Out2019 "O mundo se despedaça" - Curadoria

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O mundo se despedaรงa


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Ao Leitor “O pai da literatura africana moderna”: esta é a alcunha

que define Chinua Achebe, o autor do livro deste mês. Chinua é um dos escritores mais importantes do século XX e um mentor para uma geração inteira que trabalha com literatura africana. Publicada em 1958, a obra indicada pelo escritor brasileiro Alberto Mussa tem seu título (no original: Things fall apart) retirado de um trecho do poema de W.B. Yeats (1865-1939), que retratou a sua preocupação com o futuro incerto da humanidade pós-Primeira Guerra Mundial. Considerado a obra-prima de Chinua, O mundo se despedaça vendeu mais de 10 milhões de cópias pelo mundo, tendo sido traduzido para mais de 45 idiomas. A revista Time o incluiu na sua lista de “100 melhores romances” e Nelson Mandela o descreveu como “um escritor capaz de derrubar prisões e muros”. A obra do mês nos apresenta a Okonkwo, um líder nigeriano da tribo Igbo convicto que, para alcançar o seu ideal de herói, emoções devem ser reprimidas e as mulheres, submissas. A jornada de Okonkwo será interrompida pela chegada do homem branco, balançando as bases de uma sociedade guiada por rituais, superstições e deuses múltiplos – o colonizador coloca em xeque uma cultura inteira: exatamente o que Chinua viria a questionar como escritor. Alguns associados mais antigos vão lembrar que na obra escolhida por Chimamanda em 2017, As alegrias da maternidade, de Buchi Emecheta, o tema envolvendo mulheres nigerianas oprimidas por um sistema violento já havia sido colocado em pauta. Na obra de Chinua, temos ainda uma parábola sobre um homem orgulhoso que assiste à ruína do seu povo. Peça-chave para entender a Nigéria dos dias de hoje, O mundo se despedaça é um livro fundamental e que merece ser lido. Boa leitura!


Sumário

A indicação do mês

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O curador Alberto Mussa Entrevista com Alberto Mussa O livro indicado O mundo se despedaça


Ecos da leitura

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Universo Igbo: fatos e curiosidades Remontando o mundo 7 perguntas para Edson Ikê

Espaço do associado

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Papo de livro: o Podcast da TAG

Leia depois de ler

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Chinua Achebe: a morte da cultura local

A próxima indicação

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O livro de novembro


Paula Johas


O curador

Alberto Mussa Alberto Mussa, curador de outubro da TAG, é o criador de

uma das prosas mais originais da literatura nacional contemporânea. Seus livros, que por questões comerciais preenchem as prateleiras dedicadas a romances, contos, ensaios e não-ficção, são melhor classificados como híbridos, e têm na abordagem das mitologias seu principal ponto de interseção. Aos 58 anos, Mussa também é tradutor e já conquistou prêmios literários como o Casa de Las Américas e o Machado de Assis. Sua obra já foi publicada em 17 países e recebeu traduções para mais de 15 idiomas. Apaixonado por literatura e história desde muito jovem, Mussa encontrou nas combinações entre as duas áreas sua grande obsessão. Mitologias de tempos e lugares diversos da história da humanidade já foram investigados nas obras do escritor, tais como gregas, bíblicas, árabes clássicas e pré-islâmicas, mas Mussa guarda um carinho especial pelas mitologias ameríndia e africana – culturas que também se inserem no universo afetivo do escritor por questões geográficas. Nascido em uma família rica do Rio de Janeiro, Mussa passou boa parte da juventude frequentando as zonas mais populares da cidade, onde a essência da cultura carioca florescia. Jogou capoeira, apostou no bicho, cantou, compôs e participou de escolas de samba, tocou em terreiros de umbanda e foi a candomblés. Dessas experiências nasceu não só uma grande conexão e identificação com a cidade maravilhosa, mas também com a vida nas ruas, nos subúrbios e nos estádios de futebol, onde as crenças e tradições são mantidas vivas pelo povo.

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“A mitologia é para mim o gênero por excelência, o mais essencialmente literário, o mais perfeito, porque reúne o mínimo de expressão com o máximo de conteúdo.” Ao mesmo tempo em que se fascina pela cultura popular, Mussa, enquanto escritor, é cerebral e erudito. Tem por hábito antecipar o que vai escrever com esquemas, roteiros, premissas e cenários. Até mesmo o título definitivo precisa nascer antes da primeira página. Talvez por isso durante a juventude tenha acreditado, antes de qualquer ímpeto literário, que estudar Matemática seria um caminho possível. Porém, frustrado, ele logo desistiu do curso, tentou seguir a carreira como músico e só quatro anos mais tarde voltou ao ambiente acadêmico, dessa vez para estudar Letras. Nesse momento, uma certa vocação para a literatura se anunciava, embora houvesse no mundo universitário da época uma grande pressão vanguardista. “Vanguardista no sentido da forma, não do conteúdo”, explicou em entrevista ao jornal Cândi-

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do, do Paraná. “Só valia alguma coisa quem criasse ‘linguagens’. Quem fizesse o mesmo que Guimarães Rosa. Isso nunca foi o meu talento”. Felizmente, a situação se transformou no momento em que ele descobriu a literatura argentina: “Quando li A invenção de Morel, do Bioy Casares, pensei: se um dia eu escrever um livro, quero que seja assim – cerebral, geométrico, clássico na forma; e original, no conteúdo. Quem assinava a apresentação desse romance era um tal de Jorge Luís Borges. Fui a ele, depois. E tudo ficou claro, para mim: Borges escrevia no espanhol culto, no espanhol padrão dos eruditos. Não criava linguagens, criava conteúdos. Foi quando ganhei coragem, e confiança, e comecei a escrever o Elegbara.” Obra de estreia de Mussa, Elegbara (1997) é um livro de narrativas curtas que, combinando história, ficção e mitologia, narra o processo de estruturação da identidade da sociedade brasileira através do encontro de suas variadas culturas. Este livro e o romance O trono da rainha Jinga (1999) – trama de mistério cujo cenário é o Rio de Janeiro do século XVII – compõem o que Mussa classificou como sua primeira fase literária, em que buscou recontar acontecimentos da história do Brasil na forma de mitos. A influência e a paixão pela obra de Borges ficam mais evidentes nos livros O enigma de Qaf (2004), O mo-


