À BEIRA-MAR
JUL 2022
OLÁ, Olá, tagger TAGGER H
á oito anos, neste mesmo espaço, selávamos o principal compromisso que ainda hoje nos mobiliza: tornar menos árido o solo da literatura no Brasil. Ao celebrarmos mais um aniversário, podemos dizer que nos orgulhamos do caminho percorrido até aqui para cumprir esse desafio. O livro que chega agora às suas mãos — um romance de Abdulrazak Gurnah, vencedor do Nobel de Literatura em 2021 — vem coroar uma série de grandes momentos deste último ano: lançamos duas trilhas, sugerindo percursos únicos pela literatura negra e por clássicos mundiais; tivemos como curadoras duas das maiores escritoras da atualidade, Margaret Atwood e Alice Walker; e ainda recebemos o Prêmio Jabuti, a mais importante premiação literária nacional, na categoria capa. Por sinal, pensamos em um nome diferente para produzir a deste mês — ninguém menos do que Eduardo Kobra, autor de célebres murais urbanos espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Infelizmente, porém, não foram só conquistas que rechearam este oitavo ciclo. Como se não bastassem as inseguranças ocasionadas por mais um ano de pandemia, as mudanças nos hábitos e o ambiente macroeconômico, o preço do papel passou por forte inflação, reduzindo drasticamente nossas margens. Com tudo isso, o que começou emocionante com o lançamento da nossa primeira trilha se mostrou na verdade um dos períodos mais desafiadores da nossa história, e precisamos admitir que ainda estamos tentando encontrar nosso equilíbrio. Como costumamos relembrar em cada aniversário, sabíamos desde nosso primeiro dia que a decisão de trabalhar com livros (físicos!) no Brasil não seria nada fácil, que criar experiências literárias de forma a tornar a leitura leve e divertida ao mesmo tempo que propulsora de profundas reflexões encontraria as mais diversas barreiras, e é dessa forma que seguimos: com o mesmo frio na barriga lá do início, mas também com a mesma paixão por deixar um pouco mais colorido este nosso mundo tão preto e branco. Obrigado por seguirem conosco nesta jornada. Não há nada melhor do que compartilhar esta aventura com vocês! Um abraço, Gustavo Cofundador e CEO da TAG
JULHO 2022 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200
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QUEM FAZ
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JÚLIA CORRÊA
Publisher
Editora
PAULA HENTGES
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LIZIANE KUGLAND
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Revisora
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Impressão Gráfica Ipsis Página da loja Lais Holanda
Preciso de ajuda, TAG! Olá, eu sou a Sofia, assistente virtual da TAG. Converse comigo pelo WhatsApp para rastrear a sua caixinha, confirmar pagamentos e muito mais! +55 (51) 99196-8623
prefácio
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Experiência do mês
O livro indicado Saiba mais
Contextualização
posfácio
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guia de conteúdos
Por que ler o livro
Conteúdo especial
Crítica
Aniversário TAG
Próximo mês
4 EXPERIÊNCIA DO MÊS
Marque a cada parte concluída
JORNADA DE LEITURA
C
riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima de À beira-mar colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares! Inicie o livro e leia até a página 65 O objeto que Saleh Omar carrega em sua bagagem desencadeia uma série de lembranças do passado. E o relato inicial envolvendo um misterioso comerciante já nos permite conhecer personagens importantes da história. O que você achou dos primeiros episódios narrados? Compartilhe suas impressões lá no app! Leia até a página 107 Parece que o intérprete que Rachel quer apresentar a Saleh Omar tem tudo para mudar os rumos da trama. Vamos descobrir o que vem por aí? Leia até a página 147 Nas últimas páginas, pudemos conhecer, com Latif, um contraponto aos acontecimentos até então narrados por Saleh Omar. Você gostou da alternância de pontos de vista proposta por Gurnah? Confira no app o que outros taggers estão comentando! Leia até a página 209 Ambos os protagonistas mostram ter trajetórias profundamente marcadas pela configuração política de seu país de origem, assim como pela necessidade de migração. Será que a experiência compartilhada do exílio terá impacto na relação dos dois? Sigamos adiante! Leia até a página 363 O final trouxe muitas revelações, não é mesmo? Gurnah nos apresentou uma trama realmente emocionante! Acesse o app e conte o que achou do livro! À beira-mar pode ter terminado, mas a experiência não! Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.
projeto gráfico
mimo
EXPERIÊNCIA DO MÊS
2022 foi o ano dos clássicos na TAG, um momento para refletir sobre os cânones que formaram a literatura como a conhecemos hoje. Depois de lançar a trilha Volta ao mundo em 7 clássicos, enviamos um mimo para coroar e celebrar o aniversário da TAG da melhor forma: falando de amor. Os sofrimentos do jovem Werther foi o primeiro romance de Johann Wolfgang von Goethe, um dos maiores nomes da literatura alemã, publicado em 1774. Escrito em forma de diário, é, possivelmente, um dos livros de mais fácil identificação de todos os tempos: Werther é repleto de sentimentos intensos, uma paixão que arde como febre, amor não correspondido. Tudo profundamente humano. O melhor de tudo: você terá acesso à obra em uma edição exclusiva, com capa assinada pelo designer Anderson Junqueira. O projeto gráfico de À beira-mar contou com uma participação muito especial, no clima das celebrações de aniversário de oito anos da TAG: para desenvolver a capa do livro, convidamos um dos muralistas mais reconhecidos no Brasil e no mundo, o paulistano Eduardo Kobra. A arte desenvolvida por ele remete à cidade costeira para a qual um dos personagens refugiados é enviado quando chega à Inglaterra, com o vazio da praia a simbolizar a solidão vivenciada por ele. Na luva, estão presentes os triângulos coloridos característicos de sua produção.
