habitação flexível
solução habitacional para o campo do américa
trabalho final de graduação do curso de arquitetura e urbanismo - ufc. dez . 2009 tais barreto costa
UFC- Universidade Federal do Ceará Centro de Tecnologia Curso de Arquitetura e Urbanismo
habitação flexível solução habitacional para o campo do américa trabalho final de graduação tais barreto costa . dez. 2009 orientador: prof. dr. daniel ribeiro cardoso
SUMÁRIO ESCOLHA DO TEMA
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INTRODUÇÃO
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ARQUITETURA E TEMPO
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FLEXIBILIDADE NA ARQUITETURA.
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FLEXIBILIDADE NA HABITAÇÃO
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INCREMENTALIDADE NA ARQUITETURA
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ESTUDOS DE CASO
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O CAMPO DO AMERICA
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LEGISLAÇÃO
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DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO NA AREA
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INTERVENÇÃO
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MEMORIAL DESCRITIVO DO PROJETO
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IMAGENS
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CONCLUSÃO
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BIBLIOGRAFIA
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Aos amigos que me ajudaram a realizar esse trabalho: essenciais. Ao meu orientador, prof. Daniel Cardoso, por me orientar, por me ensinar tanto em tão pouco tempo e pelo constante incentivo. À Valdirene e Roberto, por dedicarem tanto de seu tempo a esse trabalho e à comunidade do Campo do América. À minha família, pelo amor, apoio incondicional e paciência. 1
ESCOLHA DO TEMA A escolha de um tema para desenvolver no Trabalho Final de Graduação decorre da formação obtida na escola, dos anseios intelectuais e pessoais do aluno e do contato tido com o mundo no decorrer da formação. A criatividade do arquiteto apresentar-se-á na sua capacidade de fazer conexões e traduzi-las no projeto. O tempo na faculdade me fez perceber que arquitetura não está completa sem suas relações com o meio em que se insere e sem o que a ocupa, desde a escala da cidade às atividades que abriga. É, na verdade, nessas constantes relações que ela acontece. Desse questionamento, do que é arquitetura, de como ela acontece no tempo e de como nós arquitetos (ou ao menos eu, futura arquiteta) devemos fazê-la, que se desenvolve este projeto de graduação. Arquitetura é manifestação do espirito humano, é poesia1, criação e não somente técnica e científica.
1. Houaiss A, Villar M de S, Franco FM de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2009. p. 1514
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INTRODUÇÃO Um dos grandes questionamentos que direcionaram a temática do tempo na arquitetura foi a idéia de defasagem de um projeto, por exemplo: do momento em que este é idealizado, até sua execução. É importante lembrar que o espaço, seja ele qual for, é sempre transformável no tempo e que nós, arquitetos, não podemos controlar as mais diversas necessidades que pode ter o usuário. Com a nova realidade imposta pelo mundo virtual, as possibilidades se tornam mais amplas ainda. As atividades deixam de depender de um lugar físico. Crescimento da família, estilos de vida, tipos de trabalho, esses são apenas alguns dos fatores que podem inviabilizar a idéia inicial do arquiteto. Traduzir necessidades em um objeto a ser experimentado (composto por funcionalidade, estética, racionalidade, sustentabilidade etc) é uma tarefa difícil. Dessa reflexão surge o partido: a flexibilidade. A adoção desse partido considera o usuário como agente, capaz de participar das alterações do edifício, e dessa forma minimizar os desperdícios e garantir maior satisfação, aumentando o ciclo de vida do edifício. É importante deixar claro o caráter experimental da proposta deste trabalho. A primeira escolha foi pela flexibilidade, ainda sem ter um objeto para exercitá-la. Em um segundo momento, o mesmo foi definido: habitação de interesse social.
