outubro de 2016 A Louca da Casa
Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Álvaro Scaravaglioni Englert Ariel Belmonte Bruna Lucchese Kafrouni Bruno Englert Moutinho César Augusto Jaques Santos Jr. Daniel Arcari Romero Eduardo Augusto Schneider Guilherme Rossi Karkotli Gustavo Rossi Karkotli João Pedro Perdomo Dassoler João Vitor Sprandel Luísa Andreoli da Silva Maria Eduarda Largura Marina Brancher Pablo Soares Valdez Rodrigo Lacerda Antunes Tomás Susin dos Santos Vinícius Araujo Reginatto Vinícius Tavares Goulart Antônio Augusto Portinho da Cunha Fernanda Lisbôa Bruno Miguell Mendes Mesquita bruno.miguell@taglivros.com.br Gabriela Heberle gabriela@taglivros.com.br Tiago Berao tiago.berao@gmail.com Impressos Portão TAG Comércio de Livros Ltda. Rua Sete de Abril, 194 | Bairro Floresta | Porto Alegre - RS CEP: 90220-130 | (51) 3092.0040 | contato@taglivros.com.br
Ao Leitor Rosa Montero é uma das mais brilhantes vozes da literatura espanhola contemporânea, mas pouquíssimo lida aqui no Brasil. Portanto, ficamos felizes diante da escolha da curadora Carola Saavedra, oportunizando a leitura – e visibilidade – dessa grande escritora. A obra indicada foi A Louca da Casa, um livro sobre os livros, repleto de textos quase confessionais, que revelam a paixão da autora pelas palavras. Como também somos amantes da literatura, a indicação serviu como uma luva. Outubro é um mês especial ainda por outros dois motivos. O primeiro é que, com as doações de livros dos associados, as bibliotecas infantis estão sendo construídas! Agradecemos a todos por unirem-se nessa linda ação, que, esperamos, contribuirá um pouquinho para o avanço da leitura no Brasil! O segundo motivo é o lançamento do TAG Livros, um aplicativo para celular que reunirá todos os associados para discutirem sobre aquilo de que mais gostam: livros, claro!
A INDICAÇÃO DO MÊS
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A PRÓXIMA INDICAÇÃO
A curadora: Carola Saavedra Entrevista: Carola Saavedra O livro indicado: A Louca da Casa
Histórias de Mulheres Os Livros do Livro Metaliteratura É Porque Amo de Verdade
John Gray
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A INDICAÇÃO DO MÊS
FOTO: Andrea Marques
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A curadora: Carola Saavedra No apartamento para onde se mudou depois de se separar da mulher e da filha de três anos, Marcos recebe uma carta destinada ao antigo morador e não resiste ao impulso de abri-la. É uma carta de amor, escrita por uma mulher e assinada simplesmente com a inicial “A”. Deste extravio de correspondências, desenvolve-se a trama de Flores Azuis (2008), o segundo romance da escritora Carola Saavedra. Os capítulos alternam-se entre as cartas, em primeira pessoa, e o relato, em terceira pessoa, do cotidiano de Marcos, e constroem aos poucos uma trama que une a trajetória da misteriosa “A” à do perplexo protagonista. Publicado em 2008 pela Companhia das Letras, Flores Azuis foi premiado com o troféu APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor romance, elogiado pela prosa refinada e construção engenhosa.