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6 POR QUE LER O LIVRO
à beira-mar POR QUE LER O LIVRO À beira-mar é uma das obras mais emblemáticas da produção de Abdulrazak Gurnah, escritor tanzaniano laureado com o Nobel de Literatura. Publicado originalmente em 2001, o livro mostra o ponto de vista de dois homens sobre conflitos familiares do passado, em uma trama que une habilmente episódios pessoais e eventos históricos ligados ao colonialismo na África Oriental. O romance mostra por que a Academia Sueca descreveu Gurnah como um autor “avesso a simplificações”: seus personagens estão envoltos em relações complexas, e nada do que ocorre na trama nos sugere respostas imediatas.
POR QUE LER O LIVRO
“Gurnah é um mestre da narrativa.” — Financial Times
“Mal nos atrevemos a respirar ao lê-lo, por medo de quebrar o encantamento.” — The Times
“À beira-mar nos conduz com ironia cortante à encruzilhada de uma série de mundos imaginários — indiano, árabe, persa e africano — e à modernidade de nossos centros urbanos multiculturais.” — Boston Review
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8 O LIVRO INDICADO
Um refugiado nunca está de mãos vazias IAREMA SOARES*
Em À beira-mar, Abdulrazak Gurnah rejeita representações estereotipadas e assim constrói uma narrativa potente
E
Jornalista e especialista em Literatura Brasileira pela UFRGS. Vencedora do Prêmio Neusa Maria de Jornalismo e do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, da OAB.
m À beira-mar, o narrador atua como se tivesse se apropriado do espírito de Sherazade. Sim, ela mesma, a mulher da lenda persa que fascinou o rei tirano ao narrar, por mil e uma noites, histórias fantásticas. Neste caso, somos hipnotizados pelas páginas escritas por Abdulrazak Gurnah, que, com maestria, costura histórias que parecem desconexas e aproxima vidas que parecem distantes. O autor não busca no fantástico o combustível do seu enredo, ele mergulha na vida dos refugiados para contar como o colonialismo atravessou e deixou atravessada a vida de milhares de pessoas. A representação estereotipada desses indivíduos é sumariamente desconsiderada em prol de uma narrativa potente que mostra que um refugiado nunca chega de mãos vazias a seu destino — afinal, ele carrega consigo suas vitórias, suas chagas, sua história e sua identidade. A obra é contada por um narrador principal, Saleh Omar. Contudo, ela cresce ainda mais quando surgem dissonantes vozes que relatam seus pontos de vista sobre um mesmo acontecimento. Omar é um refugiado de Zanzibar que está tentando entrar na Inglaterra com um documento falso e fingindo não entender uma só palavra da língua inglesa. Ele reivindica a posição de refugiado ao mesmo tempo que alerta que “essas não são palavras simples". Todavia, o desenrolar da história criada por Gurnah revela que, frente a acontecimentos traumáticos experienciados pelo personagem, verbalizar que se é um refugiado pode tornar-se fácil e, talvez, a única saída. Paralelamente a isso, conhecemos nosso segundo narrador, Latif Mahmud. Filho de Rajab Shaaban Mahmud — nome usado por Omar para entrar no território inglês —, Latif conseguiu uma bolsa para
O LIVRO INDICADO
"Frente à alternância de narradores, fica evidente que nada é definitivo e que os fatos têm determinada orientação a depender de quem os relata."
O autor, Abdulrazak Gurnah. Crédito: Amrei-Marie
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estudar na antiga Alemanha Oriental após a independência de Zanzibar da Grã-Bretanha. Na sequência, ele foge para a Inglaterra e torna-se professor. Apesar de nunca mais ter voltado a pisar em Zanzibar, nem de ter mantido contato com seus pais, Latif responsabiliza Omar por um acontecimento envolvendo a sua família. Por meio de uma trama que se constitui e se entrelaça conto após conto, o autor parece pavimentar o caminho que aponta para a capacidade de as pessoas seguirem trilhando suas próprias rotas e de permanecerem vivas apesar dos obstáculos e dificuldades que se impõem diante delas. Frente à alternância de narradores, fica evidente que nada é definitivo e que os fatos têm determinada orientação a depender de quem os relata. Tudo é permeado por nuances que revelam que há refugiados em diversos lugares e que não é preciso, necessariamente, ser uma pessoa estrangeira para sair em busca de um local para chamar de lar. A condição de estrangeiro é, na maioria das vezes, tão subjetiva quanto universal ou inerente. A solidão parece acompanhar os narradores. Um teve laços afetivos solapados pelo Estado, enquanto o outro incorporou à sua personalidade a solitude. Essas vidas que parecem tão distintas, mas que estão intimamente imbricadas, encontram refúgio não necessariamente nessa terra estrangeira, mas no próprio ato de desatar cada nó do passado trazido na bagagem e de se abrir a novos vínculos.
10 O LIVRO INDICADO
Confira a seguir um guia com os principais personagens de À beira-mar SALEH OMAR: Um dos dois narradores-protagonistas, ele busca asilo no Reino Unido com um nome falso, fingindo não saber inglês. Antes, foi funcionário público e dono de uma loja de móveis. ISMAIL "LATIF" MAHMUD: É o outro narrador-protagonista, filho de Rajab Shaaban Mahmud. Ismail sai de Zanzibar para estudar na Alemanha Oriental. Depois, deserta com um amigo e vai para o Reino Unido como refugiado. Lá, torna-se professor de literatura inglesa. HUSSEIN: Comerciante persa que ia anualmente a Zanzibar. Faz negócios com Rajab Shaaban e com Saleh Omar. Ele leva um filho de Shaaban para o Bahrein. RACHEL HOWARD: Conselheira jurídica de uma organização de refugiados que cuida do caso de Saleh Omar. É ela quem providencia o contato entre Omar e Latif. CELIA: Dona de uma pensão que recebia refugiados no Reino Unido. Omar Saleh morou lá por um período. HASSAN MAHMUD: Irmão de Latif. Envolve-se com Hussein. RAJAB SHAABAN MAHMUD: Pai de Latif e de Hassan. Funcionário público pouco respeitado, com reputação de bêbado e frequentador de bordéis. ASHA: Esposa de Rajab Shaaban Mahmud, tem um caso com Hussein e foi amante de um ministro que permite a Latif receber a bolsa para estudar na Alemanha Oriental. SHAABAN MAHMUD: Senhor religioso, era pai de Rajab Shaaban Mahmud, sentindo vergonha pelo comportamento abjeto do filho. BI MARYAM: Foi a segunda esposa do pai de Saleh Omar. Era irmã de Rajab Shaaban Mahmud e tia de Latif Mahmud. Um bem que lhe ficou de herança é um elemento determinante da trama.