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A opção por trabalhar a flexibilidade na habitação me pareceu oportuna por este espaço representar diretamente vida do usuário. A casa, a meu ver, é o espaço que tem a possibilidade de abrigar o máximo de atividades, pois inclui também o íntimo, a dormida, o pessoal. Projetar habitação de interesse social vejo como um desafio. A realidade da demanda no Brasil por esse tipo de edificação é um fato e a necessidade de estudos sobre esse objeto é de fácil compreensão: o grande número de pessoas sem moradia ou vivendo em situação irregular no nosso pais e no mundo e a quantidade de investimentos do poder público brasileiro atualmente em programas para atender a essa demanda. Projetar com escassez de recursos é uma tarefa árdua, que exige competência e qualidade profissional.
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ARQUITETURA E TEMPO. “Nem ao passado, nem ao futuro, só se pode dar forma ao presente.”
A frase é do arquiteto Mies Van de Rohe sobre a relação existente entre tempo e arquitetura. Segundo Juan Calduch1 (2002), em sua publicação sobre Memória e Tempo, somente existe o tempo presente, o passado já não existe mais, independente de como ele se projeta no presente (através da memória). O futuro ainda não existe. Assim, o arquiteto só pode dar forma a essa situação: a que coincide com o agora. Arquitetura, no entanto, se direciona inevitavelmente para o futuro, já que o projeto é o meio de expressão da idéia que o arquiteto tem do presente, ou de um futuro presente, que ainda não é realidade e necessita de um tempo para que se torne concreto. É atraves do projeto que acontece essa antecipação do arquiteto. Pela definição do dicionário Houaiss2:
“Projeto: s.m. (1680) 1 desejo, intenção de fazer ou realizar (algo) no futuro; plano 2 descrição escrita detalhada de um empreendimeto a ser realizado; plano, delineamento, esquema 3 esboço provisório de um texto 4 esboço ou desenho de trabalho a se realizar; plano 5 plano geral para construção de qualquer obra, com plantas, cálculos, descrições , orçamentos etc.... ETIM lat. projectus,us ‘ação de lançar para frente, de se estender...”
1. CALDUCH, J. “TEMAS DE COMPOSICIÓN ARQUITECTÓNICA. MEMORIA Y TIEMPO” , ALICANTE, Editorial Club Universitario, (2002) 2.Houaiss A, Villar M de S, Franco FM de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2009. p. 1514
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Para Calduch, o arquiteto então projeta a partir da transformação do presente, do que ainda não existe e está por vir ao mesmo tempo, o desconhecido. O arquiteto lança-se no futuro, rompendo com a realidade, tranformando o espaço ainda existente somente para o ele mesmo em projeto ( parcial, mesmo que este espaço seja pensado para outras pessoas). Todo e qualquer futuro formal, funcional e utilitarista no projeto deve partir de uma idéia ou pensamento anterior por parte do arquiteto. É nesse rampo de possibilidades que devemos manter nosso foco. A realidade dinâmica dos tempos atuais e a conseqüente mudança nos parâmetros de temporalidade da nossa sociedade gera uma discussão a respeito do reflexo desses processos na arquitetura. Segundo Nádia Somekh1 (2007), essas transformações caracterizam a terceira modernidade, sendo modernidade definida como um “processo constante de modernização”. A primeira modernidade, vinculada ao capitalismo mercantil, resultou em cidades e edificações “advindos de uma racionalidade fundamentada por um Estado forte e monumental, que se expressava pela materialização do controle do futuro, do desenho de um desígnio”. A segunda modernidade foi ligada ao capitalismo industrial, criando os grandes conjuntos habitacionais e tendo o zoneamento e a separação de usos como paradigmas, dentro da lógica de racionalidade, de estandardização e de “estado de bemestar“. O arquiteto aparece então como o grande responsável pelo projeto da utopia. No atual contexto da modernidade pós-industrial, novas formas de projeto se mostram necessárias ao atendimento das demandas decorrentes das rápidas transformações vivenciadas pela sociedade, especialmente considerando que os antigos problemas, decorrentes da impossibilidade de implementação plena de um “estado do bem estar” (favelas, cortiços, loteamentos clandestinos e inchaço das grandes cidades são exemplos desses problemas) ainda persistem 1. SOMEKH, Nadia. A MODERNIDADE INACABADA. Disponível em: <http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/166/artigo71337-1. asp>. Acesso em: 23 nov. 2009.
