Nov2019 "Êxtase da transformação" - Curadoria

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Êxtase da transformação


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Redação

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Daniel Silveira Laura Viola Hübner Maurício Lobo Nicolle Ortiz Rafaela Pechansky

Bruno Miguell M. Mesquita Gabriela Heberle Paula Hentges

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Revisão

Woman Buttoning Her Shoes (modificado), Carvão sobre papel de Egon Schiele, 1915

Antônio Augusto da Cunha Caroline Cardoso Gustavo Lembert da Cunha Impressão Impressos Portão Projeto Gráfico Bruno Miguell M. Mesquita Gabriela Heberle Kalany Ballardin Paula Hentges design@taglivros.com.br

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Ao Leitor Quando Ayelet Gundar-Goshen enviou a sua lista de li-

vros favoritos, um nome em especial nos intrigou. A lista chegou em inglês – The post-office girl brilhava entre alguns títulos, bem como o nome do autor. Stefan Zweig é comumente associado ao seu famoso livro sobre o Brasil, mas pouco falamos sobre o seu prolífico conjunto de obras de ficção. É assim que começa o trabalho de resgatar um livro esquecido: escavar pilhas até encontrar uma obra que estava empoeirada e soterrada pelo tempo. A última edição de Êxtase da Transformação data de 1987: neste mês, a TAG reedita o livro mais de trinta anos depois, trazendo à luz essa relíquia literária. Neste livro, Zweig lida com a violência da paixão humana. Christine, a protagonista, é a epítome do ardor que transforma: a lagarta que vira borboleta, a plebeia que vira princesa. Interessante também é a escolha do título em português de Portugal: A embriaguez da metamorfose – essa mesma metamorfose que é título da obra-prima de Kafka, contemporâneo de Zweig. Ambos os autores – ainda que cada um à sua maneira – evidenciam o que há de mais humano em ser humano. Sentimentos conflituosos, obsessão com as aparências, diferenças sociais, vergonha, culpa, arrependimento: tudo está ali, sendo representado pelas metamorfoses e angústias da Christine zweiguiana e do Gregor kafkaniano. Boa leitura!


Sumário

A indicação do mês

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A curadora Ayelet Gundar-Goshen Entrevista com Ayelet Gundar-Goshen O livro indicado Êxtase da transformação


Ecos da leitura

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O autor, a obra e o mundo no entre-guerras Zweig e cinema: inspirações e influências A governanta, de Stefan Zweig

Espaço do associado

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Livros para celebrar o mês da Consciência Negra

Leia depois de ler

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Os absurdos dos dois mundos

A próxima indicação

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O livro de dezembro


Bruno LeĂŁo


A curadora

Ayelet Gundar-Goshen Ayelet Gundar-Goshen é um dos nomes mais celebra-

dos da literatura israelense contemporânea. Recebeu o consagrado prêmio Sapir de melhor estreia com o romance Uma noite, Markovitch (2012), já traduzido para quatorze idiomas. Publicou outros dois romances de elogiosas recepções, Liar (2017) e Waking Lions (2016) – este em processo de tradução para o português pela editora Todavia. Além de escritora, Gundar-Goshen é mestre em psicologia pela Universidade de Tel Aviv, uma premiada roteirista de cinema e televisão e já trabalhou para a Associação de Direitos Civis de Israel. Ela também contribui para o podcast The Cultural Frontline da BBC e para os periódicos Financial Times, Time Magazine e The Telegraph. Casada com um filho de brasileiro e apaixonada por Jorge Amado – ele a faz “sentir fome de vida” –, Ayelet teve sua segunda passagem pelo Brasil em julho deste ano na Flip 2019. Na ocasião, participou de uma mesa com a nigeriana Ayòbámi Adébáyò sobre literatura, política e relações de gênero. Um dos principais focos do debate foi seu romance Uma noite, Markovitch. Inspirado em uma história real, a narrativa é centralizada em um grupo de jovens que vai da Palestina até a Europa sob comando nazista para resgatar mulheres judias por meio de casamentos forjados.

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“Gundar-Goshen é hábil em incutir profundidade emocional em um enredo de suspense, oferecendo as reviravoltas necessárias e um retrato incisivo da culpa, vergonha e desejo de seus personagens, mudando fluidamente entre suas perspectivas.” – The New York Times Apesar de acreditar que todos os livros devem ser lidos em um nível político, a autora não espera que seu romance seja interpretado por apenas um viés. “A literatura tem que ser mais complexa e profunda que faixas e gritos, ir além de protestos. Eu não quero que usem meu livro pra fazer diagnósticos sobre a sociedade israelense. Luta política é feita na rua”, argumentou durante a conversa com Adébáyò. Corrobora para esse discurso a própria história de vida da escritora, já que, na infância, Gundar-Goshen costumava usar os livros como um escape da realidade. Criança solitária, gostava de frequentar a gigantesca biblioteca da avó, e, fora dela, tinha o hábito de carregar um livro para onde quer que fosse, como um escudo capaz de protegê-la do mundo lá fora. Muito cedo, Gundar-Goshen já aprendia essa estranha dualidade dos livros. “A literatura pode ser, ao mesmo tempo, uma maneira de fugir da realidade e uma maneira de

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encarar a realidade em seus níveis mais profundos”, reflete. Quando ainda era uma estudante de psicologia, Ayelet trabalhou como editora no principal jornal de Israel, Yedioth Ahronoth, onde pôde perceber as principais distinções entre o jornalismo tradicional e a literatura que desejava criar. “A grande questão [na redação do jornal] era o quanto de realidade as pessoas podem aguentar enquanto tomam seu café de manhã. Desde que você consiga engolir seu cereal, o jornal está fazendo seu trabalho. Eu espero que a literatura seja mais que isso. Eu espero que ela faça as pessoas cuspirem seu café na mesa”. Mais tarde, enquanto escrevia seus primeiros contos e rascunhava seu romance de estreia, estudou cinema na Sam Spiegel Film School em Jerusalém – alguns de seus roteiros já foram premiados em festivais internacionais como o Berlin Today Award e o New York City Short Film Festival Award.


