Fev2019 "Primavera num espelho partido" - Curadoria

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Primavera num espelho partido


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Ao Leitor Primavera num espelho partido é uma obra sobre a dita-

dura e as suas consequências. Mario Benedetti expõe a desintegração de um núcleo familiar atingido em cheio pela violência da repressão militar no Uruguai no fim do século XX. Não foi por acaso que a literatura de Benedetti tornou-se para sempre indissociável das suas vivências políticas: a fereza da ditadura deixou marcas profundas no autor, exilado da sua terra natal durante 12 anos. Ao impostar diferentes vozes* em ,o autor criou uma história que retrata brutalidades de forma lírica, muitas vezes poética. Foi a capacidade de Benedetti de contagiar a partir da criação de uma atmosfera única que chamou a atenção do escritor Julián Fuks, curador do mês. Presença marcante no cenário literário no Brasil, Fuks foi eleito um dos melhores jovens escritores brasileiros pela revista Granta em 2012. Os motivos que cercam a escolha por Primavera ficam claros quando o escritor fala sobre a própria trajetória: seus pais fugiram da ditadura que assolou a Argentina de 1976 a 1983. Em 2015, Fuks lançou A Resistência, romance que também aborda o exílio e que lhe rendeu o prêmio Jabuti. Na entrevista que concedeu à TAG, Fuks discute o modo como enxerga a literatura hoje, os seus planos como escritor e a sua relação com os personagens de Primavera. Nesta edição, trouxemos um apanhado de artistas latinoamericanos que em contextos ditatoriais buscaram resistir (um lembrete sobre o valor da arte em tempos sombrios). Nos Ecos, ainda, abordamos os trágicos desdobramentos da repressão sobre as vidas das crianças e sobre a cultura do país de origem de Benedetti, o nosso vizinho Uruguai. O mimo do mês é uma metáfora sobre expectativas em relação ao futuro, uma espécie de aposta em dias melhores, bem como nos ensinam Beatriz, Santiago e os outros protagonistas de Primavera num espelho partido. Um símbolo singelo de conceitos que combinam tanto com Benedetti quanto com Fuks: esperança e resistência. Boa leitura! Esclarecemos a questão das vozes e dos capítulos alternados na pág. 13.


Sumário

A indicação do mês

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O curador Julián Fuks Entrevista com Julián Fuks O livro indicado Primavera num espelho partido, de Mario Benedetti


Ecos da leitura

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Arte e exílio: a América Latina num espelho partido O sinal está fechado para nós, que somos jovens Retomar el vuelo: cultura e arte no Uruguai

Espaço do associado

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Um despertar para a leitura

Leia depois de ler

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Apesar da ponta quebrada, o espelho serve, a primavera serve de Karina Lucena

A próxima indicação

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A curadora de março Djamila Ribeiro


Rolex / Tomas Bertelsen


O curador

Julián Fuks Romancista, contista e crítico literário, Julián Fuks é um

dos mais prestigiados nomes do cenário da literatura do país. Eleito pela revista Granta um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros em 2012, já foi contemplado com prêmios nacionais e internacionais, tais como o Jabuti e o Saramago – estes vencidos por seu mais recente romance, A resistência (2015). Doutor em Literatura pela USP, foi repórter da Folha de S. Paulo e resenhista da revista Cult, além de publicar contos em revistas e artigos para diversos periódicos. Fuks, que nasceu em São Paulo e é filho de argentinos, tem em seu nome e sobrenome vestígios de uma genealogia diversificada. O que eles não contam, no entanto, é um passado marcado pela fuga da violência e da guerra. Em um artigo para o jornal britânico The Guardian, em 2018, ele resumiu brilhantemente: “Venho de duas gerações consecutivas de exilados políticos. Avós que partiram da Romênia quando o antissemitismo ameaçava fulminar tudo o que tinham, como logo fulminou seus pais, irmãos, tios – desses avós herdei o sobrenome judeu, de seu destino ganhei meu nome argentino. Pais que partiram da Argentina quando o terror de Estado se fez sinistro, abatendo amigos, colegas, companheiros – deles herdei algum inconformismo, de seu destino ganhei a língua em que escrevo”.

A indicação do mês

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Rolex / Tomas Bertelsen

Admirador incondicional de Machado de Assis, Clarice Lispector e Graciliano Ramos, Fuks dedica um importante espaço em suas obras para exaltar também a literatura argentina. Em seus livros, encontram-se referências claras a grandes autores do país como Jorge Luis Borges e Juan José Saer. É também explícita – principalmente em suas obras recentes – uma complexa reflexão dedicada à identidade, que não raro se vê emaranhada entre as línguas portuguesa e espanhola, que atravessam o cotidiano do escritor. “Estou certo de que o exílio de meus pais, exílio que herdei deles e que se expressou sobretudo como um constante estranhamento idiomático, teve sua importância para que eu me tornasse escritor. Há algo de estimulante nesse expatriamento linguístico”, o autor

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A indicação do mês

comentou em entrevista ao blog Canto dos Livros. Fuks tinha apenas 22 anos quando publicou seu primeiro livro, a coletânea de contos Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu (2004), premiado pelo Projeto Nascente da USP. Três anos depois, alçou voos mais altos ao ser indicado aos prêmios Jabuti e Portugal Telecom pelo livro Histórias de literatura e cegueira (2007). Nessa obra de difícil classificação, Fuks se baseou na biografia de três autores: Jorge Luis Borges, o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto e o romancista irlandês James Joyce, mesclando ensaio, crítica literária e ficcionalização da vida dos escritores abordados, utilizando como ponto de partida a enfermidade que os acometeu: a cegueira.


