Mar2020 "Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias" - Curadoria

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Ao Leitor O volume que você recebe neste mês de março se abre como uma janela para o grotesco da alma humana. Ímpia mas devota, cruamente honesta e ainda compassiva, mortalmente séria mas implacavelmente cômica, Flannery O'Connor era uma estilista do idioma inglês como poucas. A escritora – profunda estudiosa da doutrina cristã, consciente da visão de que o artista deve fazer ver o que existe (a maldade ao redor, mas também a rara bondade) – era, mais do que isso, adequada de forma única para retratar o sul dos Estados Unidos. Prepare-se para histórias de profundas ambiguidades, violência gótica, humor torto e idiossincrasias. Prepare-se para histórias que vão lhe fazer enxergar. Neste prefácio, você será apresentado ao universo de Flannery O’Connor – seu fascínio pelo olhar do monstro e sua dedicação inabalável ao dom da escrita durante o curto tempo de produção concomitante à luta contra o lúpus. Você conhecerá a tradição literária do grotesco sulista, escola tão particular da qual a autora deste mês foi expoente. E também conhecerá a curadora de março: dona de histórias ensolaradas, Martha Batalha filia-se à literatura de Flannery, de certo modo, a partir do uso do humor para evidenciar o absurdo do mundo. A autora de Um homem bom é difícil de encontrar costumava dizer que escrevia para descobrir o que já sabia. Você vai ler nas entrelinhas do sul dos Estados Unidos, derrotado ao final da Guerra Civil, em um processo de reconstrução de um imaginário marcado pela fé protestante cega e pelo racismo. E você vai ver que o que Flannery sabia é também o que você sabe – mas que, quem sabe, até agora, não viu. Boa leitura!


março/2020

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Revisão Antônio Augusto da Cunha Gustavo Lembert da Cunha Liziane Kugland

Como manusear a nova revista

Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.

Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!


Sumário prefácio

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Entrevista com Martha Batalha

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A estante da autora

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O livro indicado: Um homem bom é difícil de encontrar

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Unboxing

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Genealogia Literária


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Entrevista: Martha Batalha

“O humor é uma resposta aos absurdos da existência” Doce, contemplativa. Quem lê os dois romances de Martha Batalha pode imaginar a autora assim. No entanto, em entrevista à TAG, ela se revela profunda conhecedora do poder social da doçura. E não só: a escritora, há anos radicada nos Estados Unidos, fala nesta conversa das milhares de mulheres que inspiraram seu primeiro romance, o badalado A vida invisível de Eurídice Gusmão, e de como a obra que indicou para o clube estabelece paralelos com a sociedade brasileira.

TAG — Eu queria que você começasse contando um pouco sobre o seu percurso no mundo da literatura. Você trabalhou com jornalismo, fundou uma editora em 2003, mas publicou A vida invisível de Eurídice Gusmão muitos anos depois disso. Foi um período de latência?

Texto: Fernanda Grabauska Fotografias: Jorge Luna

Martha Batalha — Acho que sim, foi um período de latência e procrastinação. Eu sempre quis ser escritora, mas precisava pagar as contas. Por isso escolhi profissões que me mantiveram próxima do mundo da escrita enquanto não tomava A Decisão. Durante os anos de repórter, aprendi a escrever com foco, rápido e sob pressão; rodei o Rio de Janeiro e o Brasil, conheci pessoas, dramas, lugares. Depois, com a editora, aprendi sobre todas as etapas do processo de edição. Quando eu me mudei para Nova York, fiz um mestrado e tinha um bom emprego numa editora em Manhattan, mas faltava

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algo, ou, sendo sincera, faltava tudo. Se eu sempre quis ser escritora, então, o que é que estava fazendo ali, aos trinta e tantos anos, ajudando a editar os livros das outras pessoas? Então comecei a escrever, sem me preocupar muito com o resultado. Era mais um acerto de contas comigo mesma, uma decisão que me deixaria em paz com as escolhas de vida.

Há também a história da publicação de A vida invisível, que não foi um romance aceito de primeira pelas editoras brasileiras. Você teve que ter a resiliência da própria Eurídice até tê-lo publicado – conta essa história pra gente?

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Essa não é apenas a minha história, mas a da maioria dos escritores. Naquela época eu já conhecia o mercado editorial o suficiente para saber que a rejeição era quase certa, e que era preciso continuar tentando. É muito difícil publicar, e ainda mais difícil conquistar leitores. Imaginei que a carreira de escritora – se desse certo – seria lenta e progressiva. Um livro aqui, outro depois, um leitor indicando meu livro para outro, e assim por diante. A diferença na minha história é que tive sorte. A Luciana Villas Boas, que era exatamente a pessoa que eu queria que fosse minha agente, leu o manuscrito e decidiu me representar. Uma editora alemã que sabia ler português (deve ser a única no mundo) soube do manuscrito e o pediu à Luciana. Leu em um dia e fez uma oferta, escreveu uma carta de amor ao livro que foi lida por outros editores da Europa, o livro começou a receber ofertas de outros países, o produtor Rodrigo Teixeira comprou os direitos. Tudo isso antes da publicação no Brasil. Foi tudo muito rápido e inesperado. Dessa história toda, o que me deixa mais feliz é a possibilidade de continuar escrevendo que o sucesso do primeiro livro proporcionou, e o retorno positivo dos leitores.

E a Eurídice brotou de onde? Vejo não só leitoras mais velhas se identificando muito com a sua protagonista, como também mulheres mais


novas, mesmo que de um modo não tão direto. Como você vê isso? Eurídice, Guida e as outras personagens femininas são amálgamas das mulheres com quem convivi desde a infância, e que, por variadas razões, não conseguiram se realizar. Elas estavam na minha família, na vizinhança, no conservatório brasileiro de música, onde eu me formei em piano e teoria musical. Muitas estavam no rígido colégio de freiras em que eu estudava pelas manhãs e bordava e tecia durante as tardes. Algumas faziam as pazes com o destino e se resignavam com alguma doçura, outras se apagavam, e havia as que ficavam amargas, mal-humoradas. Na medida em que eu entendia mais sobre o mundo, percebi essa amargura/insegurança/ silêncio/frustração como a justa resposta a um destino que lhes foi roubado. Percebi também que havia em muitas delas um potencial perdido. Já tentei fazer uma literatura mais É claro que nada “séria”, e o resultado foi uma pasta disso era explíno meu computador onde eu arquivei cito, acho que nem elas eram capazes os textos que nunca mais vou ler, de elaborar. Era, chamada “Pastiche de Alice Munro”. enfim, uma visão pessoal, a minha forma de entender essas mulheres, e, com o sucesso do livro, percebi que, como você disse, muitas mulheres poderiam se reconhecer na trama e nas personagens.