Após o grande sucesso de Uma noite, Markovitch, Gundar-Goshen levou quatro anos para publicar seu segundo romance, Waking lions, que em pouco tempo também se tornou um best-seller em diversos países. O evento catalisador do romance é o atropelamento de um refugiado da Eritreia por um homem israelense, que decide fugir do local do acidente. “Quando eu estava na Índia, conheci um israelense que atropelou um indiano local e não parou. Quando ele me contou isso, pensei que não havia como ele não parar se me atingisse – uma israelense da mesma idade que ele. Mas quando alguém parece diferente e você tem certeza de que ninguém viu – eu queria que o leitor perguntasse se eles tinham certeza de que não fariam o mesmo”. Já seu livro mais recente é The liar (2017), recentemente publicado nos Estados Unidos e ainda sem previsão de lançamento no Brasil. Como ela mesma explicou na instigante e reveladora entrevista exclusiva para o clube, é uma história “sobre o poder das histórias de mudar nossas vidas”. Tendo a convicção do papel transformador e multifacetado da literatura na visão de mundo de um leitor, Gundar-Goshen indicou um autor que experimentou uma profusão de sensações ao longo da vida: Stefan Zweig. Judeu nascido na Áustria, Zweig foi um dos maiores autores de seu tempo, ainda que, aos poucos, tenha caído no ostra-

cismo. Contudo, a nossa curadora, ao indicar o autor, auxilia no processo de recuperação da sua obra. No posfácio exclusivo escrito para a edição da TAG, ela reflete sobre a impossibilidade do prazer a partir de certas posições sociais – uma máxima reforçada à exaustão no romance de Zweig.

“É possível sentir falta de um lugar e, ao mesmo tempo, saber que jamais passaremos por seus portões, seja porque não pertencemos à classe certa ou não temos a cor de pele certa, a nacionalidade certa. Este é o cenário em que a nostalgia se transforma em ódio. Este é o cenário em que o paraíso se transforma em inferno.”

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Entrevista com

Ayelet Gundar-Goshen TAG – Stefan Zweig foi um dos escritores mais traduzidos do mundo na década de 1920. Apesar do seu forte relacionamento com o Brasil, ele foi esquecido de muitas maneiras. Alguma ideia sobre por que isso aconteceu? Ayelet Gundar-Goshen – Zweig foi um dos autores europeus mais lidos de seu tempo. Mas ele era judeu numa época em que ser judeu significava ser processado. Os nazistas queimaram seus livros porque sabiam que ele era um verdadeiro representante dos valores humanísticos que eles desprezavam. Depois que seus livros foram queimados no incêndio nazista, eles foram esquecidos em muitos países. Um livro que não é aberto não é muito di-

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ferente de um livro queimado – as palavras só existem quando eles encontram um leitor. Felizmente, Zweig agora é celebrado novamente em todo o mundo, suas palavras são lidas de novo e de novo. Houve muitos debates no Brasil envolvendo boicotes culturais a Israel. Na sua opinião, quais são as implicações desse movimento? Ayelet – Acredito que o atual governo israelense esteja prejudicando os palestinos e o povo israelense. Como mãe de crianças pequenas, está claro para mim que a única maneira de proteger meus filhos é procurar um acordo de paz com os palestinos e por um fim à ocupação israelense dos territórios da Palestina.


No entanto, temos que traçar uma linha muito clara entre anti-semitismo e anti-sionismo. Amos Oz deu uma definição com a qual me relaciono fortemente: pode-se dizer que Israel comete erros – eu concordo muito. Mas se alguém disser que, por Israel estar fazendo algo de errado com os palestinos, então o estado israelense deve deixar de existir, essa é a linha para mim. Ninguém disse que a Rússia não deveria existir por causa de Stalin. Pessoalmente, eu boicoto eventos ou bens feitos por estabelecimentos israelenses no território palestino. Não comprarei vinhos produzidos lá, não darei uma palestra lá. Estou muito preocupada com a lei anti-boicote aprovada em nosso parlamento, afirmando que a divulgação de um pedido de boicote pode ser processada civilmente. Então, se eu lhe disser agora que quero que você boicote produtos fabricados nos territórios ocupados, eu poderia ser processada. Mas, quando se trata do movimento internacional de boicote, acho mais complicado. Partes desse movimento falam sobre o término não apenas da ocupação, mas de todo o estado israelense. Eu não posso marchar com essas pessoas. O estado israelense está aqui para ficar. Ele deve ser um bom estado, um estado justo – e eu concordo que estamos muito longe disso, mas o país está aqui para ficar.

Meu problema mais profundo com o boicote internacional é que isso apenas endurece a mentalidade israelense. Como judeus, já temos uma mentalidade de cerco, já temos nosso governo de direita nos dizendo que todas as críticas a Israel são motivadas por razões anti-semitas – e então ligamos a TV e vemos pessoas do BDS queimando nossa bandeira. Digamos que, para impedir o Brexit, os membros da UE boicotem e queimem a bandeira britânica – essa é provavelmente a melhor maneira de tornar o povo britânico pró-Brexit. Se você quer mudar alguma coisa, precisa conversar com as pessoas. Você tem que tocar os corações e mentes das pessoas. Isso não pode ser feito por meio de bandeiras em chamas. Boicote é contraproducente. Em Uma noite, Markovitch, temos um protagonista que ama sua linda esposa e acaba misturando amor e propriedade. Qual foi a inspiração por trás do enredo e dos personagens (como Yakov, Bella e Sonia)? Pode ser lido como uma metáfora política? Ayelet – "Quem mora naquela casa?", eu perguntei ao meu namorado na primeira vez que ele me levou para conhecer seus pais na vila. A casa atrás da cerca não era especialmente escura ou notavelmente misteriosa. Não havia hera nas paredes, nem morcegos pendurados no telhado,

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Bruno Leão

mas havia algum tipo de tristeza saindo daquele quintal, como de outros quintais saíam as vozes de crianças ou o cheiro de churrasco. "A bela Bela vive aqui", respondeu ele. Dei a ele o olhar que uma garota dá ao namorado quando ele chama outra garota de bonita, e ele imediatamente acrescentou que a bela Bela tem 80 anos e é a mulher mais miserável da vila. "Por que miserável?" Imediatamente todos os olhos se levantaram. Nada melhor que a miséria alheia para alimentar uma conversa agonizante. Aparentemente, Bela não era apenas bonita.