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num mundo de progressos tecnológicos e redes globais. Para Somekh2, os novos instrumentos de projeto devem atender à “imprevisibilidade das mudanças rápidas, do questionamento do racionalismo, da repetição, do controle e da (in)definição do futuro, incorporando as novas tecnologias para criar espaços”. Nesse contexto, a experiência mostra que o projeto concluído, a edificação construída não representa uma obra acabada, e sim inserida em uma rede de relações de uso que persistirão determinando aquele espaço, adaptando-o e reinventando-o, atribuindo-lhe muitas vezes significados que não foram de qualquer forma abordados na concepção original. Considera-se que levar essa realidade em conta nos momentos de decisão de projeto é de essencial importância para a qualidade da ocupação e apropriação posterior, pois o que se planeja e projeta não é mais o objeto em específico, mas o conjunto das relações entre objeto e usuário. José dos Santos Cabral Filho3 (2004) afirma que ter o “sujeito” e não mais o “indivíduo” como usuário do espaço arquitetônico significa pensar assumir que o espaço não mais se fundamenta na ideia de predeterminação arquitetônica, mas que se molda em função do desejo desse usuário, que por sua vez é capaz de se reinventar constantemente. Esse novo usuário é então denominado “sujeito arquitetônico”, pois “deixa de ser fruto da função e passa a ser um sujeito que se faz em consonância com o lugar arquitetônico”. Assim se estabelece uma nova relação entre a predeterminação projetual e o uso do espaço, que está “aquém e além da função em sua forma estrita”, levando em conta que o projeto não estabelece limites rígidos à função, mas sim a “potencializa”.
2. SOMEKH, Nadia. A MODERNIDADE INACABADA. Disponível em: <http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/166/artigo71337-1. asp>. Acesso em: 23 nov. 2009. 3. CABRAL FILHO, José dos Santos. DE VOLTA ÀS ORIGENS - POR UMA ARQUITETURA SEMPRE CONTEMPORÂNEA. 2004. Disponível em: < http:// www.arquitetura.ufmg.br/lagear/origens.html>. Acesso em: 23 nov. 2009.
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FLEXIBILIDADE NA ARQUITETURA. O conceito do Open Building System (sistema aberto) encontra suas bases no conflito existente entre a edificação inerte e a demanda por novas tecnologias, por respostas as necessidades dos usuários. Dessa forma o Open Building classifica a edificação como um sistema composto por seis camadas, cada uma delas possuindo componentes com tempos de vida distintos. Segundo Stewart Brand1 (1994), o sistema (que o mesmo chama de S-6) é comosto pelas seguinte camadas: • SITE (terreno) - esta é o estabelecimento geográfico, a localização urbana, o lote legalmente definido. • STRUCTURE (Estrutura) - são os elementos de fundação. • SKIN (Pele) -São as superfícies exteriores • SERVICES (Serviços) -fiação de telefone, fiação elétrica, encanamentos, sistema de incêndio, ar-condicionado, articulações(elevadores e escadas rolantes). • SPACE PLAN (Planta) - Divisões internas -onde estão as paredes, tetos, andares e portas. • STUFFS (Coisas) - cadeiras, mesas, telefone, quadros, utensílios domésticos; tudo que precisamos na rotina diária. O Open Building recomenda a independência das partes e que se determinem os componentes permanentes e alteráveis. As camadas assumem responsabilidades entre si, se relacionam uma favorecendo a outra. Os componentes permanetes devem servir como uma moldura para os alteráveis, priorizando a adaptabilidade do edifício. Quando
Imagem 1. Sistema Open Building
1. Brand, S. (1994) How buildings learn. What happens after they’re built, Penguin Group, USA.
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aplicado o sistema, o edifício tem grandes condições de aumentar seu ciclo de vida e reduzir gastos desnecessários de tempo, materiais e dinheiro se utilizando da informação e da coordenação das partes desde o princípio. Quando se fala em arquitetura flexivel muitas vezes somos levados a pensar somente em arquitetura efêmera. Essa útima, no entanto, não é a única na qual se pode trabalhar a flexibilidade.