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vimento pendular (2006) – no qual tenta conceber uma teoria universal sobre o triângulo amoroso – e Meu destino é ser onça (2011). Nessa que Mussa chamou de sua segunda fase, sobre a qual humildemente afirma deixar para trás uma linguagem mais contida e insegura, a abordagem da mitologia já não se limita ao universo brasileiro e o jogo de transformar passagens históricas em narrativas originais se torna um elemento fundamental. O terceiro momento do autor é uma espécie de combinação das duas primeiras fases, no qual resgata a temática mitológica do Rio de Janeiro popular dos séculos passados presente em seus dois primeiros livros, dando fechamento ao chamado "Compêndio Mítico do Rio de Janeiro", conjunto de cinco romances policiais ambientados em diferentes séculos

da história carioca nos quais explora o encontro das culturas ameríndias, africanas e brasileiras na composição do imaginário e do panorama mitológico da cidade. Não é por acaso, portanto, que Mussa tenha se apaixonado pela leitura de O mundo se despedaça, romance do nigeriano Chinua Achebe que ele indica para os associados da TAG. Reunindo ancestralidade, tradições e uma rara potência narrativa, essa obra foi a responsável por fazer o escritor mergulhar de vez na mitologia africana. Entre as características da obra que mais o chamaram atenção, a honestidade de uma voz africana interna e genuína da obra se destaca: “Mesmo em certos discursos engajados, notamos a imagem de uma África paradisíaca, onde há apenas vítimas, nunca vilões”.

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Entrevista com

Alberto Mussa TAG – Sabemos que você é um grande leitor de livros brasileiros. Na sua opinião, qual é o panorama atual do meio literário nacional? Alberto Mussa – Creio que volta a ganhar força a valorização da narrativa, da trama, do enredo. Um romance em que os personagens agem e cuja ação provoca ou sugere reflexão e emoções. Muito diferente de uma linhagem que andou muito em voga, a do narrador em primeira pessoa, homem de classe média em crise existencial, que discorre sobre si mesmo, sendo ele próprio quem define os sentimentos e as reflexões do leitor.

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Os seus livros têm uma forte ligação com o passado do país. Como você enxerga a relação entre a História e a construção de uma identidade nacional? Mussa – Ser é lembrar. Identidade é memória. Isso vale tanto no plano individual quando no social. Um dos problemas brasileiros mais graves é justamente o ponto de vista europeu, que caracteriza as camadas mais bem-sucedidas da população. Elas pensam o país ainda como uma colônia. Outro dia, ao comprar um Atlas Histórico do Brasil, me revoltei quando vi que o primeiro mapa do livro era


o de Portugal, o mapa da formação do estado português! É assim que muitos ainda enxergam a história brasileira. Em O mundo se despedaça, a crença do chi, ou deus pessoal, desempenha um papel importante, definidor da sorte de cada indivíduo da comunidade Igbo. A sorte (ou a falta dela) também é elemento recorrente nas obras do seu "Compêndio mítico do Rio de Janeiro", aparecendo como traço da mitologia local. Como você enxerga essas interseções? Mussa – Pergunta muito interessante, porque nunca tinha feito essa associação. Talvez o romance de Achebe, e outros mitos africanos, tenha se fixado no meu inconsciente. Na verdade, escritores sempre escrevem sobre o que já leram. Quando você leu O mundo se despedaça pela primeira vez? Quais foram suas impressões? Mussa – Foi em 1984, quando descobri a antiga coleção "Autores Africanos", da Editora Ática, que era vendida no Centro Acadêmico da Faculdade de Letras da UFRJ. Era o meu primeiro ano no curso de Letras e eu ainda estava mais acostumado a ler os grandes clássicos da biblioteca do meu pai. O romance do Achebe foi de um impacto enorme, criou um novo mundo no meu imaginário e me fez mergulhar nas mitologias da África.

De que forma a divulgação de obras como O mundo se despedaça pode contribuir para a diversificação de narrativas e o combate à predominância da visão eurocêntrica no nosso país? Mussa – Acho que a literatura africana em geral, e mais especificamente livros como os do Chinua Achebe, são importantes em dois sentidos: primeiro, porque inserem a África, a verdadeira África, como espaço ficcional no imaginário dos leitores; segundo, porque destroem os estereótipos sobre essa África e os africanos. Mesmo em certos discursos engajados, notamos a imagem de uma África paradisíaca, na qual há apenas vítimas, nunca vilões. Apesar da obra contar a história da desintegração do povo Igbo pelas mãos dos colonizadores, Alberto da Costa e Silva diz, no prefácio: “A história não é boa nem má – parece dizer-nos Achebe. Nascemos dela, de seus sofrimentos e remorsos, de seus sonhos e pesadelos”. Como você entende essa afirmação? Mussa – É uma percepção não-moralizante, ou "amoral", da história, no sentido de que ela deve ser uma fonte de reflexão sobre a condição humana, e não um palco para julgamentos morais, para condenações e sentenças, ainda que isso faça parte do nosso impulso natural em relação a qualquer narrativa. Sempre tomamos partido. Mas precisamos ir além. Precisamos, na verdade,