SAIBA MAIS
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Quem é Abdulrazak Gurnah? ANDRÉ CÁCERES*
O escritor tanzaniano, que surpreendeu ao vencer o Nobel do ano passado, é voz importante na representação dos dramas dos refugiados africanos
O
É editor na SESI-SP Editora, autor de Nebulosa (Patuá, 2021) e escreve na imprensa sobre literatura.
escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah dedicou seu Nobel de Literatura aos refugiados, um dilema cada vez mais urgente na contemporaneidade. Hoje, uma a cada 95 pessoas no mundo teve de abandonar sua casa como resultado de conflitos ou perseguições, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). A quantidade de pessoas deslocadas sob essas condições quase dobrou de 2001, quando Gurnah publicou o romance À beira-mar, até hoje, indo de 42 para 82 milhões. Esse dado mostra como a obra do autor originário do arquipélago de Zanzibar e radicado em Londres cresceu em relevância. À beira-mar acompanha o ex-comerciante de Zanzibar Saleh Omar, que assume a identidade de um conhecido, Rajab Shaaban Mahmud, e busca, em idade avançada, asilo político na Inglaterra. O romance trabalha com a alternância entre o presente, em uma paisagem nova e desconhecida, e o passado, na terra natal arrasada por conflitos de ordem política — embora a nação que o acolhe possa se mostrar ainda mais inóspita. O livro parte de experiências do autor, ele próprio um refugiado nascido em Zanzibar durante o domínio colonial britânico. Gurnah se viu obrigado a fugir da terra natal após a independência da Tanzânia, quando cidadãos de origem árabe passaram a ser perseguidos. Já na Inglaterra, o escritor se tornou professor na Universidade de Kent e um importante intelectual
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para os estudos pós-coloniais, além de ser um dos principais especialistas na obra de Salman Rushdie. Apesar da centralidade da temática do deslocamento forçado em suas narrativas, a obra de Gurnah não retrata os refugiados como meras vítimas impotentes, à mercê da bondade alheia. Seus personagens destilam cinismo em relação aos cidadãos do país de destino, sempre divididos entre a insolência como forma de autodefesa e a gratidão hesitante para com o colonizador, que inviabilizou a vida digna em sua terra, mas ao mesmo tempo abriu as portas para ele. Para Elena Brugioni, professora de literaturas africanas comparadas e estudos pós-coloniais no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, essa é uma característica fundamental em Gurnah: “Uma recusa profunda e integral de mundos maniqueístas, de bons e maus, certo e errado. Isso faz parte de um projeto estético e político. Ele realmente consegue mostrar os impasses, os engodos que abrangem toda a situação, sem nunca escamotear o sofrimento e o trauma, o dilema que é abandonar o próprio país, o próprio território, procurando abrigo”. Esse é um dos tópicos abordados pelo projeto Literatura entre Fronteiras, da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, parceria da Unicamp com a ACNUR da ONU, que homenageou a obra de Gurnah sob curadoria de Brugioni, mostrando “como a questão do refúgio é presente e quão complexa ela fica quando passa ao plano literário. Gurnah mostra como a vítima não é sempre achincalhada, tem suas formas de resistência e de maldade”.
Gurnah recebe o Prêmio Nobel. Crédito: Nobel Prize/ Divulgação
"Gurnah se viu obrigado a fugir da terra natal após a independência da Tanzânia, quando cidadãos de origem árabe passaram a ser perseguidos."
ENTREVISTA
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Quando, em À beira-mar, o agente de imigração descobre que é incapaz de deportar Omar/Shaaban, confisca um estojo de ud-al-qamari, uma fragrância de babosa cambojana, a primeira de suas violações em solo inglês. “O fato de que esse objeto tão precioso para ele não signifique nada para o agente da alfândega, que o leva quase em retaliação, é uma analogia de algo retirado indevidamente das pessoas que buscam o abrigo por questões humanitárias”, afirma. Aliás, é recorrente em sua literatura a noção de que o refugiado nunca chega de mãos vazias, mas traz consigo riquezas e experiências singulares. As idas e vindas narrativas entre presente e passado são desencadeadas por objetos como esse, que remetem à vida pregressa de Omar/Shaaban, num fluxo de consciência que, ao mesmo tempo em que traz um mecanismo caro à modernidade europeia, também parece subvertê-lo. “Se, para Proust, a madeleine deixa de ser um biscoito para se tornar outra coisa, para Gurnah, o objeto desperta a história como tal, aquela substância lhe permite contar uma história específica. Essa é uma subversão não como resposta [à literatura ocidental], mas como reivindicação de um expediente literário próprio”, opina Brugioni. Talvez o Nobel ajude a chamar atenção para novas facetas da literatura africana. Além das obras escritas em inglês, a Tanzânia é fortemente marcada pela tradição oral e por autores que produziram nos idiomas suaíli, como Shaaban Robert, e kerewe, como Aniceti Kitereza. No Brasil, estamos mais acostumados à literatura africana do Atlântico, mas Gurnah pertence à tradição do Índico, que difere em aspectos históricos e literários. “Falamos de uma África que olha para o Oriente e de um Oriente que olha para a África, enquanto o Atlântico é pautado pelas relações norte-sul, pelo tráfico de pessoas escravizadas”, explica Brugioni. “O Índico tem histórias mais insólitas de presenças e trajetórias: a questão do Império Chinês, dos persas, dos indianos. À beira-mar fala de como a vivência do Índico passa pelas monções, pelos ventos que sopram através do oceano e trazem pessoas, mercadorias, objetos.” É assim que, mesclando a vivência pessoal à história da África Oriental, Gurnah provoca reflexão sobre as ambiguidades do deslocamento e demonstra que não há solução fácil para dilemas humanos.
