A trégua
PREFÁCIO
OLÁ, TAGGER Vamos falar sobre histórias de amor? Mario Benedetti, autor deste mês, é um velho conhecido: em fevereiro de 2019, enviamos aos associados Primavera num espelho partido, história que trata dos efeitos truculentos da ditadura no Uruguai. Mas, se o foco era a dor causada por um regime autoritário, em A trégua, livro que você recebe em setembro, temos uma história de amor. Contada a partir de um diário, observamos o modo como um viúvo de meia-idade se relaciona com o mundo – desde suas notas sobre o cotidiano até o encontro com a jovem Laura, que altera o rumo de sua pacata existência. Benedetti era um observador astuto do seu entorno. O narrador e protagonista de A trégua, Martín Santomé, segue a linha do seu criador. Quase como uma terceira protagonista, Montevidéu, a capital uruguaia, é o palco da vida inteira de Santomé. A partir das descrições de Benedetti, sentimos os cheiros das cafeterias frequentadas e respiramos o ar gelado das ruas uruguaias. Ricardo Viel, fã autodeclarado de Benedetti, discute o encantamento do autor com a cidade e nos apresenta um mapa com os locais importantes do enredo: ótima pedida para quem busca uma experiência imersiva no universo do livro. Buena lectura!
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setembro de 2021
COLABORADORES
RAFAELA PECHANSKY
LAURA VIOLA HÜBNER
LUÍSA SANTINI JANUÁRIO
Assistente
Assistente
Publisher
ANTÔNIO AUGUSTO
LIZIANE KUGLAND
Revisor
Revisora
PAULA HENTGES
GABRIELA BASSO
LAÍS FONSECA
Designer
Designer
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Impressão Gráfica Ipsis Diagramação Gabriela Heberle Capa Vinicius Theodoro
SUMÁRIO prefácio
5 O livro indicado
8 O biógrafo de Montevidéu
11 Mapa de Montevidéu
O livro indicado
POR UM INSTANTE, SERÁS FELIZ No livro deste mês da TAG Curadoria, Mario Benedetti nos fala de montanhas de felicidade em meio à planície do cotidiano — e de como é difícil permanecer lá em cima
IGOR NATUSCH
Capa do livro A trégua Vinicius Theodoro
Quanto tempo dura a felicidade? Pode parecer uma pergunta estranha, mas peço que você pense comigo a respeito. É comum idealizarmos a felicidade como um lugar que se alcança, ponto culminante de uma penosa e atribulada escalada. Fruto de uma jornada de esforços, seja para construir a estrada, seja para tirar as pedras do meio do caminho. Uma conquista, enfim. Mas, se o esforço do alpinista é fundamental, mostra-se igualmente importante saber quanto tempo é possível ficar lá em cima. Chegar ao topo do Everest pode levar meses, mas você dificilmente consegue curtir a paisagem por mais do que 15 minutos. Para Martín Santomé, personagem principal de A trégua, livro de Mario Benedetti em destaque na TAG Curadoria deste mês, o período no topo da montanha já passou há décadas. Próximo dos 50 anos, viúvo há mais de 20, passa seus dias em uma jornada sem cores, entre a rotina maçante no escritório e os longos silêncios na casa onde reside com os filhos Blanca, Esteban e Jaime. A única 5
O autor, Mario Benedetti Elisa Cabot
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perspectiva de futuro é a aposentadoria, uma contagem regressiva que vai pontuando as atualizações no diário que escreve. Depois disso, mesmo que haja muito, não há mais nada: o único plano é mergulhar no ócio, lembrando dos tempos em que foi feliz ao lado da falecida Isabel. A tediosa planície de meia-idade se transforma subitamente em montanha com a chegada de Laura Avellaneda. Única mulher da repartição, ela surge a Martín primeiro como quase desimportância, depois como curiosidade cautelosa – e, por fim, como crescente interesse. Aos saltos, muitas vezes atônito com os próprios sentimentos, o homem vai avançando em direção à montanha – uma felicidade que surge alcançável entre as nuvens, uma trégua múltipla de cores no universo cinzento dos dias. Que essa pequena escalada do cotidiano tenha surgido da mente (ou do olhar) de Mario Benedetti certamente não é obra do acaso. Nascido em 14 de setembro de 1920 na cidade uruguaia de Tacuarembó, o autor andou um pouco à margem de contemporâneos talvez mais conhecidos entre os brasileiros, como Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez – e parte dessa relativa obscuridade tem a ver justamente com sua escolha pelo urbano, distanciando-se do fantástico tão associado aos gigantes da literatura latino-americana. Nesse esforço de entender a humanidade entre edifícios, o uruguaio lançou mão dos mais diferentes gêneros literários. Fez poesia, escreveu romances, enfileirou contos e elaborou ensaios – seu livro Letras del continente mestizo (1967) é o primeiro a deter-se sobre a literatura latino-americana da metade do século XX e teve força decisiva para consolidar a ideia de um movimento literário continental em andamento. Unindo todos esses vértices criativos, foi uma voz literária marcada pela mistura habilidosa de ironia, perspicácia e generosidade