O QUE DÁ IDENTIDADE À MINHA ESCRITA É O MEU PROJETO LITERÁRIO, QUE BUSCA UM EQUILÍBRIO ENTRE CONTAR HISTÓRIAS QUE PRENDAM O LEITOR E, AO MESMO TEMPO, DAR AO TEXTO UMA POSSIBILIDADE DE REFLEXÃO SOBRE A PRÓPRIA LITERATURA. – CAROLA SAAVEDRA
Nascida em Santiago, no Chile, em 1973, Carola mudou-se com a família para o Brasil aos três anos de idade. Formou-se em Jornalismo na PUC-Rio e depois viajou para a Espanha, França e Alemanha. Neste país, Carola viveu oito anos e completou seu mestrado em Comunicação Social. Com amplo domínio do idioma, anos mais tarde verteu ao português Tudo o que Tenho Levo Comigo (2011),
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de Herta Müller, Nobel de Literatura em 2009, e Morte de Tinta (2009), de Cornelia Funke. As frequentes viagens, os diferentes idiomas, “roubaram-lhe” a identidade: quando visitava Santiago, frequentemente ouvia: “Mas você é uma típica brasileira!”. Carola achava curioso, pois até aquele momento não se identificava com nenhuma nacionalidade. “Por exemplo, comecei a ler literatura hispano-americana ainda muito nova. Eu era uma ‘típica adolescente carioca’, mas lia Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges – era pouco comum. Juntam-se a isso dez anos na Europa, oito deles na Alemanha”, conta Carola, que só conseguiu construir sua noção de nacionalidade com a literatura. “Tinha época em que eu falava todos os dias quatro idiomas diferentes. Lembro que eu tinha um sonho recorrente, na realidade um pesadelo: eu caminhava pelas ruas de uma cidade desconhecida, me perdia e, ao tentar pedir informações, me dava conta de que eu já não falava idioma algum. A literatura foi o que me trouxe ‘de volta’. Escrever em português foi uma forma de voltar para casa. Costumo dizer que no meu caso a língua portuguesa é minha pátria, é o que me dá uma identidade, é onde me reconheço.” De volta ao Rio de Janeiro, dedicou-se ao trabalho de ficcionista. Estreou em 2005, aos trinta e dois anos de idade, com Do Lado de Fora, uma pequena coletânea de contos. Dois anos depois, viria seu primeiro romance, Toda Terça, elogiado pela crítica. “Um livro de finas tramas, de escrita sutil, que apaixonou à primeira leitura tanto este leitor como o seu editor. [...] A maior surpresa da literatura atual”, nas palavras do escritor Sérgio Sant’Anna. Mas seria somente em 2008, com as cartas de “A” de Flores Azuis, que Carola seria reconhecida como uma das revelações do cenário literário brasileiro. Seu terceiro romance veio em 2010, Paisagem com Dromedário, pelo qual foi condecorada com o Prêmio Rachel de Queiroz. Em 2012, a revista literária Granta incluiu Carola na lista dos vinte melhores jovens escritores brasileiros.
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Na Paisagem do Dromedário, Alex diz para Érika, numa espécie de crítica, ‘Por que as coisas sempre têm que significar alguma coisa para você? As coisas não significam nada’. Mas para Érika tudo significa porque tudo é discurso. Eu me identifico com isso, com a força da palavra, do discurso. – Carola Saavedra
Os romances de Saavedra quase sempre contêm elementos metalinguísticos. Em Flores Azuis, a narrativa em terceira pessoa é interrompida por uma série de cartas confessionais. Em Paisagem com Dromedário, são os relatos transcritos a partir de um gravador, com o qual a personagem relata os acontecimentos de sua vida. Em sua mais recente publicação, O Inventário das Coisas Ausentes, publicado em 2014 pela Companhia das Letras, são as anotações do personagem-escritor que, aos poucos, transformam-se num romance. Cartas, transcrições, anotações, romances – são as palavras em suas mais variadas formas, relacionando-se com, e talvez sendo, a própria vida.
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Entrevista: Carola Saavedra Rosa Montero é um dos grandes nomes da literatura contemporânea espanhola e não raramente figura entre as mais vendidas em seu país. Aqui no Brasil, infelizmente, é quase desconhecida. Como e quando Rosa veio parar, pela primeira vez, nas suas mãos? Eu li A Louca da Casa, há muitos anos, em espanhol. Só tempos depois fiquei sabendo da tradução para o português. Rosa Montero é uma autora que sabe contar boas histórias e entreter o leitor de maneira inteligente e com muito humor. O que mais me chama a atenção nesse livro é que faz uma homenagem à fantasia e à própria literatura. Trata-se de um texto metaficcional, mas sem o peso que às vezes tem esse tipo de escolha; ao contrário, é leve e faz com que o leitor se apaixone pelo universo da ficção.
A Louca da Casa é uma ode à literatura: o escrever sobre o escrever. Você acha que seus livros, de uma forma diferente, é claro, também o são? (Por exemplo: as cartas, em Flores Azuis; os relatos transcritos do gravador, em Paisagem com Dromedário; as anotações que se tornam livro, em Inventário das Coisas Ausentes.) Com certeza, no meu caso, além da história em si, há um interesse na própria estrutura da narrativa, nas possíveis formas de contar essa história, ou seja, um olhar atento para esse mistério que é a literatura. Como se nos perguntássemos o que faz com que uma série de acontecimentos (na maioria das vezes inventados) se transforme num texto literário.