14 SAIBA MAIS
Autorias africanas premiadas com o Nobel de Literatura WOLE SOYINKA – 1986 Primeiro Nobel de Literatura africano, descontando-se o franco-argelino Albert Camus, o nigeriano Wole Soyinka esbanja versatilidade como romancista, contista, poeta, ensaísta e memorialista. Recém-publicada no Brasil, Aké (editora Kapulana) apresenta a infância do autor nos anos 1930 e 1940 e é uma excelente porta de entrada para sua obra. NAGUIB MAHFOUZ – 1988 Autor de obras seminais, como Miramar, Children of Gebelawi e a Trilogia do Cairo, além de roteiros para o cinema, o egípcio Naguib Mahfouz pavimentou a ponte entre o existencialismo e a literatura árabe. Sua faceta mais acessível ao leitor brasileiro é a de contista, com Noites das mil e uma noites (Companhia das Letras) e O sussurro das estrelas (Carambaia). NADINE GORDIMER – 1991 Grande voz literária do movimento de resistência ao apartheid, a sul-africana Nadine Gordimer expôs a brutalidade do regime de segregação racial e a decepção com a intransponibilidade do abismo entre brancos e negros em seu país em livros como o romance O melhor tempo é o presente e a coletânea de contos Beethoven era 1/16 negro (Companhia das Letras). J. M. COETZEE – 2003 Também nascido na África do Sul, J. M. Coetzee se radicou na Austrália e, embora o tema do apartheid seja incontornável, sua obra é mais voltada para a autoficção, em obras como a trilogia Infância, Juventude e Verão (Companhia das Letras), mas também pende para uma veia de maior experimentalismo estético, metaficção e ensaísmo.
CONTEXTUALIZAÇÃO
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Na literatura de Gurnah, um encontro de mundos EDUARDO PALMA*
Saiba mais sobre a história do Zanzibar, arquipélago que integra a República Unida da Tanzânia e é pano de fundo de À beira-mar
"E
Já escreveu sobre política brasileira, relações internacionais e comportamento. Sempre com um livro na mão, não dispensa uma leitura com ideias que transcendem seu tempo, de temas complexos a amenidades.
u vim de Zanzibar, uma pequena ilha na África que, em 1964, viu uma revolta violenta que levou a uma convulsão catastrófica. Milhares foram massacrados, comunidades inteiras foram expulsas e muitas centenas, presas. Nas ruínas e perseguições que se seguiram, um terror vingativo governou nossas vidas. Aos 18 anos, um ano depois que terminei a escola, fugi. Muitos outros fizeram o mesmo; alguns foram capturados e desapareceram, a maioria escapou em segurança.” É assim que Abdulrazak Gurnah relembra os motivos de sua fuga para o Reino Unido em 1969, em artigo publicado no jornal The Guardian. Décadas depois, já como professor aposentado de literatura e estudos pós-coloniais da Universidade de Kent, o escritor se tornaria o primeiro refugiado a receber o centenário Prêmio Nobel de Literatura e o quinto representante da África. Boa parte do enredo de À beira-mar se passa justamente no arquipélago de Zanzibar, localizado na costa leste africana. Na época descrita no livro, a região estava sob o domínio do Reino Unido, assim como o território continental chamado de Tanganica, atual Tanzânia (ver mapa). Após a independência, a revolução e muitas negociações, Tanganica e Zanzibar uniram-se em 1964 em um só país: a República Unida da Tanzânia. Por isso, as matérias sobre o Nobel dizem que Gurnah é um escritor tanzaniano.
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Em 1964, Julius Nyerere e Abeid Karume assinam acordo de união entre Tanganica e Zanzibar. Crédito: AP
UMA REVOLUÇÃO SANGRENTA Em Zanzibar, após a independência, uma minoria árabe controlava a economia, detinha a posse de terras e monopolizava a produção em detrimento da maioria da população, de origem africana e persa, conforme explica o pesquisador Eduardo Marquezin Faustini, que dedicou a sua dissertação ao período pós-independência de Gana e da Tanzânia. "Dois partidos representavam a população local: o Partido Nacionalista do Zanzibar (PNZ), representante da elite árabe minoritária, e o Partido Afro-Shiraz (PAS), representante das populações africanas e persas, sob liderança de Abeid Karume", afirma Faustini, que é pesquisador no Centro Brasileiro de Estudos Africanos (Cebrafrica) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Após a independência, o sultão perseguiu os líderes políticos do PAS e outros grupos considerados radicais na ilha, assim como trabalhou para limitar a participação africana no governo", acrescenta. Como consequência, as forças de oposição se radicalizaram e organizaram um golpe de Estado contra o sultão através do partido Umma, formado por árabes contrários ao PNZ e apoiado pelo PAS. Era a revolução. Faustini comenta que seus objetivos eram estabelecer um governo de maioria africana, nacionalizar as terras e acabar com a discriminação contra africanos. Apesar disso, conforme relata Gurnah em suas obras, o novo regime passou a perseguir cidadãos com raízes árabes em julgamentos arbitrários, aplicando centenas de punições, prisões e até fazendo uso de torturas. A estimativa é de que 20 mil pessoas tenham morrido. No livro, percebemos a descrição das perseguições, as prisões, a nacionalização dos bancos, violações de direitos humanos e a busca por fuga do país — fio que une a história dos dois protagonistas. Esse novo governo, de inclinações socialistas, tinha boas relações com a União Soviética, a China e a República Democrática Alemã (RDA, também chamada de Alemanha Oriental). Naquela época, era comum que os países socialistas fornecessem bolsas de estudo e