– um escritor que gosta de seus personagens tanto quanto os leitores, embora compreendendo que o imponderável (na forma do destino, de Deus ou da impessoalidade profunda da grande cidade) muitas vezes não carrega a mesma compaixão. Ao refletir sobre a felicidade possível no coração da metrópole, Benedetti traz em A trégua também os sabores de uma Montevidéu urbana e de classe média, que se revela nos detalhes da busca de Martín e Avellaneda por si mesmos. Descendo mais cedo do ônibus, procurando um lugar discreto para os encontros com a amada, escondendo-se em um café para não ser visto: nesses instantes de uma escalada rumo ao topo, o contador quase cinquentão vai revelando esquinas, sabores, figuras, pequenos milagres de um lugar fervilhante de humanidade. Por meio de Martín, revela-se também um pouco do próprio Benedetti: observador arguto e, por vezes, cáustico de seus semelhantes, o personagem central de A trégua é também compassivo e, por vezes, quase singelo, usando a aparente severidade como proteção em um trabalho maçante e uma família cheia de dramas ocultos. Lançado originalmente em 1960, A trégua mexeu tanto com leitores e leitoras que acabou despertando um apelo. Tão presente se faz a voz de Martín, na dor e encantamento de sua paixão, que Laura Avellaneda acaba sendo pouco ouvida, quase silenciosa em momentos decisivos do trajeto. Sensível a esse desconforto, Mario Benedetti publicaria, anos depois, "Última noción de Laura", um de seus mais belos poemas e que dá a Avellaneda uma chance a mais para expressar seu ponto de vista. Voltemos, então, ao questionamento lá do início: quanto tempo se pode permanecer no topo feliz da montanha, antes que precisemos descer de novo à planície? Uma pergunta talvez incômoda, mas que nos insinua uma outra: quanto tempo é necessário para que possamos olhar para a felicidade e, de fato, reconhecê-la? Terá a fagulha existido de verdade caso ninguém a enxergue? Nesse particular, A trégua é uma pergunta, não um oráculo; a resposta, se existe, parece mais com uma trilha, que sobe e desce. O que não quer dizer, é claro, que não haja uma paisagem bonita lá em cima, no auge da escalada. 7
Literatura uruguaia
O BIÓGRAFO DE MONTEVIDÉU RICARDO VIEL
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Quando escreveu A trégua, no final dos anos 1950, Mario Benedetti também era um funcionário de escritório que contava os minutos para o fim do expediente após um dia de tarefas repetitivas e enfadonhas. O romance foi todo ele escrito num café, durante as duas horas e meia de almoço que tinha, contou em algumas ocasiões. Como vivia longe do trabalho, o aspirante a escritor não costumava ir comer em casa. Preferia se sentar numa das mesas do Sorocabana para assistir aos acontecimentos da vida cotidiana, ouvir as conversas, ver quem passava e pensar em histórias. A ideia para o romance surgiu após reparar que o chefe, um viúvo perto dos 50 anos, repentinamente mudara de humor. Criou coragem para perguntar o motivo daquela improvável alegria que tomara conta de don Diego. "Vamos tomar um café e eu lhe conto", disse o chefe. Estava apaixonado por uma moça de 26 anos, revelou, antes de pedir um conselho: "O que faço?". Benedetti o que fez foi escrever A trégua, seu romance mais famoso e que lhe permitiu abandonar a vida de funcionário para se dedicar integralmente à escrita. Morreu em 2009, aos 88 anos, tendo sido reconhecido em vida – pela crítica e especialmente pelo público – como uma das principais vozes da literatura
Fotografias no interior do Café Sorocabana. Montevidéu, junho de 1977. Panta Astiazarán
latino-americana. Deixou obra vasta (mais de 80 títulos) e variada (poesia, contos, romances, crônicas, ensaios, teatro e até letra de música), mas que tinha um eixo bem claro: Montevidéu e os seus habitantes. Nem quando teve que deixar o Uruguai, em 1973, após o golpe militar, o escritor mudou de cenário ou personagens. Temas como o exílio, a memória, a ética e a compaixão ganharam espaço nos seus livros, mas a cidade – agora vista de longe – e os seus moradores – na difícil vida de expatriado – continuaram a ocupar as suas páginas. Num dos contos de Geografias, livro escrito durante o exílio, há uma história sobre dois uruguaios que se reúnem semanalmente num café em Paris para visitarem mentalmente Montevidéu. O jogo consiste em desafiar o rival a descrever espaços físicos, personalidades públicas e pormenores da cidade – como, por exemplo, um detalhe que há numa estátua famosa ou o nome de um bar da zona central. “Besteiras que uma pessoa inventa no exílio para tentar se convencer de que não está ficando sem paisagem, sem pessoas, sem céu, sem país”, diz o narrador. Quando escreveu esse conto, o seu autor já levava mais de uma década sem pôr os pés no Uruguai. Morou na Argentina, no Peru, em Cuba e na Espanha, mas continuou habitando, através dos seus livros, o país que teve que deixar para trás. Ao regressar ao Uruguai, em 1985, Benedetti viveu o que chamou de “desexílio”, o estranhamento que sente aquele que volta depois de anos e percebe que tanto a cidade como ele próprio mudaram – sentimento tão bem descrito no livro Andaimes. “Eu sempre escrevi sobre os montevideanos. E nos primeiros anos do meu exílio pensava: o que acontecerá quando as lembranças se apagarem, quando eu já tiver 9
