PHEBY
JUL 2022
Olá, tagger OLÁ, TAGGER H
á oito anos, neste mesmo espaço, selávamos o principal compromisso que ainda hoje nos mobiliza: tornar menos árido o solo da literatura no Brasil. Ao celebrarmos mais um aniversário, podemos dizer que nos orgulhamos do caminho percorrido até aqui para cumprir esse desafio. O livro de Sadeqa Johnson que chega agora às suas mãos vem coroar uma série de grandes momentos deste último ano: lançamos duas trilhas, sugerindo percursos únicos pela literatura negra e por clássicos mundiais; publicamos livros de grandes nomes da atualidade, como Paula Hawkins, Nick Hornby e Sue Monk Kidd; tivemos ainda um dos maiores sucessos da história do clube, A pintora de henna, de Alka Joshi, além do êxito imediato de O beijo do rio, com direito a contato direto com o autor Stefano Volp em nosso aplicativo. Este ano marcou também nosso primeiro Prêmio Jabuti, a mais importante premiação literária nacional, na categoria capa. Por sinal, pensamos em um nome diferente para produzir a deste mês — ninguém menos do que Eduardo Kobra, autor de famosos murais urbanos espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Infelizmente, porém, não foram só conquistas que rechearam este oitavo ciclo. Como se não bastassem as inseguranças ocasionadas por mais um ano de pandemia, as mudanças nos hábitos e o ambiente macroeconômico, o preço do papel passou por forte inflação, reduzindo drasticamente nossas margens. O que começou emocionante com o lançamento da nossa primeira trilha se mostrou na verdade um dos períodos mais desafiadores da nossa história, e precisamos admitir que ainda estamos tentando encontrar nosso equilíbrio. Como costumamos relembrar em cada aniversário, sabíamos desde nosso primeiro dia que a decisão de trabalhar com livros (físicos!) no Brasil não seria nada fácil, que criar experiências literárias de forma a tornar a leitura leve e divertida ao mesmo tempo que propulsora de profundas reflexões encontraria as mais diversas barreiras, e é dessa forma que seguimos: com o mesmo frio na barriga lá do início, mas também com a mesma paixão por deixar um pouco mais colorido este nosso mundo tão preto e branco. Obrigado por seguirem conosco nesta jornada. Não há nada melhor do que compartilhar esta aventura com vocês! Um abraço, Gustavo Cofundador e CEO da TAG
JULHO 2022 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200
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QUEM FAZ
RAFAELA PECHANSKY
JÚLIA CORRÊA
Publisher
Editora
PAULA HENTGES
Designer
ANTÔNIO AUGUSTO
LIZIANE KUGLAND
Revisor
Revisora
Impressão Impressos Portão
Capa Luísa Zardo
Página da loja Lais Holanda
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Por que ler o livro
O livro do mês
20 18 14 11
8 6 4
sumário
Experiência do mês
Para ir além Entrevista com a autora
Saiba mais
Próximo mês
C
riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima de Pheby colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares! Vamos lá? Inicie o livro e leia até a página 80 Com um misto de raiva e tristeza, chegamos ao fim da primeira parte do livro. Que a coragem da protagonista nos inspire a seguir para as próximas páginas!
Marque a cada parte concluída
JORNADA DE LEITURA
4 EXPERIÊNCIA DO MÊS
Leia até a página 120 A dura realidade na prisão dos Lapier se mostra cada vez mais difícil de escapar. Como será que Pheby encontrará forças para lidar com o Carcereiro? Só lendo para saber. Vamos? Leia até a página 216 Uau. Assim termina a segunda parte! Entre o medo e a esperança, torcemos para que essa novidade possa trazer alguma alegria à protagonista. Leia até a página 252 Quanta apreensão! Depois de tudo por que Pheby passou, esse talvez seja o momento de maior desespero da personagem. As últimas páginas foram intensas, mas não dá pra parar agora, né? Vamos adiante! Leia até a página 311 Quando falamos de um contexto de escravidão, certamente não há exatamente um final feliz possível. Mas, entre muitas perdas e renúncias, nossa protagonista sempre fez o impossível para proteger os seus. Você sabia que esse desfecho é muito parecido com o que aconteceu na vida real? Leia mais na página 18 e avalie o livro no aplicativo!