Em A Louca da Casa, Rosa Montero dedica alguns momentos para falar do papel da mulher na literatura. Hoje, com felicidade, vemos ampliar a contribuição feminina. Como você encara a “literatura feminina” – seu papel, desafios a serem enfrentados, importância? Não acredito numa escrita feminina, no sentido de um estilo identificável, mas não devemos ignorar que há um lugar a partir do qual escrevemos, uma escrita feita por mulheres, que surge a partir de uma experiência do corpo e de um papel na sociedade, desejos,
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expectativas, etc. Agora, isso não significa que existam temas femininos ou masculinos, basta pensar em Flaubert, que com Madame Bovary criou uma das personagens femininas mais emblemáticas, ou em Marguerite Yourcenar, que em Memórias de Adriano, ao narrar em primeira pessoa a vida do imperador romano, desenvolve uma voz masculina incontestável.
Imagine que, agora, graças à sua indicação, milhares de leitores encontram-se com A Louca da Casa em mãos. O que você diria a eles? Que o livro sirva para despertar, aumentar ou compartilhar a paixão pela literatura, pois, não tenho dúvidas, a ficção nos torna pessoas melhores, capazes de empatia, capazes de compreender aspectos do mundo e de nós mesmos que uma única vida (sem livros) não teria como nos ensinar.
FOTO: Andrea Marques
FOTO: Patricia A. Llaneza
Rosa Montero
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O livro indicado: A Louca da Casa Um Gigante tinha ido visitar seu amigo e demorara-se por sete anos. Um dia, resolveu voltar ao castelo, e quando chegou viu crianças a brincar no seu jardim. “Que fazem aqui?”, gritou ele, com voz severa. As crianças saíram correndo. “Este jardim é meu!”, sentenciou o Gigante. “Que todos fiquem sabendo: não consinto que ninguém venha para aqui divertir-se a não ser eu próprio.” Este era o Gigante Egoísta, do conto infantil de Oscar Wilde, a primeira leitura de Rosa Montero que permaneceu em sua memória. “Lembro-me porque foi com ele que descobri a morte”, recorda Montero. “Ao final, percebi que não é só o Gigante que está morto, mas também o tal do escritor que havia inventado aquele conto delicioso, e percebi que estar morto não era ficar escondido, ou dormindo em um quarto ao lado, mas ir para longe, tão longe que era impensável.” Eram meados da década de cinquenta, a pequena Rosa tinha cinco anos de idade, e a morte descoberta nos livros bateu à porta: viu-se tuberculosa. Impossibilitada de sair de casa por quatro anos, começou a escrever. “Eram contos de ratinhos que falavam”, recorda a escritora, “tenho-os até hoje, pois minha mãe os guardou”. A infância enferma deixou marcas dolorosas e uma constante lembrança da fragilidade da vida. Quando tinha apenas doze anos de idade, dizia para si mesma: “Veja, Rosita, que céu mais lindo! Aproveite! Tem doze anos e não os terá logo mais!”. Desde então, sente o “vento soprando em suas orelhas”, a angústia de uma contagem regressiva que a impele à vida e à literatura.
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DEFINITIVAMENTE, TAMBÉM SE ESCREVE CONTRA A MORTE, PORQUE ENQUANTO ESTOU ESCREVENDO SINTO-ME TÃO CHEIA COM A VIDA DOS PERSONAGENS QUE MINHA MORTE INEXISTE. – ROSA MONTERO
Bruna Husky, uma androide que vive no século XXII, foi programada para viver apenas dez anos – mas não para se conformar com esse destino. A personagem de Lágrimas na Chuva (2011), décimo segundo romance de Rosa Montero, revolta-se contra a morte, sente-se confrontada por ela. Vir ao mundo com tantos desejos, tantas expectativas, para que logo, em um abrir e fechar de olhos, a morte venha e acabe com tudo isso, roubando-nos de nós mesmos: só nos cabe a indignação contra essa “ladra de doçuras”, como lemos nas Mil e Uma Noites. “Bruna Hursky vai contando o tempo que ainda resta, e eu também”, diz Rosa Montero. “Bruna vê as pequenas mordidas de cada dia levando sua vida embora, e compartilho de sua vitalidade. Imagino-a como um tigre preso em uma jaula buscando encontrar uma saída.”