usado todas elas? Terei que tentar inventar outras coisas, mas não sei se vou conseguir. Acontece que a ditadura despejou montevideanos pelo mundo todo. Viajei muito durante o exílio e, em todos os lugares por onde passei, eu encontrei compatriotas. Então, eles continuaram sendo os meus personagens, só que localizados em outros países”, contou o uruguaio numa entrevista. Na pátria ou no exílio, a vida ordinária – as pequenas alegrias e tristezas das pessoas comuns – foi sempre o centro da obra de Benedetti. E as ruas, os cafés, os parques e as praças de Montevidéu, o espaço onde tudo ocorre. Se vistos em conjunto, os seus livros podem ser entendidos como uma longa biografia de uma cidade e de seus habitantes. Há um momento no romance A trégua em que Martín Santomé se senta num dos bancos da Plaza Matriz e tem uma epifania. Começa a olhar para a praça como se nunca a tivesse visto antes, repara em cada detalhe, escrutina os edifícios ao redor, observa as árvores que a decoram e acompanha com o olhar as pessoas que passam enquanto tenta imaginar o destino que cada uma delas carrega. “Creio que nesse momento afirmou-se definitivamente em mim uma convicção: eu sou deste lugar, desta cidade. Nisso (e provavelmente em nada mais), creio que devo ser um fatalista. Cada um é de um só lugar na terra e ali deve pagar sua cota. Eu sou daqui. Aqui pago minha cota. Esse que passa (o de sobretudo comprido, orelha de abano, passo capenga e raivoso), esse é meu semelhante. Ainda ignora que eu existo, mas um dia me verá de frente, de perfil ou de costas, e terá a sensação de que entre nós existe algo secreto, um recôndito laço que nos une, que nos dá forças para nos entendermos. Ou talvez esse dia nunca chegue, talvez ele não atente nunca para esta praça, para este ar que nos faz próximos, que nos emparelha, que nos comunica. Mas não importa; seja como for, é meu semelhante.” Benedetti se aproximava dos 40 anos quando escreveu essas linhas. Até o fim da vida, o que fez foi falar sobre e para esses semelhantes que atravessam a Plaza Matriz. Sou capaz de imaginá-lo sentado num banco da mesma praça, observando tudo ao redor com os seus olhos expressivos e murmurando quase sem mover o indefectível bigode: “Eu sou deste lugar”.
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Lugares da história
Atenção: este texto contém informações sobre o livro
MAPA DE MONTEVIDÉU 1
Spoiler!
RICARDO VIEL
Café Sorocabana Panta Astiazarán
CAFÉ SOROCABANA Rua 25 de Mayo, 485
Numa das mesas desse café, na esquina da Veinticinco com a Misiones, durante cinco meses do ano de 1959, Benedetti escreveu A trégua. O escritor trabalhava num escritório na rua Sarandí, a poucos metros do local. No romance, Martín Santomé descobre que Laura Avellaneda costuma frequentar o Sorocabana e planeja um encontro casual. Antes de encontrá-la, ensaia mentalmente o que dirá quando a vir. Após negar um primeiro convite, Avellaneda um dia aparece para “cobrar” o café prometido. O nome do lugar tem relação com a cidade de Sorocaba, no interior de São Paulo, que, no começo do século passado, era grande produtora de café. Após a crise de 1929, que derrubou os preços do café e gerou um excedente do produto, o governo de Getúlio Vargas colocou em prática uma campanha para promover o café brasileiro nos países vizinhos.
CIDADE VELHA SOROCABANA
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2 RUA SARANDÍ A famosa Sarandí, uma rua pedestre da Cidade Velha, era o caminho habi- desesperada nudez dos sonhos, tual de Benedetti para o trabalho quando o sujeito passeia de cuecas e de lá para os cafés da redondeza. pela Sarandí, e as pessoas se divertem Quando Avellaneda revela que a mãe de uma calçada a outra". já sabe do romance, Martín se sente “Estou convencido de que, durante o expecomo se estivesse nu, “com aquela diente, a cidade é outra. Conheço a Montevidéu dos homens com horário, os que entram às oito e meia e saem às 12, os que retornam às duas e meia e vão embora definitivamente às sete. Esses rostos crispados e suarentos, esses passos urgentes e tropeçantes são meus velhos conhecidos. Mas existe a outra cidade, a das frescas moçoilas que, no meio da tarde, saem recém-banhadinhas,
perfumadas,
desde-
nhosas, otimistas, espirituosas; a dos filhinhos da mamãe que acordam ao meio-dia e às seis da tarde ainda trazem impecável o colarinho branco de tricolina importada; a dos velhos Rua Sarandí
que tomam o ônibus até a Aduana e depois
Panta Astiazarán
retornam sem desembarcar, reduzindo sua
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Um dos edifícios mais emblemáticos da cidade, localizado em frente à Plaza Independencia, o Palacio Salvo é para Martín Santomé um enigma. Acha-o feio, mas por ele tem carinho. “Oito da manhã. Estou tomando o café-da-manhã no Tupí. Um dos meus maiores prazeres. Sentar-me junto a qualquer uma das janelas que dão para a Plaza. Chove. Melhor ainda. Aprendi a gostar desse monstro folclórico que é o Palacio Salvo. Não é sem razão que ele figura em todos os cartões-postais para turistas. É quase uma representação do caráter nacional: rude, deselegante, espalhafatoso, simpático. É tão feio, mas tão feio, que deixa a gente de bom humor.”