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Pheby pode ter terminado, mas a experiência não!
Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.
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EXPERIÊNCIA DO MÊS
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mimo
projeto gráfico
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O projeto gráfico de Pheby contou com uma participação muito especial, no clima das celebrações de aniversário de oito anos da TAG: para desenvolver a capa do livro, convidamos um dos muralistas mais reconhecidos no Brasil e no mundo, o paulistano Eduardo Kobra. Inspirado na história de Pheby Delores Brown, seu trabalho traz uma representação da protagonista, menina negra de pele clara, rodeada por um manto de flores amarelas, remetendo ao título original da obra, Yellow Wife.
2022 foi o ano dos clássicos na TAG, um momento para refletir sobre os cânones que formaram a literatura como a conhecemos hoje. Depois de lançar a trilha Volta ao mundo em 7 clássicos, enviamos um mimo para coroar e celebrar o aniversário da TAG da melhor forma: falando de amor. Os sofrimentos do jovem Werther foi o primeiro romance de Johann Wolfgang von Goethe, um dos maiores nomes da literatura alemã, publicado em 1774. Escrito em forma de diário, é, possivelmente, um dos livros de mais fácil identificação de todos os tempos: Werther é repleto de sentimentos intensos, uma paixão que arde como febre, amor não correspondido. Tudo profundamente humano. O melhor de tudo: você terá acesso à obra em uma edição exclusiva, com capa assinada pelo designer Anderson Junqueira.
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“Desafiadora mas lindamente narrada, essa obra reflexiva e envolvente também é surpreendentemente inspiradora.” — NPR
“Pelo olhar de uma personagem com acesso e compaixão incomuns, Pheby evoca a visão de sobrevivência obstinada de uma mulher em um contexto de crueldade e objetificação.” — Washington Post
“Totalmente cativante, primorosamente pesquisado, tão oportuno e cheio de suspense, eu recomendo fortemente esse romance.” — Kathleen Grissom, autora de Glory Over Everything e The Kitchen House
POR QUE LER O LIVRO Em Pheby, Sadeqa Johnson dá conta tanto da brutalidade crua da escravidão quanto da delicadeza e da profundidade dos laços humanos, poderosos feixes de luz que revelam caminhos de sobrevivência e sentido em meio ao desespero. É um livro que conduz o leitor a um encontro difícil e necessário com a História, mas faz isso a partir da percepção íntima de uma protagonista encantadora e real, lúcida nos momentos de força e também naqueles em que sucumbe à dor.
pheby
8 O LIVRO DO MÊS
O que a mordaça não cala YASMIN SANTOS*
Em Pheby, Sadeqa Johnson parece fazer jus aos séculos de luta e resistência de diversos povos que foram sequestrados de sua terra natal e submetidos a uma sequência sem fim de violências nos EUA
“V
Jornalista com textos publicados na Folha de S.Paulo, revista piauí, Quatro Cinco Um, Elle Brasil, GQ Brasil, Uol, entre outros veículos. Foi apresentadora, roteirista e produtora do podcast de notícias Durma com essa, do Nexo Jornal. Em 2021, recebeu menção honrosa no Concurso de Ensaísmo da revista Serrote, do IMS, e ganhou o Prêmio Maria Felipa, concedido pela Câmara Municipal de Salvador por sua atuação em prol dos direitos humanos.