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Ela era realmente linda. O tipo de mulher que faz homens congelarem. Mas, de todos os homens que congelaram – e havia muitos –, ela estava destinada a se casar com o homem mais inútil da vila. "Por quê?" Foi a primeira vez que ouvi falar da operação heroica que deu terrivelmente errado. Isso aconteceu há mais de 60 anos, mas todos na vila continuaram falando sobre isso desde então. Eles mantiveram sua história como outros moradores da região mantêm receitas famosas da região ou vinhos secretos. Descobri que durante a Segunda Guerra Mundial um grupo de agricultores


judeus deixou a Palestina para entrar na Europa. O plano deles era se casar com garotas judias que eram proibidas em Israel por causa da lei britânica. Esses casamentos de conveniência existiam para salvar as meninas da Europa nazista e colocá-las sob o domínio britânico. Os casamentos haviam mudado de um símbolo de amor, a emoção mais íntima e privada, para um empreendimento nacional. Uma vez em Israel, todos deveriam se divorciar e continuar com suas vidas. Os livros de história glorificam essa operação, mas nenhum deles menciona o caso da linda Bela, casada com um fazendeiro tão impressionado com ela que se recusou a deixá-la ir quando chegassem à terra. Ele a segurou contra sua vontade, sob o poder da lei religiosa. Essa lei persiste em Israel até hoje – uma vez casada religiosamente, uma mulher não pode se divorciar sem a permissão de seu marido. Se ele não der permissão – ela é forçada a permanecer casada. Ela não pode se casar com outro homem, e se ela tiver filhos de outro homem, eles são considerados bastardos, e não podem se casar na comunidade religiosa. Nesse ponto, espera-se que alguém grite "vilão!" Foi o que fiz quando soube disso pela primeira vez. Mas então a psicóloga em mim entrou em ação. Em vez de condenar esse homem, tentei entendê-lo. Eu me perguntava o que faz uma pessoa segurar outra pessoa – ou outro

país – pela força se não lhe pertence. Tentei encontrar dentro de mim o mesmo lugar que se apega às coisas e não pode deixar ir embora, seja por um sentimento de grande paixão, seja por um sentimento de grande ofensa. Pensei em todos aqueles que se recusam a deixar algo – uma pessoa, um território – na vaga esperança de que, se eles se apegarem com força suficiente a algo, será deles. Nesse sentido, o romance realmente tem uma metáfora política. Você publicou livros com vários temas: guerra, preconceito cultural e nacional, o perigo de ouvir apenas um lado da história. Quais são seus planos para o futuro como escritora? Ayelet – No próximo mês, meu novo romance, The Liar será publicado nos Estados Unidos. É uma história sobre o poder das histórias – como as mentiras são um certo tipo de história – para mudar nossas vidas. Eu queria explorar o papel fundamental das mentiras em nossas vidas: às vezes a mentira é o material de que uma nação é feita; às vezes é a cola que mantém um relacionamento. A protagonista é uma garota comum que trabalha em uma sorveteria. Seu mundo muda completamente quando um cliente mal-educado a insulta e a humilha. O grito das meninas alerta a vizinhança e, para sua própria surpresa, todos estão convencidos de que o homem tentou atacá-la sexualmente.

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O apoio que ela recebe da comunidade a transforma em uma espécie de Cinderela, e a vendedora de sorvete se torna uma princesa da mídia. Mas a mágica por trás dessa história da Cinderela se origina das mentiras de Nofar sobre o ataque que não aconteceu. Antes da campanha #Metoo, uma mulher corajosa o suficiente para reclamar de agressão era frequentemente chamada de "mentirosa". Na era #Metoo, nossa consciência feminista exige que acreditemos nas mulheres. Uma mulher que cria um ataque é considerada um psicopata ou um fenômeno inexistente, inventado pelos homens. Mas essas mulheres existem. E eles não são psicopatas. Eu conheci uma delas, e ela também tem uma história para ser ouvida.

ESTANTE LITERÁRIA O primeiro livro que li: O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, de Clive Staples Lewis. Entrei no guarda-roupa dos meus pais e tentei chegar a Nárnia. Esse é o poder da literatura, criar um reino mágico nos lugares mais comuns. O livro que estou lendo: The last interview, de Eshkol Nevo. Brilhante. O livro que mudou minha vida. Ver: amor, de David Grossman. O livro que eu gostaria de ter escrito: A história da menina perdida, de Elena Ferrante. O último livro que me fez chorar: As pipas, de Romain Gary.

tem na loja!

O último livro que me fez rir: Novamente As pipas, de Romain Gary. O livro que eu dou de presente: Eu comprei Dona flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, para uma amiga que estava se casando. Ela se separou tempos depois. O livro que eu não consegui terminar: Serotonina, de Michel Houellebecq. O homem odeia a raça humana. Embora eu não possa culpá-lo, não encontro razões para continuar lendo-o.

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Unboxing Mimo: “Uma agência dos correios de uma aldeia austríaca pouco se diferencia das outras: quem viu uma conhece‑as todas.” (p. 11) O mimo de novembro foi pensado com o objetivo de proporcionar uma imersão na obra enviada. O universo da protagonista é permeado por cartas: além de trabalhar em uma agência dos correios, é uma correspondência enviada por uma parente distante que vai transformar a vida de Christine – contar mais que isso já é spoiler! Sendo assim, elaboramos esse kit correspondência, composto de cartas-envelope e abridor de cartas, para você contar àquele amigo distante o que achou do livro. A curadora, Ayelet Gundar-Goshen também escreveu a carta dela, enviada com carinho aos associados.