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apoio técnico, econômico e científico para outras nações, especialmente para os locais menos desenvolvidos do bloco socialista, em ações de intercâmbio e cooperação voltadas para o desenvolvimento e o fortalecimento de capacidades. Isso explica o fato de o personagem Latif Mahmud receber uma bolsa para estudar na Alemanha Oriental, assim como vários de seus conterrâneos. UM CASAMENTO CONVENIENTE Faustini comenta que a união entre Zanzibar e Tanganica ocorreu por motivos de segurança e geopolíticos, dado o acirramento da disputa entre União Soviética e EUA na África Oriental. "O líder de Tanganica, Julius Nyerere, conseguiu integrar o Zanzibar ao seu governo, garantindo que a região não seria alvo de intervenção ocidental para conter a influência comunista. Com isso, construiu um ambiente regional mais estável." Por sua vez, Abeid Karume, o líder de Zanzibar, eliminou os riscos de sofrer um golpe da ala radical de seu governo. Antes de ser colônia do Reino Unido, a atual região da Tanzânia continental pertenceu à Alemanha entre 1880 e 1919. Com a derrota na Primeira Guerra Mundial, os alemães entregaram o território aos britânicos. Já Zanzibar teve um misto de influência oriental e ocidental por séculos. O próprio nome do arquipélago significa, em árabe, "Costa dos negros". Essa influência decorre também dos “musins” — os ventos das monções que traziam e levavam mercadores da Arábia, do Golfo, da Índia e de outras regiões para lá. Sempre aos fins do ano, os ventos sopram do Oceano Índico em direção à costa da África e, no início do ano, fazem o caminho inverso. "Traziam com eles seus produtos e seu Deus e sua maneira de ver o mundo, suas histórias e suas canções e suas orações", detalha Gurnah no livro. SINCRETISMO CULTURAL Por isso, a região tornou-se um importante entroncamento comercial e cultural, com forte presença de indianos, persas e árabes. Muitos tinham um padrão de vida elevado em comparação aos moradores locais, estabelecendo-se em comércios, negócios e bancos. Além dessas influências orientais, em 1498, o navegador português Vasco da Gama chegou a Zanzibar. A partir de então, o local viria a integrar o Império Português por quase dois séculos. Em 1698, o sultanato de Omã passou
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a controlar Zanzibar. Depois, em 1890, o arquipélago passou a ser parte do Império Britânico na condição de protetorado. Esse modelo político encerrou-se em 1963, com a criação de uma monarquia constitucional apoiada pelos árabes. Após a revolução e a união com Tanganica, hoje o Zanzibar é um território semiautônomo. O árabe é até hoje língua oficial no Zanzibar, assim como o inglês e o suaíli. O islamismo é a religião de mais de 90% dos cerca de 1,5 milhão de habitantes do arquipélago. Na Tanzânia, as línguas majoritárias são o suaíli e o inglês, e a religião predominante é o cristianismo. Mas o árabe também é falado e compreendido por parte considerável da população. UM NOBEL QUE DÁ VOZ À EXPERIÊNCIA DOS REFUGIADOS Gurnah fez da região da costa leste africana o foco de suas obras e relata com maestria os dilemas de ter de abandonar uma vida anterior para construir uma nova existência em um local desconhecido. Após o anúncio do Nobel para o autor, o africanista espanhol Chema Caballero escreveu no jornal El País que Gurnah é um dos escritores pioneiros em dar mais atenção para a "África Oriental Alemã'' e para os modos de vida dos árabes, persas e indianos que lá se encontravam. Hoje, a República Unida da Tanzânia tem cerca de 60 milhões de habitantes e é famosa por seus safáris e por paisagens exuberantes, como o Monte Kilimanjaro — o mais alto da África — e a maior cratera vulcânica do mundo, Ngorongoro. E, se você acha que não sabe muito de Zanzibar, talvez se surpreenda ao saber que o cantor Freddie Mercury, da banda Queen, é o filho mais famoso dessa terra. Agora, felizmente, temos também Abdulrazak Gurnah para tornar esse belo arquipélago cada vez mais conhecido entre nós.
O comércio nas ruas de Zanzibar. Crédito: Carpenter Collection/Library of Congress
Ilustração do mês Raquel Silveira é ilustradora e designer gráfica, graduada em Artes Visuais pela UNESP Bauru. Já teve seus trabalhos publicados em veículos como Vida Simples, Editora MOL, Folha de S. Paulo e Ilustralle. Vencedora de premiações de artes visuais, teve seu trabalho exposto em galerias e mostras individuais. Em suas ilustrações, busca a relação entre o onírico e o real, unindo o universo feminino ao natural e compondo em imagens aquilo que não é capaz de expressar em palavras. Entusiasta da literatura, a utiliza como inspiração para suas obras. Conheça seu trabalho em @raquelcsilveira. A pedido da TAG, Raquel ilustrou a seguinte passagem do livro do mês: “De repente, ele parou, frustrado em sua boa intenção de me persuadir a tomar o avião de volta e deixar a Europa para seus legítimos donos, e percorreu o passaporte com o outro carimbo, o carimbo bom, nos dedos. Então se lembrou de alguma coisa que o fez sorrir. Dirigiu-se de novo até a minha mala e retirou o estojo. Como tinha feito antes, abriu-o e deu uma cheirada. 'O que é isso?', perguntou, com ênfase mais rigorosa, franzindo o cenho. 'O que é isso, sr. Shaaban? É incenso?' Ele estendeu o estojo na minha direção antes de dar outra fungada profunda, depois voltou a estendê-lo para mim.”
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POSFÁCIO Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página. A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.
