Ginzburg têm a atmosfera do pós-guerra italiano, são narrados por mulheres. Mas há muitas diferenças. O aspecto romanesco dos livros de Elena Ferrante, por exemplo, nós não encontramos na obra de Ginzburg. Poderíamos dizer, num papo de bar, que Ferrante está mais para Balzac, enquanto Ginzburg é Flaubert – de quem ela traduziu, aliás, Madame Bovary. Ginzburg trabalha com a elipse, há espaço entre as frases. Ela é mais clara, elegante. Mais moderna.

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Há na sua prosa um realismo cotidiano nunca óbvio, uma atenção única para o detalhe. E há, além disso, um jogo entre realidade e ficção muito interessante. “Neste livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada”, adverte na famosa nota introdutória a Léxico familiar. Mas logo adiante diz: “Embora extraído da realidade, acho que [este livro] deva ser lido como se fosse um romance”. Não é ficção e, no entanto, quer ser lido como ficção, na contramão de obras que buscam a condescendência do leitor ao ancorar suas histórias em “fatos reais”.


Por fim, o que você indicaria para o associado da TAG que deseja conhecer mais da obra de Natalia Ginzburg? Além dos livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras (até aqui, Léxico familiar, As pequenas virtudes e A família Manzoni), eu recomendaria uma entrevista que Ginzburg deu à Radio 3 italiana pouco antes de morrer, em 1991, que foi transcrita no livro È difficile parlare di sé – há uma edição em inglês também, It’s hard to talk about yourself. Recentemente, por conta da redescoberta da sua obra nos Estados Unidos, uma série de críticas e resenhas foram publicadas em veículos como New York Times, New York Review of Books, New Yorker, vale a pena buscar na internet. A Vilma Arêas publicou um texto notável sobre Caro Michele, “Ofício de escrever”, talvez a melhor análise brasileira a respeito da autora italiana. E há três autores, de quem Natalia Ginzburg era fã, que podem iluminar muito o tipo de prosa feito por ela: Flannery O’Connor, Tchekhov e Hemingway. Ela dizia amar os contos de Hemingway, foi sua editora na Einaudi, aliás. Parece ter aprendido com ele muito sobre clareza e simplicidade – sobretudo como, no lugar do mundo interior das ideias e sentimentos, dar forma ao mundo exterior dos lugares e objetos.

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O autor de julho

Haruki Murakami

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Fotografia: Divulgação

Julho é nosso mês de aniversário. Quem conhece a TAG de outros tempos sabe que, nessa data especial, abrimos mão da figura do curador para trazer obras inéditas dos autores mais amados pela nossa comunidade de leitores. Para celebrar nossos seis anos de amizade, levamos a você uma obra inédita de um mestre do realismo mágico contemporÂneo. Best-seller internacional com histórias em que o surreal se mistura de forma totalmente fluida ao cotidiano, Haruki Murakami é o autor de julho da TAG Curadoria. Neste romance regado a música e repleto de belas paisagens, você conhecerá a história de um homem que, ao longo da vida, jamais esquece sua companheira de infância. Entre projeção e realidade, o protagonista se vê imerso em confusão e angústia quando, anos depois, aquela criança tímida de sua memória reaparece como uma mulher misteriosa com um pedido a fazer.


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