ocê é uma escrava no nome, mas nunca na sua cabeça.” Talvez essa seja a frase que mais se repita durante a trama de Pheby. O romance conta a história de Pheby Delores Brown, uma jovem de 17 anos fruto do estupro de Ruth Brown, negra escravizada, por Jacob Bell, senhor de engenho. Sally, sua falecida tia branca, havia ensinado a ela como se portar como uma dama, a alfabetizou e a ensinou a tocar piano. É nas teclas do instrumento que Pheby extravasa a dor, a raiva, o horror diante do que acontece ao seu redor. O colonialismo se esforça para retirar a humanidade dos cativos, proibindo-lhes de professar qualquer outra fé que não a cristã, trocando-lhes os nomes, transportando os corpos em porões de navios cheios de excrementos humanos e animais, negando-lhes o direito à memória. Ciente dessa perversidade, Ruth move mundos e fundos para que a filha possa ser livre. É um pacto que ela faz pelo presente de Pheby, pelo futuro e em honra à sua ancestralidade. Antes de completar 18 anos e ser alforriada por Jacob Bell, como prometido por ele à sua mãe, Pheby é vendida a uma prisão de escravizados popularmente conhecida como Terra do Diabo. A alcunha dá a dimensão das violências físicas, psicológicas, emocionais que a menina está prestes a enfrentar.
ALERTA DE SPOILER!
O LIVRO DO MÊS
Pheby prepara as costas para o peso da chibata, mas é resgatada pelo dono do cárcere, Rubin Lapier. Fora dos porões, passa a servir à casa do carcereiro, entre a cozinha e a casa de costura. Lapier começa a cortejar a jovem para que ela seja a dama da prisão — apesar de sua fortuna, nenhum homem de respeito casaria a própria filha com o dono de uma cadeia de escravizados; a alta sociedade do sul entendia os mercadores como pessoas degradantes. Por ser uma mulher negra de pele clara, Pheby é chamada pelo carcereiro de yellow wife ("esposa amarela", "mestiça", em tradução livre). O relacionamento não se trata de um matrimônio formal — no século XIX, o casamento interracial era crime nos EUA; esse tipo de união, aliás, só saiu da ilegalidade em todos os estados e territórios americanos em 1967. Em poucas semanas, Pheby entende que os belos vestidos e as dezenas de criadas ao seu redor não são suficientes para lhe conceder a liberdade, ou até mesmo a de seus filhos. É um livro trágico, doloroso. A narrativa é centrada em personagens negros que, mais do que tentar enxergar beleza nas brechas, estão muito mais interessados em viver do que em apenas sobreviver. Toda a trama é ficcional, fruto da fabulação de Sadeqa Johnson, premiada escritora norte-americana. A história, no entanto, começou a ser desenhada a partir de uma personagem real: Mary Lumpkin. A escritora ouviu falar de Mary pela primeira vez em 2016, pouco depois de se mudar para Richmond, na Virgínia. Ao percorrer a trilha dos escravizados da região, Sadeqa se deparou com a história de Robert Lumpkin, maior traficante de escravizados de Richmond, e sua esposa/ concubina Mary, uma mulher negra. A prisão foi um espaço de “conserto” para mais de 300 mil pessoas escravizadas entre 1844 e 1865. A perversidade que Sadeqa atribui ao carcereiro da trama também é inspirada na vida real: a crueldade de Lumpkin com os negros lhe concedeu o apelido de Mercador Maligno, e a sua cadeia ficou conhecida como Meio Acre do Diabo. Contudo, o que interessava a Sadeqa não eram os métodos de tortura de Robert, mas os dilemas enfrentados por Mary, ex-escravizada, casada com
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um homem como esse. Muito provavelmente o relacionamento foi imposto, já que sua condição de cativa a privava de muitas decisões, mas Mary também não poderia ter optado conscientemente por essa vida para que pudesse se aproximar da liberdade e livrar sua prole dos porões? Como, nos Estados Unidos, a raça é definida pela origem, e não apenas pelo fenótipo, como no Brasil, os filhos de Robert e Mary, por mais alva que suas peles fossem, seriam entendidos como negros pela sociedade americana. Então, seriam as crianças vistas como mercadoria e propriedade por Robert? E, mais, como Mary vivia, testemunhando e auxiliando um negócio que lucrava a partir do tráfico e da tortura? A história de Mary não é a mesma de Pheby. Enquanto uma passou a infância e a adolescência como cativa em uma plantação, a personagem real chegou à prisão ainda criança. Ao se unir a Robert, teve cinco filhos, que, segundo a lenda, eram tratados como parte de sua família. Com o fim da Guerra Civil em 1865 — que, além do saldo de mais de 600 mil mortes, instituiu a abolição da escravatura —, Robert emancipou Mary, casou com ela e mandou duas das suas filhas para uma escola em Ipswich, Massachusetts, onde elas se passavam por brancas. Em seu testamento, Lumpkin deixou toda a sua herança para sua esposa, que, por sua vez, transformou a terra da prisão em seminário para cativos libertos. Anos depois, o território iria se tornar a Virginia Union University, faculdade historicamente negra. No livro, Sadeqa parece querer restituir a humanidade a seus personagens, fazer jus aos séculos de luta e resistência de diversos povos que foram sequestrados de sua terra natal e submetidos a uma sequência sem fim de violências nos EUA. Eram escravos pelos olhos dos outros, mas nunca em seus próprios pensamentos. Até a suposta submissão pode ser vista como uma estratégia de sobrevivência. É o retorno ao passado, capaz de ressignificar o presente e construir o futuro, que conduz a trama de Pheby, um ponto que Sadeqa deixa claro desde a dedicatória: “Para meus filhos amados [...] Se querem saber para onde vocês vão, vocês precisam entender de onde nós viemos”.