Palacio Salvo Ted McGrath
módica farra à simples mirada reconfortante com que percorrem a Cidade Velha de suas nostalgias; a das mães jovens que nunca saem de noite e entram no cinema, com cara de culpadas, por volta das três e meia da tarde; a das babás que denigrem suas patroas enquanto as moscas devoram as crianças; a dos aposentados e ociosos vários, enfim, que creem ganhar o céu jogando migalhas aos pombos da praça. Esses são meus desconhecidos, ao menos por enquanto. Estão instalados muito comodamente na vida, ao passo que eu fico neurastênico diante de uma folhinha com seu fevereiro consagrado a Goya.” 13
4 PLAZA INDEPENDENCIA
Plaza Independencia Rodoluca
Praça mais importante de Montevidéu, funciona como ligação entre a Cidade Velha e o Centro. De um dos cafés que frequenta, Martín observa a praça. Num dia de muito vento, enquanto caminha em direção a ela, o protagonista do romance presencia uma cena caricata: “De uma moça, o vento levantou a saia. De um padre, levantou a batina. Jesus, que panoramas tão diferentes!”.
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Plaza Matriz Eduardo Ruggieri 14
PLAZA MATRIZ (ou Constitución)
Sentado num banco dessa praça, Martín observa um funcionário da prefeitura que limpa a grama e dá início a uma série de questionamentos existenciais. Chega, finalmente, à conclusão de que nunca tinha tido real consciência da presença da Plaza Matriz e da sua importância.
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RÉGUA T A D M É MONTEVIDÉU AL
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CEMITÉRIO CENTRAL Av. Gonzalo Ramírez, 1302
Mario Benedetti morreu no dia 17 de maio de 2009; os seus restos mortais estão depositados no Cemitério Central de Montevidéu ao lado de Luz López Alegre, companheira do escritor por mais de 60 anos. Na lápide do poeta estão gravados uns versos do poema "Defesa da alegria", do livro Cotidianas: Defender a alegria como uma trincheira defendê-la do escárnio e da rotina da miséria e dos miseráveis das ausências transitórias e das definitivas
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FUNDAÇÃO MARIO BENEDETTI Joaquín de Salterain, 1293
Em seu testamento, Benedetti deixou expresso o desejo de que fosse criada uma fundação com o propósito não só de preservar a sua obra, mas de fomentar a literatura e defender os direitos humanos. Os arquivos do escritor, assim como objetos pessoais e a sua biblioteca privada, estão sob os cuidados da instituição, que funciona como um museu e centro cultural. http://fundacionmariobenedetti.uy/
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Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.
Ilustração do mês Samara Romão é uma ilustradora apaixonada por criação de personagens, transmitindo a cada um deles uma forte carga de personalidade. Adora as texturas que o lápis deixa no papel e aprecia, desde criança, ilustrações que carregam a simplicidade em seus contornos e cores como se fossem criações de outro tempo, quando a técnica se fazia simples. Veja mais: @ilustra_sam A artista representou, a pedido da TAG, o encontro de Martín Santomé com Laura em uma cafeteria de Montevidéu. Com o susto, o protagonista derruba a colherinha de café.
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A trégua
POSFÁCIO
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OLÁ, TAGGER Há muito tempo, observamos no aplicativo da TAG um verdadeiro fenômeno: associados compartilhando a leitura do livro O peso do pássaro morto (2017) e demandando Aline Bei como curadora da TAG. Pois bem, vocês pediram e nós atendemos. Aline, para quem ainda não conhece, é um fenômeno no mercado editorial: aos 34 anos, a autora está publicando seu terceiro livro, Pequena coreografia do adeus (2021), que, já no lançamento, vem gerando burburinho nas redes sociais. Em 2018, Aline venceu o prestigioso Prêmio São Paulo de Literatura com O peso do pássaro morto. Aline não se atém a regras. Conta suas histórias à sua maneira, evocando prosa e poesia quando lhe convêm. O resultado surpreende. Na entrevista concedida à TAG, Aline causou um susto na equipe: as respostas chegaram todas em verso. Passado o estranhamento, fica claro que, além do texto belo e inteligente, esta é a marca registrada de Aline: entender que a literatura é um campo fluido, sem regras fixas. Deixamos aqui suas palavras: “é o escritor quem decide o material de que é feita cada fronteira”. Boas discussões!
"O PLANO TRAÇADO É A ABSOLUTA LIBERDADE." Mario Benedetti
SUMÁRIO posfácio
4 Entrevista Aline Bei
9 Leia A trégua, de Mario Benedetti, e volte três casinhas
13 Casais icônicos da literatura
16 Unboxing
Entrevista
A DESCOBERTA DA TERNURA Em entrevista, a curadora do mês fala sobre as costuras entre poesias e narrativas
IGOR NATUSCH
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Poeta que escreve romances, romancista que escreve poemas, ou simplesmente uma escritora que tira sonoridade e potência das palavras. Consagrada pelo sucesso de O peso do pássaro morto, Aline Bei surgiu como palavra na potência eternamente explorável das redes, e hoje pisa firme entre os nomes mais significativos da literatura brasileira contemporânea. A ponte entre poesia e romance une Aline Bei e Mario Benedetti, escolhido por ela para a TAG Curadoria deste mês. Nesta entrevista, a autora fala sobre as conexões de ternura entre ela e o uruguaio, e discorre (com muita poesia) sobre temas como fronteiras literárias e o espaço para mulheres no mercado editorial brasileiro.