Tanto em A vida invisível quanto em Nunca houve um castelo, o enredo orbita muito ao redor da vida familiar – lembro um pouco daquela frase de Tolstói que diz que "todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira". De onde vem seu interesse pela herança familiar? Outro dia, na seção de livros do New York Times, o romance de um escritor colombiano (ela se refere ao último livro de Hector Abad, La Oculta, traduzido para

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o inglês em 2018) foi levemente criticado porque nele havia “um impulso de filtrar a história nacional através da história familiar”. Eu li aquilo e percebi que o resenhista não entendia nada de América Latina, porque aqui muitas vezes a história nacional pode ser explicada através das histórias familiares. Somos uma sociedade conservadora e patriarcal, em que a manutenção do poder se faz por uma elite que casa entre si, e a ascensão social se faz também por meio de casamentos ou relações. O “homem cordial” do Sérgio Buarque de Holanda não é aquele que aceita tudo com passividade, mas o que sobe na carreira por causa dos contatos, por causa das relações cordiais. Porque fulano é primo de sicrano e tem uma boa posição não sei onde, e pode ajudar. Então, quando você olha para as particularidades dessas relações de poder e as dinâmicas familiares, consegue entender muito do país. O favoritismo pelo filho homem (comum até pouco tempo, ou comum até hoje, em algumas famílias), a permissividade de certos comportamentos masculinos, a subserviência das mulheres. Ou mesmo um certo preconceito contra o trabalho manual (herança da corte portuguesa e do catolicismo), contra o trabalho doméstico, que geralmente é feito mais pela mulher, ou pela empregada. Tudo isso está nas famílias e no país, e quando se fala de um, se fala do outro.

O que nos leva à pergunta: por que a escolha de Um homem bom é difícil de encontrar para a TAG? A Flannery trata de temas muitos próximos da realidade brasileira, como a influência da religião, a diferença de classes, o racismo e o preconceito. O conto que dá título ao livro é um clássico da literatura americana, e creio que o leitor entenderá o motivo quando se surpreender com os últimos parágrafos da narrativa. Outro conto surpreendente é "O negro artificial", também na coletânea. Nele, Flannery mostra que o racismo é cultural de um modo que, para mim, é mais convincente do que qualquer livro de não ficção sobre o assunto. Como ela mesma disse, escrever literatura não é fugir do mundo, mas mergulhar na realidade com uma intensidade que – para ela – era


nociva à própria saúde. Por causa das complicações do lúpus, ela não tinha energia para mais do que duas horas de escrita por dia, e morreu muito jovem, aos 39 anos. Em cada conto e personagem eu consigo ver a humanidade, e é isso o que faz essa autora, que viveu reclusa numa fazenda no sul dos Estados Unidos, universal.

A sua pesquisa sobre o Rio de Janeiro e seus tipos é muito interessante – o leitor consegue imergir muito na cidade viva, linda, caótica daqueles tempos. Tem muita gente que arrisca a dizer que suas obras são um "retrato do Brasil". O que você pensa dessa afirmação? Que obras literárias você enxerga como retratos do Brasil? Creio que os dois romances são um retrato do “meu” Brasil, e que escrever sobre o país foi uma forma de não perder minha identidade, ou de não sumir na cultura americana. Cada escritor tem algumas obsessões ou interesses, e o Brasil é um dos meus. O meu Brasil é composto por Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mucambos; Gilberto Freyre me seduz a cada releitura. Por Graciliano também, não só o Vidas secas e São Bernardo, mas o Infância, que é muito triste, e os Relatórios. Chico Buarque acabou de publicar um livro fenomenal, o Essa gente, sobre o Brasil dividido politicamente destes tempos. Para mim já se tornou um clássico. Alguns contos também definiram o meu Brasil, como o "Feliz ano novo", do Rubem Fonseca, e o "A maior ponte do mundo", do Domingos Pellegrini. E tem o Geografia da fome, do Josué de Castro, o Cidade partida, do Zuenir Ventura, todo o Vinicius, os cronistas. Muitos escritores brasileiros não têm condições de parar por alguns anos para escrever romances, eles ganham a vida escrevendo para jornais, e o resultado são essas crônicas magníficas que retratam o Brasil – de Rubem Braga a Antonio Prata, Tati Bernardi e Eduardo Affonso. É claro que só citei alguns; acabei de me lembrar, por exemplo, do Lima Barreto com seu Policarpo Quaresma, das biografias do Ruy Castro, do José Cândido de Carvalho, Pedro Nava, Verissimo, sempre, A casa do

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meu avô, de Carlos Lacerda (tão linda a prosa dele). É uma lista que, ainda bem, eu não consigo terminar.

Há um elemento de humor muito interessante em ambos os seus livros – em A vida invisível, há Zélia, a vizinha abelhuda, e há o rosário de manias de Antenor, marido de Eurídice. Em Nunca houve um castelo, há as vozes na cabeça de Brigitta. Quem trabalha com ficção sabe como é delicada a questão do humor na literatura, então queria saber como você dosa isso ao escrever e se há um viés político (seja voluntário, seja involuntário) nessa zombaria pontual das suas narrativas.

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Já tentei fazer uma literatura mais “séria”, e o resultado foi uma pasta no meu computador onde eu arquivei os textos que nunca mais vou ler, chamada “Pastiche de Alice Munro”. O humor é uma resposta aos absurdos da existência, é uma forma de lidar e digerir a realidade. E no Brasil o que não falta é absurdo. Também descobri que é a minha forma de prender a atenção do leitor. Como disse o Kurt Vonnegut, é esse o trabalho do escritor, o de instruir, e entreter, o leitor. Os bons contadores de história usam o tempo de prazer do leitor de modo que ele não sinta que o tempo está sendo desperdiçado. Eu tenho a impressão de que consigo fazer isso através desse humor, dessa ironia que permeia o texto.

Em último lugar, você pode falar um pouco da experiência de ver suas personagens no cinema? Foi muito emocionante e estranho, o oposto do processo de escrita, que é muito solitário, e no qual tudo acontece apenas na cabeça do escritor. Vi num cinema aqui de Los Angeles, uma exibição só para mim e meu marido. O filme é diferente do livro, o que não me incomoda. Eu escrevi uma tragicomédia, o Karim fez um melodrama. Acho que ele não seria capaz de seguir meu estilo ou eu o dele, e o filme funciona justamente porque ele teve essa liberdade criativa.