Seguindo a linha de problematizar ficção e realidade – mas sem repetir a fórmula de seu trabalho anterior –, Fuks publicou Procura do romance (2011). Aqui, elementos autobiográficos entram em cena: Sebastián, protagonista da obra, também é filho de argentinos refugiados no Brasil e está constantemente relembrando a vida no apartamento no qual passou a infância em Buenos Aires. Ao longo da narrativa, repleta de citações e referências a James Joyce, Albert Camus e Franz Kafka, acompanhamos Sebastián, que também é um escritor em crise, descrever as dificuldades na construção de um romance criando uma espécie de metarromance: uma obra cujo tema principal é o próprio processo de escrita. A tentativa de “explorar a argentinidade” intrínseca ao escritor ao longo de Procura do romance ganhou novos contornos em A resistência (2015), obra que consolidou o prestígio de Julián Fuks no cenário literário nacional e internacional.

Elaborado como um tributo ao irmão adotivo de Fuks, o livro trata do resgate histórico e emocional de uma família, marcada pelo processo de adoção de um filho e pela fuga de uma ditadura militar. A resistência foi considerado por críticos como pertencente ao gênero autoficcional, que mescla dados reais da biografia do autor com ficção e, portanto, aprofunda as experimentações iniciadas no romance anterior, propondo novos significados para esse estilo que é uma das grandes tendências artísticas na contemporaneidade. Foi durante o processo de escrita de A resistência que Primavera num espelho partido, obra enviada ao associado neste mês, surgiu na vida de Julián Fuks. Escrito por Mario Benedetti, autor uruguaio que teve de recorrer ao exílio ao longo do regime militar em seu país, o romance exerceu grande impacto no nosso curador e ainda teve o papel de inspirá-lo durante a criação do próprio livro.

“Foi um mergulho súbito e sem volta na realidade de seus personagens tão tangíveis, na riqueza de vozes tão convincentes, tão comoventes também. Enquanto lia, tentava aprender algo de sua habilidade em cadenciar o enredo, em ir oferecendo sempre um elemento a mais da história, sem perder a capacidade de nos tocar com suas reflexões certeiras e bem delineadas.”

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Entrevista com

Julián Fuks TAG – Primavera num espelho partido é uma história que aborda temas sensíveis, principalmente para pessoas que se relacionam de maneira mais próxima com a temática da ditadura. Como foi ler o livro pela primeira vez? Como o conheceu? Julián Fuks – Conheço há tempos a escrita de Mario Benedetti, sempre fui um apreciador de seu lirismo e sua sensibilidade. Este livro, no entanto, veio cair nas minhas mãos de maneira inesperada, enquanto escrevia minha própria história sobre repressão, infância e exílio.

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Foi um mergulho súbito e sem volta na realidade de seus personagens tão tangíveis, na riqueza de vozes tão convincentes, tão comoventes também. Enquanto lia, tentava aprender algo da sua habilidade em cadenciar o enredo, em ir oferecendo sempre um elemento a mais da história, sem perder a capacidade de nos tocar com suas reflexões certeiras e bem delineadas. Quando voltei ao meu próprio livro, tudo o que eu queria era que aquilo me contagiasse e eu conseguisse criar uma atmosfera semelhante de precisão e encantamento.


Em relação à personagem Beatriz, percebemos o exílio pela ótica de uma criança exilada. Você também vivenciou esta experiência. No que ela difere do exílio vivido por um adulto? Fuks – É curioso, entre as múltiplas identificações que senti ao ler o livro, nunca tinha pensado que meu olhar e minha trajetória pudessem ser semelhantes aos de Beatriz. Mas sim, você tem toda razão, algo da minha experiência de exílio teve a ver com essa de Beatriz: receber um exílio como herança e não saber de partida o que ele significa, estar questionando o tempo todo os sentidos daquela insensatez que toma a vida dos adultos. O exílio vem, então, sem certezas prévias, sem prerrogativas. O exílio pode ser ao mesmo tempo alegre e triste, território seguro em meio a uma vastidão de incertezas. Vou ter que ler o livro mais uma vez agora, para ver o que Beatriz, essa personagem linda, me sussurra nos ouvidos também sobre mim. Em A resistência, você aborda o exílio sob a perspectiva das relações familiares. Como você enxerga a sua própria trajetória como um vetor que impulsionou a sua escolha por trabalhar esse tema? Como foi essa experiência de escrita? Fuks – Desde a primeira linha que escrevi de A resistência, senti um forte compromisso com o real, com a memória, com os fatos passados,

com personagens de carne e osso que me cercavam. Por mais que eu dissesse a mim mesmo que aquele era um terreno ficcional e eu devia ser livre para inventar, esse apego ao real foi transformando a história que eu tinha para contar e deixando marcas profundas no livro. Me senti tomado por algo que não costuma ser visto como virtude literária, mas que se tornou o impulso principal da minha escrita: a sinceridade. Meu livro, portanto, está todo impregnado da minha trajetória e da trajetória dos meus irmãos e dos meus pais.