Aline Bei Renato Parada
Entre outras coisas, Mario Benedetti era um aventureiro de gêneros, explorando diferentes caminhos e formatos: romance, crônica, ensaio, poesia. Por qual desses caminhos ele chegou primeiro a você? Aline Bei — no romance, exatamente na Trégua que eu acho um belíssimo título de palava única. esse é o jeito mais difícil de batizar um livro, talvez só um Poeta consiga, pois é preciso tirar o pó da palavra e as palavras, quando solas, costumam estar desgastadas. feridas pelo uso. li A trégua por indicação de um amigo e logo depois li os poemas. Benedetti fala como ninguém sobre o Amor e talvez não exista nada que seja mais urgente do que isso. há também o Uruguai, uma terra que sonho visitar desde Eduardo Galeano e Ida Vitale. e que habito, ainda que vagamente, através das palavras deles. 5
Benedetti era, acima de tudo, um poeta do cotidiano, mas capaz de extrair dele profundos dilemas filosóficos e existenciais. O que, na voz do Benedetti, você sente que é, também, um pouco da sua voz de escritora?
talvez a ternura. no caso de Benedetti, a ternura de um homem que envelheceu. no meu caso, a ternura do inacabado. das palavras magras. da menina que fui e que mora nos meus joelhos desejosos de Uruguai. Seu novo livro, Pequena coreografia do adeus, traz uma narrativa construída a partir de versos, em forma de diário – um recurso, aliás, que surge também em A trégua. Como você enxerga esse potencial da poesia não apenas para a observação, mas também para contar histórias?
"ACREDITO NA POESIA COMO FORMA DE CONDUÇÃO NO ROMANCE. BORDAR, ENQUANTO SE CAVA. E QUE AS DOBRAS DAS CENAS SEJAM DE TECIDO E DE AÇO, SIMULTANEAMENTE. ESSA MISTURA DE PESOS E TEXTURAS SÓ A POESIA PODE DAR." É comum que se diga que escritores e escritoras, quando dão passos fora do romance, estão "se aventurando" em gêneros como a poesia. Limites que, no caso da sua literatura, são derrubados desde o primeiro momento. Como você enxerga essas fronteiras? Elas são reais?
são profundamente reais. mas acontece que é o escritor quem decide o material de que é feita cada fronteira. a minha, quando não é líquida é arenosa e venta muito. preciso amarrar os cabelos enquanto trabalho. 6
Seu primeiro livro, O peso do pássaro morto, tornou-se sucesso com o auxílio decisivo das redes sociais. Quem são os leitores e leitoras que estão na internet? Como chegar a elas?
é dificil definir, a internet é uma terra tão vasta. eu chego nas pessoas escrevendo para cada uma que imagino que possa se interessar pelas histórias que conto.
Aline Bei Renato Parada
Há uma efervescência em torno das mulheres escritoras no Brasil – tanto das que estão surgindo agora quanto na redescoberta de autoras do passado. Até que ponto essas vozes abrem espaço para outras? Escrever é, também, incentivar que outras mulheres escrevam?
sem dúvida. a escrita é um ato coletivo, apesar de parecer um solo durante boa parte do processo criativo. costumo dizer, nas minhas oficinas, que cada mulher que publica tira outra da gaveta. a lógica se repete na leitura: cada mulher lida tira tantas outras das prateleiras.
ASSOCIADOS DA TAG PERGUNTAM: Alexandre Caitano: na leitura de O peso do pássaro morto, nos deparamos com uma escrita em estilo de prosa poética que intercala a narração de diversos temas. Gostaria de saber quais autores te inspiraram a chegar nesse estilo de escrita.
foi algo mais interno. quando comecei a escrever, eu queria ser poeta. ao perceber que não era, não desisti da poesia na minha prosa, ainda que ela seja um vulto. ainda que ela nunca me olhe nos olhos. 7
Lázaro Neto: o que você diria aos associados que vão ler A trégua pela primeira vez? O que o torna especial?
a descoberta do Amor em uma fase da vida que, parece, nada de novo ainda irá acontecer. Paulo Araújo: seus livros sempre trazem uma carga dramática muito alta. Gostaria de saber se eles são reflexo do seu estado de espírito no momento da escrita. Estar triste ou melancólica faz com que você se inspire mais? Ou uma coisa não tem nada a ver com a outra?
não. as histórias tristes me escolhem como condutora de seus fluxos. mas costumo estar Alegre durante a criação. há um prazer imenso quando a angústia que a história carrega encontra a palavra certa para se expressar.
A ESTANTE DA CURADORA O último livro que li: Mutações, de Liv Ullmann. O livro que estou lendo: Arendt – Entre o amor e o mal: uma biografia, de Ann Heberlein. O livro que eu gostaria de ter escrito: não me sinto assim. gosto da investigação da minha palavra magra e inquieta. é o meu lugar no mundo. não gostaria de ocupar nenhum outro. O último livro que me fez chorar: Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. O último livro que me fez rir: Manual da faxineira, de Lucia Berlin. O livro que eu não consegui terminar: Esperando Robert Capa, de Susana Fortes. O livro que eu dou de presente: Garota, mulher, outras, de Bernardine Evaristo. O livro que mudou a minha vida: Iniciantes, de Raymond Carver.