A estante da autora O primeiro livro que li: Angélica, de Lygia Bojunga Nunes, foi o primeiro livro com muitos parágrafos e poucas figuras que li, aos 7 anos. Fiquei orgulhosa. O livro que estou lendo: O Fogo na floresta, de Marcelo Ferroni O livro que eu gostaria de ter escrito: Cem anos de solidão. Nem me importo se a resposta for clichê, para mim é a História da América Latina no século passado. É claro que agora está tudo mais complicado, e esse livro não consegue mais nos explicar. O último livro que me fez chorar: Lincoln no limbo, de George Saunders O último livro que me fez rir: Essa gente, de Chico Buarque O livro que eu não consegui terminar: O pequeno príncipe O livro que eu dou de presente: Autores brasileiros, geralmente. Os últimos foram da Giovana Madalosso, Vanessa Barbara, Ruth Manus, Martha Medeiros, Francisco Azevedo, Edney Silvestre e Fernanda Torres. O livro que mudou a minha vida: Minha vida é constantemente modificada pelos livros, para melhor. Um deles: O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago.

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O livro indicado

Um homem bom é difícil de encontrar de Flannery O'Connor

Texto: Maurício Lobo

Quando descobriu que morreria de lúpus, Flannery O’Connor tomou a decisão de dedicar seus últimos anos a duas paixões somente: sua fé e sua obra. A doença degenerativa herdada do pai, que era sentença de morte na longínqua década de 1950, obrigou-a a passar o resto de seus dias em uma fazenda na companhia da mãe, cercada de cuidados especiais. Foi durante essa melancólica corrida contra o tempo que O’Connor produziu a maior parte de sua obra, até hoje debatida e elogiada por críticos e leitores mundo afora. Com um estilo de escrita provocativo e irônico, marcado muitas vezes por violência brutal e supostamente injustificada, a autora permanece em muitos aspectos mal-interpretada, já que, em vida, enfatizou a influência da religião católica em seus textos. Talvez a ausência de um tom didático ou explicitamente moralista tenha sido o propulsor da ambiguidade que torna sua leitura tão fascinante e atual. Com uma obra que abrange romances, contos e ensaios, O’Connor obteve maior reconhecimento como contista – faceta que a elevou a expoente da literatura chamada “gótica sulista” americana. Seus cenários sintetizam a vida no sul do país, por onde passam personagens vis, fracassados, e conservadores – pecha que povoou o imaginário popular no tocante a diversos grandes escritores sulistas, sejam os predecessores de O’Connor (como William Faulkner, Carson McCullers, Mark Twain e Tennessee Williams) ou seus sucessores (como Toni Morrison e Truman Capote). A respeito dessas generalizações, a própria autora chegou a comentar, não sem o escárnio que lhe era característico: “Descobri que qualquer coisa que vier do sul será chamada de grotesca

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pelo leitor do norte, a menos que seja grotesca; nesse caso, será chamado de realista.” Não que não houvesse algo de verdadeiro em tal interpretação. Esses escritores retratavam, afinal, a realidade da qual eram testemunhas, e pouco de promissor havia a ser dito sobre a metade meridional dos Estados Unidos, região que, no começo do século XX, padecia com o massacre imposto pela derrota na Guerra Civil. Nos estados de passado escravista, violência e discriminação contra cidadãos negros eram registradas em níveis assustadores; costumes e valores tradicionais eram cada vez mais questionados; a família era uma instituição marcada pela discórdia e desunião; a religião vê sua imponência aos poucos esfacelar. Nesse contexto desolador nascia Mary Flannery O’Connor, no estado da Geórgia, em 1925. Sua família diferenciava-se das outras em um aspecto crucial para sua formação: de origem irlandesa, eram todos devotos católicos, enquanto a maioria ao redor dos O’Connor seguia o protestantismo. Tal estranhamento só fez aumentar a reclusão da jovem Flannery, uma menina quieta, de aparência esquisita e bastante excêntrica, que preferia a companhia de aves à de outros seres humanos. “Uma criança de pés tortos, com queixo encolhido e complexo de deixe-me-em-paz-senão-eu-mordo”, em suas próprias palavras. Após formar-se em Ciências Sociais em uma faculdade para mulheres em Milledgeville, O’Connor partiu para o norte para buscar novas experiências. Em um primeiro momento, foi aceita no prestigiado programa de escrita criativa da Universidade de Iowa, onde conheceu outros escritores e críticos que a estimularam e que seriam seus primeiros leitores. Foi ali que ela começou o rascunho de seu primeiro romance, Sangue sábio. Durante o verão de 1948, deu continuidade ao livro na comunidade de artistas de Yaddo, no estado de Nova York, onde também produziu diversos contos. Aos vinte e quatro anos, mudou-se para Nova York, pronta para lançar-se escritora. Quando tudo levava a crer que sua carreira decolaria, em 1952, mesmo ano de publicação de seu primeiro romance, O’Connor descobriu ser portadora da mesma doença autoimune que matara seu pai anos antes. Forçada a se dedicar totalmente ao tratamento do lúpus, precisou


voltar para os campos de Milledgeville. Lá, passaria o resto da vida sendo cuidada pela mãe Regina, mulher dedicada e dominadora que nunca conseguiu compreender a escrita da filha, mas que não mediu esforços para proporcionar o tempo e o espaço que ela precisava para produzir. Por um tempo, medicamentos caros ajudaram a controlar seus sintomas. Mesmo sofrendo, escrevia todos os dias por cerca de uma hora, produzindo um corpo de trabalho que inclui dois romances (The violent bear it away, de 1960, foi o seu segundo) e mais de trinta contos. A primeira de suas publicações desse período foi Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias, coletânea de contos que você recebe neste kit. Prepare-se, leitor, para uma experiência literária que deixará marcas: cada conto deste livro tem o potencial para retorcer o estômago e permanecer na memória por dias – para o bem e para o mal. A escrita de O’Connor é impiedosa, penetrante, recheada de ambivalências e curiosamente obcecada por pavões. Encenadas majoritariamente em espaços do sul americano – rurais ou urbanos –, são histórias de encontros entre personagens medíocres e outros mal-intencionados, violentos e, bem, grotescos. No entanto, em cada um desses indivíduos, sejam eles desprezíveis ou apenas ignorantes, O’Connor encontra o que há de mais humano, colocando-os diante de eventos definitivos e irreversíveis, capazes de transformá-los espiritualmente. Desde o primeiro conto que dá nome à coletânea, a mensagem é inequívoca: nenhuma alma será poupada dos tortos destinos previstos pela escritora.