PARA IR ALÉM
Colorismo em espiral DANIELLE DE LUNA E SILVA*
Entenda a questão do colorismo, elemento central na trajetória da protagonista Pheby Delores Brown
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Professora do Departamento de Línguas Estrangeiras e Modernas da Universidade Federal da Paraíba.
ensar o colorismo a partir da perspectiva de mulheres negras é uma tarefa complexa e necessária. Aqui, pensamos sobre o tema dentro do contexto estadunidense, com percepções e classificações raciais mais definidas quando comparadas com a realidade brasileira. Em um dos ensaios de Em busca dos jardins de nossas mães: prosa mulherista (editora Bazar do Tempo, 2021), a escritora Alice Walker define colorismo como “o tratamento preconceituoso ou preferencial dado a pessoas da mesma raça baseado somente na cor da pele”. De modo geral, é possível afirmar que, historicamente, mulheres negras retintas têm sido consideradas menos femininas e estão mais vulneráveis aos efeitos deletérios do racismo e sexismo. Por outro lado, mulheres negras de pele mais clara muitas vezes são consideradas privilegiadas por serem consideradas mais desejáveis ou por estarem supostamente menos expostas ao racismo. Além disso, em certas circunstâncias, possuem certa mobilidade ou “passabilidade” que lhes permitiriam serem lidas como mulheres brancas. Ao reimaginar a trajetória de Mary Lumpkin a partir da personagem Pheby Delores Brown, Sadeqa Johnson abre uma porta para o sul estadunidense de meados do século dezenove, onde a vida da jovem Pheby se entrelaça e se contrapõe às de outras mulheres negras de tons de pele e posições distintas da sua. Nascida e criada na plantação Bell, filha da relação entre o senhor da fazenda e Ruth, uma escravizada, Pheby tem o privilégio de ter aprendido a ler e escrever, além de tocar piano. Contudo, o seu
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* De acordo com a historiadora Giovana Xavier, entre 1850 e 1880, apenas duas categorias de cor eram usadas para negroes no Censo Demográfico dos Estados Unidos: black e mulatto.