“A única verdadeira diferença entre uma casa e a roupa que vestes é o tamanho - as tuas roupas formam uma pele individual e a tua casa permitirá qualquer número de pessoas no interior. Ambas estão sujeitas a mudanças de moda e ambas cobrem em extensões distintas as nossas indecências - mas é interessante comparar como as peles que formam o habitáculo de uma casa são tradicionalmente permanentes, enquanto que as peles têxteis são removíveis/substituíveis para se adequarem a qualquer capricho do clima, fetiche sexual ou outros. Mas por princípio, um sobretudo é uma casa, ou um carro quando um motor lhe é adicionado” Michael Webb e David Green in COOK, Peter - Archigram2
Quando analisada a citação acima dos integrantes do grupo Archigram, com destaque para o trecho final “...Mas por princípio, um sobretudo é uma casa, ou um carro quando um motor lhe é adicionado.” observa-se a transformação de uma casa em arquitetura portátil. No inicio os autores comparam a casa com vestimentas, e falam de como os revestimentos de uma casa são “tradicionalmente permanentes”, ao final liberam a casa da relação com o terreno ao adicionarem-lhe um motor e possibilitam a portabilidade. O principio básico que distingue arquitetura não efêmera da arquitetura efêmera é a relação com o terreno (SITE). No caso
Imagem 2. Relação Site (terreno) x Edifício
da arquitetura efêmera, a portabilidade é sua essência, e a facilidade na manipulação das outras partes do edifício é uma
2. Michael Webb e David Green in COOK, Peter – Archigram, Princeton Architectural Press (1999): The only real difference between a house and the clothing you wear is one of size – your clothes form a one-man skin and your house will allow any number of people in it. Both are subject to changes of fashion and both cover up to differing extents one’s indecencies – but it’s interesting to compare how the skins that form the enclosure of a house are traditionally permanent while the clothing skins are removable/replaceable to suit any whim of climate, sexual fetish or what-have-you. But in principle an overcoat is a house/is a car when a motor’s clipped on.
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consequência. A arquitetura pode não ser efêmera e ser flexível, quando consideradas alterações em outros “S’s” do sistema de Brand3. Segundo o arquiteto Robert Kronemburg4 (2007), em seu Flexible: Architecture that responds to change, uma forma não profissional, bastante radical e agressiva de se perceber um edifício efêmero é observar os sem-teto. Quando a “arquitetura” acontece sem um terreno, uma locação definida, ela já atinge um nível de flexibilidade muito alto e o desligamento com a propriedade da terra é essencial para esse nível de flexibilização. Esse exemplo é interessante e prático, pois os sem-teto também tem posses, roupas, documentos, papéis. É importante, no entanto, ressaltar que os sistemas construtivos precários desse tipo de “habitação” não oferecem boas condições de vida e salubridade. Grande parte das construtoras brasileiras trabalha atualmente com um Serviço Imagem 3. Sem-teto
de Personalização dos apartamentos para seus compradores. Basicamente, essa personalização envolve uma escolha prévia da localização das paredes internas. Para que isso seja possível, o edifício tem que ser pensado, desde o projeto como um sistema aberto, e deve se prever localização da estrutura (structure) e serviços (services) para maior flexibilidade da planta (space plan). Para Robert Kronemburg, a utilização dos princípios do Open Building é uma das maneiras de se garantir flexibilidade e longa vida a edificação, visto que com a independência das partes a mesma ganha autonomia construtiva. O mesmo cria uma classificação para as possibilidades de flexibilização dos edifícios em seu livro.