Presente em diversos contos, o racismo é uma das questões mais debatidas na obra de Flannery O’Connor. Enquanto não se pode simplesmente decretar que visões preconceituosas de personagens (ou mesmo de narradores) representam as convicções de um autor, tampouco é produtivo deixar o tema intocado, tendo em vista a realidade opressiva e violenta enfrentada pelos negros na época em que a escritora viveu. Talvez a discussão mais necessária não seja “desvendar” se O’Connor era ou não racista (por diversas vezes, ela negou que sua obra girasse em torno de questões sociais, mas sim, de religião – o que obviamente não a isenta de críticas), mas debater de que forma questões de raça apresentam-se e funcionam em sua ficção.

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Não se engane com contos de título inocente: é O’Connor mais uma vez fazendo troça com o leitor. Os elementos do gótico sulista americano estão todos aqui: testemunhamos batizados de consequências trágicas, serial killers, ladrões, menções à Guerra Civil, pessoas cheias de ressentimentos e preconceitos; por trás dessas histórias, pairam conflitos entre raças, gêneros, crenças e idades, além da relutância em aceitar um mundo moderno e tecnológico. Resta espaço, ainda, para o que há de mais singular na escrita de Flannery O’Connor, combinando o sagrado, o cômico e o mórbido em profecias autorrealizáveis, em mortes e no encontro com a graça divina. Este último, por sinal, é talvez o grande tema da autora – e também o seu mais ambíguo, já que violência e redenção são praticamente indissociáveis nesses contos.

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“Muitos de meus admiradores ardentes ficariam chocados e perturbados se percebessem que tudo em que acredito é completamente moral, completamente católico, e que são essas crenças que dão ao meu trabalho suas principais características.” – Flannery O'Connor À exceção da última narrativa, todas são bastante curtas; com a qualidade típica dos grandes escritores de contos como Borges, Machado de Assis e Poe, que fazem de cada frase elemento fundamental para a construção da história, O’Connor condensa poucas páginas combinando descrições pitorescas e situações chocantes. Com toques de cinematografia, as cenas de desfecho de cada uma dessas histórias são difíceis de assimilar, mas é praticamente impossível olhar para o lado. Ao final da leitura, há dúvidas inevitáveis. Ficamos sem saber se O'Connor questiona a possibilidade de redenção em uma sociedade decadente ou se nós, leitores, perdemos algo nas entrelinhas. De qualquer modo, as interpretações são infinitas – e as dúvidas no ar, do modo que aqui são lançadas, transformam-se em ponderações que nos acompanham para a vida.


Unboxing projeto gráfico O projeto gráfico do livro de março, elaborado pelo designer Anderson Junqueira, é inspirado no expressionismo do século XX. O movimento artístico tenta reproduzir a distorção da realidade subjetiva inerente ao ser humano, recurso também utilizado por Flannery O’Connor. A obra que ilustra a capa, Autorretrato com lanterna chinesa (1912), de Egon Schiele (1890-1918), desperta visualmente a atmosfera da obra, ressaltando o aspecto sombrio e caricato do indivíduo. A luva traz o toque de ironia que a autora acrescenta à sua obra, apresentando uma imagem iluminada que passa a sensação de felicidade… até você abrir o livro. 19

mimo Quando pensamos em contos sombrios, como não lembrar de Edgar Allan Poe? A ilustração do gato, que estampa a ecobag, tem um significado duplo: alude ao felino do primeiro conto (responsável pelo acidente que vai mudar a trajetória da família viajante) e também a "O gato preto", conto escrito por Poe em 1843. Em outra instância menos sombria, a ilustração é homenagem a todos os gatinhos que amam deitar nas caixas da TAG. A frase "Coro, enrubesço, estremeço conforme descrevo a abominável atrocidade", de Poe, homenageia o autor, que nos fascinou com as mais abomináveis atrocidades em suas páginas.


Genealogia literária ue a tradição literária de Geórgia é das mais interessantes dos Estados Unidos não é nenhuma novidade. Trazemos aqui, portanto, uma genealogia do grotesco, escola de Flannery O'Connor. Desde Faulkner e sua prosa que mudou paradigmas até Harper Lee (a quem a autora do mês absolutamente desprezava), veja algumas sugestões de leitura do gótico sulista.

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O som e a fúria (1929), de William Faulkner O consagrado romance de Faulkner é um dos marcos do que veio a se chamar Literatura Gótica Sulista nos EUA. Centrado na decadência da velha família aristocrática do sul rural estadunidense, o romance é estruturado a partir de uma polifonia de vozes – cada uma das quatro seções do livro apresenta um narrador. O fim da escravidão e as novas leis democráticas são o motor do aniquilamento pessoal e coletivo dos membros da família Compson. A estrada do tabaco (1932), de Erskine Caldwell Focado na história de camponeses, A Estrada do tabaco relata um período conhecido em território norte-americano: o fim do cultivo do algodão e o início da migração dos trabalhadores para a cidade. A atmosfera de violência perpassa cenas atrozes e a linguagem é de difícil classificação – a obra foi enquadrada na corrente denominada Realismo Sujo e também na Literatura Gótica.


O coração é um caçador solitário (1940), de Carson McCullers Publicado pela TAG na edição de dezembro de 2018, a obra de estreia da jovem escritora McCullers é referência em termos da nova Literatura Gótica. Ambientada em uma pequena cidade do sul dos EUA, a obra gira em torno da figura enigmática do personagem surdo-mudo John Singer. É ele quem parece cooptar os sentimentos de solidão, apatia e marginalidade dos moradores da cidade, ainda que a ausência de comunicação seja o traço mais visível nas relações sociais locais. Um Bonde Chamado Desejo (1947), de Tennessee Williams Vencedora do prêmio Pulitzer, a peça teatral tem como argumento as tensões culturais a partir do encontro entre Blanche DuBois, uma mulher alcoólatra de reputação duvidosa, e o casal formado por sua irmã, Stella, e pelo problemático Stanley Kowalski, de origem polonesa. A peça foi adaptada em todo o mundo, tendo sido, inclusive, levada para as telas do cinema pelo diretor Elia Kazan com atuações memoráveis de Marlon Brando e Jessica Tandy. O sol é para todos (1960), de Harper Lee O romance de Lee tornou-se um best-seller na época e até hoje segue sendo lido por novas gerações preocupadas com assuntos como a perda da inocência infantil e o racismo estrutural. Narrada por uma menina de 6 anos, Scout Finch, a obra aborda o caso de seu pai, o advogado Finch, convocado para defender Tom Robinson, um homem negro injustamente acusado de estuprar uma mulher branca. A Sangue Frio (1965), de Truman Capote Narrado em terceira pessoa, o romance que consagrou o escritor norte-americano tem base em um acontecimento real que abalou a sociedade no ano de 1959: o assassinato da família Clutter. Com ares de narrativa policial, a história apresenta documentos, declarações e, de maneira audaciosa, uma tentativa de compreender Dick Hickock e Perry Edward Smith, os assassinos do crime.