corpo, que circulava entre a Terra de Baixo e a casa grande, servia de constante ameaça e afronta para a senhora da fazenda Bell, uma vez que Pheby se aproximava dos ideais de feminilidade cultuados na época. Reverberando a afirmação de Harriet Jacobs em Incidents in the Life of a Slave Girl (sem edição no Brasil) de que a escravidão é uma experiência muito pior para as mulheres, Pheby reitera que “beleza é uma maldição para uma escrava”. Ao contrário do que o senso comum poderia imaginar, o “privilégio” da mobilidade para a personagem e, de modo geral, para os escravizados que trabalhavam na casa grande estava associado a dois desafios: uma competição entre senhoras e escravizadas, e um maior controle e rigidez em relação às movimentações destas mulheres. De modo geral, esse controle também implicava a apropriação sexual desses corpos, tidos como mais desejáveis do que os de mulheres negras retintas. Esses abusos geravam filhos e, portanto, mais mão de obra escravizada e mestiça, que, de maneira geral, estava relacionada a funções domésticas. Por sua vez, para alguns, isso possibilitou oportunidades de estudo e compra de alforria. Essa ascensão deu início a uma elite “mulata”* que, de acordo com a historiadora Giovana Xavier, em História Social da Beleza Negra, se fundamentava no colorismo. O colorismo é, portanto, uma ideologia racial criada pela escravidão. A valorização da pele clara em detrimento da pele retinta passou a ser algo alimentado por essa elite como símbolo de beleza a ser alcançado. Após a abolição da escravidão nos Estados Unidos, estimulada pelo racismo vigente, por interesses de classe, gradualmente surge uma ideologia que pregava o casamento interracial e o clareamento da pele para o "melhoramento" da raça. Com migrações em massa de afro-americanos que partiam do sul em direção ao norte do país e com o endurecimento das leis de segregação racial, surge uma indústria de beleza voltada para o alisamento do cabelo e o clareamento da pele negra. Consolida-se assim uma associação entre aparência, feminilidade, respeitabilidade e oportunidades de emprego.
ALERTA DE SPOILER!
PARA IR ALÉM
É justamente quando Pheby é forçada a sair do ambiente controlado da plantação Bell que as diferenças entre as experiências de mulheres negras retintas e mulheres negras de pele mais clara se evidenciam. Elevada à condição de senhora da casa e auxiliar nas atividades da cadeia dos Lapier, ela tem o difícil papel de preparar as jovens que serão vendidas e terão seus corpos apropriados e objetificados. A posição social e administrativa que passa a ocupar permite que estabeleça um pequeno círculo de amizades com outras esposas como ela, contudo o comportamento abusivo do marido e o ambiente tóxico da cadeia ressaltam a ambiguidade e a fragilidade de seu status. Assim, o que pode parecer privilégio implica suportar abusos e a ameaça constante de perder os filhos. Consciente das contradições de posição que ocupa, Pheby encontra uma possibilidade de redenção após a morte de Rubin Lapier, quando a prisão é finalmente reconfigurada em uma escola. Como muitas outras mulheres negras, retintas ou de tez mais clara, ela acreditou que a educação era essencial na ascensão da raça. As histórias de Mary Lumpkin e Pheby Delores Brown revelam não só as origens e complexidades do colorismo, mas também tensionam a ideia de privilégio associado às mulheres negras de pele clara, especialmente no contexto histórico ao qual Pheby faz referência. Sugestões de leitura: 1. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, de Grada Kilomba (Cobogó) 2. História social da beleza negra, de Giovana Xavier (Rosa dos Tempos) 3. A origem dos outros, de Toni Morrison (Companhia das Letras) 4. Deus ajude essa criança, de Toni Morrison (Companhia das Letras) 5. O olho mais azul, de Toni Morrison (Companhia das Letras; enviado pela TAG em março de 2019) 6. Identidade, de Nella Larsen (HarperCollins; adaptado pela Netflix)
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“ESCREVER PHEBY FOI UMA EXPERIÊNCIA REVELADORA” DÉBORA SANDER*
Sadeqa Johnson fala à TAG sobre a produção de seu romance, comenta a importância da ancestralidade em sua obra e revela os livros que ganham destaque em sua estante
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É jornalista formada pela UFRGS e cursa pós-graduação em Direitos Humanos na PUCRS. Passou por projetos como o Fronteiras do Pensamento e a Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Hoje, colabora regularmente com a Arquipélago e com a TAG Inéditos.