PARECE TERRÍVEL, MAS NÃO O É, PORQUE TER CONSCIÊNCIA DA MORTE NOS POSSIBILITA, TAMBÉM, UMA CONSCIÊNCIA MUITO AGUDA DA VIDA. – ROSA MONTERO
Nascida em Madri, em 1951, Rosa Montero é filha de um toureiro, Pascual Montero (“El Señorito”), e Amalia Gallo, dona de casa que não se cansou de dizer à filha que evitasse repetir uma vida como a sua. Rosa conta que tinha um irmão muito bonito, corajoso, e por comparação sentia-se feia e covarde. “Pelo menos me disseram que eu era inteligente, e então pude tentar ser inteligente com tranquilidade.” Estudou Filosofia, Letras, Psicologia e participou de grupos de teatro independente. Foi no Jornalismo, porém, que Rosa encontrou sua profissão – na
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época em que as vozes deixavam de ser silenciadas pelo regime ditatorial. Após a queda do Governo Franco, com a morte do general em 1975, Rosa Montero, então com vinte e quatro anos, tornava-se colunista do jornal El País. O reconhecimento não tardou: em 1978, recebeu o Prêmio Manuel Del Arco, por suas entrevistas, concedido pela primeira vez a uma mulher; em 1980, o Prêmio Nacional de Jornalismo, por suas reportagens e artigos literários; e, em 2005, o Prêmio da Associação da Imprensa de Madri, por toda sua vida profissional. “O jornalismo é também um gênero literário”, argumenta Rosa Montero sobre sua profissão. “Lembre-se de A Sangue Frio, de Truman Capote, que é uma reportagem e também um livro literariamente extraordinário.” O jornalismo, apesar de muito gratificante, é apenas seu trabalho. “Poderia deixá-lo a qualquer momento”, revela Montero, “Enquanto que a ficção é a minha vida e não consigo pensar em viver sem escrever”. Assim, em 1979, quase vinte anos depois de ter escrito aquele conto dos ratinhos falantes, Rosa Montero apresentou, em uma livraria madrilenha, sua primeira obra ficcional, Crónica del Desamor, para em breve tornar-se uma das principais vozes da literatura espanhola contemporânea. De lá para cá, entre romances, ensaios e literatura infantojuvenil, foram cerca de vinte e cinco obras, traduzidas para mais de vinte idiomas. Destacam-se Te Tratarei como Uma Rainha (1983), A Filha do Canibal (1997), O Coração do Tártaro (2001), Lágrimas na Chuva (2011), El Peso del Corazón (2015) e La Carne (2016), lançado em setembro na Espanha. Fora da ficção, temos História de Mulheres (1995), em que narra a vida de “quinze mulheres extraordinárias”, entre elas, Simone de Beauvoir, Camille Claudel e as irmãs Brontë; Muitas Coisas que Perguntei e Algumas que Disse (2007), uma reunião de textos jornalísticos e entrevistas a personalidades como Paul McCartney, Mario Vargas Llosa, Martin Amis e Margareth Tatcher; e Instruções para Salvar o Mundo (2008).
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A Louca da Casa, publicado em 2003, não se encaixa em nenhuma das categorias. Não é um romance, não são ensaios, tampouco contos ou textos jornalísticos. Ou talvez seja um pouco de cada uma dessas coisas, e ainda mais. Considerado pela autora, à época do lançamento, seu melhor livro, A Louca da Casa é um ode à literatura, à imaginação e à profissão de escritor.
ESCREVER SOBRE O OFÍCIO DE ESCREVER É UMA ESPÉCIE DE MANIA OBSESSIVA DOS ROMANCISTAS PROFISSIONAIS: QUANDO NÃO MORREM PREMATURAMENTE, TODOS ELES PADECEM, MAIS CEDO OU MAIS TARDE, DA IMPERIOSA URGÊNCIA DE ESCREVER SOBRE A ESCRITA, DE HENRY JAMES A VARGAS LLOSA. – ROSA MONTERO, EM A LOUCA DA CASA
Em um jogo narrativo cheio de surpresas, no qual se misturam literatura e vida da autora, realidade e ficção, biografias e autobiografia romanceada, Rosa Montero nos conta que a primeira tiragem de Moby Dick vendeu menos de duas dúzias de exemplares, para a frustração de Herman Melville, que depois quase não voltou a escrever. “Por que um escritor perde o rumo?”, questiona Montero em um dos capítulos. Se o fracasso humilha, o sucesso entorpece. O avesso de Mellville é Truman Capote, que obteve estrondoso sucesso após a publicação de A Sangue Frio. Entretanto, não ganhou o Pulitzer nem o Man Booker Prize: “Quando vi que não me deram aqueles prêmios, pensei: vou escrever um livro que deixará todos vocês envergonhados de si mesmos. Vão ver o que um escritor verdadeiramente, verdadeiramente dotado pode fazer quando se propõe”. O resultado dessa história vocês descobrirão lendo A Louca da Casa. Para discorrer sobre a obsessão pela morte como inspiração literária, cita escritores que também tiveram “alguma experiência bem precoce da decadência”, entre eles, Nabokov, que perdeu tudo durante a Revolução