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Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.


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Ao Leitor Como você está? O final dessa leitura impacta cada leitor de uma forma distinta. É possível que você esteja desnorteado – do jeito bom, se é que ele existe. Flannery O’Connor, pasme, esperava que você terminasse esperançoso. Em cada conto, ela propunha a investigação da graça e da redenção humana. Sim, ela o faz muito por meio da violência, mas, ao fechar esse livro, você deve ter percebido o tom da obra. Se suas personagens por vezes emergem como pessoas deslocadas, é porque Flannery O’Connor sentia que todos os seres humanos são pessoas deslocadas que necessitam da graça divina. Se também são monstros, ela se orgulhava de conseguir reconhecer um monstro em uma época em que o “homem de terno de flanela cinza” era considerado normal. Em resumo: ao ler Flannery O’Connor, quem está em julgamento não é ela, escritora. É você, leitor. Neste posfácio, vamos mergulhar na simbologia dos contos de Um homem bom é difícil de encontrar. Para enriquecer sua leitura, você será guiado pelos contos, um a um, e poderá perceber aspectos difusos, mas presentes de maneira consistente na escrita dessa autora, além de curiosidades a seu respeito. Nas páginas críticas, uma revisão de Um homem bom é difícil de encontrar sob a óptica da "banalidade do mal", de Hannah Arendt. Boa leitura!


“Você nunca sabe de que azar ainda maior sua falta de sorte te poupou.” Cormac McCarthy, Onde os velhos não têm vez

Ilustração do mês: Marcos Torres é ilustrador tradicional e digital, natural de Porto Alegre, RS. Com formação em Comunicação Social, já transitou por áreas tão distintas como publicidade, design, animação, jogos digitais e graffiti ao longo dos últimos 12 anos. Atualmente, foca em arte conceitual para os mercados de animação e jogos, mas sempre mantendo o seu trabalho tradicional ativo. Flannery O'Connor não era uma artista somente do texto. Nas horas vagas, a escritora gostava de praticar o desenho, sendo muito afeita aos cartuns, e também incursionou pela pintura. Demos ao ilustrador a tarefa de reinterpretar um dos quadros de Flannery, um autorretrato com pavão datado de 1953. O que você achou?


Sumário posfácio

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Conto a conto – temas e analogias

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O bem, o mal e Flannery O'Connor

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Contardo Calligaris: o curador de abril


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Conto a conto – temas e analogias Reunimos nesta seção algumas das principais temáticas de cada conto, os símbolos mais recorrentes e os recursos imagéticos que ajudam a multiplicar as camadas interpretativas da obra de O’Connor. Além do óbvio da comunidade rural e do racismo que não só permeava a obra da escritora como escorria dos habitantes da Geórgia, aqui você lê um guia que apresenta perspectivas menos destacadas nas histórias de Um homem bom é difícil de encontrar.

Um homem bom é difícil de encontrar

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Texto: Maurício Lobo Ilustrações: Anderson Junqueira sobre trabalho de Egon Schiele / Reprodução

elações familiares e religiosidade são alguns dos temas do conto mais lembrado da escritora. As interações entre Bailey e sua família denunciam um lar desunido, onde imperam desrespeito e estupidez. As mulheres, com exceção da menina June Star, nem ao menos são nomeadas (tentativa da escritora de evidenciar a posição subalterna das mulheres num contexto familiar e social?). Embora se esforce para ser ouvida, a avó, centro da ação na narrativa, é ignorada e ridicularizada. Ao mesmo tempo, está longe de ser virtuosa: nos atos e discursos, prova ser materialista, egocêntrica e racista. É a protagonista, no entanto, que acaba por ir ao encontro da “graça” de Deus – provavelmente o tema central de O’Connor –, logo no momento da morte. Prestes a ser alvejada, ela parece perceber a conexão entre todos os seres humanos; é a sua chance de redenção divina. O narrador afirma que "a cabeça da avó clareou por um instante", sugerindo que este era

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o momento mais verdadeiro da história. A reação do Desajustado também sugere que a avó pode ter atingido a verdade divina. Como alguém que rejeita abertamente Jesus, ele se retrai ao toque dela. Finalmente, apesar de seu corpo físico estar torcido e ensanguentado, a avó morre com "o rosto rindo para o alto, para o céu sem nuvens" como se algo de bom tivesse acontecido ou como se tivesse entendido algo importante.

Curiosidade: o título do conto, que serve tão bem enquanto crítica à hipocrisia moralista de seus personagens, foi retirado de uma canção de Eddie Green, ator e cantor dos anos 1930. Eddie Green também é o nome de um criminoso famoso da mesma época.

O rio

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tema mais evidente deste conto é a Graça de Deus, da qual Harry e o Mr. Paradise fazem interpretação equivocada. O senhor cria expectativas irreais a respeito de Bevel e da pregação, enquanto Harry, criado em uma casa sem religião, falha em compreender o significado de seu batizado, afogando-se mais tarde no mesmo rio. Ele, assim como a avó do primeiro conto, parece atingir a graça no momento de sua morte, buscando salvação no lugar de viver uma vida sem fé. Embora alguns críticos não vejam sentido na morte de Harry, O'Connor aparentemente teve o cuidado de criar um personagem cuja juventude o colocasse abaixo da “idade de discrição” – na fé católica, aos sete anos. Como Harry foi batizado e não pode ser responsabilizado por suas ações, ele morre uma boa morte. A própria escritora certa vez observou que Harry "chega a um bom final. Ele é salvo daqueles pais malucos, um destino pior que a morte. Ele foi batizado e então vai ao Criador; este é um bom final".