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“Escritores sempre escrevem sobre o que já leram.” perceber que estamos sempre dos dois lados. Quais são seus projetos literários para o futuro? Há algum em andamento? Mussa – Estou terminando um ensaio sobre mitologia, mais especificamente sobre os mitos do roubo do fogo: A origem da espécie. Depois, quero escrever um romance que se passa no ambiente das escolas de samba e do jogo do bicho. Tenho também projetos de um romance sobre as bandeiras paulistas e outro sobre os piratas. O que você gostaria de dizer aos 30 mil associados que lerão esse livro pela primeira vez? Mussa – Que eles estão diante da rara oportunidade de adentrar um universo cultural muito diferente, universo esse que é retratado de dentro para fora por quem pertence a ele. A experiência literária consiste exatamente nisso: em nos fazer sair de nós mesmos para vivermos vidas que não são nem poderiam ser as nossas, e isso amplia a nossa compreensão sobre a natureza humana.

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ESTANTE LITERÁRIA O primeiro livro que li: Lembro dos que me marcaram muito: Os doze trabalhos de Hércules, do Monteiro Lobato; O gênio do crime, do João Carlos Marinho e Napoleão em Parada de Lucas, do Orígenes Lessa. O livro que estou lendo: O excelente Enterre seus mortos, da Ana Paula Maia. O livro que eu gostaria de ter escrito: Asfalto selvagem, do Nelson Rodrigues. O último livro que me fez chorar: De arrependimento, Finnegans Wake, do James Joyce; de emoção, O passo bandeira, do Oswaldo França Júnior. O último livro que me fez rir: Os tambores silenciosos, do Josué Guimarães, que também me fez chorar. O livro que eu não consegui terminar: Guerra e paz, do Tolstói, porque não cheguei ao fim; e Memórias póstumas de Brás Cubas, do Machado, porque sempre releio. O livro que eu dou de presente: Variam, em função da pessoa. O último foi The bleeding of the stone, do escritor líbio Ibrahim Al-Koni. O livro que mudou a minha vida: A invenção de Morel, do Bioy Casares.


SOBRE O MIMO O mimo de outubro homenageia o dia das crianças: um Trunfo Literário exclusivo ilustrado por Felipe Mascarenhas. Felipe compartilhou como foi o processo de criação do projeto: “Alcançar a essência de uma pessoa com um retrato é sempre desafiador. Nesse caso, foram 46 desafios além da dificuldade de criar uma unidade entre eles. Tentei captar o universo de cada autor por meio de traços mais soltos, uma paleta de cores reduzida e formas geométricas que, muitas vezes, se mesclam com suas imagens, representando suas obras e o imaginário nelas presente. Foi uma oportunidade incrível para descobrir – e criar! – tantos escritores maravilhosos.” As cartas correspondem a escritores pontuados em cinco categorias diferentes: vendas, prêmios, impacto social, personagens marcantes e livros publicados. As divisões mais concretas – vendas, prêmios e livros publicados – foram cautelosamente pesquisadas pela equipe da TAG. Impacto social e personagens marcantes, apesar de subjetivas, refletiram o critério de recepção de leitura dos títulos publicados. Para jogar, basta distribuir o baralho entre os participantes, pegar a primeira carta e avaliar com qual habilidade você pretende desafiar seu(s) adversário(s). O jogador que tiver o número mais alto na categoria selecionada fica com todas as cartas da rodada. Machado de Assis foi escolhido como super-trunfo por ter a média mais alta do baralho ao somar suas categorias, ou seja, ele não vence necessariamente as outras cartas. Caso você seja o(a) sortudo(a) que o tirou, jogue normalmente. O Trunfo Literário continua dessa forma até que um participante reúna todas as cartas, vencendo o jogo.


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O livro indicado

O mundo se despedaça de Chinua Achebe Quinto de seis fihos, Albert Chinualumogu Achebe nasceu

em 1930, no vilarejo de Ogidi, lado oriental de uma Nigéria colonizada pelo império britânico. Sua criação seria invariavelmente marcada por uma inescapável mistura de culturas contrastantes, mas o contexto da vida do menino reforçava essas condições de forma ainda mais peculiar. Àquela altura, famílias privilegiadas como a de Chinua eram educadas em inglês, e o cristianismo – difundido com entusiasmo pelo seu pai, um dos primeiros convertidos daquela região – começava a se alastrar pelo país. Tais circunstâncias não impediam o menino de permanecer avidamente interessado pela religião e cultura dos seus antepassados. Afinal, Chinua e sua família pertenciam à etnia Igbo, um dos maiores e mais tradicionais grupos étnicos da África. Havia, porém, um problema crucial. Por mais que se tentasse conciliar de maneira harmônica costumes do passado e do presente, a imposição de uma vida aos modos europeus na Nigéria – e na África como um todo – enfraquecia qualquer tentativa de valorização das ancestralidades. Nas instituições de ensino pe-

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“O primeiro romance em inglês que fala a partir do interior do personagem africano, ao invés de retratar o africano como exótico, como o homem branco o enxergaria.” – Wole Soyinka las quais passou, Achebe foi educado com uma visão unilateral sobre história, seus colonizadores e sobre si mesmo. Leu autores como Shakespeare, Dickens e Swift, além de diversos romances europeus sobre a África. “Eu não me via como um africano naqueles livros. Eu estava do lado dos homens brancos contra os selvagens. (...) O homem branco era bom, racional, inteligente e corajoso. Os selvagens que estavam contra ele eram sinistros e estúpidos, nunca caracterizados com algo superior à astúcia. Eu os odiava”, escreveria em seu livro The Education of a British-Protected Child (2009). Mas a maturidade foi chegando e, com ela, as máscaras e mentiras foram sendo expostas. Na então recém-criada Universidade de Ibadan, onde trocou o estudo de medicina pelo de artes liberais, Achebe testemunhou o renascimento de políticas de celebração cultural da África e da luta contra o colonialismo. Revoltou-se com a leitura de romances como Mister Johnson (1939), de Joyce Cary, e suas des-