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Russa; Simone de Beauvoir, filha de uma rica estirpe de banqueiros que acabou na miséria; e Joseph Conrad, que foi deportado quando tinha seis anos e aos onze já havia perdido o pai e a mãe para a tuberculose. Rosa Montero aproveita para alfinetar alguns dos grandes mestres, como Émile Zola, a quem considera preconceituoso por ter se negado a assinar o manifesto de apoio a Oscar Wilde, condenado a dois anos de prisão por ser homossexual; Goethe, que adulava os poderosos até chegar ao ridículo para obter status e prestígio; e Tolstói, um “energúmeno que maltratava sua mulher”. Por falar em mulher, Rosa Montero dedica capítulos a discorrer sobre a “literatura feminina” (termo com o qual não concorda), fala sobre as invisíveis, mas importantes, mulheres de escritores, e trata do feminismo e do antissexismo na literatura. E assim a autora desloca-se, deliciosamente, de um assunto a outro, construindo um livro que “se lê num puro movimento de prazer”, como afirmou Mario Vargas Llosa. Um livro sobre fantasia e sonhos, loucura e paixão, uma tórrida história de amor com a imaginação, esta “louca da casa”, de que Rosa Montero se vale para fazer literatura e, com ela, enganar a cruel ampulheta do tempo, afugentar a morte, assustá-la como o Gigante assustou as crianças e tornar a vida um pouco mais bela e colorida.
A AUTORA É UMA GRANDE CONTADORA DE HISTÓRIAS, SABE PRENDER O LEITOR, E DESENVOLVE SUAS TRAMAS COM HABILIDADE, INTELIGÊNCIA E HUMOR. NESTE LIVRO, FAZ UMA HOMENAGEM À FANTASIA E À PRÓPRIA LITERATURA. – CAROLA SAAVEDRA
ECOS DA LEITURA
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Conforme liberamos as amarras do sexismo, a voz feminina na literatura aumenta. No primeiro Eco, contamos algumas histórias de mulheres que, apesar dos preconceitos do seu tempo, deixaram-nos importantes legados artísticos. Em Os Livros do Livro, destacamos algumas das incontáveis referências literárias presentes em A Louca da Casa, selecionando três livros citados por Rosa Montero para apresentar ao leitor. Metaliteratura é quando o trabalho literário tem como assunto a própria literatura. Assim acontece em A Louca da Casa e também em diversos outros exemplos que expomos no terceiro Eco. Como proeminente jornalista, Rosa Montero entrevistou diversas personalidades. Em nosso último Eco, selecionamos dois momentos marcantes de sua carreira como entrevistadora para compartilhar com os leitores.
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Histórias de Mulheres Filha de um casal erudito, Alma Maria Schindler nasceu em 1879, em Viena, e desde pequena conviveu com pintores, compositores, escritores e intelectuais. Durante a juventude, tivera muitos amigos da Secessão de Viena, grupo de artistas austríacos da época, entre eles, Gustav Klimt, reconhecido pintor do movimento simbolista, em quem deu seu primeiro beijo, e o compositor Alexander Von Zemlinsky, que fora seu tutor musical e um dos primeiros namorados. Aos vinte e três anos de idade, Alma casou-se com Gustav Mahler, que veio a se tornar um dos grandes maestros austríacos. O compositor obteve esse destaque muito por causa, mas principalmente às custas, de sua própria esposa, que foi pressionada pelo marido a abrir mão de suas próprias aspirações artísticas. “Como você imagina uma vida matrimonial entre um homem e uma mulher que são ambos compositores?”, escreveu Gustav à mulher, censurando-a por seus projetos de composição musical. “Você tem ideia de quão ridículo e, com o tempo, degradante que seria para nós uma relação de competição como esta? O que vai acontecer quando lhe chegar a inspiração e você estiver obrigada a atender a casa ou qualquer afazer que se apresentar, dado que, como você escreveu, quer evitar que eu tenha qualquer preocupação com as miudezas da vida cotidiana? Você não deve ter mais que uma só profissão: a de fazer-me feliz. Você deve renunciar a tudo isso que é superficial (tudo que concerne a sua personalidade e trabalho). Deve entregar-se a mim sem condições, deve dedicar sua vida futura em todos seus detalhes aos meus desejos e necessidades, e não deve desejar nada além do meu amor.” Apesar do machismo de uma sociedade que tolhia suas aspirações, Alma Mahler acabou se tornando uma das
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compositoras austríacas mais influentes do século XX. As dificuldades, é claro, não foram exclusividade sua: temos também María Lejárraga, autora espanhola que escrevia suas peças de dramaturgia e permitia que seu marido assinasse; Zenobia Camprubí, esposa do prêmio Nobel Juan Ramón Jiménez, que passou a vida à mercê do marido; as irmãs Brontë, que assinavam com nomes de homem para poderem conquistar leitores em uma época preconceituosa.