adeqa Johnson tem uma proximidade de longa data com os livros: antes de lançar seu primeiro romance, em 2013, ela trabalhou como relações-públicas junto a autores notórios. Desde que se tornou ela mesma uma escritora, foram três obras publicadas no gênero de ficção contemporânea. Pheby, o livro que você recebe neste mês, é a primeira ficção histórica da autora — resultado de um encontro arrebatador de Sadeqa com a figura de Mary Lumpkin, uma personagem da vida real que habitou dolorosamente a história da escravidão nos Estados Unidos. Através do olhar da protagonista Pheby Delores Brown, inspirada em Mary Lumpkin, a autora reconstrói o cenário de uma prisão onde pessoas escravizadas eram abandonadas em condições desumanas, torturadas e leiloadas como mercadorias. Sadeqa Johnson não poupa o leitor da violência que caracterizou esse capítulo da história de seu país, mas também propõe e imagina escapes que tenham possibilitado a impressionante resiliência com que sua personagem atravessa as muitas perdas e provações narradas no livro. Em entrevista à TAG, ela expôs a necessidade de conhecermos, todos, a história da escravidão, para honrar a memória dos que se foram e compreender o presente com mais lucidez. “Tantas pessoas sacrificaram tanto para que eu estivesse na posição em que estou. Estou nos ombros de meus ancestrais e espero que este livro os deixe um pouco orgulhosos”, afirmou. Leia a íntegra a seguir.
ENTREVISTA
Você dedica o livro a seus filhos e destaca a importância de conhecer as próprias origens. Como foi pesquisar e escrever um enredo criativo sobre um assunto que diz respeito à sua história enquanto mulher negra? Foi uma experiência reveladora, que parecia uma peregrinação necessária à minha própria árvore genealógica, bem como à história dos negros americanos. Digo aos meus filhos com frequência que tudo o que está acontecendo nos Estados Unidos hoje remonta às raízes do nosso país na escravidão, e é nosso dever conhecer sua história e mantê-la viva. Pessoalmente, adoro ler sobre personagens femininas que são colocadas em situações difíceis, mas não param por nada para conseguir o que querem. Pheby foi isso para mim, e eu realmente gostei de aprender sobre ela enquanto ela se movia pela história. Teve momentos em que ela se sentiu tão durona e eu adorei passar por essas cenas da história em que ela simplesmente não recuava. Qual contribuição a literatura tem a oferecer para o debate sobre a terrível experiência da escravidão? Enquanto escrevia esse romance, era importante para mim contar a verdade tal como aconteceu: a violência, a separação das famílias e o tratamento desumano dado às pessoas escravizadas. É um dos momentos mais sombrios da nossa história. Li tantos relatos de pessoas que foram escravizadas, histórias que foram perdidas ou encobertas, e senti que era meu dever honrá-los com essa história. Eu incorporei o máximo de vozes que pude em Pheby. Todos os nomes que usei na história, encontrei em antigos registros de escravizados durante minha pesquisa. Tantas pessoas sacrificaram tanto para que eu estivesse na posição em que estou. Estou nos ombros de meus ancestrais e espero que este livro os deixe um pouco orgulhosos. Apesar de ter sido escravizada, Pheby teve a oportunidade de se educar durante a infância na plantação. Ela mantém uma relação profunda com a música, a leitura e a escrita, que aliviam seu sofrimento e lhe possibilitam registrar as histórias
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A autora, Sadeqa Johnson Crédito: Divulgação
*A garota que não se calou foi o nosso livro de abril de 2021. Se você não era do clube ainda ou, assim como a autora, gostaria de presentear alguém com ele, pode adquiri-lo em nossa loja!