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crições abertamente preconceituosas e ofensivas sobre personagens africanos. Chinua estava convencido: era seu dever contar o outro lado da história – o seu lado, aquele que por anos a fio fora contado de maneira tão rasa e desonesta pela concepção estrangeira. Inicialmente publicando ensaios e contos, Achebe experimentou e desenvolveu um estilo próprio de escrita, que combinava a influência do romance europeu com a tradição oral dos igbos. Do mesmo modo, boa parte de seus textos discutiam o conflito entre tradicionalismo e modernidade, história do cristianismo e das religiões africanas. Em 1954, conseguiu um emprego em uma importante rádio local na cidade de Lagos, quando, enquanto trabalhava na criação de scripts, começou a escrever seu primeiro romance. Quatro anos de aperfeiçoamento e diversos envios a editoras inglesas culminaram na publicação de O mundo se despedaça (1958), livro que permaneceu até a morte de Achebe como sua criação mais relevante.


Ambientado durante o fim da Nigéria pré-colonial (ou seja, em um lugar que ainda não era a Nigéria), o romance conta a história de Okonkwo, um guerreiro igbo reconhecido nas nove aldeias do clã Umuófia. Homem de temperamento violento, Okonkwo é assombrado pela lembrança de seu falecido pai, Unoka, um senhor julgado por ele como preguiçoso, covarde e pobre, que morreu miserável e sem respeito na aldeia. O passado do progenitor o envergonha, e Okonkwo deseja mais do que tudo ser o exato oposto do que Unoka fora. Por isso, sempre que possível demonstra sua brutalidade e virilidade, além de se dedicar com afinco aos negócios, o que lhe permitiu casar com três mulheres e ter grande respaldo da sua comunidade. Mais do que medo dos impiedosos deuses ou da má sorte de seu chi – espécie de espírito guardião individual –, Okonkwo teme a fraqueza e o fracasso. A narrativa é divida em três partes. Na primeira, somos apresentados ao passado de Okonkwo e à vida na sua aldeia, com descrições detalhadas que colocam o leitor no íntimo da cultura igbo em seu estado puro, imaculada pela intervenção europeia. Conhecemos sua relação com a terra e o plantio, suas estruturas familiares, seus deuses, provérbios, festas tradicionais. Somos familiarizados até mesmo com suas maneiras de declarar guerras com outros clãs ou como evitá-las – tradições que contrastam com a lógica oci-

dental e que decidem o destino, entre tantos outros, do jovem Ikemefuna, que por causa de um acordo é levado a Umuófia e obrigado a morar nas terras de Okonkwo. A segunda e terceira partes, por sua vez, introduzem a chegada de missionários europeus a Umuófia. A partir desse encontro, em que religião e cultura desconhecidas entram em choque, as tradições igbo começam a erodir. Conhecida hoje como uma das obras fundamentais da literatura africana, com cerca de 20 milhões de cópias vendidas e traduzida para mais de 50 línguas, O mundo se despedaça compreende qualidades e suscita interpretações que intrigam leitores e críticos até hoje, mais de 60 anos depois da sua publicação. Uma das características frequentemente mencionadas é a descrição vívida e genuína da sociedade Igbo no final do século XIX. No entanto, ressaltar apenas as qualidades e contribuições antropológicas seria relevar sua qualidade literária. Achebe transfere seu enorme talento – e sua maior herança – enquanto contador de histórias para uma voz narrativa onisciente e até certo ponto distanciada, porém curiosamente próxima dos habitantes da aldeia, como se fosse familiarizada com sua história e tradição. Com esses poderes distintos, é capaz de transmitir tanto conhecimentos sobre o povo igbo como transitar entre o ponto de vista da comunidade e o de cada indivíduo, variando entre o micro e o macro com ritmo e fluidez.

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Okokwo, protagonista bruto e sem escrúpulos, revela-se um personagem tridimensional. Seus pensamentos, ações e sentimentos, assim como as decisões tomadas pelo seu povo, denotam uma narrativa que, se fala do passado com certa nostalgia, também revela suas contradições e não recorre ao maniqueísmo. Ou seja, embora retrate a chegada do colonizador como um processo brutal e opressivo, a obra não trata nenhum personagem como essencialmente bom ou mau. O clã de Umuófia, com suas hipocrisias, métodos excludentes, patriarcais e elitistas, também parece se dissolver internamente, o que apenas facilita os violentos objetivos do homem branco em suas terras. Com críticas favoráveis surgindo dos mais respeitados periódicos, O mundo se despedaça foi um sucesso imediato na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na Nigéria, seu processo de popularização foi lento, já que poucos nativos dominavam o inglês com fluência e o livro era caro para os padrões locais. Isso mudou depois da independência do país, em 1960, quando edições mais baratas foram disponibilizadas e a crítica literária nacional ganhou corpo. Em 1964, o romance foi incluído nas leituras obrigatórias de diversas escolas do país – até então, todas as obras indicadas eram escritas por europeus ou americanos. Agora na condição de porta-voz de uma nação perante o mundo,