QUANDO TODOS OS HOMENS ESCREVEM ‘HOMEM’, EU TIVE QUE APRENDER A LER TAMBÉM ‘MULHER’. – Rosa Montero
Em A Louca da Casa, Rosa Montero dedica-se a discorrer sobre a mulher na literatura: “Quando uma mulher escreve um romance protagonizado por uma mulher, todo mundo considera que está falando das mulheres; mas se um homem escreve um romance protagonizado por um homem, todo mundo considera que está falando do gênero humano.” Para a autora, não existe tal coisa chamada literatura feminina – só há literatura, sem gênero. Por isso, considera-se não uma feminista, mas uma antissexista. Tais questões, pinceladas em A Louca da Casa, são exploradas a fundo no livro História de Mulheres, publicado em 1995, de onde retiramos as informações sobre Alma Mahler. A obra reúne quinze ensaios que exaltam a trajetória de mulheres brilhantes, entre elas, Agatha Christie, Simone de Beauvoir, George Sand e Frida Kahlo.
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Os Livros do Livro
De Capote a Cervantes, diversos escritores – e suas obras – estão presentes nas páginas de A Louca da Casa. Selecionamos alguns dos livros mencionados por Rosa Montero para trazer ao leitor – que provavelmente aumentará ainda mais sua lista de livros a serem lidos.
BARTEBLY, O ESCREVENTE DE HERMAN MELVILLE “[...] sua genial novela Bartleby, o Escrevente, que demonstra que seu talento permanecia intacto apesar do exílio de silêncio em que vivia.”
A novela apareceu pela primeira vez em novembro de 1853, publicada anonimamente pelo frustrado Melville, após o fracasso de Moby Dick. A obra narra a história de Bartleby, um jovem que se apresenta à porta de um escritório de advocacia, na Nova York de meados do século XIX, para candidatar-se a uma vaga de copista. Aprovado, Bartleby mostrou-se inicialmente um bom escrevente, que fazia o que lhe pediam. Com o tempo, porém... Bem, não vamos estragar a história.
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SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO MILÊNIO DE ITALO CALVINO “Gosto muito de Ítalo Calvino; gosto de sua prosa limpa, gosto dos seus romances fantásticos, gosto dos seus ensaios literários de Seis Propostas para o Próximo Milênio.” Em 1985, Italo Calvino foi convidado para ministrar as legendárias Norton Lectures, da Universidade de Harvard, uma série de conferências que já foram proferidas por nomes como Octavio Paz, Umberto Eco e Jorge Luis Borges. Para tal, datilografou uma série de ensaios sobre as seis qualidades que julgava essenciais para a melhor literatura. Embora tenha morrido antes de conduzir as conferências, registrou seus pensamentos na obra Seis Propostas para o Próximo Milênio.
LTI: LINGUAGEM DO TERCEIRO REICH DE VICTOR KLEMPERER “[...] é uma obra que deslumbra, que sacode a cabeça e o coração, como se Klemperer fosse capaz de atingir aquela zona de luz ofuscante da sabedoria total, da beleza absoluta, do entendimento.”
Victor Klemperer foi um célebre linguista alemão de origem judaica, que sobreviveu ao Holocausto sem ter fugido do país. Durante os últimos anos do regime nazista, Klemperer manteve um diário da sua vida, relatando as minúcias da opressão sofrida. Acima de tudo, como linguista, registrou suas reflexões acerca de como o totalitarismo de Hitler deformou a linguagem. “As palavras pesam e dizem mais do que dizem”, escreve Klemperer em seu livro, disponível em português para quem quiser descobrir o porquê.