Projeto gráfico: O projeto gráfico do livro de novembro foi elaborado pela equipe de design da TAG, que trouxe como referências pôsteres da década de 1920, época em que a história se passa. O desenho original da capa do livro é do artista Heinrich Krenes (conterrâneo de Stefan Zweig) e encontra-se no acervo do Met, museu de Nova York. A obra foi editada, sendo criadas novas camadas para adicionar cores à obra. Para trazer esse sentimento de euforia que as festas da burguesia causavam, foram usados quatro pantones (tintas especiais que trazem vibração aos impressos). A cor vermelha, utilizada no vestido e no chapéu, destaca à figura feminina e faz referência à protagonista nos seus dias de glória, quando era o centro das atenções. A tipografia utilizada no título brinca com a ideia de letras que se transformam, bem como acontece com Christine no livro do mês.

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Atenção: Alerta de gatilho O livro do mês aborda temas como depressão grave e contemplação do suicídio.

O livro indicado

Êxtase da transformação de Stefan Zweig Stefan Zweig desembarcou de navio no Brasil pela pri-

meira vez em 1936 com status de celebridade internacional. Foi recebido com efusivo entusiasmo por todos os presentes, de jornalistas a políticos, ansiosos por ouvir e registrar a chegada daquele que era considerado, à época, um dos maiores escritores europeus de seu tempo. Hoje, embora haja um esforçado resgate dos principais livros de Zweig, ainda são poucos os conhecedores de sua obra. Em menor número estão os brasileiros, muitos sem saber que o bordão “Brasil, o país do futuro” veio de um dos seus títulos. Foi aqui que, fugindo do nazismo, o judeu austríaco encontrou refúgio. Mas seu amor à pátria destruída foi mais forte e o levou à depressão e, posteriormente, à morte. Zweig nasceu em Viena, em 1881, no seio de uma típica família judaica da alta sociedade. Seu pai era um bem-sucedido fabricante têxtil, e Stefan, convicto da sua vocação para a literatura desde muito cedo, precisou enfrentar a tradição familiar para não seguir os negócios do patriarca. Usava todo seu tempo livre para ler, e aos 16 anos já publicava seus primeiros poemas em periódicos locais. Estudou Filosofia em Viena e Literatura em Berlim enquanto lan-

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çava livros de poesia e publicava nos jornais. Ao provar seu talento, seu pai acabou cedendo, e o irmão ficou responsável pelo negócio. Zweig se aproveitou da privilegiada situação financeira da família para viajar pela Europa nos anos seguintes, cultivando amizades ilustres e expandindo sua formação intelectual. Durante esse período, fortaleceu laços com poetas, escritores, pensadores e artistas como Auguste Rodin, W.B. Yeats, Sigmund Freud, James Joyce, Hermann Hesse e muitos outros. Foram encontros marcantes e enormemente inspiradores para o escritor, que trabalharia por mais de três décadas em textos de variados gêneros como novelas, contos, romances, roteiros de cinema, peças de teatro, biografias e livros de viagens. Apesar de ser lembrado hoje como um dos grandes pacifistas da história, Zweig exibia inclinações nacionalistas quando a Primeira Guerra teve início, posicionando-se a favor do conflito. Quando, no entanto, foi

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obrigado a servir seu país – não no front de batalha, mas nos arquivos do Ministério da Guerra –, conheceu os horrores e vítimas da guerra. Transtornado e com uma nova perspectiva, escreveu a obra teatral anti-bélica Jeremiah (1917) pouco tempo depois. Daquele momento em diante, Zweig defenderia os ideais do pacifismo ao lado do amigo Romain Rolland, além da unificação de toda a Europa. Zweig viveu o período mais prolífico e bem-sucedido de sua carreira com o fim da guerra. Em 1920, casou-se com Friderike Maria von Winternitz e se mudou para Salzburgo, onde, nos anos seguintes, escreveu uma série de novelas e livros biográficos de alta carga dramática, geralmente abordando situações de crises psicológicas e sociais e temas como prostituição, adultério e suicídio – ali estavam os primeiros sinais que indicavam uma grave situação mental. Seus livros ganharam a atenção de leitores por toda a Europa, e Zweig ficou conhecido como o escritor mais vendido do continente dos anos


1920 e 1930. Entre seus livros mais populares estão as novelas Medo (1920), Amok (1922), Vinte e quatro horas na vida de uma mulher (1927) e as biografias Romain Rolland, o homem e sua obra (1920) e Maria Antonieta (1932). Críticos elogiavam os livros de Zweig principalmente pelo seu grande controle rítmico da narrativa. Em seu livro de memórias, o próprio escritor menciona que, para atrair a atenção de seus leitores, tentava cortar o máximo de informações que conseguisse de seus textos, deixando margem para interpretações e sentimentos diversos. Com a ascensão nazista em 1933, os livros de Zweig começaram a ser condenados e mais tarde banidos. O governo na Áustria começou a apoiar o nazifascismo, e em 1934 a polícia chegou à casa do autor procurando por armas. Assim que os policiais saíram, o autor deixou sua casa, para nunca mais voltar. A vida de Zweig tomou, então, um caminho inesperado com a separação da esposa e a mudança para Londres. A

partir daquele momento, o escritor seria para sempre um exilado. A atmosfera de extremo sofrimento e desesperança que rondou a Europa durante a Segunda Guerra também foi decisiva para o gradual definhamento psicológico e emocional de Zweig. A partir de 1939, já casado com a ex-secretária Lotte Altmann, o escritor seguiu escrevendo sem, contudo, posicionar-se contra os nazistas ou mesmo em defesa dos judeus perseguidos – uma postura duramente criticada por grandes figuras intelectuais de origem judaica como Hannah Arendt e Klaus Mann. Biógrafos sugerem que o escritor queria se manter longe dos holofotes, pois somente assim seu trabalho continuaria a ser publicado. Essa tranquilidade almejada, no entanto, estava longe de ser uma realidade para o autor, que começou a publicar textos cada vez mais melancólicos e viscerais. Seu estado anímico também contribuiu para que a decisão de buscar