“Tenho trabalhado em um livro que traz a ideia de que, assim como praças e ruas, a própria literatura pode e deve ser ocupada.” Quais são os seus projetos de escrita para o futuro? Quais outras temáticas gostaria de abordar em seus próximos livros? Fuks – Tenho escrito agora um romance intitulado A ocupação, guardando evidente relação com A resistência, formando com ele um díptico que tenta dar corpo literário a duas das palavras de ordem

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fundamentais do presente, “ocupar e resistir”. Como no livro anterior, o título deve ser compreendido em seus sentidos mais abrangentes: falo de uma ocupação de sem-teto no centro de São Paulo, mas também do corpo ocupado de uma mulher grávida, de outro corpo, ocupado pela doença, e das transformações que sofre o próprio exercício da escrita quando convertido em ocupação. Em última instância, traz a ideia de que, assim como praças, ruas, universidades, edifícios abandonados, também a própria literatura pode e deve ser ocupada. É o que nos pede este presente tão grave: que abdiquemos de purismos e deixemos nossa linguagem ser tomada pela urgência de uma reação, de uma ação, de uma resposta. A autoficção é um tema recorrente para sua escrita. Quais as fronteiras impostas pela realidade quando falamos em temas tão delicados como ditadura e repressão? Fuks – A autoficção tem ganhado destaque, a meu ver, justamente por promover uma travessia de fronteiras, por não seguir regras estritas, por não se deixar conter. Assim, nenhuma fronteira imposta ao exercício da autoficção há de resistir, acredito. Mas, sim, assuntos tão graves quanto ditadura e repressão sem dúvida nos exigem certa delicadeza e sensibilidade. Estamos lidando não apenas com o trauma histórico, mas com profundas dores pessoais e com desconhecimentos e

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divergências de olhares. Nesse aspecto, a esse tipo específico de autoficção que lida com as memórias sociais talvez não seja tão proveitosa a concepção da literatura como jogo, como brincadeira sagaz, mas sim um senso de responsabilidade e de precisão na atenção ao real. Em artigo publicado no The Guardian, após as eleições de 2018, você afirma que “Esses serão anos para escrever como nunca antes”. Como você acha que a repressão acaba impulsionando movimentos artísticos? Fuks – Nenhum tipo de repressão jamais será positivo ou desejável, seu impacto é sempre atroz, mas a boa notícia é que, quando se trata de arte e literatura, os repressores nunca alcançam o que desejam. Podem tentar estrangular a produção artística, podem tentar calar ou alijar artistas, mas nunca conseguirão estancar a criação e a cultura – elementos indiscerníveis da própria noção de humanidade. Assim, a resposta mais eficaz a esse quadro nefasto que enfrentamos, a essa sanha disseminada de cerceamento e censura, talvez seja simplesmente continuar escrevendo, continuar produzindo. Escapar do desalento e da apatia e nos manter vivos, ativos, em íntimo contato com a humanidade que nos habita. Em outra entrevista, você comentou sobre as potencialidades e perigos das redes sociais em tempos de


pós-verdade. A respeito do tema, a TAG possui um aplicativo onde os associados estabelecem discussões sobre os livros enviados. Que tipo de discussão você acredita que Primavera num espelho partido poderá suscitar? Fuks – É um livro tão múltiplo, tão vasto, tão profundo em sua simplicidade que fica até difícil prever os muitos debates que pode suscitar. Eu sugeriria atentar para as muitas maneiras como a violência e a repressão vão incidindo na vida das diferentes pessoas, mais atuantes ou menos, vítimas diretas ou indiretas, em tantas fases diferentes da existência. Como incidem sobre os destinos, as ações, os amores. E como o que é humano sempre resiste, a maneira como a união e a compreensão entre as pessoas sobrepuja o horror e o autoritarismo. A vida encontra seu caminho mesmo na intempérie. Mas, claro, as discussões entre tantos leitores entusiasmados sem dúvida encontrarão outros destinos, outros caminhos, outros amores.

O que você gostaria de falar aos mais de 25 mil associados que lerão esse livro pela primeira vez? Que outros títulos indicaria para quem gostou do livro? Fuks – Diria só para que entrem no livro com olhos semelhantes aos de Beatriz, sem certezas prévias, sem prerrogativas. A boa literatura política não é dogmática, não é panfletária, é apenas uma reflexão sobre como a esfera política incide na existência dos indivíduos. Há uma vasta literatura feita dessa maneira, sobretudo na América Latina. Convido essa grande família de leitores a conhecer a história de outras famílias latino-americanas pelos livros de Martín Kohan, Patricio Pron, Laura Alcoba, Lina Meruane, Andrés Neuman, Carla Maliandi, Félix Bruzzone, ou ainda, no Brasil, Carola Saavedra, Paloma Vidal, Tatiana Salem Levy, Javier Arancibia Contreras, entre muitos outros. Há um sem-número de autores e autoras explorando os meandros da memória pessoal e produzindo uma literatura ao mesmo tempo pujante e sensível.

“Opressores podem tentar estrangular a produção artística, mas nunca conseguirão estancar a criação e a cultura.” A indicação do mês

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O livro indicado

Primavera num espelho partido de Mario Benedetti O uruguaio Mario Benedetti é considerado um dos es-

critores mais importantes da literatura latino-americana. Entre livros de poesia, romances, ensaios, contos e até letras de música, publicou mais de 90 obras nas quais privilegiou, sobretudo, a condição do sujeito social na América do Sul – ou, mais especificamente, do cidadão uruguaio – sem nunca abdicar da militância política. Por conta disso, abandonou o Uruguai por cerca de uma década, durante a ditadura instaurada no país. Seu idealismo, engajamento e paixão pelas questões de sua terra lhe renderam o apelido de “escritor do compromisso”. Batizado sob o curioso costume italiano de dar nomes compridos aos filhos, Mario Orlando Hamlet Hardy Brenno Benedetti Farrugia nasceu em 1920, em Paso de Los Toros, e ainda criança partiu para Montevidéu com os pais, Brenno Benedetti e Matilde Farrugia. Iniciou os estudos no Colégio Alemão de Montevidéu, onde aprendeu o idioma que posteriormente lhe serviria para se tornar o primeiro tradutor de Kafka no Uruguai. Quando as ideias nazistas passaram a influenciar os preceitos da escola, Mario foi imediatamente transferido pelo pai para o Liceu Miranda. Lá, não conseguiu concluir seus estudos por questões fi-