A vida que você salva pode ser a sua

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qui, O’Connor lança mão de diferentes cenas, cores, analogias e simbolismos religiosos. Cores são utilizadas principalmente para retratar objetos e as roupas dos personagens, definindo, dessa maneira,


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os diferentes papéis de cada um. Tom Shiftlet, que veste roupas escuras e tem uma visão extremamente pessimista sobre o mundo, chega à fazenda das Craters e vê uma oportunidade surgir. Embora seu principal interesse seja o carro da velha senhora, a ele é oferecida uma vida tranquila, confortável e feliz ao lado da jovem Lucynell (que usa roupas claras como um ser angelical). Considerando a temática recorrente dos contos de O’Connor, UM HOMEM poderíamos interpretar essa oferta como a possibiliBOMdade É de aceitar a graça divina. Ao considerar a possibiDIFÍcIL DE lidade de fugir com o carro, no entanto, “o sorriso de Mr. ENCONTRAR Shiftlet E OUTRASse esticou na escuridão como uma cobra enfasHISTÓRIAS tiada, ao ver o fogo, desperta” – na tradição católica, a cobra é um símbolo do pecado.

Um golpe de sorte

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á diversos simbolismos neste conto, alguns mais evidentes que outros. A narrativa parece estar centralizada nos diversos enfrentamentos necessários a Ruby, a começar pelas escadas que a incomodam logo no começo e dão o tom da narrativa. A maioria dos símbolos estão conectados à temática da gravidez da personagem. É possível supor, por exemplo, que os lances de escadas, com 28 degraus cada, refiram-se aos dias do ciclo menstrual. Há também referências fálicas – a pistola de brinquedo na qual ela senta acidentalmente 16:58 dos personagens ser Rodman e o fato do nome08/01/2020 de um (homem da vara).

Um templo do Espírito Santo

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hermafrodita, para Flanerry O'Connor, é uma símbolo de aceitação divina – atinge a graça ao não questionar os motivos de Deus. A autora também mostra sua simpatia em relação aos freaks – ela, que sofreu com o lúpus e aos poucos foi perdendo

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as funções do corpo, frequentemente se colocava nesse grupo de excluídos. Sobre a narrativa, a autora escreveu em uma carta: "O mais próximo que posso dizer sobre a pureza nessa história é dizer que é uma aceitação do que Deus deseja para nós e uma aceitação de nossas circunstâncias individuais". De fato, o corpo do hermafrodita é um templo do Espírito Santo (Holy Ghost) na mente da criança: enquanto observa o sacerdote levantar a hóstia, que na fé católica se acredita literalmente se tornar o corpo de Cristo, ela se lembra das palavras do hermafrodita. LAIROTIDE OÃÇERID

O negro artificial

orieujaC eleinaD

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LEVÁSNOPSER ROTIDE

racismo e as tensões entre o mundo adulto e o infantil são temáticas abordadas neste conto. Head negros e acaba transmitindo seu L A I R OMr. TIDE O Ã Ç U D O R despreza P serpreconceito roT anairdA para o neto, que, de maneira inocente, não areconhece roH ordeP um homem negro como diferente em seu primeiro encontro com um. Entretanto, a influência do OÃSIVER avô e a insegurança frente ao desconhecido fortalecem anussauS asiuL o estranhamento no menino. Os sentimentos contraditórios Nelson são explicitados mais tarde na narraO C I F Á R G O T E J O Rde P E A PAC arieutiva, qnuJ nquando osrednA o menino pede informações a uma mulher negra e por ela sente fascinação e desejo. Um imporOÃÇAMARGAID tante simbolismo utilizado pela escritora neste conto anargiliF é a comparação dos dois personagens a animais, que parece reforçar a ignorância de ambos (eles também são comparados a fantasmas ao longo da narrativa). Por fim, alep odara obreligiosidade ale iof orvil etsEabordada no conto se dá quando os dois sairáretiL passam saicnêireppelo xE – “negro GAT artificial”, uma espécie de “agente da arotide agraça” moc airque ecrappermite me a reconciliação dos personagens e a .0202 me arietnorF avoN presença divina em suas vidas. enognaL oguH

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Um círculo no fogo

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á em "Um círculo no fogo", mais uma vez, conflitos geracionais, raciais e sociais como alicerce narrativo. Destaca-se, também, a abordagem sobre a noção de controle. Mrs. Cope – uma


senhora que acredita ter grande sabedoria, mas que, na verdade, pouco entende sobre relações humanas – tenta de todas as maneiras exercer autoridade sobre sua fazenda. Essa abordagem é evidenciada no início do conto através dos atos da protagonista, que toma conta da plantação e controla seus trabalhadores (a descrição das árvores como “fortaleza” reforça a interpretação). A chegada dos jovens, no entanto, mostra o quão frágil é esse suposto controle. Os meninos simplesmente não dão ouvidos à senhora e fazem o que querem, provocando desespero. É interessante perceber, também, a construção individual de cada personagem: O'Connor atrai os leitores ao negar-lhes um herói que represente o melhor da humanidade, mas fazendo-os refletir sobre quem representa o pior. Por fim, é possível interpretar as relações entre os personagens pelo prisma de gênero, raça e classe: Mrs. Cope, uma mulher branca e rica, consegue exercer seu poder sobre trabalhadores negros da fazenda, todos mais pobres que ela. No entanto, com a chegada de homens jovens que não precisam respeitar sua autoridade, ela perde seu poder, precisando recorrer à figura masculina do xerife da região.

Um último encontro com o inimigo

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autora reserva a primeira parte da narrativa para descrever a futilidade de seus dois protagonistas. Sally e Sash vivem unicamente para satisfazerem os próprios desejos. No caso de Sally, seu grande sonho é formar-se com a presença do avô no palco e “consertar” o grande embaraço que viveu anos atrás em outra cerimônia. Já o velho senhor quer mais um motivo para colocar sua farda militar e ser o centro das atenções. É interessante perceber que Sash já não acessa mais suas memórias, nem mesmo lembra de seus familiares. Ele prefere, na verdade, recorrer a uma memória artificial e que lhe dá prazer. Ao final do conto, a “epifania” do general se dá quando é confrontado com seu verdadeiro passado. A morte chega, no entanto, antes que ele possa “lembrar de seu futuro”.