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“ESCREVER TEM SIDO UMA PARTE VALIOSA E CATIVANTE DA MINHA VIDA” Leia uma tradução exclusiva do discurso de aceitação do Prêmio Nobel realizado por Abdulrazak Gurnah em dezembro de 2021
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© THE NOBEL FOUNDATION 2021 TRADUÇÃO: Ana Beatriz Fiori
escrita sempre foi um prazer. Mesmo quando era menino, na escola, eu ficava ansioso pela aula destinada a escrever histórias, ou escrever qualquer coisa que nossos professores achassem que nos interessaria, mais do que qualquer outra aula do cronograma. Nela, todos ficavam em silêncio, debruçados sobre suas mesas para resgatar algo da memória ou da imaginação que valesse o relato. Nesses esforços juvenis, não havia o desejo de dizer algo em particular, lembrar de uma experiência memorável, expressar uma convicção ou expor uma queixa. E esses esforços também não exigiam outro leitor além do professor, que os usava como exercício para melhorar nossas habilidades discursivas. Eu escrevia porque era instruído a escrever — e porque sentia um grande prazer nesse exercício. Anos depois, quando o professor era eu, tive a experiência inversa ao sentar-me em uma sala de aula silenciosa enquanto os alunos se debruçavam sobre seus trabalhos. Isso me lembrou um poema de D. H. Lawrence, do qual citarei um trecho:
CONTEÚDO ESPECIAL
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Trecho de "The Best of School" ("O melhor da escola")
Ao sentar-me só, às margens da sala de aula, Observo os meninos em suas camisas de verão Enquanto escrevem, suas cabeças curvam-se absortas: E um após o outro ergue, então, O rosto a olhar para mim, Para silenciosamente refletir, Pois não vê, ao ver assim. E, novamente, desvia o olhar, com uma contida alegria Em fazer seu trabalho, desvia o olhar de mim, Ao ter encontrado o que buscava, ter conseguido o que queria.
A aula de escrita que mencionei e que esse poema recorda não é a mesma escrita que eu viria a conhecer mais tarde. Não era motivada, direcionada, trabalhada, reorganizada infinitamente. Nesses esforços juvenis, eu escrevia em linha reta, por assim dizer, sem muita hesitação ou correção, com muita inocência. Eu também lia com certo abandono, sem direção, e não sabia, na época, quão próximas eram essas duas atividades. Às vezes, quando não precisava acordar cedo para ir à escola, eu ficava lendo até tão tarde da noite que meu pai, que também era meio insone, era obrigado a vir ao meu quarto me mandar apagar a luz. E não se devia questionar, em hipótese alguma, por que ele ainda podia estar acordado e eu não, porque não era assim que se falava com um pai. De qualquer forma, ele vivia sua insônia no escuro, com a luz apagada, para não perturbar minha mãe, então a ordem para apagar a luz teria se mantido. A experiência de escrita e leitura que veio depois era ordenada em relação à experiência mais casual da juventude, mas nunca deixou de ser um prazer, e raramente exigiu grande esforço. Aos poucos, tornou-se um tipo diferente de prazer. Só percebi isso realmente quando fui morar na Inglaterra. Foi lá, com a saudade de casa e a angústia de viver como estranho, que comecei a refletir sobre várias coisas em que nunca havia pensado antes. Foi a partir desse período — um período prolongado de pobreza e alienação — que comecei a escrever de um jeito diferente. Ficou mais claro para mim que havia algo a ser dito, uma tarefa a ser feita, arrependimentos e queixas a serem expostos e considerados.
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Primeiro, refleti sobre o que havia deixado para trás em minha imprudente fuga de casa. Um caos profundo se abateu sobre nossas vidas em meados da década de 1960, e seus acertos e erros foram obscurecidos pelas brutalidades que acompanharam as mudanças provocadas pela revolução de 1964: detenções, execuções, expulsões e inúmeras indignidades e opressões de proporções variadas. Em meio a esses acontecimentos, e com a cabeça de um adolescente, era impossível pensar com clareza nas implicações históricas e futuras do que estava acontecendo. Foi somente nos meus primeiros anos na Inglaterra que pude refletir sobre essas questões, debruçar-me sobre o horror do que fomos capazes de causar uns aos outros, revisitar as mentiras e ilusões com as quais nos reconfortávamos. Nossas histórias eram parciais, silenciavam sobre muitas crueldades. Nossa política era racializada e levou diretamente às perseguições que ocorreram após a revolução, quando pais foram massacrados na frente de seus filhos, e filhas foram agredidas na frente de suas mães. Morando na Inglaterra, longe desses acontecimentos, mas profundamente perturbado por eles, talvez eu tenha sido menos capaz de resistir ao poder dessas lembranças do que seria se estivesse entre aqueles que ainda viviam suas consequências. Mas eu também era perturbado por outras lembranças não relacionadas a isso: as crueldades que pais infligiam aos filhos, a forma como as pessoas eram proibidas de se expressar plenamente por causa de dogmas sociais ou de gênero, as desigualdades que toleravam a pobreza e a dependência. Essas questões estão presentes em toda a vida humana, não são excepcionais para nós, mas costumam não estar em nossas mentes até que as circunstâncias o exijam. Imagino que esse seja um dos fardos das pessoas que fugiram de um trauma e agora vivem em segurança, longe dos que ficaram para trás. Em certo momento, comecei a escrever sobre algumas dessas reflexões, não de forma ordenada ou organizada, ainda não, mas pelo alívio de esclarecer um pouco algumas confusões e incertezas em minha mente. Com o tempo, ficou claro que algo profundamente perturbador estava acontecendo. Uma história nova e simplificada estava sendo construída, transformando e até obliterando o que havia acontecido, reestruturando os fatos para adequá-los às verdades do momento. Essa
"[...] conforme aprendia a ler com uma melhor compreensão, crescia o desejo de escrever em recusa às sínteses autoconfiantes de pessoas que nos desprezavam e menosprezavam."