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nanceiras e acabou seguindo como autodidata por toda a vida. Paralelamente à escrita, foi taquígrafo, operador de caixa, contabilista e funcionário público. Iniciou seu trabalho de jornalista em 1945, compondo a redação de importantes periódicos do país como La Mañana, El Diario, Tribuna Popular e Marcha – este um semanário independente e de grande influência da América Latina, por onde passaram escritores como Juan Carlos Onetti e Eduardo Galeano. No mesmo ano, publicou seu primeiro livro de poesias, La víspera indeleble, nunca reeditado. As escassas vendas pouco abalaram o jovem escritor, que sem demora publicou o ensaio Peripecia y novela (1946) e o livro de contos Esta mañana y otros cuentos (1949). Ao mesmo tempo que Benedetti dava seus primeiros passos na carreira literária, a situação de seu país mostrava-se dramática. Durante as décadas de 1950 e 1960, o Uruguai entrou em um processo de declínio econômico e social, o que gerou desemprego em massa e resultou na queda da qualidade de vida dos uruguaios. O período também foi marcado por protestos estudantis e conflitos armados, muitos deles envolvendo o movimento de guerrilha urbana Tupamaros, do qual fizeram parte, além do escritor, nomes como Nora Castro e José Mujica. Diante desse quadro, a consciência política e social de Benedetti passou a ser força motriz também de suas obras

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que, concomitantemente, começaram a proporcionar-lhe visibilidade continental. Alguns de seus principais livros desse período são Poemas de la oficina (1956), Montevideanos (1959), livro de contos, e A trégua (1960), romance de maior sucesso de Benedetti, que recebeu mais de 130 edições e foi traduzido para 23 idiomas. Foi também na década de 1960 que o escritor começou a criticar o governo de forma contundente. O polêmico e ácido ensaio El país de la cola de paja (1960), que além de apontar as mazelas do povo uruguaio e denunciar o governo da época – “cola de paja” significa algo como “rabo preso” –, indicou os caminhos da obra benedettiana publicada posteriormente e lhe rendeu a alcunha de “El Aguafiestas”, ou “o estraga-prazeres”. Em 1971, Benedetti fez parte do grupo que fundou o Movimiento de Independientes 26 de Marzo, filiado à coalizão de partidos políticos e organizações da sociedade civil Frente Ampla, que buscou eleger Líber Seregni à presidência da República no mesmo ano. A derrota nas urnas, entretanto, era apenas o prenúncio de tempos ainda mais sombrios para o escritor e seus companheiros. Em 27 de junho de 1973 o então presidente, Juan María Bordaberry, liderou um golpe de estado, dando início aos anos de chumbo no país. Benedetti, naturalmente, entrou na lista negra dos procurados. Além

de ter obras censuradas, viu sua produção jornalística deixar de ser publicada. Ao fim do ano, seguiu a recomendação de amigos e partiu do Uruguai, renunciando ao convívio com a família. Foi o início do longo exílio do escritor, marcado por fugas, ameaças, esconderijos e diferentes países. Seu primeiro destino foi Buenos Aires, onde trabalhou para periódicos e pequenas editoras. Em 1975, no entanto, sob ameaças de morte da Aliança Anticomunista Argentina, teve que seguir para o Peru e se comprometer a escrever somente sobre literatura, distanciando-se de qualquer ótica política nas suas abordagens. Seis meses depois, com o início da segunda fase da ditadura peruana, uma nova expulsão: a polícia o obrigou a voltar clandestinamente para a Argentina. Para não ser encontrado na capital do país, passou a utilizar o que ficou conhecido como “chaveiro solidário”, um molho de chaves distribuído aos exilados para que pudessem dormir todas as noites em casas diferentes. Sua vida nômade chegou ao fim em 1977, quando conseguiu passagem para Cuba. O exílio na ilha durou até 1980, quando partiu para a Espanha, onde pôde conviver novamente com a esposa, Luz López, e garantir seu sustento com textos opinativos para o jornal El País. Nessa época, grande parte das cinquenta colunas publicadas pelo autor retratou o exílio e a repressão no Uruguai à época. É

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importante lembrar que Benedetti não deixou a literatura de lado durante os dez anos longe de casa: escreveu nove livros, sendo cinco de poesia. Sua ansiedade em consumar o retorno ficava evidente e crescia a cada nova publicação. A mais emblemática desse período, e também seu único romance escrito no exílio, foi Primavera num espelho partido, publicado em 1982 e indicado pelo curador deste mês, Julián Fuks. A obra é centralizada em Santiago, cidadão uruguaio e militante preso durante a ditadura militar do país, e em sua família, que é obrigada a exilar-se na Argentina. Para contar essa história, Benedetti lança mão de seis segmentos narrativos assim nomeados: Intramuros/Extramuros, Feridos e contundidos, Dom Rafael, Exílios, Beatriz e O outro. Em capítulos intercalados, eles apresentam diferentes vozes de indivíduos que se conectam de alguma maneira ao drama vivido por Santiago. Com essa técnica narrativa, o romance ganha em amplitude, já que não se restringe a uma única interpretação dos acontecimentos, valorizando as diferentes subjetividades que vão surgindo ao longo do romance. Três dos segmentos narrativos estão em primeira pessoa. Em um deles, acompanhamos as cartas que Santiago envia a Graciela, sua esposa. Acostumado a ter sua correspondência verificada e censurada pelos militares, Santiago expressa seus desejos, dores, sonhos e todo o tipo