de outras meninas escravizadas. De que forma a arte ajuda a protagonista a se salvar da loucura? Pheby teve a sorte de ter a Srta. Sally, irmã de seu pai, para tratá-la com carinho. Miss Sally não tinha filhos, então ela educou Pheby e a ensinou a tocar piano. A arte salvou a vida de Pheby de muitas maneiras, porque era sua fuga. O piano era um velho amigo ao qual ela podia recorrer sempre que estivesse com medo, triste, feliz, sozinha e que precisasse de conforto. Escrever em seu diário também ajudou, aproximou-a da mãe quando ela realmente precisava dela. Uma curiosidade pessoal: eu ouço música enquanto escrevo. Na verdade, cada um dos meus romances tem uma espécie de playlist musical. Para Pheby, ouvi muito Chopin. Eu tocava piano quando criança, mas desisti quando adolescente, então foi muito bom para mim viver indiretamente através de Pheby. Uma das personagens que têm um papel importante ao longo da história é Elsie, a cozinheira da casa do Carcereiro. De um jeito por vezes indelicado, ela ensina algumas lições necessárias à protagonista sobre a vida na prisão dos Lapier. Como foi a construção dessa personagem e como você vê a relação entre Elsie e Pheby? Durante minha pesquisa, percebi que sempre havia uma hierarquia em cada plantação. Havia as pessoas escravizadas que tinham um pouco mais de voz do que outras. Quando Pheby chega à prisão e pede uma colher a Elsie, Elsie percebe que ela veio de uma plantação onde recebeu educação e um certo nível de privilégio. Quando Pheby é levada à cozinha para ser alimentada e banhada, Elsie sabe que Pheby agora é sua concorrente. Elsie não quer necessariamente o carinho do carcereiro, mas gosta do poder de ser a mulher responsável pelas coisas. Com a chegada da bela e jovem Pheby, isso muda para ela. Ao longo da história, você acompanha o vai e vem dessa relação. Após chegar à prisão, Pheby assume a complexa condição de estar ao lado de um homem cruel e opressivo, exercendo poder e autoridade sobre
ENTREVISTA
MINHA ESTANTE O primeiro livro que eu li:
O primeiro livro que me tocou tão profundamente que eu o li duas vezes foi Are You There God? It’s Me, Margaret, de Judy Blume. O livro que estou lendo:
Seven Days in June, de Tia Williams; estou ouvindo também o audiolivro Will, de Will Smith. O livro que mudou a minha vida: Mama, de Terry
McMillan.
O livro que eu gostaria de ter escrito: A metade
perdida, de Brit Bennett.
O último livro que me fez rir:
Brothers of the Knight, de Debbie Allen e Kadir Nelson.
O último livro que me fez chorar: Fifty Years in Chains,
de Charles Ball.
O livro que eu dou de presente: A garota que não se calou*, de Abi Daré. O livro que eu não consegui terminar: Comece pelo
porquê, de Simon Sinek, principalmente porque o começo foi tão potente que eu entendi o seu conceito na metade da leitura.
outros escravos. Por outro lado, ela faz uso desse lugar para ajudar os seus, da forma que consegue. Essa é uma posição controversa e um dilema central para a protagonista. Qual o peso disso na garantia da sua sobrevivência? Era extremamente importante que Pheby se tornasse útil dentro dos muros da prisão, não apenas para ela, mas para a segurança de seu filho, Monroe. Caso contrário, ela poderia ser separada de Monroe e vendida mais ao sul (onde as condições eram sempre temidas como piores) para trabalhar como escrava sexual. Eu podia sentir Pheby lutando com sua posição controversa e foi por isso que registrar as histórias das mulheres que ela vestia para vender se tornou importante para ela. Era sua maneira de retribuir; registrar suas vidas lhes deu um pouco de humanidade.
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18 SAIBA MAIS
Verdade x Invenção DÉBORA SANDER*
Saiba de onde Sadeqa Johnson tirou inspiração para construir os personagens e eventos de Pheby — e descubra o que foi fruto de sua imaginação A união entre uma negra escravizada e o dono de uma prisão em Richmond Verdade. A trama central de Pheby é diretamente inspirada na história de Mary Lumpkin, uma mulher de pele negra clara que foi concubina e mãe dos filhos de Robert Lumpkin, dono de um centro de detenção para pessoas escravizadas em Richmond. Mary vivia com o mercador de escravos em uma casa no mesmo terreno da cadeia.
É jornalista formada pela UFRGS e cursa pós-graduação em Direitos Humanos na PUCRS. Passou por projetos como o Fronteiras do Pensamento e a Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Hoje, colabora regularmente com a Arquipélago e com a TAG Inéditos.
Ficção. Diferentemente da história de Pheby em Pheby, em que a protagonista chega à prisão dos Lapier aos 17 anos, Mary foi vendida a Robert Lumpkin ainda na infância e tinha apenas 13 anos quando deu à luz seu primeiro filho. As terríveis condições da cadeia e a piedade da esposa do carcereiro em relação aos aprisionados Verdade. As circunstâncias deploráveis da Prisão Lumpkin fizeram o lugar ser conhecido como Terra do Diabo, e Robert Lumpkin como o Mercador Maligno. Entre 1844 e 1865, mais de 300 mil pessoas escravizadas passaram por lá para ser leiloadas ou torturadas. Relatos históricos destacam a crueldade do carcereiro e o insuportável cheiro da cadeia. Mary Lumpkin era descrita como uma figura gentil com os aprisionados.