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LUCIANY APARECIDA
Crítica
LEIA A TRÉGUA, DE MARIO BENEDETTI, E VOLTE TRÊS CASINHAS
A trégua, de Mario Benedetti, é um livro incômodo. Se você passou por essa leitura sem mal-estar, volte três casinhas. É preciso entender a leitura como um jogo, uma movimentação educacional que, quem sabe, possa nos auxiliar na compreensão da vida. Voltar três casinhas, em alguns jogos, é regra para quem perdeu algum lance, o que pode significar estar mais distante do objetivo final. No entanto, numa perspectiva filosófica, em que o importante é o caminho e não a chegada, pode ser uma oportunidade de ver melhor os lugares por onde havíamos passado. E nesse livro, a ação de ver é campo semântico aberto para muitas discussões. Mas disso trataremos mais à frente. Agora, fiquemos na discussão de que A trégua é um livro incômodo e pense que essa não é referência a se lemos mais rápido ou não o livro, ou se entendemos mais ou menos a linearidade da história apresentada. Até porque apenas esses não deveriam ser julgamentos que servissem à validação de uma obra literária. Falar da importância do mal-estar numa leitura é falar daquele momento, trégua, que a própria leitura impõe pausa e retorno; daquele instante que seus olhos, em um determinado trecho, deparam-se com uma imagem-ideia e que ela te impulsiona a deixar os olhos das linhas e olhar a vida. Em A trégua, Mario Benedetti provoca essas observações de revisão da vida tanto no sentido filosófico de pensar a existência quanto no sentido metalinguístico de pensar a própria estrutura do formato romance. E aqui faz-se necessária a observação de que, ainda hoje, no cenário literário, é massificante a publicação e premiação de romances que repetem uma estrutura narrativa exaustivamente 9
tradicional. E nesse ponto, dessa metalinguagem, A trégua segue como um romance contemporâneo, que pode até apresentar-se pesado nos gatilhos que provoca, mas que se sustenta como referência bibliográfica exemplar de um determinado uso do enredo em casamento com a estrutura da narrativa (forma). Desse modo, a fábula contemporânea mais assertiva desse livro é a construção do enredo da exposição da vida de um homem branco, hétero, machista e homofóbico na estrutura de um diário. Assim, é como estarmos no mais íntimo desse sujeito, que é uma pessoa incômoda, vivendo suas angústias. Pontualmente, essas duas movimentações (enredo e forma) são o casamento estético que garantem o sucesso dessa obra. Mario Benedetti é um escritor uruguaio e A trégua é uma publicação de 1960. Esse livro apresenta uma crítica social à vida repetitiva e melancólica de Martín Santomé, um homem de classe média, preso a códigos sociais e reprodutor de hipocrisias. Santomé será um personagem-narrador que, por exemplo, dirá: “Afinal, seus arroubos feministas não me importam muito”. Benedetti escreve um narrador-personagem que descreve a si mesmo como um herói covarde porque foi neutro, mas o ver-se como um ser sem coragem não funciona como impulso de alteração de sua personalidade preconceituosa, apenas favorece a linha melancólica do romance. Benedetti foi pontual no formato que escolheu para contar essa história, pois o texto apresentado na estrutura do diário aproxima mais a história narrada da história lida, construção que instaura na leitura uma familiaridade e, consequentemente, uma maior comoção – emoção que na literatura é porta aberta para o deleite e a aprendizagem. Pensando A trégua como um livro que deseja expor uma crítica social, podemos inferir que o autor realiza essa movimentação estético-política pelo mal-estar que o romance pode provocar. Para o crítico literário brasileiro Mário Faustino, a literatura pode ter três funções: ensinar, comover e deleitar. A trégua, de Mario Benedetti, nos encaminha desconfortavelmente por essas ações. Nesse romance, as zonas de incômodo são complexas, pois existem diferentes lugares de identificação e possível deleite. Uma pessoa leitora pode se identificar com o eu do 10
pai exaurido pelo trabalho e depressões da vida; ou com o eu de tantas mulheres que são, na obra, descritas a partir de estereótipos machistas; ou com o eu do filho gay que precisa abandonar a casa da família por não suportar mais as violências (físicas e psicológicas) dos familiares. Já o deleite dessas identificações residirá no eu do pai que, em breve momento, viverá uma romântica e machista trégua de amor; ou no eu de mulheres que, por breves instantes, podem se conectar com uma narrativa amorosa heteronormativa e machista; ou no eu do filho gay que fugirá de casa na esperança de resistir. Quaisquer desses incômodos ou identificações podem quiçá ser geradores de algum aprendizado. É importante ler A trégua com olhos desafiadores. Olhos de quem quer ampliar campos da visão. Nesse romance de Benedetti, o olhar é imagem que ganha diferentes tons e intensidades ao longo da narrativa – elemento textual que não está na obra à toa, mas como intensificador da personagem Martín Santomé, que anuncia no nome uma referência ao São Tomé, que tem como pregação a afirmação “é preciso ver para crer”. Voltando à trégua, vamos a três momentos que ganham complexidade filosófico-existencial a partir dessa percepção do olho-visão. Primeiro, a cena em que Santomé, que não lembrava do olhar da sua falecida esposa, consegue reconstruir na memória o retrato do rosto de Isabel ao reler uma carta que ela lhe havia escrito em momento de viagem e em desejo de reencontro. Santomé concretiza uma lembrança física de sua esposa no encontro físico com sua letra; as letras de Isabel dão forma a seu rosto no imaginário do personagem-narrador. Segundo, na cena de reencontro entre Martín Santomé e Mario Vignale, quando este lhe pergunta (em sequência) por sua mãe, seu pai e Isabel, e Santomé lhe responde que morreram, e Vignale olha a hora no relógio. E, após essa cena, o personagem-narrador (escritor do diário) faz a reflexão que parece que “há uma espécie de reflexo automático nisso de falar da morte e em seguida olhar o relógio”. Essa reflexão concretiza a morte como uma anotação do tempo, como se contar a morte fosse apenas uma conferência do tempo, apontamento verossímil na obra, visto que era apenas uma questão de passagem dos dias para que Santomé tivesse mais uma morte a contar. 11