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de divagações em uma linguagem repleta de metáforas e entrelinhas. Em outro segmento acompanhamos a voz do pai de Santiago, Dom Rafael, um sábio senhor que precisa aprender a lidar com o exílio forçado, a prisão e a consequente violência impostos ao filho. No terceiro segmento está a voz da pequena Beatriz, filha de Graciela e Santiago. Nos capítulos dedicados a ela, seus jogos de palavras, descobertas e visão pueril sobre o que se passa com sua família acabam neutralizando, mesmo que por alguns momentos, toda a dor e opressão que emergem de vidas prejudicadas pelo exílio. Há também os segmentos de Graciela e Rolando Asuero, amigo de Santiago. No primeiro, recheado de diálogos, acompanhamos os dilemas da esposa do protagonista. Forçada a reconstituir sua identidade a partir da nova vida em Buenos Aires, Graciela alimenta angústias e culpas por conta do distanciamento físico e sentimental em relação ao marido – uma sensação que parece aumentar a cada novo dia de exílio. É nesse cenário que surge Rolando, um dos únicos amigos de longa data de Graciela na Argentina que, também aos poucos e inevitavelmente, se aproxima da mulher do amigo, não sem questionar os próprios atos e seus reais sentimentos em relação a todos os envolvidos. Por fim, costurando esse universo de acontecimentos, encontram-se capítulos em que o próprio Benedetti


narra suas experiências e de outros expatriados na época da ditadura. Ao fazer uso desse recurso, o autor alcança um efeito semelhante ao da “quebra da quarta parede”, expondo a realidade em meio a um livro de ficção sem que seja prejudicado o fluxo narrativo – pelo contrário, esse recurso apenas o enriquece. É praticamente um alerta ao leitor de que, apesar de ser uma obra ficcional, a situação vivida por todos no livro é muito realista. A partir dessa estrutura ambiciosa e original, Benedetti escreveu um dos livros mais representativos de sua geração. Primavera num espelho partido é uma obra com contornos políticos, ainda que sua qualidade não esteja encerrada nesse quesito. Se trata de um romance que trabalha com profundidade a psicologia e a humanidade de seus personagens através de uma linguagem diversificada, mas que nunca deixa de ser poética, expondo de maneira honesta seus medos, alegrias, triste-

zas, forças e fraquezas enquanto se acompanha uma história de amor, violência e perdas durante um conturbado período da América Latina. Um ano depois da publicação de Primavera num espelho partido, Benedetti finalmente retornou ao Uruguai, quando começou o processo de desexílio – palavra criada pelo escritor e que se consagrou como uma de suas criações mais célebres, utilizada pela primeira vez em Primavera... e que se tornou um conceito adotado por entidades que lutam pelos direitos humanos. Até o fim de sua vida, seguiu publicando livros, escrevendo para periódicos e se envolveu com a música – escreveu mais de 40 letras para canções de artistas como Daniel Viglietti e Rosa León. Sua morte, em 2009, aos 88 anos, comoveu admiradores e provocou diversas homenagens. Entre elas, uma emocionada publicação do português José Saramago, que buscou dar voz à dor de boa parte de seus amigos e leitores apaixonados:

“De súbito os livros abriram-se e começaram a expandir-se em versos, versos de despedida, versos de militância, versos de amor, as constantes da vida de Benedetti, junto à sua pátria, aos seus amigos, ao futebol e alguns boliches de trago largo e noites mais largas ainda. Morreu Benedetti, esse poeta que soube fazer-nos viver os nossos momentos mais íntimos e as nossas raivas menos ocultas.” –José Saramago

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Arte e exílio: a América Latina num espelho partido Apesar de distintas em inúmeros aspectos, as ditaduras militares impostas na América Latina ao longo do século XX também apresentavam importantes semelhanças. Uma delas era notória: a perseguição política a seus opositores. Com o aumento da violência, especialmente após a criação da Operação Condor – aliança entre os regimes do Cone Sul para organizar a repressão –, um incalculável número de cidadãos foi obrigado a se exilar e a seguir suas vidas longe das famílias. O exílio de Mario Benedetti foi apenas um dos casos emblemáticos do período. Apresentamos neste Eco outros importantes nomes da arte latino-americana que sofreram com o exílio e que, mesmo longe de casa, não calaram suas vozes.

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Ecos da leitura


Ditadura Ditadura Ditadura Ditadura Ditadura Ditadura Ditadura Ditadura Ecos da leitura

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Peru

Período do regime: 1968-1980

Diferentemente dos outros regimes militares que aconteciam na América do Sul – de caráter conservador e com origem social nas classes dominantes –, a primeira metade da ditadura no Peru (1968-1975) foi de caráter anti-imperialista. Até por isso, o governo do general Juan Velasco Alvarado não foi marcado pelos exílios de artistas – pelo contrário, muitos o apoiaram. Foi o caso do poeta Antonio Cillóniz, que só viria a deixar o país durante o governo de Francisco Bermúdez (1975-1980), este sim, muito semelhante aos outros regimes do Cone Sul.