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história nova e simplificada não foi apenas o trabalho inevitável dos vencedores, que sempre têm a liberdade de construir a narrativa de sua preferência, mas também agradou a comentaristas, estudiosos e até mesmo escritores que não tinham um verdadeiro interesse em nós, ou nos viam através de uma lente que confirmava sua visão de mundo, e precisavam de uma narrativa familiar de emancipação racial e progresso. Assim, tornou-se necessário recusar essa história, que desconsiderava os objetos materiais que comprovavam a existência de uma época anterior, os edifícios, as conquistas e a ternura que haviam tornado a vida possível. Muitos anos depois, andei pelas ruas da cidade onde cresci e vi a degradação das coisas, lugares e pessoas, que viviam grisalhas, sem dentes, com medo de perder a memória do passado. Tornou-se necessário fazer um esforço para preservar essa memória, escrever sobre o que estava lá, resgatar os momentos e as histórias que definiram como essas pessoas viviam e se compreendiam. Era necessário escrever sobre as perseguições e crueldades que a autocomplacência de nossos governantes tentou apagar de nossa memória. Também havia outra compreensão da história que precisava ser abordada, e que se tornou mais clara quando vivi mais perto de sua fonte, na Inglaterra — mais clara do que durante minha educação colonizada em Zanzibar. Nossa geração foi filha do colonialismo de uma forma que nem nossos pais nem as gerações seguintes foram, pelo menos não da mesma maneira. Com isso, não quero dizer que fomos afastados dos valores de nossos pais, nem que as gerações seguintes ficaram livres da influência colonial. Quero dizer que crescemos e fomos educados naquele período de alta confiança imperial, ao menos em nossas partes do mundo, quando a dominação se disfarçava com eufemismos e nós aceitávamos o subterfúgio. Refiro-me ao período anterior ao avanço das campanhas de descolonização na região, que chamaram nossa atenção para as depredações do domínio colonial. As gerações seguintes tiveram suas decepções pós-coloniais e suas próprias ilusões reconfortantes, e talvez não tenham visto com clareza, ou com profundidade suficiente, a maneira como a ação colonial transformou nossas vidas, como nossas corrupções e nosso desgoverno também faziam parte desse legado colonial.
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Algumas dessas questões se tornaram mais claras para mim na Inglaterra — não porque tenha encontrado pessoas que as esclareceram em conversas ou na sala de aula, mas porque passei a entender melhor como alguém como eu aparecia em algumas de suas histórias sobre si mesmos, tanto na escrita quanto no discurso informal, na hilaridade com que ouviam piadas racistas na TV e outros lugares, na hostilidade espontânea com que me deparava no dia a dia em lojas, escritórios, ou no ônibus. Eu não podia fazer nada quanto a essa recepção, mas, conforme aprendia a ler com uma melhor compreensão, crescia o desejo de escrever em recusa às sínteses autoconfiantes de pessoas que nos desprezavam e menosprezavam. Mas a escrita não se limita a batalhas e polêmicas, por mais revigorante e reconfortante que isso possa ser. A escrita não se limita a uma coisa, a esta ou aquela questão, a esta ou aquela preocupação. Como seu interesse é a vida humana de diversas formas, a crueldade, o amor e a fraqueza cedo ou tarde tornam-se assunto. Acredito que a escrita também deve mostrar o que pode ser diferente, o que o olho duro e dominador não consegue ver, o que faz com que pessoas de aparentemente pequena estatura sintam-se seguras de si independentemente do desdém alheio. Então, achei necessário escrever sobre isso também, e com sinceridade, para que tanto o horror quanto a virtude apareçam e o ser humano saia da simplificação e do estereótipo. Quando isso funciona, a beleza vem à tona. E esse olhar abre espaço para a fragilidade e a fraqueza, a ternura em meio à crueldade, a capacidade de encontrar bondade onde não se espera. É por essas razões que escrever tem sido uma parte valiosa e cativante da minha vida. Existem outras partes, é claro, mas não interessam neste momento. Surpreendentemente, aquele prazer juvenil em escrever que mencionei no início ainda está comigo, depois de todas essas décadas. Gostaria de terminar expressando minha mais profunda gratidão à Academia Sueca por conceder esta grande honra a mim e ao meu trabalho. Muito obrigado.
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As nuances do exílio ANDRÉ CÁCERES*
Gurnah toma a divagação e a ambiguidade como projetos estéticos por meio de personagens lúcidos, com alto grau de autoconsciência
À
É editor na SESI-SP Editora, autor de Nebulosa (Patuá, 2021) e escreve na imprensa sobre literatura.
beira-mar acompanha dois expatriados tanzanianos, o vendedor de móveis Saleh Omar e o professor universitário Latif Mahmud, cujas trajetórias se cruzam por uma inimizade antiga e só se resolvem em um reencontro tardio na Inglaterra. O imemorial tema do exílio, presente na literatura desde os épicos de Gilgamesh e Homero, é recombinado a partir de motivos como ganância, vingança e memória, de modo que Abdulrazak Gurnah mescle sua bagagem da tradição literária da África Oriental ao cânone ocidental — assim como um refugiado amalgama sua vida pregressa ao cotidiano do qual se apropria ao migrar. Vencedor do Nobel de Literatura em 2021, Gurnah tornou-se um símbolo, o ficcionista dos refugiados. E como expressar mais claramente o silenciamento dessas pessoas do que subtraindo o poder de fala do protagonista? Quando Omar, no fim da vida, foge para a Europa, é orientado a omitir o conhecimento do idioma inglês. Esse mecanismo de defesa desnuda as personagens ao redor. Um agente da imigração o interroga duramente e, imaginando não ser compreendido, destila seu ódio: "Gente como o senhor vem para cá aos montes sem pensar no mal que causa. O senhor não pertence a este país, não dá valor às coisas que valorizamos, não pagou por elas ao longo de gerações, e nós não o queremos aqui".