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Achebe deu continuidade à sua obra com três romances na década de 1960, todas abordando o conflito entre modos tradicionais de vida e as perspectivas novas e coloniais. O primeiro, A paz dura pouco (1960), conta a história de Obi, neto do personagem Okonkwo, tratando de contexto e questões mais contemporâneas e demonstrando sua habilidade em expor a vida na Nigéria moderna. Em A flecha de Deus (1964), o autor constrói a narrativa por meio da alternância entre as visões inglesa e interna de uma aldeia Igbo. O escritor também publicou a sátira A man of the people (1966), obra nunca traduzida para o português, que, voltada para questões políticas e morais internas do continente africano, acabou por antecipar os golpes de estado da Nigéria em 1966 que culminaram na proclamação da República do Biafra e na consequente Guerra do Biafra, que durou trinta meses e matou centenas de milhares de cidadãos igbo. Apoiador da independência biafrense, o escritor e sua família precisaram fugir por diversas vezes durante o conflito, e Achebe chegou a viajar para os Estados Unidos para divulgar internacionalmente os grandes dramas de seu povo. As consequências da guerra deixaram marcas profundas na obra do escritor, que, abalado, parou de escrever romances por cerca de vinte anos. Nesse ínterim, dedicou-se ao magistério em universidades americanas e nigerianas e publicou elo-


Jerry Bauer

giados contos e compilações de poesia – o formato mais curto e intenso desses gêneros eram compatíveis, segundo o escritor, com seu estado de espírito à época. Somente em 1987 voltaria ao formato que o consagrou, com Anthills of the Savannah. Em 1990, Achebe sofreu um grave acidente de carro que o deixou irreversivelmente paraplégico. Sua motivação para escrever e lecionar, no entanto, manteve-se intacta, e ele foi professor por mais de quinze anos na Bard College, no estado de Nova York. Receberia o prêmio mais importante da carreira, o Man Booker International Prize, pelo

conjunto da sua obra, em 2007. A essa altura, nem mesmo um Prêmio Nobel seria necessário para garantir o lugar de Achebe, falecido em 2013, aos 82 anos, como um dos autores mais representativos do século XX. Da sua grandiosa estreia com O mundo se despedaça até sua morte, o escritor tomou para si a missão de apresentar ao mundo a perspectiva do seu povo. E ainda criou, simultaneamente, uma linguagem inédita e autêntica, um híbrido entre a tradição anglo-saxã e a oralidade nigeriana que pavimentou o caminho para incontáveis escritores africanos de língua inglesa que surgiriam depois.

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o s r e v i un

igbo: fatos e curiosidades

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Ecos da leitura


O mundo se despedaça é um marco da história da literatura porque apresenta pela primeira vez ao grande público a perspectiva de um povo, suas tradições e modo de vida. Das grandes cerimônias em comunidade aos provérbios que ilustram as sutilezas do pensamento igbo, a narrativa de Chinua Achebe oferece ao leitor um panorama bastante rico e diversificado de uma cultura pouco conhecida no Ocidente. Neste Eco, reunimos algumas informações que amplificam e contextualizam um pouco mais desse mundo.

Ecos da leitura

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Religião Devido à colonização, a maioria dos igbos segue o cristianismo, mas outras vertentes tradicionais, como Odinani, de matriz monoteísta, fazem parte da espiritualidade do povo. Reunindo uma série de crenças, Odinani é centrada em Chukwu, o criador, figura referencial para os adoradores e fonte de outras múltiplas divindades, os Alusi. Chukwu pode ser conectado através de fontes naturais, dando caráter panteísta à religião. O chamado Dibia é uma figura importante dentro do mundo espiritual de Odinani: na condição de agente espiritual, um Dibia tem como trabalho principal o de mediação religiosa na Terra. Portadores de uma avançada ordem espiritual, são capazes de analisar e interpretar acontecimentos terrenos por meio de uma ótica religiosa.

Origens

NIGÉRIA

CAMARÕES GUINÉ EQUATORIAL

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Ecos da leitura

A literatura oral aponta que os vestíg decorrem de mais de 1500 anos em s No entanto, sua ascendência é bas ta, sendo creditada em maior escala a origem da linhagem. Hoje, a popula cança a marca de 25 milhões de pess Nigéria o país com o maior núcleo d da etnia, seguido pela Guiné Equator marões.


gios dos igbos solo africano. stante incera aos hebreus ação igbo alsoas, sendo a de habitantes rial e por Ca-

sistema de castas Possivelmente surgida ainda na idade média durante a política do reino de Nri, as castas entre o igbos fazem parte de uma estratificação específica no seio das sociedades. Englobando religião e escravidão, a hierarquização social é dividida em três grupos:

OS DIALAS, GRUPO DE HOMENS LIVRES; OS OHU, MEMBROS CAPTURADOS DE OUTRAS LOCALIDADES, QUE PODEM ACABAR ESCRAVIZADOS (no livro de Chinua, o personagem Ikemefuna é um bom exemplo de um ohu);

OS OSU, CONSIDERADOS PÁRIAS E USADOS COMO OFERENDAS ÀS DIVINDADES. Ainda hoje existem diversas formas de discriminação contra a casta Osu em alguns estados da Nigéria, chamando a atenção das políticas internacionais de direitos humanos. É importante ressaltar que os igbos foram o povo mais afetado pelo violento processo de colonização e escravidão europeu, que acabou por não distinguir o sistema hierárquico de castas.

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ARTES A música no contexto cultural igbo exerce um papel importante de organização e representação de mundo, além de ter papel essencial na comunicação e no culto às divindades. Há uma série de vertentes da música nativa igbo executadas com diversos instrumentos, como o obo (uma cítara de 13 cordas), tambores diversos (o udu é um dos mais característicos por se tratar de uma vasilha de cerâmica), além de uma série de instrumentos de sopro. A música, quando se une à dança ou a performance, é uma importante ferramenta dentro das cerimônias espirituais. A highlife, estilo musical contemporâneo, é bastante conhecida pelo mundo e sua principal característica advém da fusão de jazz e ritmos originários do povo Igbo. A escultura é outra manifestação bastante relevante, pois é utilizada pragmaticamente no dia a dia e em performances e rituais religiosos. As máscaras africanas, empregadas em inúmeras finalidades em cerimoniais, geralmente apresentam poucos traços ornamentais, sendo reconhecidamente uma arte de síntese formal. Por outro lado, insígnias, vasos, portas, câmaras mortuárias e adereços diversos apresentam uma riqueza de detalhes muito característica.