3. Brand, S. (1994) How buildings learn. What happens after they’re built, Penguin Group, USA. 4. Kronenburg, Robert (2007), Flexible - Architecture that Responds to Change, London: Laurence King Publishing Ltd.
Imagem 4. Proposta de design para abrigo de sem-teto.
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• Mobilidade - que compreende a mudanças rápidas, reconfigurações do espaço do dia-a-dia. • Evolução - que é a capacidade de o edifício se modificar num período longo. • Elasticidade - que é a contração/expansão do espaço habitável. Cada componente de cada camada do sistema de Brand, pode passar por essa classificação de Kronemburg para que se entenda a capacidade adaptativa em cada nível da edificação. Uma das críticas mais fortes aos espaços flexíveis é que pela dificuldade do design para obtenção desses espaços, tem sido renegada, cada vez mais, a forma arquitetônica e transformado os mesmos em grandes volumes sem nenhuma personalidade. O que é essencial dos espaços flexíveis, é que o espaço transformado seja igual ou melhor que os estáticos, isso envolve também sua relação com o exterior, com a cidade, ou essa característica perde todo o sentido de existir.
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FLEXIBILIDADE NA HABITAÇÃO. Aplicar o conceito de flexibilidade ao espaço doméstico, significa entender a habitação como um espaço dinâmico, sem fronteiras estabelecidas para o seu uso, assumindo que vivemos em um contexto socio-cultural imprevisível. Quando consideramos uma família, ou um grupo de famílias, traçamos um perfil e desenvolvemos um programa de necessidades para iniciar o projeto, devemos estar conscientes, que mesmo conhecendo de perto o problema, buscando atender ao máximo as necessidades dos usuários, não podemos deixar de considerar mudanças no estilo de vida. A situação econômica, os valores, os tipos de trabalho, o crescimento familiar, todas essas mudanças pedem uma resposta no espaço. Assim, considerar a habitação como um sistema aberto a mudanças seria uma das formas de tonar esse espaço projetado mais adequado à realidade. Moradia e trabalho agora deixam de depender de espaços físicos determinantes e estão se tornando, cada vez mais, um conjunto de atividades. Se torna mais facil trabalhar as mudanças numa edificação quando o desenho já prevê alterações e dá essas condições sem grandes desperdícios. A adaptabilidade considerada a partir do Open Building, constitui uma estratégia básica para permitir a flexibilidade. Caso esse sistema não seja pensado de forma independente, a autonomia das partes que evoluem mais lentamente podem bloquear o crescimento das mais que estão mais atualizadas e comprometer a eficiência da proposta como um todo.
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No caso da habitação de interesse social, é de fundamental importância a decisão sobre o que deve ser componente permanente e o que deve ser alterável, pelas limitações impostas pelo baixo valor financeiro normalmente disponibilizado nesse tipo de edificação, além de ser considerada a manipulação de alguns componentes alteráveis pelo próprio morador. “Com efeito, as formas de promoção de habitação pede-se cada vez mais que sejam projetos de futuro-social, econômica e ambientalmente duráveis- para contexto sócio-culturais cada vez menos previsíveis. É por isso essencial pensar em habitação como um sistema aberto à mudança, logo mais adaptável a uma maior diversidade sócio-cultural, mais durável, mais rentável. Ao procurar dotar o espaço da habitação de capacidade adaptativa à mudança, está-se a proporcionar uma habitação ajustada a um maior numero de pessoas e ao mesmo tempo a contribuir para optimizar os recursos envolvidos, facultando-se um valor acrescido” Rita Abreu e Teresa Heitor. Stratégias de flexibilidade na arquitectura doméstica holandesa. da conversão à multifuncionalidade.1
O desenho não é finito, não determina em nada a ocupação, ao permitir a interação entre usuário e edifício, se possibilita a criação de espaços específicos, que deixam de ser anônimos, garantindo a evolução do edifício. Brandão e Heineck2 (2008), no artigo “Significado multidimensional e dinâmico do morar” escrevem sobre bases teóricas que definem o significado de morar como um processo dinâmico e enfocam a importância de estudos sobre flexibilidade e adaptabilidade nas moradias, principalmente nas de baixo custo. As diretrizes propostas para flexibilização da moradia são traçadas com base em uma extensa pesquisa e análise de mais de 3.000 plantas de apartamentos no Brasil. 1. ABREU, Rita; HEITOR, Teresa. Estratégias de Flexibilidade na Arquitetura doméstica Holandesa: da conversão à multifuncionalidade. In: NUTAU, 6, 2006. São Paulo. Anais... São Paulo, FUPAM, 2006. 2. BRANDÃO, D., HEINECK, L.. Significado multidimensional e dinâmico do morar: compreendendo as modificações na fase de uso e propondo flexibilidade nas habitações sociais. Ambiente Construído, América do Norte, 3, apr. 2008. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/index.php/ ambienteconstruido/article/view/3504/1905. Acesso em: 01 Dec. 2009.