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Metaliteratura Após meses hospitalizado, Sidney Orr enfrenta dificuldades para retormar a profissão de escritor. Certo dia, passeando pelas ruas de Nova York, compra um intrigante caderno azul, e nele as palavras voltam magicamente a fluir. A partir deste ponto, Paul Auster, autor de Noite do Oráculo (enviado aos associados em setembro de 2015), passa a narrar não somente a história do seu protagonista, Sidney Orr, mas a que o próprio personagem escreve no caderno azul – um romance dentro do romance. A literatura é uma paixão comum entre os escritores, que frequentemente a inserem em seus projetos literários, criando assim a chamada “metaliteratura”, ou seja, uma obra que tematiza a própria literatura. É o que fez Paul Auster, em Noite do Oráculo, e também Rosa Montero, em A Louca da Casa. Em suas páginas, a espanhola relata a vida pessoal de outros escritores, discorre sobre o que faz alguém escrever (ou deixar de escrever), conta sua própria história e mistura ficção com não ficção para construir suas reflexões. Como disse a própria autora, “escrever sobre o ofício de escrever é uma espécie de mania obsessiva dos romancistas profissionais”. Italo Calvino também foi um deles. Em Se um Viajante numa Noite de Inverno (1979), Calvino designou como protagonista seu próprio leitor, que entra em uma livraria e compra um livro chamado Se um Viajante numa Noite de Inverno. Em casa, senta-se em uma poltrona,
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abre o livro e, neste momento, encontra-se na mesma posição que o leitor. Portanto, você lê, em Se um Viajante numa Noite de Inverno, sobre um leitor que lê o Se um Viajante numa Noite de Inverno. Curioso... A releitura é outra técnica metaliterária. Em 2014, Jo Baker lançou As Sombras de Longbourn, que tem como personagens principais as cozinheiras e serviçais da casa da família Bennet, que no clássico Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, eram apenas secundárias. Por trás de cada descrição da toalete das irmãs Bennet, havia certamente o trabalho de uma criada, e cada refeição servida implicava uma cozinheira, um mordomo para servi-la. Qual seria a história não contada desses personagens? Inserindo-se em um clássico, mas assumindo outro olhar, Jo Baker criou um trabalho metaliterário. Encontramos mais um exemplo interessante no romance Café-da-Manhã dos Campeões (1973), de Kurt Vonnegut. Nele, o narrador frequentemente relembra o leitor que os personagens do livro são ficcionais, frutos de sua própria criação, e que pode fazer com eles o que bem entender! Joseph Conrad também brincou com os limites da ficção, quando, no prefácio de seu romance Nostromo (1904), escreveu: “Minha principal autoridade para construir a história [da República] de Costaguana foi, é claro, meu venerado amigo, o finado Don Jose Avellanos, ministro das cortes da Inglaterra e Espanha, no seu imparcial e eloquente História dos Cinquenta Anos de Desgoverno”. Assim, Conrad, em um ambiente geralmente usado para fatos reais – o prefácio –, atribui como referência de pesquisa uma obra fictícia, escrita por um dos personagens de seu próprio livro! (Como o leitor acabaria descobrindo nas páginas seguintes.) Calvino, Vonnegut, Auster, Baker, Montero: os exemplos são inúmeros, e a lista poderia continuar longamente. Como denominador comum entre eles, encontramos o prazer máximo dos escritores: o de brincar com as palavras e com a própria literatura, apagando e refazendo a tênue (ou ilusória?) linha que separa a ficção da realidade.
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É Porque Amo de Verdade Como proeminente jornalista, Rosa Montero teve a possibilidade de entrevistar diversas personalidades: Harrison Ford, Lou Reed, Paul McCartney, Mario Vargas Llosa, Margaret Tatcher, Martin Amis, Muhammad Yunus, entre outros. De todas as entrevistas, uma das mais marcantes ocorreu há aproximadamente trinta anos, com o líder palestino Yasser Arafat. Depois de muito batalhar pela entrevista e, ao fim de um ano, conseguir, garante: “Tive a sensação de estar a entrevistar um monstro. Não te dá a mão para cumprimentar porque pensa que o podes envenenar”. Foi para ela uma desilusão, porque naquele momento ainda sustentava alguma admiração pelo entrevistado, que foi extinta no momento em que deu de cara com uma montanha de “intolerância, dogmatismo e ferocidade”, no julgamento de Montero. Enquanto com Arafat o encontro foi amargo, com Paul McCartney ela falou sobre o amor. Em 4 de junho de 1989, Rosa Montero foi até o condado de Sussex, a duas horas e meia de carro de Londres, para encontrar Paul e Linda McCartney em sua fazenda “primorosa, mas carente de toda ostentação”. Durante sua adolescência, Rosa Montero era grande fã dos Beatles, e Paul McCartney fora sua paixão juvenil. Agora, anos depois, ela estava encaminhando-se para encontrá-lo pessoalmente. “Impressiona-me que o senhor se arrisque a continuar gravando discos depois de tantos anos suportando a pressão de ser Paul McCartney. Suponho que seria mais relaxante se aposentar”, iniciou a conversa. “Acho que é porque amo a música de verdade”, respondeu McCartney. “Todas as vezes que me sento para escrever uma canção, não é mais fácil nem mais difícil do