Terceiro, no trecho da carta de Jaime, filho de Santomé, que foge de casa após levar soco do irmão Esteban (que o esmurrou por ele, Jaime, ser gay): “Não tenho nada a me censurar” e, sobre o olho, comenta, “o que me restou aberto me basta para ver o futuro (não é tão ruim, você vai ver) e dirigir o último olhar à minha simpática família, tão nobre, tão formal”. Concretamente, essa cena é exemplar em apresentar como aquele que, no presente, tem apenas um olho aparece na história como o que tem visão mais apurada para o futuro e sobre o tempo ao seu redor. Essa projeção positiva da ação de ver inscrita na carta que o filho gay deixa para o pai e a família homofóbica cria na obra um incrível campo de oposição da ação de ver. O pai, que tem dois olhos “sãos”, que escreve o diário, é o que não vê. Enquanto, na carta, o filho Jaime apresenta um olhar em três dimensões: futuro (o último olhar que lança à família), passado e a anotação sobre si (o saber ver mesmo após a violência), que é a marca do seu instante presente. Santomé se descreve como o que não lembra bem, o que tem dificuldade em ver os olhares. Por exemplo, o olhar da esposa Isabel e mesmo o olhar de seu amor mais recente, Laura Avellaneda, ele tem dificuldade em recordar. Até na cena do primeiro beijo entre ele e Avellaneda, que é momento de aproximação de olhares, ele não vê seus olhos e escreve: “Eu não lhe via o rosto porque a folhagem de um maldito pinheiro municipal interceptava a luz da lua”. A trégua é um livro de olhar concreto e irônico. As cenas do dia a dia relatadas no diário são costuradas por estruturas filosóficas que garantem o verossímil da sequência do enredo. O livro expõe, ironicamente, a vida mediana de um homem de classe média que sustenta opressões. O autor acerta na escolha do formato do livro, que intensifica o tema e as questões a serem discutidas e fica como exemplo das vastas possibilidades de apresentação do gênero literário romance. Ler A trégua voltando três casinhas é ler dando um tempo do olhar do narrador e buscando ver a partir de outros olhares que podem ter estado por ali, esquecidos no correr diário de Martín Santomé. Esse movimento de ler o livro revendo a vida pode ser aprendizado. E que o incômodo sirva para, no mínimo, movimentar o jogo. 12
Para ir além
CASAIS ICÔNICOS DA LITERATURA JÚLIA CORRÊA
Detalhe da pintura Paolo e Francesca Jean-Auguste-Dominique Ingres
Em A odisseia de Penélope, Margaret Atwood propõe um novo ponto de vista para uma das narrativas fundadoras da literatura ocidental. Pela perspectiva da personagem que dá nome ao livro, ficamos a par da relação entre ela e Ulisses, esse casal imortalizado por Homero há mais de 2.800 anos. Atwood confere protagonismo à figura feminina — dando ênfase à astúcia demonstrada por Penélope enquanto aguarda o marido voltar da guerra —, numa prova de que, embora certos valores tenham mudado ao longo dos séculos, personagens de histórias como a Odisseia ainda hoje pautam o nosso imaginário. Casais nascidos da criatividade de poetas e romancistas não apenas representam as relações amorosas como também moldam as várias formas de vivenciá-las. E a própria literatura evidencia esse impacto. Ao percorrermos com Dante Alighieri o segundo círculo do Inferno, para onde vão os luxuriosos, conhecemos Paolo Malatesta e Francesca da Rimini, cunhados adúlteros mortos pelo marido traído. É Francesca quem relata o caso: enquanto liam juntos a história medieval de Lancelote e Ginevra, foram impelidos pela descrição daquele amor e entregaram-se ao sentimento que os dominava. Dante conta a trajetória desses amantes, mas ele mesmo forma com Beatriz um dos casais mais icônicos da literatura. Amor platônico do poeta na juventude, é ela que, na Divina comédia, 13
Romeu e Julieta, Óleo sobre tela (1884) Frank Dicksee
Retrato de Jane Austen feito com base em uma ilustração da irmã da escritora Wikimedia
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personifica a fé e o conduz ao Paraíso. Caso semelhante é o de Petrarca, sempre associado à figura de Laura, musa de seu Cancioneiro. Lembrados mesmo por aqueles que não leram a peça de Shakespeare, Romeu e Julieta são protagonistas de um amor “prodigioso” que “nasce conturbado”. O casal de Verona, apresentado previamente em um conto italiano, dá nome a uma das mais famosas tragédias do bardo e inspira um ideal romântico em que o ímpeto juvenil desafia barreiras sociais e familiares. Escrito dois séculos depois, Orgulho e preconceito, de Jane Austen, centra-se no mundo de aparências da pequena nobreza fundiária inglesa, para o qual a autora lança seu olhar afiado. É nesse contexto que vem à tona a paixão entre Elizabeth e Mr. Darcy, que têm de abandonar prejulgamentos para reconhecer o amor que sentem um pelo outro. Por sua vez, Angelica e Tancredi, personagens da obra-prima de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O leopardo, formam um desses casais que, mais do que um ideal romântico, encarnam as dinâmicas sociais de seu próprio tempo. A célebre incursão que fazem pelos cômodos do palácio da família de Tancredi simboliza um percurso pelo passado de uma nobreza decadente que deve conviver com o arrivismo burguês. Ambientada em outro recanto italiano, a iniciação amorosa de Elio, em seu envolvimento com Oliver, é relatada com sensibilidade por André Aciman em Me chame pelo seu nome, romance que, assim como O leopardo, rendeu uma elogiada adaptação para o cinema.