IDIOMA

O idioma Igbo e seus por mais de 20 milh concentrado está e nigeriano. O idioma Volta-Níger e sua e tino. Na literatura, são os mais utilizad Chinua Achebe.

INSTRUMENTO UDU

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s inúmeros dialetos são falados hões de pessoas. Seu uso mais entre os habitantes do sudeste a faz parte da família de línguas escrita é baseada no alfabeto laos dialetos Owerri e Umuahia dos pelos escritores, incluindo

guerra dO biafra Em 1960, a Nigéria se tornou independente da Inglaterra. No entanto, os conflitos civis continuaram devido aos interesses territoriais entre diferentes etnias. Igbos e Hauçás, povo de matriz muçulmana, protagonizaram uma série de conflitos sangrentos pelo valioso território petroleiro de Biafra. Em 1967, buscando autonomia, os Igbos declaram sua separação do restante da nação, autoproclamando-se República do Biafra. A partir de então, o governo central passou a criar uma série de medidas de guerra para afetar a região direta ou indiretamente. Mais de 1 milhão de pessoas morreram no conflito, sendo a maioria igbos. A fome foi uma das principais causas das mortes em Biafra devido ao bloqueio estatal de medicamentos e comida. Em 1970, a região foi novamente incorporada pela Nigéria após o conflito com maior número de mortos após a Segunda Guerra Mundial.

Ecos da leitura

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Remontando o mundo A intervenção europeia em solo africano a partir dos séculos XV e XVI ficou marcada para sempre na história da humanidade devido aos brutais processos de colonização e escravidão. Suas cicatrizes permanecem até hoje nas sociedades violentadas, sendo perpetuadas por diversos fatores, entre eles a hegemonia de narrativas que indicam uma suposta superioridade ocidental relacionada à cultura e ao pensamento. Como contraponto a esse processo, agentes sociais como políticos, historiadores, filósofos, psicanalistas, sociólogos e artistas africanos levantaram suas vozes, projetando um novo futuro para o continente africano.

No início do século XX, quando a África ainda enfrentava a violenta dominação europeia, algumas ações começaram a ser realizadas no intuito de planejar uma ruptura com essa dura realidade. Uma série de congressos e conferências buscaram criar uma prática política baseada na união dos povos africanos, desafiando a separação geográfica no continente criada por países colonizadores em 1865, na Conferência de Berlim. Esse movimento

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Ecos da leitura

foi chamado de Pan-Africanismo, sendo Henry Sylvester-Williams, advogado nascido em Trinidad e Tobago, e W. E. B. Du Bois, sociólogo norte-americano, essenciais para que esse ideia se expandisse e ganhasse força política na África e em territórios da diáspora. Outro movimento político fundamental na luta contra a descolonização foi o Afrocentrismo. Inspirado no pensamento de um dos mais importantes ativistas do movimento negro, o jamaicano Marcus Garvey, o Afrocentrismo buscou conscientizar a população negra sobre as grandezas africanas drasticamente apagadas pelo choque cultural com a Europa, tendo como referência a riqueza cultural, linguística e econômica do Egito Antigo que, segundo essa ideologia, foi furtada e embranquecida pelo Ocidente. A literatura também se tornou uma ferramenta importante na representação e integração social da África. Para que não estejamos reféns apenas da visão eurocêntrica acerca da do passado e presente da África, torna-se essencial estarmos atentos às vozes de identidades negras que compartilham expe-


riências em comum em território africano. Na área da literatura, é possível ver inúmeras publicações literárias reconhecidas por suas qualidades estética, histórica e política. Ondjaki, Agualusa, Pepetela, Mia Couto e Chimamanda Ngozi Adichie (cuja famosa palestra “O perigo de uma história única” foi fortemente influenciada por Chinua Achebe) são alguns dos autores mais lidos do mundo. Além deles, o nigeriano Wole Soyinka e os sul-africanos Nadine Gordiner e J. M. Coetzee foram agraciados com o Nobel de Literatura, reconhecido como o maior prêmio na área. No ramo das ciências humanas, há também um grande leque de nomes importantes que buscaram demonstrar as sequelas da colonização e da escravidão, assim como criar conceitos e sistemas próprios com o intuito de criar condições

de valorização da cultura africana. A saber, o poeta Aimé Césaire e o escritor e político Léopold Sédar Senghor, idealizadores do conceito de négritude; a jornalista e escritora Paulette Nardal; o psicanalista e filósofo Frantz Fanon, o historiador Achille Mbembe, entre outros. No âmbito da história, em 1964, quando grande parte dos países africanos haviam alcançado sua independência, a Unesco iniciou um trabalho de edição e publicação denominado História Geral da África. Obra de domínio público, publicada em português no ano de 2010 em oito volumes, apresenta uma visão panorâmica da história africana, tentando afastar-se dos lugares-comuns criados pelo olhar ocidental.

Wole Soy inka

a Chimamhained Adic

Ondjaki Frantz Fanon


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perguntas para Edson Ikê O ilustrador e designer Edson Ikê foi o responsável pelo projeto gráfico de O mundo se despedaça que você tem em mãos. Hoje à frente do estúdio Ensaio Gráfico, Ikê já trabalhou em editoras, estúdios e agências. Entre seus trabalhos, destacam-se os livros Zumbi assombra quem?, No balanço da Maré e Sofi, a pipa bailarina. Na entrevista a seguir, ele compartilha reflexões e detalhes sobre sua participação nesse projeto especial.