Chile Período do regime: 1973-1990

Exilados famosos: Miguel Littín, cineasta

Composta poucos meses antes do golpe de estado chileno, a canção El Pueblo Unido Jamás Será Vencido, criada pelo músico Sergio Ortega e popularizada pelo grupo Inti-Illimani, se tornou um hino de resistência contra a ditadura militar.

Patricio Manns, compositor

Illapu, grupo musical

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Ecos da leitura

Antonio Skár meta, escritor


Bolivia Período do regime: 1964-1982

Exilados célebres:

Miguel Aland ia, artista plástico .

Um dos quadros mais famosos de Miguel Alandia faz homenagem a dois líderes mineiros assassinados, Isaac Camacho e Cesar Lora, durante o período de repressão.

Jorge Sanjinés, cineasta.

Argentina Em 1975, a cantora Mercedes Sosa, que anos mais tarde precisaria se refugiar em Paris e Madri, fez uma versão com sua inconfundível voz para Te recuerdo Amanda, canção fundamental e das mais representativas da obra do chileno Victor Jara, assassinado pela ditadura de seu país. Em 1981, lançou o álbum A quien doy, muito influenciado pelo exílio.

Período do regime: 1930-1938, 1966-1973 e 1976-1983

León Gieco, compositor

Norma Aleandro, atriz

Exilados célebres:

Charly Garcí a, compositor

Nacha Guevara, compositora


Brasil Período do regime: 1964-1985

Exilados célebres:

Sílvia Buarque, filha de Chico Buarque e Marieta Severo, nasceu em 1969, durante a época de exílio dos pais em Roma. Foi pouco depois desse período que Chico compôs Meu caro amigo, uma carta em forma de música que escreveu em homenagem ao dramaturgo Augusto Boal, quando este ainda vivia o exílio em Portugal.

Caetano Veloso, compositor

Glauber Rocha, cineasta

o Gil, c Gilbert

Uruguai Período do regime: 1973-1985

Exilados célebres:

Ferre

Juan Carlos Onetti, escritor

iglietti, Daniel V or composit

Eduardo Galeano escreveu e ilustrou O livro dos abraços (1989), aclamada obra que reúne contos recheados do característico lirismo do autor uruguaio, durante seu longo exílio na Espanha.

Alfredo Zitarrosa, compositor


eira Gullar, poeta

Paraguai Período do regime: 1954-1989

Exilados célebres:

Elvio Romero, poeta

Augusto Roa Bastos, escritor

itor compos

Rubén Bareiro Saguier, escritor José Asunción Flores, compositor

Um dos mais importantes livros marcados pela crítica ao autoritarismo paraguaio é O eu supremo (1974), de Augusto Roa Bastos.

Eduardo Galeano, escritor Ecos da leitura

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O sinal está fechado para nós, que somos jovens Em Primavera num espelho partido, a voz da personagem Bea-

triz, filha do protagonista Santiago, é responsável pelos momentos de maior leveza no romance. Por outro lado, a personagem também representa um grupo de indivíduos que carregou e ainda carrega consigo marcas de violência daquele período: as crianças. Muitas são as narrativas de quem viveu as ditaduras militares na América Latina durante a juventude. Uma das mais emblemáticas histórias do regime na Argentina é a de Mariana Zaffaroni Islas. Filha de um casal de militantes uruguaios, Mariana nasceu em 1975 em Buenos Aires, onde os pais decidiram se exilar em virtude da perseguição política. No ano seguinte, porém, a família foi sequestrada por militares e levada a um dos mais sanguinários centros clandestinos de detenção da capital argentina. Seus

pais são considerados desaparecidos até hoje, mas María Ester Gatti de Islas, avó de Mariana, não desistiu da neta. Junto à organização de direitos humanos Avós da Praça de Maio, realizou diversas investigações, encontrou pistas e, em 1983, localizou Mariana – que naquele momento chamava-se Daniela Furci, suposta filha de um agente de repressão argentino. Os resultados dos exames de DNA que comprovavam a paternidade saíram somente em 1991, quando Mariana já tinha 16 anos e uma forte ligação com a família Furci. Imagine descobrir que seu pai é, na realidade, responsável pelo assassinato de sua família biológica: foi um processo que durou longos e dolorosos anos até que a jovem pudesse aceitar a verdade de toda uma vida baseada em uma descomunal mentira. Hoje, aos 43 anos, Zaffaroni apoia campanhas para que crianças Mariana Zaffaroni Islas

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Ecos da leitura


desaparecidas encontrem suas verdadeiras famílias. No Brasil, diversos livros são dedicados aos temas infância e ditadura. Alguns dos depoimentos mais comoventes foram reunidos em Infância roubada: crianças atingidas pela Ditadura no Brasil (2014), publicado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva. Disponível na íntegra na internet, a obra é de difícil assimilação, porém necessária. Relatos de torturas, exposição a assassinatos e muitas outras atrocidades compõem as histórias de vinte vidas que perderam tudo muito precocemente. Entre essas histórias está a de Eliana Paiva, filha de Rubens Paiva, desaparecido durante a ditadura militar. Eliana é irmã de Marcelo Rubens Paiva, que abordou a história do pai e a infância

em Ainda estou aqui (2014), livro autobiográfico enviado pela TAG em dezembro de 2016. No cinema, alguns longas-metragens lançados nos últimos anos tocaram no assunto de forma delicada, sendo diversos deles premiados. Infância clandestina (2011), de Benjamín Ávila, e Kamchatka (2002), de Marcelo Piñeyro, foram baseados nas vivências juvenis dos diretores durante o regime militar na Argentina. Também é semiautobiográfico o filme Machuca (2004), do diretor Andrés Wood, que recriou o Chile às vésperas do golpe de 11 de setembro de 1973. O olhar de uma criança sobre o regime brasileiro foi o ponto de partida em O ano em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburger, que viu o pai e a mãe serem presos pelos militares em 1970.