Cena do filme O leopardo Luchino Visconti
Cena do filme Me chame pelo seu nome Luca Guadagnino
Grande sertão: veredas João Guimarães Rosa
O jogo da amarelinha Julio Cortázar
No Brasil, a tradição de casais da ficção nos remete a Bentinho e Capitu, de Dom Casmurro. Com eles, Machado de Assis legou a dúvida que suscita intermináveis debates: teria ela, com seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, traído o protagonista? Surgido sessenta anos depois, outro casal também conquistou incontáveis leitores pelo país: Riobaldo e Diadorim, de Grande sertão: veredas, cuja tensão erótica em meio à brutalidade do sertão foi engenhosamente descrita por Guimarães Rosa. Já na literatura vizinha, ao desbravarmos a história de Maga e Horacio, narrada pelo argentino Julio Cortázar em O jogo da amarelinha, lemos que o amor é como um raio que nos surpreende, que “quebra os ossos e nos deixa paralisados no meio do pátio”. Essa, aliás, é uma boa imagem para descrever o que ocorre em A trégua, do uruguaio Mario Benedetti, cujo protagonista, o viúvo Martín Santomé, tem a rotina alterada pela jovem Laura Avellaneda. “Não é possível que, na minha idade, apareça de repente essa moça, que nem sequer é definitivamente linda, e se torne o centro da minha atenção”, registra ele em seus diários, no que marca o início de mais uma dessas paixões inesquecíveis da ficção. 15
Unboxing
PROJETO GRÁFICO
O projeto gráfico deste mês foi desenvolvido por Vinicius Theodoro, designer com mais de dez anos de experiência na área e cofundador do Dialeto, um estúdio de ilustração. Inspirado pela estética das vestimentas masculinas dos anos 1950 e 1960, o artista buscou ilustrar Martín Santomé, protagonista cuja transformação acompanhamos ao longo de A trégua. Enquanto, no início da história, somos apresentados à opacidade cinzenta da rotina de Santomé, a capa do livro, através das cores vibrantes, remete justamente ao recomeço que Laura Avellaneda marca em sua trajetória. Além disso, a capa também alude à fragilidade do personagem por trás de uma suposta força e segurança: sua postura corporal lembra alguém implacável, mas disposto a se mostrar vulnerável diante das pequenas tréguas da vida. A luva, por sua vez, representa os trechos em que Santomé senta próximo à janela para saborear um café (elemento que também motivou a escolha do mimo). Já na revista, elaboramos uma padronagem a partir da flor ilustrada na roupa do personagem. Para conhecer mais sobre o trabalho de Vinicius Theodoro, acesse o site: https://theodoro.work/.
MIMO
O mimo do mês evoca um dos principais sentidos da palavra trégua: a importância dos pequenos instantes e prazeres no cotidiano. Formado por um conjunto de duas colheres de café gravadas com frases personalizadas, desenvolvemos o mimo como um convite para você aproveitar uma pausa no dia a dia, sozinho ou acompanhado. As frases remetem à combinação de dois elementos amados pelos taggers: livros e café. Esperamos que, na simplicidade (e beleza) da rotina, o par de colheres também represente um momento de carinho na sua vida. Esperamos que você goste!
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Próximo mês
VEM POR AÍ
Outubro Indicado pela escritora e professora Socorro Acioli, esse livro é a estreia (em grande estilo) de uma jovem autora catalã. A história acompanha a protagonista, uma neonatologista de 42 anos, que é forçada a se reposicionar no mundo após o companheiro, com quem conviveu por quinze anos, morrer de forma repentina. Para quem gosta de: fortes emoções, análise de relações humanas, vozes contemporâneas
Socorro Acioli Arquivo pessoal
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Novembro É oficial: mês temático à vista! Estamos preparando mais um momento de celebração nahistória da TAG: livros inéditos serão apresentados em primeira mão aos associados, além de eventose um mimo especial, em homenagem àliteratura negra. Na Curadoria, enviaremosa obra de uma premiadaescritora haitiana. Ela revela um mosaicode trajetórias que vão colidir a partirdo desaparecimento de uma pequenamenina do vilarejo. Para quem gosta de: leituras e experiências imersivas, personagens profundos, relações parentais
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