TAG – Quando e onde você começou a trabalhar com xilogravura? Edson Ikê – Comecei a trabalhar xilogravura há mais de 17 anos em Santo André (SP), em um curso de iniciação artística, e nunca mais parei. Quais artistas são suas maiores referências nesse campo? Edson – Passei a conhecer obras de vários artistas, gravadores populares como Dila, J. Borges, Minervino e depois conheci artistas modernos. Adorei os trabalhos de Lasar Segall, Rubem Grilo e Gilvan Samico e passei a adotar a estética da xilogravura em meus trabalhos de ilustração digital.

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Ecos da leitura

Como foi o seu processo de pesquisa visual para a criação do projeto gráfico do livro O mundo se despedaça? Edson – Procurei as edições anteriores no mundo inteiro, adorei as capas que traziam um tom trágico. Gostei muito da capa original, editada na Nigéria, que traz este verde e vermelho que usei na edição da TAG. Adoro as esculturas africanas, principalmente da região de Benin, por causa do seu apuro técnico e formal. A figura do "feiticeiro" me encanta, ainda mais vendo imagens da Nigéria e de Togo. Sempre gostei de cores ocres e busco isso na minha pesquisa, com referência à terra dos povos originais.


Como foi o processo da criação do projeto? Como a capa que você fez para o livro se relaciona com a narrativa? Edson – Tenho um trabalho de pesquisa sobre xilogravura e uso em alguns trabalhos que faço. Serve como uma assinatura minha. Adoro a xilogravura brasileira, a gravura popular... Escolhi fazer a capa em xilogravura exatamente pela força gráfica e pelo impacto visual. Sempre leio os livros antes de conduzir o projeto gráfico, e esse aprendizado é uma das partes favoritas do meu trabalho. O livro de Chinua Achebe trata das contradições da sociedade Igbo com maestria e a busca do personagem Okonkwo em não seguir as trilhas de seu pai e as fortes imagens do livro me impactaram. O personagem Okonkwo é um guerreiro, e procurei representar isso na xilogravura com uma lança. A chama na ponta da sua lança traz uma cruz como referência ao colonialismo na Nigéria. Entre pesquisa, rascunhos e finalização foram três dias. Usei um MDF para fazer a xilogravura. Uso somente o preto para imprimi-la e a manipulo digitalmente acrescentando cores, editando e experimentando possibilidades. Gostaria de ter o tempo para mais experimentações em processos manuais, mas isso leva muito tempo e é oposto à velocidade do mercado editorial. Hoje em dia, há muitos debates sobre os problemas de eventuais

apropriações culturais e a utilização indevida ou mesmo estereotipada de culturas estrangeiras. Como representar outras culturas por meio do design gráfico? Edson – Veja, tenho uma produção aqui no Brasil em que pesquiso e estudo cultura preta – sua visualidade e como se manifesta na diáspora. Sou um artista visual do seu tempo, bombardeado por influências do mundo inteiro, passando desde o cinema de Djibril Diop Mambéty às pinturas de Rubem Valentim. Como homem preto, sinto os efeitos do colonialismo ainda hoje e minha xilogravura poderia ilustrar um nigeriano ou um baiano, um afroamericano ou um trabalhador preto de Minas. A estética passa por mim e está desenhada pelo meu corpo, essa memória está no meu corpo. Você leu O mundo se despedaça? Se sim, o que achou da obra? Qual é a importância de ler o livro e estar por dentro dos contextos relacionados para criar uma capa? Edson – O livro é fantástico! Adorei a leitura, pricipalmente a forma como Chinua apresenta a cultura Igbo, que, muitas vezes, é uma "aberração" para um olhar estrangeiro. Chinua apresenta essa cultura de forma graciosa e sensível. Há momentos fortes do livro que busquei apresentar no símbolo do fogo, como uma forma de destruição, de um mundo que se parte, se despedaça, os efeitos do colonialismo nas cabeças e nos corações.

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Papo de livro:

o Podcast da TAG Para expandir a experiência literária dos nossos associados, e atendendendo a pedidos, colocamos o acompanhamento de leitura no marcador de página, inserimos na revista mais informações sobre o mimo e o projeto gráfico e, neste ano, começamos a produzir o nosso próprio podcast. Podcast é uma plataforma que permite a veiculação e divulgação de um arquivo de áudio, muito parecido com a conhecida rádio, com a seguinte diferença: você escolhe quando escutar. No Podcast da TAG – Papo de Livro, temos dois tipos de programas: um que abarca temas da literatura em geral

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Espaço do associado


(como os episódios sobre a vida e a obra de Machado de Assis e literatura de cordel, por exemplo), e outro para aprofundar ainda mais a leitura do mês, sempre com a presença de convidados especiais para discutir a obra. Terminou de ler o livro e ficou com aquela ressaca literária? É só buscar o nosso podcast, pressionar play e deixar a leitura reverberar. Expandimos também os espaços disponibilizados para vocês opinarem! Escolhemos as melhores resenhas ou comentários do mês e lemos no podcast para todos os associados escutarem. Se quiser compartilhar suas percepções com nossos ouvintes, é só entrar no aplicativo da TAG, comentar na seção da Estante e torcer para o seu ser selecionado. Vamos expandir as leituras juntos?

Caso tenha alguma sugestão de pauta para enriquecer nossas discussões, escreva para produto@taglivros.com.br e para escutar os nossos episódios é só acessar o link: http://bit.ly/podcastdatag

Espaço do associado

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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em Literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar a obra de forma mais complexa.

Spoiler!