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Retomar el vuelo:

CULTURA E ARTE NO URUGUAI

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A trajetória artística mais co-

nhecida de Mario Benedetti diz respeito à literatura. No entanto, sua aproximação com a música é notória. Um exemplo está nas diversas referências ao tango em Primavera num espelho partido. Como cancioneiro, Mario Benedetti fez diversas composições, incluindo o célebre trabalho em parceria com Daniel Viglietti, seu conterrâneo, que musicou poemas de Benedetti.

ca pelos escravos e é realizado com instrumentos percussivos. Os ritmos folclóricos chamarrita, milonga, habanera, cielito, entre outros, também se tornaram patrimônio cultural do país e dialogam diretamente com a formação étnica no Uruguai. O já citado tango, tão apreciado por Benedetti, revelou nomes como o do cantor e compositor José Razzano que, em 1911, formou o famoso dueto com Carlos Gardel.

A canção no Uruguai tem uma forte diversidade em termos de estilos, assemelhando-se aos países da América do Sul como, por exemplo, Argentina, Paraguai, Bolívia e o Sul do Brasil. Entre os ritmos mais apreciados no país, encontra-se o candombe, que foi trazido da Áfri-

Nas artes plásticas, grandes nomes como o de Juan Manuel Blanes, conhecido também como o pintor da pátria, destacaram-se no panorama da arte pictórica. Aproximando-se das formas clássicas, Blanes retratou figuras importantes para a história uruguaia, além de costumes,

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situações, lendas e personagens folclóricos. Joaquín Torres-García é outro nome que se destaca no panorama artístico nacional. Criou o El Taller Torres-García, escola de pintura e desenho que mais tarde se tornaria o principal movimento da estética Universalismo Constructivo, tendo boa parte de seus alunos como participantes. Esse estilo delineou elementos distintos e muitas vezes contrários: emoção e razão, clássico e moderno, primitivo e urbano. Na escultura, Juan Manuel Ferrari eternizou seu nome por meio de um trabalho de modelagem impactante de aspecto impressionista, ainda que tenha se aproximado de inúmeros estilos e temas. El Cafetero (1896), El Obelisco de Las Piedras (1911) e El Ejército Libertador del General San Martín (1914) são três das suas obras mais conhecidas. Cabe também ressaltar o cinema produzido em território uruguaio. A história do cinema no país tem início ainda no fim do século XIX no estilo filme-registro dos irmãos Lumière. O espanhol Felix Oliver grava o registro Carrera de bicicletas en el velódromo de Arroyo Seco em 1898, inaugurando a arte cinematográfica nacional. Mesmo que a história do cinema no Uruguai seja altamente produtiva, boa parte das obras mais reconhecidas a partir de prêmios internacionais são lançadas no início do século XXI. Em 2001, os diretores Pablo Stoll e Juan Pablo Rebella codirigiram o filme 25 watts, que mostra as tensões individuais enfrentadas por três jovens

em uma atmosfera cômica e dramática. Um ano depois, O último trem (2002), de Diego Arsuaga, filme que aborda questões sobre os embates no seio da indústria cinematográfica, além de problemas sociais pontuais, vence sete grandes prêmios, incluindo o aclamado Prêmio Goya. Em 2007 foi a vez de César Charlone e Enrique Fernandéz serem largamente reconhecidos com o filme O banheiro do Papa, que registrou as expectativas e desilusões acerca da chegada do Papa João Paulo II em uma região marcada por sofrimento e pauperização.

Não te rendas (Mario Benedetti)

Não te rendas, ainda estás a tempo de alcançar e começar de novo, aceitar as tuas sombras enterrar os teus medos, largar o lastro, retomar o voo. [...] Não te rendas, por favor, não cedas, ainda que o frio queime, ainda que o medo morda, ainda que o sol se esconda, e se cale o vento: ainda há fogo na tua alma ainda existe vida nos teus sonhos.

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Um despertar para a leitura Há um ano, nesse mesmo espaço

da revista, contamos aos associados como havia sido a primeira edição do Projeto Despertar, realizada em novembro de 2017. Em 2018, cumprindo o nosso objetivo de ampliar o projeto, preparamos uma novidade: os associados foram convidados a fazer parte ativamente dessa história, se tornando voluntários na iniciativa. Assim como a própria TAG, o Projeto Despertar nasceu da vontade de disseminar histórias e com o objetivo de despertar o hábito da leitura em pessoas com pouco acesso a livros. Se trata de uma expansão da experiência literária da TAG para além da caixa e dos muros do clube. Queremos ajudar a tornar o Brasil um país com mais leitores, atuando cada vez mais em parceria com instituições que trabalham com pessoas em situação de vulnerabilidade social. No final do ano passado, 18 associadas de Porto Alegre decidiram ser voluntárias do projeto, construindo e executando as etapas que envolvem a iniciativa. A instituição WinBelemDom, que atende crian-

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Espaço do associado

ças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, oferecendo diversas oficinas no turno inverso ao escolar, foi a nossa parceira nessa empreitada. O livro escolhido, “A bolsa amarela”, de Lygia Bojunga, serviu como base para as várias atividades concebidas pelas associadas que ocorreram durante todo o mês de novembro. Para que o encerramento desta edição fosse tão incrível quanto a sua elaboração, foi realizado um evento no início de dezembro. Além da celebração e da discussão acerca das percepções sobre o livro, as crianças puderam assistir a uma peça de teatro sobre a obra e participar de várias brincadeiras - tudo regado a lanches e muita diversão. As crianças ganharam a sua própria bolsa amarela e agora possuem uma estante com vários livros para continuar a alimentar o seu gosto pela leitura. Em 2019, queremos levar o despertar literário a muito mais lugares e pessoas, formando um Brasil mais leitor ao lado de nossos parceiros e associados! Vamos construir um Brasil com mais leitores?