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As situações vividas por Omar demonstram a recusa do maniqueísmo na obra de Gurnah, pois o refugiado não é retratado como mera vítima, mas desvela seu cinismo em relação aos ingleses. Isso ocorre, por exemplo, quando Omar diz que “prefere” não falar inglês e a assistente social Rachel não compreende a referência ao conto "Bartleby, o escrevente", de Herman Melville. Latif Mahmud, por contraste, entende de imediato. Latif se mistura pacificamente à sociedade inglesa a ponto de se contentar porque um xingamento racista direcionado a ele estava no dicionário como termo corrente desde 1501, tendo sido usado por “bastiões da literatura inglesa”, como Shakespeare. Enquanto atributo formal, é difícil não vincular as idas e vindas cronológicas ao ir e vir das ondas do mar, não só pelo título da obra, mas pela forma como as vidas de Omar, Latif e, de certa forma, da África são definidas pelo que vem e vai pelo mar, sejam as monções ou os colonizadores. Assim, Gurnah toma a divagação e a ambiguidade como projetos estéticos por meio de personagens lúcidos, com alto grau de autoconsciência. Omar e Latif, que trocam de nome ao imigrar, como se suas identidades simbolizassem o que deixaram para trás, são compatriotas colocados em rota de colisão por forças externas personificadas no comerciante persa Hussein. O reencontro em terras estrangeiras soa como expiação de pecados, acerto de contas, mas não se espera que o leitor tome partido. Como em toda boa literatura, há nuances, sem heróis e vilões. O enfoque de Gurnah não está na mera denúncia das condições enfrentadas por quem se retira forçosamente de sua terra. Embora esse aspecto permeie o romance, À beira-mar não é um panfleto e tampouco almeja provocar indignação. A rixa entre as famílias de Omar e Latif pode ser lida enquanto metáfora de como história e memória interagem, do passado de todo um continente criado e recriado a todo momento.
ANIVERSÁRIO TAG
Figuras ilustres Abdulrazak Gurnah não é o primeiro escritor vencedor do Nobel de quem enviamos um livro — nos oito anos de TAG, outros autores e autoras laureados pela Academia Sueca também marcaram presença no clube WILLIAM FAULKNER O sexto livro enviado pelo clube, quando ainda nem produzíamos edições exclusivas, foi O intruso, escrito por Faulkner em 1948. Ambientada no sul dos EUA, a trama gira em torno de um fazendeiro negro acusado de um crime. A indicação foi do médico Patch Adams. E sabe como entramos em contato com ele? Por carta! Quase nem acreditamos quando ela foi respondida! ORHAN PAMUK Já enviamos dois títulos desse grande escritor turco. O primeiro, em abril de 2015, foi Neve, que tem como protagonista um poeta exilado na Alemanha. A indicação foi da antropóloga Sarah Blaffer Hrdy. Em janeiro do ano passado, sob curadoria de Milton Hatoum, enviamos A mulher ruiva, um daqueles livros perfeitos para quem gosta de mergulhar em outras culturas. GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ O Gabo marcou presença na TAG em dezembro de 2015. Exemplar da literatura latino-americana em nosso clube, Doze contos peregrinos foi indicado pela neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel. Como não poderia ser diferente, são histórias recheadas de realismo fantástico, em que o autor põe no centro personagens afastados de sua terra natal.
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J. M. COETZEE O sul-africano esteve presente no clube em fevereiro de 2016, quando Sérgio Rodrigues foi nosso curador. O livro escolhido foi Desonra, publicado em 1999, quatro anos antes de o escritor vencer o Nobel, e considerado a sua obra mais importante. A trama mostra um professor expulso da universidade em que lecionava após uma acusação de abuso. TONI MORRISON É da autora norte-americana um dos títulos mais amados do clube: O olho mais azul, enviado pela TAG em março de 2019, após ser indicado por Djamila Ribeiro. De Morrison, também enviamos, em fevereiro do ano passado, Sula, sob curadoria de outro nome brasileiro muito especial — o da escritora Conceição Evaristo. SVETLANA ALEKSIÉVITCH Vencedora do Nobel em 2015, a escritora e jornalista bielorrussa é autora do livro que marcou as celebrações de aniversário da TAG em 2018. Com a sensibilidade característica da autora, As últimas testemunhas traz à tona relatos de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial que, quando crianças, testemunharam os horrores do conflito. CURADORIA E EDIÇÃO ESPECIAIS Outros dois autores laureados com o Nobel marcaram presença na TAG, mas de uma maneira diferente. Em maio de 2017, contamos com a curadoria do peruano Mario Vargas Llosa, que indicou o romance O Leopardo, do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Em 2019, lançamos uma edição luxuosa de Ensaio sobre a cegueira, do português José Saramago.
agosto
vem aí
Mais uma ficção brasileira chega à TAG! O livro do mês, indicado pelo escritor Carlos Eduardo Pereira, tem a ancestralidade como fio condutor de três narrativas protagonizadas por mulheres. Em diferentes tempos, elas buscam o seu lugar no mundo, vivenciando o exílio, o abandono e a solidão.
prepare-se
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Ainda no segundo semestre, a TAG enviará livros inéditos no Brasil, de diferentes culturas. Autoras da Turquia, França e Estados Unidos vão marcar presença no clube, com obras indicadas por curadores especiais, como Itamar Vieira Junior e Scholastique Mukasonga.
encontros TAG:
Guia de perguntas sobre À beira-mar 1. Quais são os efeitos gerados pela presença dos dois narradores na trama? Como essa estrutura impacta a nossa experiência de leitura? 2. Quais são as simbologias do estojo de ud-al-qamari que Saleh Omar carrega em sua bagagem? 3. Em entrevista para a revista, a professora Elena Brugioni destaca que o projeto estético e político de Gurnah envolve a “recusa profunda e integral de mundos maniqueístas”. Em que medida isso se reflete em À beira-mar? 4. Embora o exílio seja um tema universal, ele aparece de forma bastante singular no romance, com a costura de dramas pessoais, familiares e políticos. Como esse entrecruzamento aparece na trajetória de cada um dos protagonistas? 5. Quais reflexões podemos fazer a partir do desfecho da trama?
“Suas próprias ações espelham melhor a sua vida do que todas as ações de seus inimigos.” – WIZARD OF THE CROW, NGŨGĨ WA THIONG’O