Chinua Achebe: a morte da cultura local O primeiro aspecto a ser desta-

cado em O mundo se despedaça diz respeito ao modo de disposição da sua estrutura narrativa. O seu núcleo central não gira em torno da ocupação colonial inglesa, mas de Okonkwo, importante chefe de família na aldeia de Umuófia. Okonkwo, suas três esposas, seus filhos e filhas, seus aliados no clã, e seus adversários e concorrentes, apresentados em seu cotidiano a partir de seus códigos de convivência, permitem ver um quadro muito vivo de uma sociedade organizada e hierarquizada, desprovida de um poder central, estruturada em rígidos padrões de comportamento alicerçados em tradições religiosas. Apenas no final do livro o leitor é levado a perceber a fissura profunda ocasionada pela chegada dos brancos, alimentada em parte nas próprias contradições já existentes, mas que afloraram durante o trabalho de conversão dos missionários cristãos (conquista espiritual) e da ação dos administradores coloniais (conquista política). Achebe inverte a ordem de prioridade da escrita literária ao intro30

Leia depois de ler

duzir na narrativa elementos provenientes da tradição oral (mitos, contos e provérbios) e ao retratar em detalhe o funcionamento de instituições, rituais e valores morais incompreensíveis para o mundo dos brancos, porém essenciais para o funcionamento e integridade da sociedade Igbo: por exemplo, a distinção conferida pela oferta e consumo compartilhado de noz-de-cola, as implicações do casamento e da maternidade, o simbolismo do cultivo do inhame, o temor inspirado pelos oráculos e o vínculo profundo entre as pessoas e os espíritos ancestrais. Esta descrição quase etnográfica não induz o leitor a uma idealização da sociedade Igbo: as contradições internas não são ocultadas ou minimizadas. O funcionamento daquela sociedade comportava costumes considerados discutíveis, ou condenáveis (abandono de recém-nascidos gêmeos, a execução de Ikemefuna e a marginalização dos Osu). Esta insatisfação latente encontra livre curso no momento da chegada dos missionários e administradores britânicos, que, ao pretenderem o


monopólio da crença e da aplicação da justiça, exploraram o potencial de desagregação que já estava instalado na sociedade Igbo. Primeiro através do discurso da tolerância e universalismo da fé (Sr. Brown), e depois através da imposição do sagrado cristão (Sr. Smith), a disseminação do cristianismo fez ruírem as estruturas tradicionais autóctones. A crescente tensão chega ao ápice no momento em que Enoch, recém-convertido e filho de um sacerdote tradicional, mata e come a serpente sagrada e depois arranca em público a máscara de um espírito ancestral (egwugwu), acelerando a guerra silenciosa que se transforma em violência aberta. A própria figura do protagonista permite notar as marcas ambíguas: de um lado, Okonkwo é admirado por sua coragem e bravura; de outro, é condenado pela crueldade e violência excessiva no tratamento reservado às esposas e aos filhos; e em algumas situações mostra-se fiel às tradições e em outras, infrator delas. É ele quem se mostra mais predisposto ao enfrentamento direto com os brancos e seu fim, o suicídio, pode sugerir o posicionamento crítico de Achebe em relação ao apego excessivo à tradição. Com efeito, do início ao fim da obra, Okonkwo é

caracterizado como um herói trágico, atormentado pelo medo. O impacto da colonização reaparece em dois outros romances posteriores que formam a trilogia africana de Chinua Achebe. Em A paz dura pouco (1960), o protagonista é o neto de Okonkwo, Obi, que ao retornar dos estudos na Inglaterra, se estabelece em Lagos e se depara com problemas típicos da modernidade ao ser acusado em um tribunal por corrupção, bem como com problemas típicos da tradição ao enfrentar as restrições impostas por sua família por decidir se casar com Clara, uma Osu – categoria social considerada indigna e proscrita na sociedade Igbo. No terceiro livro, a Flecha de Deus (1964), o enredo está ambientado no período colonial e se desenvolve em torno do sacerdote Ezeulu, que, após uma reunião com as autoridades de todos os clãs e aldeias, passa a ser o porta-voz dos igbos no contato os brancos, enquanto os ingleses levam adiante o projeto de construção de uma estrada para interligar a capital da colônia às aldeias de Umuaro. Essa estrada, rodeada de simbolismo, indica ao mesmo tempo o estabelecimento definitivo da cultura europeia e o seu contraponto, a agonia e/ou a morte da cultura local, que é o tema de fundo dos seus romances.

José Rivair Macedo Professor de História da África na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; autor dos livros História da África (Contexto, 2013) e O pensamento africano no século XX (Expressão Popular, 2016).

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A curadora de novembro

Bruno Leão

Ayelet Gundar-Goshen

“Esse romance oferece uma visão enganadora: o que à primeira vista se parece com um conto de fadas acaba se tornando um pesadelo.” Ayelet Gundar-Goshen, curadora de novembro da TAG, é um dos nomes da literatura israelense contemporânea. Roteirista e psicóloga, o seu primeiro livro, Uma noite, Markovitch (2018), recebeu o consagrado prêmio Sapir de melhor estreia e já foi traduzido para quatorze idiomas. Seu romance Walking Lions (2014), está sendo traduzido para o português. A obra que Ayelet indicou ao clube retrata uma época conturbada e de extrema angústia da história moderna: o entre-guerras do século XX. Sua protagonista, uma jovem austríaca pobre e sem perspectivas, assiste tediosamente a vida passar enquanto cuida da mãe doente. Tudo parece mudar, no entanto, com a chegada de uma tia distante, que a insere em um mundo de prazeres, riquezas, vestidos caros e homens elegantes.

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A próxima indicação


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“A história única cria estereótipos, e o problema dos estereótipos não é que eles são falsos, mas que são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história.” – Chimamanda Ngozi Adichie


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