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novos ares morando na América: primeiro, nos Estados Unidos, em 1940, e no ano seguinte, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Naquele momento, a paisagem exuberante das terras brasileiras parecia ser a última esperança de uma vida tranquila para Zweig e Lotte. No entanto, seu livro Brasil, um país do futuro (1941), de exaltação nacionalista em meio ao governo autoritário de Getúlio Vargas, tirou-lhe a paz mais uma vez. As pesadas críticas ao livro, principalmente pelo nível de alienação das dificuldades que o povo enfrentava, combinadas com a entrada do Brasil na Guerra e, principalmente, à profunda depressão em que se encontrava, tirou as forças do autor e sua esposa. Juntos, planejaram tirar as próprias vidas. Ao lado de uma carta de despedida e protesto, seus corpos foram encontrados no dia 23 de fevereiro de 1942, no local que hoje se tornou um

monumento em homenagem ao escritor, a Casa Stefan Zweig. Depois de um curto e súbito interesse na obra do autor após sua morte, por muitos anos Zweig foi esquecido. Nos anos 1970, voltou a ser valorizado, e em 1981, em consequência da comemoração do centenário de seu nascimento, dois textos inéditos surgiram. Um deles é Êxtase da transformação, que Zweig começou em 1931, retomou em 1934, quase transformou em filme a partir de um script de 1940 e hoje é considerado uma de suas obras essenciais. O romance se passa em 1926, e a protagonista, Christine Hoflehner, é uma jovem de vinte e oito anos que trabalha como uma funcionária dos correios em uma pequena vila austríaca. Após ter perdido pai e irmão para a guerra, passa a viver com a mãe, uma mulher enferma. Christine, que nunca vivera nada extraordinário nem jamais saíra da terra natal, experimenta um abatimento advindo de sua dura vida em uma rotina entediante, sentindo-se tão derrotada quanto o seu país em crise. Como o narrador aponta: a guerra havia terminado, mas a pobreza não. Um dia, porém, um telegrama chega da Suíça para mudar os rumos da jovem: quem o escreve é Claire, tia de Christine, que a convida para uma visita ao país vizinho, na pequena comuna de Pontresina, onde passaria as férias em um luxuoso

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“Êxtase da transformação não é apenas um romance envolvente: é uma poderosa narrativa histórica que retrata com detalhes o impacto social da Primeira Guerra, o cenário de miséria que assolou incontáveis famílias e o contraste com o mundo da alta burguesia.” hotel. Claire – que na verdade é Klara – havia emigrado para a América muitos anos antes, paga pela família de um empresário vienense após um escândalo que poderia arruinar reputações. Em Nova York, casou-se com um rico comerciante e agora estava de volta à Europa para oferecer à filha de sua irmã uma experiência diferente da vida na província. Christine, dividida entre partir para o desconhecido e deixar a mãe longe de seus cuidados, prepara uma humilde bagagem e parte para os Alpes. Privilegiando as sensações e descobertas da protagonista, Zweig capta, na primeira metade do romance, o despertar de uma alma que até então vivia sem esperanças, letárgica e rendida pela pobreza. Claire, que enxerga em Christine uma certa inadequação para aquele ambiente, enche a sobrinha de presentes – vestidos caros, joias, cortes de cabelo – e a jovem, atônita, descobre em si uma mulher de beleza e charme irradiantes. Em sua nova e estimulante realidade no hotel, recebe a atenção de todos – especialmente dos homens, o que acaba gerando reações enciumadas. E é justamente

a partir desse ponto de tensão, em que mentiras podem trazer à tona grandes problemas, que o destino de Christine começa – mais uma vez – a se transformar. Na surpreendente segunda metade do romance, a história da protagonista, que até então lembra as mais doces fábulas, ganha contornos sombrios. Zweig, com uma notável destreza em revelar a complexidade psicológica de seus personagens, passa a dissecar os sentimentos mais amargos que o ser humano pode experimentar – aqueles que só acessamos depois de ter saboreado as mais doces sensações. Êxtase da transformação não é apenas um romance envolvente: é uma poderosa narrativa histórica que retrata com detalhes o impacto social da Primeira Guerra, o cenário de miséria que assolou incontáveis famílias e o contraste com o mundo da alta burguesia. Ao mesmo tempo, é preciso em explorar as nuances e subjetividades do universo íntimo maculado por esses processos exteriores – e que resultam em depressão, ansiedade, sentimentos de exclusão e não-pertencimento –, conferindo ao livro uma notável camada de complexidade psicológica.

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O autor,

a obra e o mundo

no entre

-guerra s

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Ecos da leitura


Ecos da leitura

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O

Império Austro-Húngaro, Terminada a Guerra, em 1918, o fundado em 1867, foi criado Império Austro-Húngaro se viu por uma das famílias nobiliárenfraquecido, não tendo, assim, quicas mais poderosas da hisforças para evitar uma série de tória da Europa: os Habsburgo. reivindicações de autonomia Unindo uma série de grupos e independência de países que étnicos, entre eles, tchecos, esfaziam parte do Império, tenlovenos, húngaros, romenos, do chegado ao seu fim. Cria-se, croatas e bósnios, o então, a República sistema monárquico Austríaca, de caráÁustria dual foi uma forte poter parlamentaristência europeia forta, que sofreu uma e o pósmada por mais de 50 série de crises ecomilhões de habitannômicas devido à -primeira tes. No entanto, desde desvalorização da guerra o seu início, devido ao sua moeda. Assim confronto de interescomo na Alemases multiétnicos dentro do país, nha e na Itália, a fome, a escasa tensão no Império Austrosez de carvão, a alta inflação e -Húngaro sempre se manteve o desemprego do período pósviva. A Primeira Guerra eclode -guerra instauraram um amprincipalmente quando o arbiente de inquietação social e quiduque Francisco Ferdinando dificuldade para a consolidação e sua esposa, Sofia, são assasde um novo regime político. É sinados por um membro de um nesse contexto de desesperança grupo terrorista pan-eslavista geral no país que Zweig retrata chamado Unificação ou Morte. em seu romance.