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Gente boa da roça

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’Connor deixa evidente sua visão pessimista sobre o mundo ao fazer troça de quem ela apelida, por meio de Mrs. Hopewell, de “gente boa da roça”. Tanto Mrs. Freeman como Manley Pointer, interpretados pela dona da fazenda como ingênuos e bem-intencionados, são na verdade manipuladores e agem de má-fé – ainda que Mrs. Freeman se comporte de maneira muito mais sutil, ela manipula Mrs. Hopewell para conseguir o que quer. A dona da fazenda, por sinal, é retratada como pessoa de parcos recursos intelectuais: fala em clichês e é enganada por todos. Já Hulga, que se vê como o oposto da mãe (é ateia, PhD em filosofia e confia na ciência), acaba por sofrer as mesmas consequências – seguindo a lógica dos contos de O’Connor, ela paga por não aceitar a religião e a fé, sendo traída pela própria racionalidade. É importante que se note o simbolismo que envolve Hulga, em especial seus óculos e sua prótese: sem eles, ela perde o controle da situação. Em um discurso proferido antes de uma Conferência de Escritores do Sul, O'Connor comentou sobre a perna de pau: "Somos apresentados ao fato de que a Ph.D. é espiritual e fisicamente aleijada... e percebemos que há uma parte de madeira de sua alma que corresponde à sua perna de madeira".

O refugiado de guerra

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á diferentes versões deste conto, que teve como principal inspiração eventos reais: a chegada de famílias refugiadas à fazenda de sua família e a uma fazenda próxima. A autora aproveita a temática do estrangeiro e do estranhamento para abordar a intolerância e o racismo, mais facilmente verificados em Mrs. Shortley. Ela se refere aos homens negros da fazenda de maneira preconceituosa e sente ódio da família Guizac, de sua religião e de sua cultura. Há passagens em que se evidencia, também, o racismo de Mrs. McIntyre, que, entre outros atos racistas, se escandaliza com a notícia de que Sulk se casaria com uma parente de Mr. Guizac. Mesmo o polonês, cujo ponto de vista é secundário na


Os olhos do Desajustado, sem os óculos, eram lívidos, orlados de vermelho e indefesos. “Levem ela daqui e joguem lá narrativa, mostra-se incomodado com a presença dos onde jogaram os outros”, disse ele, apanhando o gato, que se homens negros. esfregava em sua perna. As referências religiosas neste conto se fazem “Ela falava demais, né?”,por disse em cantante Bobby Lee, Um presentes meio dovoz pavão que vive na fazenda. dos animais preferidos da autora, o pavão já foi assoao escorregar vala adentro. à imortalidade e estádisse, atrelado simbolismo “Seria até boaciado mulher”, o Desajustado “se ao a cada católico. Somente Astor e o padre Flynn, os únicos instante de sua vida houvesse alguém nas cercanias para lhe personagens conectados à religião, mostram-se preodar um tiro.” cupados com o último pavão sobrevivente da fazenda “Teria sido gozado!”, disse Bobby que Lee.eles também são os que menos – não é coincidência “Cala essa boca, Bobby disse o Desajustado. “É, na sofrem nasLee!”, mãos da autora. vida não há prazer verdadeiro.”

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UM HOMEM BOM É DIFÍCIL DE ENCONTRAR

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O bem, o mal e Flannery O'Connor 12

Texto: Fernanda Grabauska

Nesta revista, muitas voltas demos a respeito daquilo que faz a escrita de Flannery O'Connor ser tão impactante, tão fundamental para o conto norte-americano. Falamos da intrincada simbologia cristã, da ambiguidade psicológica das personagens, da influência do contexto no caráter dos habitantes da Geórgia cujas vidas serpenteiam pelo livro deste mês. Uma coisa entre todas essas, no entanto, fica tão clara para a enigmática criadora de pavões de Milledgeville quanto para seu leitor: é possível ser mau e ser bom. Os momentos de graça divina muitas vezes não são a confirmação da obra de uma vida, e sim o desmoronamento daquilo que, supúnhamos, era nosso diferencial. Uma definição correlata às ambiguidades que lemos em Um homem bom é difícil de encontrar foi cunhada alguns anos após o lançamento do livro de Flannery O'Connor. O cenário foi o julgamento do tenente-coronel Adolf Eichmann por sua atuação na Segunda Guerra Mundial. Presente nos depoimentos, que ocorreram em 1961, estava a teórica política Hannah Arendt, enviada como correspondente da revista The New Yorker. Em seu perfil do criminoso de guerra, cujos depoimentos deram origem ao livro Eichmann em Jerusalém (1963), Eichmann não possuía histórico e nem traços de personalidade que acusassem algum antissemitismo latente. Ele também não apresentava características


que denotassem caráter doentio, alguma psicose. Em Eichmann se via, dizia Hannah Arendt, uma pessoa que agiu de acordo com aquilo que acreditava ser seu dever, um burocrata que procurava ascender na vida cumprindo ordens superiores, sem jamais questioná-las. Em resumo, um homem que naturalizou um contexto de descontrole sem refletir a respeito do bem ou do mal que suas ações causariam. No conto que dá título ao livro que você recebeu este mês, Flannery O'Connor apresenta uma situação similar. No início da narrativa, não se sabe por qual razão a família trata a avó com desatenção. Sequer as crianças parecem respeitá-la. Somos forçados a nos perguntar o que a mulher fez para ser tratada daquela maneira. Se, no começo da viagem, a avó parece apenas uma senhora destrambelhada, o desenrolar dos fatos deixa claro que ela está longe de ser divertida: é desonesta e extremamente egoísta. Ela, que não hesita em distribuir selos de aprovação por onde passa, está longe de ser uma pessoa boa. O conflito central do conto é o conflito interno da mulher, que até então não percebe sua soberba. A crença 13 em si como "uma boa pessoa" e sua teimosia em obedecer à sua consciência são o que terminam por destruir toda a sua família. Ao levá-los para a estrada errada e indiretamente causar o acidente, a avó não pensa no impacto de suas ações e acaba por entregar a família nas mãos do Desajustado, piorando a situação ao dizer que o reconhece dos jornais. Trata-se de um conto sobre erros de percepção, sobre a confrontação com a realidade, sobre a tal graça que pode se apoderar do coração humano quando o mesmo se vê despido de crenças que não são nada além de preconceitos, teimosias. A avó encontra conforto em dizer que são bons aqueles que acredita serem como ela – primeiro Red Sammy, cujo excesso de confiança nas pessoas chega a causar prejuízos financeiros, depois o Desajustado, que "não mataria uma senhora". Eis a questão da avó: ao imbuir o Desajustado de uma humanidade que não sabemos se ele tem, ela percebe em seus últimos momentos os seus erros e o mal que causou. O Desajustado ouviu quando a avó disse que ele jamais atiraria em uma senhora – mas jamais concordou com


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A filósofa Hannah Arendt Fotografia: Fred Stein / Album / Picture Alliance

a afirmação. Graça fulminante para a avó, que não necessariamente foi boa, mas que, em seus estertores de sofrimento, conseguiu fazer sentido disso e abriu caminho para a redenção.