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que antes. Ainda é uma atividade bonita. Você se senta diante do piano e começa ding, dang, e começa a entretecer um pouquinho de música, e me entusiasmo, e me digo: ‘Uh, uh, parece que está saindo alguma coisa’. É tão emocionante como no primeiro dia.” Em alguns momentos em A Louca da Casa, Rosa Montero analisa os motivos que levam os autores a escreverem – ou deixarem de fazê-lo. Críticas, frustração, sofrimento, peso da responsabilidade, ego, admiração – os propulsores da literatura são muitos. No caso de Paul McCartney, seu impulso artístico é o amor; em última instância, e acima de qualquer coisa, resta sempre o amor pela música. Esse nobre motivo fê-lo continuar apesar do rompimento dos Beatles, das intrigas e comparações com John Lennon, da depressão após o ocorrido, e continuaria a fazê-lo de qualquer forma, “porque amo a música de verdade”, explicou Paul a Rosa Montero. “Eu, por dentro, sinto-me o mesmo de sempre, sinto-me ainda como um menino de Liverpool. Gosto das mesmas coisas de que gostava antes. A natureza, por exemplo. Coisas como essa se mantêm interiormente, porque não mudam. O canto dos pássaros na primavera é agora exatamente o mesmo de quando eu tinha cinco anos.” E também seu amor pela música.
Aplicativo: TAG Livros Imagine-se entrando em uma pequena livraria para o primeiro encontro de um clube do livro do seu bairro. Após as apresentações de cada um, o grupo discute os livros que serão escolhidos. Você gosta de alguns, outros não fazem seu estilo, mas a lista está feita, e você vai para casa na expectativa de ler o primeiro deles. Um mês depois, ao chegar para o segundo encontro, com um bloquinho de notas repleto de pensamentos, reflexões e até algumas dúvidas, o organizador pergunta: “Todos leram o primeiro título?”. Cabeças assentem, e ele continua: “Ótimo, então vamos ao segundo”. Qual a graça de lermos um livro e não conversarmos sobre ele? A mágica do clube de leitura é fazer com que a obra não termine após virarmos sua última página. No caso da TAG, enquanto você lê o seu livro, outros milhares de leitores fazem o mesmo, todos com perspectivas e experiências de leitura únicas. Quando compartilhamos, ampliamos nossa própria visão, engrandecemos a leitura e atingimos uma profundidade a que, sozinhos, não chegaríamos. Sem contar que é divertido demais e ainda criamos vínculos com pessoas incríveis! Por isso, criamos um aplicativo para você acessar pelo celular e encontrar as milhares de pessoas, de todos os cantos do país, que estão lendo o mesmo livro que você! Os grupos do Facebook estavam ficando um pouco confusos, e o app TAG Livros agora possibilita que as seções sejam separadas para cada um dos livros, que você avalie as edições do clube, registre os livros lidos e os que ainda estão na fila de leitura, evite postagens que sejam spoilers e discuta com os outros associados suas percepções!
Espaço do Leitor 27
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A PRÓXIMA INDICAÇÃO Parte suspense, parte romance metafísico, o livro de novembro conta a história de um homem que tenta evitar o sofrimento se afastando dos outros seres humanos e de suas ilusões. É um romance incrivelmente rico, mas uma das possíveis interpretações é que uma vida sem ilusões é a maior das ilusões. – John Gray
Após um empreendimento fracassado no extremo oriente, o protagonista do livro indicado por John Gray isola-se em uma ilha do arquipélago malaio. Seguindo a filosofia de seu pai, um aristocrata que acreditava que o mundo era um lugar repleto de dor e ilusão, o personagem prefere viver no exílio. Durante viagem a uma ilha próxima, entretanto, desentende-se com o dono de um hotel e, a partir daí, envolve-se com ladrões, invejosos e tudo de que esperava fugir. Embora seu autor seja reconhecido como um dos principais escritores de língua inglesa do século XX (apesar de sua descendência polonesa), é provável que a obra de novembro, publicada durante a Primeira Guerra Mundial, seja ainda desconhecida dos leitores, devido à sua baixa repercussão aqui no Brasil. E a melhor parte: será mais uma edição própria da TAG, elaborada exclusivamente para os associados!
Este foi nosso kit de maio de 2016, com a indicação de Adriana Lisboa.
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A imaginação é a memória que enlouqueceu. – Mario Quintana
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