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Ecos da leitura


arte na primeira metade do

século XX: Zweig e as vanguardas

A

primeira metade do século XX viu nascer uma série de grupos artísticos de vanguarda com ideais parecidos. Futurismo e Cubismo modificaram a arte pictórica ao distanciarem-se do princípio básico da pintura: imitação da realidade. O Dadaísmo, surgido em tom anti-bélico durante a Primeira Guerra Mundial, buscou se afastar de todos princípios de pensamento ocidental, criando obras literárias e plásticas ilógicas, antirracionais. Na mesma época, os abstracionistas surgiam rompendo com a figuração. Já o Surrealismo insere a ideia psicanalítica de inconsciente à escultura, cinema, literatura, fotografia e pintura a partir de uma técnica denominada automatismo psíquico, que transmitia imagens criadas em processos mentais distanciados de uma lógica racional.

consciência. Na Argentina, grupos de vanguarda surgem na Literatura encabeçados por Jorge Luis Borges e Macedônio Fernandez; no Brasil, surgia o Modernismo artístico na famosa Semana de Arte Moderna em 1922. Stefan Zweig, por sua vez, não era especialmente ligado a um único movimento literário. Embora seu estilo de escrita não apresentasse grandes inovações estéticas, muitos críticos chamavam a atenção para a influência das teorias psicanalíticas de Freud em seus textos. Ao contrário dos surrealistas (que salientavam com veemência os traços do inconsciente) e dos neo-romancistas (que exploravam perspectivas humanistas como Zweig, mas com foco em questões metafísicas), porém, o escritor estava mais interessado no lado cientificista e objetivo da psicologia em seus textos.

Na literatura, em 1915, Kafka publica A metarmofose, obra que seria um marco literário por criar os caminhos do que se chamou mais tarde de Literatura Fantástica. Em 1922, James Joyce publica Ulisses, obra fundamental para o século XX devido ao grau de inventividade narrativa e de linguagem. Virginia Wolff destacava-se na literatura inglesa com suas temáticas feministas, além de uma complexidade narrativa marcada pelos fluxos de

e sua Fernando Francisco ntes do fia pouco a esposa So que do arquidu to a in s s a s as

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Literatura Austríaca para além de Zweig no início do século XX

Joseph Roth (1894-1939), jornalista, romancista e amigo íntimo de Zweig, chegou a lhe escrever uma carta em 1933, pouco depois de Hitler subir ao poder:

Rainer Maria Rilke (1875-1926) poeta, autor de Cartas a um jovem poeta (1929). Arthur Schnitzler (1862-1931), médico, poeta, dramaturgo e romancista, autor de Breve romance de sonho (1926). Veza Canetti (1897-1963) romancista, autora de As tartarugas (1939).

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“Você já deve ter percebido que estamos caminhando para grandes catástrofes. Além do privado - nossa existência literária e financeira é destruída – tudo leva a uma nova guerra. Não vou apostar um centavo em nossas vidas. Eles conseguiram estabelecer um reino de barbárie. Não se engane. O inferno reina.”


Karl Kraus (1874-1936), jornalista e escritor famoso por suas sátiras, chamado por Zweig de “o mestre do ridículo venenoso”, autor de Os últimos dias da humanidade (1918).

O

grande hotel em que Chris- anos. Desde a sua inauguração, é tine passa os dias mais má- considerado um espaço de luxo gicos da sua vida foi baseado em (hoje é categorizado como 5 esum hotel que realmente existe – trelas) e, apesar das suas inúe Zweig teve a oportumeras reconstruções, nidade de conhecê-lo mantém intactas diO em 1918. Localizado versas áreas internas na pequena Pontresie externas desde sua grande na, na Suíça – assim criação, preservando a hotel como acontece no roestética da Belle Épomance –, o Grand Hoque. Em 2014, foi essuíço tel Kronenhof foi funcolhido como o melhor dando em meados do hotel do mundo pelo século XIX pela família Gredigs, TripAdvisor's annual Travellers' dona do espaço por cerca de 140 Choice Awards.

Ecos da leitura

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Zweig e cinema: inspirações e influências Com uma prosa extremamente

visual, rica em detalhes tanto de cenários como psicológicos, a obra de Stefan Zweig é um prato cheio também para os cineastas. E não é apenas a construção das cenas: a maioria de suas tramas parecem ter sido feitas especialmente para o cinema. Em sua autobiografia, Zweig afirma: “[...] O tempo fornece as imagens, eu apenas acrescento as palavras”. Não é de se espantar, portanto, que mais de 60 filmes baseados em livros do autor tenham sido lançados. Dos anos 1920 até hoje, a obra de Zweig fascina por seus temas atemporais e renova-se esteticamente através das criações de outros artistas. O grande Hotel Budapeste (2013), longa vencedor de quatro Oscar dirigido pelo americano Wes Anderson, é um dos exemplos mais recentes

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e bem-sucedidos dessa lista. Em entrevistas, Anderson revelou que a atmosfera visual do filme foi fortemente inspirada no hotel suíço de Éxtase da transformação e também no romance Coração impaciente. Além disso, outros três personagens do filme de Anderson (O Autor, sua versão ficcionalizada mais jovem e o protagonista Gustave H.) foram baseados em facetas da personalidade de Zweig. Há ainda, outro longa-metragem que se inspirou no livro deste mês: O ano roubado (1951), de Wilfrid Frass – este basicamente uma adaptação do romance. A atriz sueca Ingrid Bergman deu vida a personagens de dois dos contos mais populares de Zweig. O medo (1954), dirigido pelo italiano Roberto Rossellini, baseou-se na narrativa de 1920 e conta a história de uma mulher adúltera que é víti-


ma de chantagem. Bergman também é a estrela do filme criado para a televisão 24 horas na vida de uma mulher (1961) – adaptação do conto de 1927 que recebeu cinco releituras cinematográficas até hoje. E não foi só com suas prosas ficcionais que Zweig influenciou o universo do cinema. A biografia Maria Antonieta (1932) recebeu uma aclamada adaptação em 1938, dirigida pelo americano W. S. Van Dyke quando Zweig estava vivo. Já Maria Stuart (1934) inspirou o diretor suíço Thomas Imbach, que em 2013 lançou o filme Mary, rainha da Escócia. Já a novela A partida de xadrez (1942), uma das últimas e mais impressionantes criações de Zweig, foi para as telas sob o títulos de Brainwashed (1960), de Gerd Oswald.