SAIBA MAIS
O personagem de Essex Henry Verdade. O personagem de Essex Henry é inspirado em uma pessoa real: Anthony Burns, que se tornou o prisioneiro mais célebre da cadeia de Lumpkin, era um negro escravizado que havia fugido de uma plantação no estado da Virgínia. Após ser recapturado em Boston, em 1854, foi enviado para a Prisão Lumpkin. Sua captura foi motivo de revolta no norte dos Estados Unidos e fortaleceu a oposição ao regime escravocrata no país. A relação entre Pheby e Essex Ficção. Mary Lumpkin se compadeceu da situação de Anthony Burns e o presenteou em segredo com um hinário, da mesma forma como acontece entre Pheby e Essex. No entanto, nada indica que Mary e Burns tivessem alguma relação anterior ao período em que ele ficou aprisionado, assim como não há indícios de que tenha havido um romance entre os dois. O destino de Essex Henry Ficção. No livro, Pheby ajuda Essex a fugir da prisão. Na vida real, Anthony Burns passou 120 dias na Prisão Lumpkin e foi vendido para o dono de uma plantação. Anos mais tarde, teve sua liberdade comprada pelo abolicionista Leonard Grimes, tornou-se um pregador religioso e passou os anos finais de sua vida no Canadá, onde morreu de tuberculose. A transformação da prisão em um seminário para escravos libertos Verdade. Na carta de Pheby a sua filha Hester, no final do livro, descobrimos que Rubin Lapier deixou a ela em testamento a propriedade da cadeia. O desfecho descreve de fato o que aconteceu com Mary Lumpkin após a morte de Robert Lumpkin, com o fim da Guerra Civil: tendo herdado a terra, ela alugou o espaço para o missionário batista Nathaniel Colver, que transformou a cadeia em uma escola para negros libertos. Posteriormente, o local tornou-se a Virginia Union University, uma faculdade historicamente negra que reconhece Mary Lumpkin como mãe da instituição.
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agosto
vem aí
Best-seller do New York Times, o livro de agosto tem como protagonista uma jovem aspirante a escritora que, aos 31 anos, vê a sua vida entrar em crise. Para realizar o sonho de seguir uma carreira criativa, ela precisará lidar com a depressão e outros desafios que se impõem em sua rotina, envolvendo também dilemas amorosos.
setembro
20 PRÓXIMO MÊS
O livro do mês é um suspense psicológico de uma autora canadense. Best-seller do New York Times, o romance é ambientado em um bairro de Nova York, onde um jovem invade casas e se infiltra nos computadores de seus proprietários. O pânico sobre o que ele pode ter descoberto se instaura, e uma série de acontecimentos traz ainda mais tensão aos moradores do bairro.
encontros TAG:
Guia de perguntas sobre Pheby 1. “Você é uma escrava no nome, mas nunca na sua cabeça” é uma frase que aparece com frequência no livro. Quais são os significados que ela adquire à medida que avançamos na história? 2. Considerando que o livro é baseado em fatos reais, qual é a importância da reconstrução histórica feita por Sadeqa Johnson? 3. A história põe em evidência o colorismo. Você já conhecia esse tema? Discuta a sua presença na trama e faça paralelos com a realidade brasileira, dentro e fora da literatura. 4. Qual é a sua opinião sobre os dilemas enfrentados por Pheby? 5. Quais reflexões podemos fazer a partir do desfecho da trama?
“Eu sei que o mundo está machucado e sangrando, e embora seja importante não ignorar sua dor, também é fundamental se recusar a sucumbir à sua malevolência. Assim como o fracasso, o caos contém informações que podem levar ao conhecimento — até mesmo à sabedoria. Como a arte.” – TONI MORRISON