Ricardo Ara

Descubra mais sobre o projeto: Acesse https://www.taglivros.com/blog/projeto-despertar-2018

Espaรงo do associado

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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar a obra de forma mais complexa.

Spoiler!

Apesar da ponta quebrada, o espelho serve, a primavera serve Uma dica: depois de ler Prima-

vera num espelho partido (em espanhol Primavera con una esquina rota), assista a Uma noite de doze anos (La noche de 12 años). O recente filme de Álvaro Brechner narra a prisão de José ‘Pepe’ Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro, militantes tupamaros feitos reféns pela ditadura civil-militar uruguaia em 1973. A prisão durou os doze anos do título do filme, e a narrativa se centra no horror do encarceramento e da tortura, embora não estejam ausentes cenas de leveza e companheirismo. Como apresentado nos demais textos que acompanham esta edição da TAG, Benedetti também teve doze anos

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de sua vida, os mesmos doze anos retratados no filme, marcados pela ditadura uruguaia: em 1973 se exila em Buenos Aires, depois no Peru, em Cuba e na Espanha, retornando a Montevidéu apenas em 1985, com a redemocratização. O paralelo entre filme e livro pode avançar: Santiago, um dos personagens de Benedetti, passa cinco anos preso por ordem da mesma ditadura que encarcerou os uruguaios do filme e exilou o escritor. Alcança a liberdade depois do plebiscito de 30 de novembro de 1980, que iniciou o processo de abertura política no Uruguai. Aliás, é nesse momento esperançoso que Bene-


detti escreve o livro (entre outubro de 1980 e outubro de 1981, em Palma de Mallorca, um de seus lugares de exílio – o livro é publicado em 1982). A escrita pós-vitória no plebiscito pode explicar certa sutileza no tratamento de tema tão duro, garantida também pelo coro de vozes que compõe a estrutura do romance. No filme, o tom ameno é periférico: a ênfase está na violência da prisão (tortura, isolamento, incomunicação) e na proporcional resistência dos três presos. As formas que eles encontram para resistir podem até despertar riso – como as cenas em que Rosencof orienta o apatetado militar na conquista da chica que le gusta – mas o tom geral do filme é sério. No entanto, o enunciado comedido não tira a gravidade do tema do livro. Pelo contrário, ilumina um dos tantos aspectos que circunscrevem o assunto: a vida cotidiana em contexto autoritário. Ainda que Benedetti opte por elidir narrações de violência extrema, tipo de andamento mais ou menos esperado em textos que se dedicam à ditadura, não diminui a potência do livro, apenas transfere essa potência para outros ângulos da narrativa, em especial o empenho em narrar a partir da diversidade de pontos de

vista (a criança, o militante preso, o militante em liberdade, a militante e esposa, o velho, o escritor). Todas essas personagens precisam tocar a vida apesar da prisão de Santiago, movimento não alheio à boa dose de culpa, uma das respostas à violência que o tirou do convívio familiar.

Está presente em Primavera certo traço geral da escrita de Benedetti: a confiança no afeto, na capacidade humana de estabelecer laços mesmo em circunstâncias terríveis. Está nessa esteira o amor de Dom Rafael e Lydia, também o de Graciela e Rolando, este muito embora culpado. Quem leu A trégua, o romance que consagrou Benedetti nos anos 1960, sabe do que estou falando. Para quem não leu, fica essa segunda dica.

Karina de Castilhos Lucena Doutora em Letras pela UFRGS, Karina Lucena desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão nas áreas de Literatura Hispano-americana, Literatura Brasileira e Tradução

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A curadora de março

Lucas Lima e Josi Marchesini

Djamila Ribeiro

“Um livro forte e profundo, que retrata como o ódio por um povo é capaz de brutalizar uma sociedade inteira.” Djamila Ribeiro, curadora de março, é filósofa, escritora e uma das vozes mais ativas do feminismo negro brasileiro. Com passagem pela Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Djamila assina colunas na revista Carta Capital e já publicou dois livros: O que é lugar de fala? (2017) e Quem tem medo do feminismo negro? (2018). A escritora também é coordenadora do selo Sueli Carneiro e da coleção Feminismos Plurais, que tem como protagonistas negros e indígenas. O livro que Djamila indica é o romance de estreia de uma das escritoras mais populares dos Estados Unidos, vencedora do prêmio Nobel e conhecida por relatar e refletir sobre as condições da população negra na sociedade americana. Ambientada em uma cidade estadunidense, a narrativa da obra é centralizada na vida de uma tímida menina que, discriminada pela cor da sua pele, cresce carregando o fardo da inadequação. Sem o amparo dos pais e cercada por uma realidade que a oprime, ela sonha em ter o que lhe impuseram a vida toda como adequado e belo: um par de olhos azuis.

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A próxima indicação


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“Só existe liberdade quando as pessoas podem pensar diferentemente de nós.” – Rosa Luxemburgo


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