A história da vida íntima de Zweig foi contada na perspectiva da diretora Maria Schrader em Stefan Zweig – Adeus, Europa (2016). O filme é voltado para o período em que o escritor foge do nazismo e chega à América, passando por Buenos Aires, Nova York, Rio de Janeiro, Bahia e Petrópolis. E, por falar em Brasil, dois filmes relacionados à vida e à obra do autor foram produzidos por cineastas daqui. O drama-documentário Lost Zweig (2003), apesar de filmado em inglês, foi inteiramente produzido no Brasil e teve, além das participações de atores brasileiros e internacionais, a direção de Sylvio Back. Já A coleção invisível (2012), do diretor Bernard Attal, levou para a região do cacau, no sul da Bahia, o conto homônimo publicado em 1925 que originalmente retrata a Alemanha devastada pela crise econômica nos anos 1920.

Foto do hotel Budapeste, como foi retrado no filme de Wes Anderson (2014). Ecos da leitura

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A GOVERNANTA, de Stefan Zweig A

s crianças estão sós no seu quarto. A luz está apagada. Entre as duas está escuro, apenas das camas parte uma leve claridade. Ambas respiram silenciosamente, poder-se-ia acreditar que dormem. — Você! — diz uma voz. É a menina de 12 anos, que fala baixinho quase com medo. — Que é? — pergunta da outra cama a irmã. Esta tem apenas um ano a mais do que a outra. — Ainda está acordada. Que bom. Eu... queria contar uma coisa... A outra não responde. Há apenas um ruído na cama. A irmã já se sentou e, esperando, olha em direção ao outro leito, seus olhos cintilam. — Sabe... queria dizer... Mas diga primeiro, você nos últimos dias não notou nada de estranho em nossa governanta? A outra hesita e reflete. — Sim — responde. — Mas não sei bem o que é. Ela já não é tão severa. Há dois dias não faço as lições e ela não me disse nada, e, além disso, está assim não sei como. Creio que não se importa mais conosco, senta-se sempre longe de nós e não brinca como antes. — Creio que está muito triste e não quer demonstrar. Também já não toca piano. Faz-se de novo silêncio. A mais velha lembra: — Você queria contar uma coisa. — Sim, mas você não deve contá-la a ninguém, absolutamente a ninguém, nem à mamãe e nem à sua amiga. — Não, não! — Ela já está impaciente. — Que é, então? — Bem... há pouco, quando nos deitamos, lembrei-me de repente de que não dera boa-noite à governanta. Já tinha tirado os sapatos, mas fui até o quarto dela, sabe, bem devagar para fazer-lhe uma surpresa. Com todo cuidado abri a porta. A princípio julguei que ela não estivesse no quarto. Ele estava iluminado, mas não a vi. Então, subitamente, tomando um grande susto, ouço alguém chorar e vejo que ela está vestida, deitada na cama e com a cabeça enterrada no travesseiro. Soluçava tanto que eu estranhei. Porém ela não me notou e bem devagar fechei outra vez a porta. Eu tremia tanto que tive de ficar parada um instante. Ouvi mais uma vez nitidamente, através da

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porta, esse soluçar e desci rapidamente a escada. Ambas se calam, depois uma delas diz bem baixinho: — Pobre governanta! Estas palavras vibram no quarto como um som perdido e obscuro e de novo reina silêncio. — Eu queria saber por que ela chora — diz a mais moça. — Ela não brigou com ninguém nos últimos dias, a mamãe também a deixou em paz com os seus eternos tormentos e nós certamente não fizemos nada a ela. Por que então chorava assim? — Eu já imagino — diz a mais velha. — Por quê, por quê? A mais velha hesita. Afinal diz: — Creio que ela está apaixonada. A mais moça exclama apenas: — Apaixonada? Apaixonada por quem? — Não notou? É pelo Oto! — Não! — E ele não está apaixonado por ela? Por que então ele, que já mora e estuda há três anos na nossa casa e nunca nos acompanhou, há alguns meses o faz diariamente? Ele fazia agrados a mim ou a você antes de a governanta vir aqui para casa? Agora anda o dia inteiro perto de nós. Sempre o encontramos casualmente, no Jardim Popular ou no Parque da Cidade ou no Prater, aonde sempre íamos com a governanta. Isso nunca te chamou a atenção? Com grande espanto, a pequena gagueja: — Sim... sim, naturalmente eu notei. Apenas sempre pensei que fosse... Sua voz muda de timbre e a menina cala-se. — A princípio também julguei que fosse isto, nós somos sempre tão tolas. Porém já notei que somos apenas um pretexto. Ambas estão atormentadas. A conversa parece terminada. Estão entregues aos pensamentos ou já aos sonhos. A pequena repete então no escuro: — Mas por que, então, ela chora? Ele gosta dela. E sempre pensei que deve ser agradável estar apaixonada. — Não sei — disse a mais velha, pensativa. — Também julguei que fosse muito agradável. E mais uma vez, em voz baixa e em tom de lástima partem de lábios já sonolentos as palavras: “pobre governanta”. Reina de novo silêncio no quarto.

TEM NA

LOJA!

Trecho retirado do conto "A governanta", do livro 24 horas da vida de uma mulher e outras novelas, de Stefan Zweig. Tradução: Odilon Gallotti e Sylvio Aranha de Moura Ecos da leitura

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LIVROS PARA CELEBRAR O MÊS DA CONSCIÊNCIA NEGRA O mês de novembro é um mês para celebrar, refletir e, acima de tudo, combater o preconceito. Muito amados pelo clube, os livros abaixo – enviados pela TAG entre 2017 e 2019 – exaltam, cada um ao seu estilo, a cultura negra. Muito melhor do que falarmos sobre esses livros e autores mais necessários do que nunca, deixamos os relatos por conta dos associados:

O olho mais azul, de Toni Morrison (enviado em março de 2019)

As alegrias da maternidade, de Buchi Emecheta (enviado em outubro de 2017)

Indicação: Djamila Ribeiro

Indicação: Chimamanda Adichie

“Uma leitura devastadora, indigesta, desconfortável. E, por isso mesmo, imprescindível. A boa literatura faz isso: te arranca da sua quentinha zona de conforto, revira seu mundo te fazendo pensar em outros mundos.”