Assim como o desfecho da avó, as histórias em Um homem bom é difícil de encontrar geralmente têm um momento penoso de humilhação, como o sermão do puritano, que prostra o pecador e força a entender o desamparo.


Flannery O'Connor na fazenda Andalusia, onde ela escreveu a maior parte de sua obra Fotografia: Joe McTyre / LOC / Creative Commons

Às vezes, como em "Gente boa da roça" e "A vida que você salva pode ser a sua", o momento de humilhação é isso, pura e simplesmente: não uma oferta de graça, mas a percepção da necessidade dela a partir da descoberta de um vazio espiritual. Em "O negro artificial", para citar outro exemplo, a humilhação de Mr. Head o guia por um processo de constrição e de desespero até sua regeneração final. Depois de repudiar seu neto Nelson em um ato de puro egoísmo e autopreservação (o avô diz que aquele "não é seu menino", que "jamais o havia visto"), ele percebe pela primeira vez o quanto pecou. Ele tenta anular aquele ato e fazer as pazes com Nelson propondo que bebam água de uma bica – um batismo? –, mas o garoto não perdoa fácil. Ao perder a esperança, Mr. Head desperta para o pecado como um recém-convertido. Ele e o neto estão perdidos na cidade e tentam encontrar o caminho para a estação de trem, mas quando Mr. Head chora para os

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céus "Oh, Deus, estou perdido!", ele confessa mais do que desorientação geográfica. Responde a seu chamado um homem careca de bermudas, que lhe dá, assim, o caminho da estação. Para Mr. Head, isso basta. Apenas quando ele percebe que Nelson ainda não o perdoou – eles chegam à estação, afinal – ele entende seu desamparo e o quão fútil é a ajuda secular. E é a figura do "negro artificial" – o preconceito que parecia ser o mote do conto se transforma em um agente da graça – que reúne os dois ao final. Ao guiar suas personagens aos momentos de graça em potencial, Flannery O'Connor não só omite os sacramentos católicos e seus celebrantes. Ela também os faz embarcar em um processo de preparação – é o caso de Mr. Head e da avó. Ela os extirpa de um lugar de paz interior e, em lugar disso, lhes oferece a percepção humilhante daquilo que são realmente – criaturas vaidosas, egoístas, cegas em relação a elas mesmas, mortas para os outros, necessitando mais do que tudo de graça. Pode-se dizer que a "banalidade do mal" de Hannah Arendt é tão citada na atualidade que o termo em si se tornou banal, mas é precisamente isso que Flannery O'Connor apresenta como pecado original: não a predisposição criminosa de um psicótico como o Desajustado, mas a complacência de Mrs. Turpin, a intolerância de Mr. Shortley, a arrogância intelectual de Asbury Fox. Em resumo, o pecado original está no

Fotografia: Joe McTyre / LOC / Creative Commons


âmago da pessoa, naquilo que ela é sem filtros e, talvez, sem perceber. Antes que a graça possa ser oferecida à personagem, esse âmago deve ser aniquilado. Na obra de Hannah Arendt, Eichmann, um dos responsáveis pelo Holocausto, não é visto como um monstro, e sim como um funcionário ambicioso que não resistiu às ordens que recebeu. A noção, ainda hoje, é polêmica. Afinal, é um tanto ousado falar do Holocasto evocando – mesmo em teoria – a ideia de que a maldade possa ser algo corriqueiro. Acontece que, deixando de lado os genocídios e voltando nossa atenção ao indivíduo, matéria prima da literatura de Flannery O'Connor, entendemos que o mal não é, realmente, banal. Quem comete o mal também não pode ser considerado banal. Pois todos podem fazer o mal sem se dar conta – os monstruosos, como o Desajustado, e os aparentemente comuns, como a avó. Ninguém nega que a perversão existe e que há quem ache gozo no sofrimento de outros. O inventário de tipos de Um homem bom é difícil de encontrar prova, em vez disso, que não há muro intransponível entre o bem e o mal. Longe disso: o muro pode até estar ali, físico, imponente, um norte para nossas ações. Quando caminhamos por cima do muro, no entanto, é sempre mais fácil do que parece acabar do outro lado.

É isso que Flannery O'Connor nos diz: nenhum de nós é imune à barbárie; seja de sofrê-la, seja de cometê-la. Todos podemos nos enxergar como pessoas justas, mas, no fundo, jamais teríamos certeza de nosso comportamento em circunstâncias particulares. Um homem bom é difícil de encontrar justifica a premissa de seu título – uma vez que entendemos o que é a bondade para Flannery O'Connor, resta aguardar um momento de graça. Encontrar um homem bom é tarefa quase impossível.

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O curador de abril

Contardo Calligaris

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Fotografia: Max Calligaris

Italiano radicado no Brasil desde a década de 1980, Contardo Calligaris – curador de abril – explora as reverberações de sua ocupação principal, a psicanálise, na arte. Com incursões na literatura especializada e de ficção, e na dramaturgia, Calligaris também incursiona pelo jornalismo de opinião, mantendo, desde 1999, uma coluna no jornal Folha de S. Paulo. Nos anos 1980, foi um dos grandes nomes do lacanismo – corrente de psicanálise fundada pelo francês Jacques Lacan (1901–1981) – no Brasil, tendo, na década seguinte, ajudado a organizar as grandes associações psicanalíticas lacanianas. Em sua ficção, o autor nos apresenta tramas de mistério que servem de suporte para um detalhamento da psique humana. Sua indicação para a TAG é, também, uma janela para a mente do Outro. O livro, inédito no Brasil, conta as agruras enfrentadas por um pai de família que, tendo reprimido desejos a vida inteira, descobre-se mulher.


FONTE: https://glo.bo/36y7ykI

Vocě já leu uma mulher este ano? A Academia Brasileira de Letras tem 40 membros, mas apenas 5 são mulheres.

Apenas 28% dos autores publicados no Brasil são mulheres.

Em março, e no resto do ano, vamos ler mais autoras brasileiras?

Estoque sujeito a disponibilidade.

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