“Aquela sensação de que o sofrimento do outro é parte sua. Fascinado pela fluidez e fortaleza desta obra da literatura nigeriana.”

Fanne Oliveira

Adilton da Cruz Santana

“Uma outra época, uma outra cultura: tudo isso acaba nos chocando. Levamos alguns socos nos estômago pela condição do ser humano em geral, mas principalmente da mulher.” Liliane Araújo

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Espaço do associado


The underground railroad – Os caminhos para a liberdade, de Colson Whitehead (enviado em abril de 2018)

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou (enviado em setembro de 2018) Indicação: Conceição Evaristo

Indicação: Cora Rónai

“Essa história é triste, mas faz parte de nossa história. Ainda hoje sofremos com os resquícios dessa época.”

“Maravilhoso! Cada parágrafo é carregado de sentimentos genuinamente verdadeiros, sem contar o tapa na cara que muitos deles dão na(s) intolerância(s).”

Gessica Maria Noleto

Gabriela Silvério Pagliuca

“Essa obra deveria ser leitura obrigatória em todas as escolas.” Raimundo Gomes dos Santos

O livro O mundo se despedaça, enviado em outubro, já está no app, aberto para discussão. Acesse a Estante e deixe o seu comentário por lá!

Espaço do associado

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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em Literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar a obra de forma mais complexa.

Spoiler! Gerson Roberto Neumann é professor associado na UFRGS desde 2011, onde se dedica aos estudos de literatura e de língua alemã, assim como de tradução.

Os absurdos dos dois mundos Este romance de Stefan Zweig

traz em si um tom diferente, se comparado com as outras obras do autor. É possível perceber uma divisão da obra em duas partes: a vida de Christine no hotel com seus tios e a vida depois da volta forçada a seu vilarejo. Esse tom diferente possivelmente explique o fato de a obra não ter sido concluída. Em Êxtase

da Transformação, especialmente na primeira parte, pode-se perceber uma clara crítica social. Além disso, estudos críticos apontam características de conto de fadas na primeira parte do livro, quando Christine está na Suíça: a pobre menina deslumbrada, a velha mãe doente, os parentes ricos e a rápida mudança social. Como se pode ler no livro:

“É incontestável que Christine Von Boolen parece diferente, mais jovem, mais saudável do que sua irmã cinderela, a assistente postal Hoflehner.”

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Leia depois de ler


Ou seja, o próprio autor apresenta essa perspectiva. Outro aspecto relevante que o autor oferece é a crítica ao desperdício e à ambiguidade da sociedade rica, com o que Christine se ilude e acaba por se trair e ser traída. No início, Christine reflete, espantada, sobre tudo que se pode ter, mas percebe apenas superficialmente aquele mundo que esconde tantas facetas negativas. Beleza produzida a partir de possibilidades financeiras e a origem (ter um sobrenome reconhecido) fazem a pessoa. As aparências importam.

com quem ele comete suicídio no Brasil. Com esse contraste, Zweig consegue destacar os absurdos dos dois mundos e torná-los dolorosamente claros para o leitor. Ele deixa claro que não há explicação para a pobreza de uns ou a riqueza de outros, porque Ferdinand é inteligente e Christine é bonita – ambas características centrais específicas de gênero que são frequentemente tratadas como monopólio dos ricos.

Merece destaque ainda o título no original: Rausch der “Zweig deixa Verwandlung (Vício da transformação – o claro que não uso de drogas deixa as A segunda parte, por sua vez, é marcada há explicação pessoas em um estado predominantemende intoxicação, o que te pelo caráter parte para a pobreza quer dizer Rausch). No psicológico, parte autítulo em português de uns ou tobiográfico. Também usou-se o substantivo a riqueza aspectos políticos es“êxtase”, que também tão mais presentes. perfez satisfatoriade outros.” Dessa forma, o planemente o estado em que jado roubo pode ser lido como um Christine se encontra em consesinal de liberdade para os pobres quência do seu contato com a expepersonagens, Christine e Ferdi- riência de viver em meio à riqueza. nand, e como uma revolta moral Ela provou do estilo de vida que ela contra uma sociedade corrupta até então não conhecia. No entanto, após a Primeira Guerra Mundial, uma vez confrontada com um estilo especialmente contra instituições, de vida ou hábito que abre perspecnão contra pessoas. Essa revolta por tivas completamente novas, tornaparte dos dois personagens derro- -se quase impossível voltar ao antados também pode ser relaciona- tigo. Liberdade, espaço e leveza são da à vida do escritor Stefan Zweig, como um vício (Rausch). Mas não tendo em vista sua relação com negativo. Pelo contrário, eles fazem sua ex-secretária Lotte Altmann, parte de ser humano.

Leia depois de ler

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A curadora de dezembro

Letras Libres

Mariana Enriquez

“Foi o primeiro romance sobre uma família diferente que eu li; é tão bem escrito que a minha edição está sublinhada em cada página.” A curadora de dezembro é a escritora e jornalista argentina Mariana Enriquez. Nascida em Lanús, no subúrbio de Buenos Aires, Enriquez é conhecida por escrever histórias de terror e ficção científica. Seu livro de estreia, Bajar es lo peor, foi publicado em 1995, quando tinha apenas 22 anos, e logo a transformou em um sucesso no país. Sua publicação mais recente é Este é o mar, lançado no Brasil em 2019. O livro que Enriquez indica ao clube leva o leitor a uma viagem pelos Estados Unidos, passando pelos anos 60 até o fim dos anos 80. Narrado a quatro vozes, este romance centraliza suas ações na história de um peculiar triângulo amoroso e aborda questões como homossexualidade, relações familiares e as diversas facetas do amor. Seu enredo fascinante foi adaptado para o cinema nos anos 2000 e deu ainda mais evidência a seu criador, um popular americano vencedor do prêmio Pulitzer.

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“É bem difícil descobrir o que gera a felicidade; pobreza e riqueza falharam nisso.” – Frank McKinney Hubbard


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