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No texto dos autores comentam que muitas decisões do projeto podem ser passadas ao usuário, garantindo a adaptabilidade natural das moradias.
“No ambito de morar, a territorialidade é exercida pelos moradores por meio do controle sobre o espaço. Agir sobre a moradia e modificando-a é uma expressão de territorialidade” 3
3. BRANDÃO, D., HEINECK, L.. Significado multidimensional e dinâmico do morar: compreendendo as modificações na fase de uso e propondo flexibilidade nas habitações sociais. Ambiente Construído, América do Norte, 3, apr. 2008. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/index.php/ ambienteconstruido/article/view/3504/1905. Acesso em: 01 Dec. 2009.
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INCREMENTALIDADE NA ARQUITETURA Os arquitetos devem se ocupar de temas que careçam de arquitetura e tenham real necessidade de sua participação, para utilizar o design como síntese de problemas reais e complexos trabalhando no que lhe compete. Devemos pensar na solução mais viável, considerando estratégias. Dentro da questão da habitação social uma estratégia relevante é a divisão do trabalho, garantindo que a autoconstrução seja parte do processo, sendo considerada desde o principio da ação projetual. É exercer a função de arquiteto, pensando na implantação, soluções formais, estruturais, funcionais etc, no entanto permitindo a participação do morador no que lhe é mais cabível, de forma controlada e orientada pelo arquiteto.
Imagem 5. Favela
A autoconstrução é uma realidade, uma característica da população brasileira, facilmente perceptível quando se olha para os principais exemplos dessa realidade: as favelas. Elas consistem em respostas de adaptação a uma realidade crítica, criada pela escassez de recursos materiais, financeiros, de infraestrutura e pela necessidade de sobreviver no espaço urbano, criando condições mínimas de habitabilidade e um tecido social vivo, com características culturais e econônimas próprias.
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Apesar da insalubridade e péssimas condições de moradia recorrente nas favelas, é inegável a existência de espaços urbanos, no mínimo, interessantes. O problema das favelas brasileiras tem sido estudado por intelectuais no mundo inteiro, e existe quem tome esse modo de vida tão precário como exemplo para moradias a serem projetadas. É o caso do holandês Eric Vanderfeesten1 (2008). Eric vê o exemplo das favelas como uma referência para guiar projetos de habitação. Ele fala que somente uma cor ou tipo de revestimento na fachada não são suficientes para garantir um reconhecimento e identidade dos moradores. Essa experiência, é na verdade, composição da moradia como um todo.
garantida pelo formato, estrutura,
Imagem 6. Private Balconies Eric Vanderfeesten
Nas favelas cada casa é única, com seus próprios revestimentos, cores, esquadrias etc, o que proporciona um facil reconhecimento pelos moradores em áreas tão adensadas. Com isso, Eric propõe uma aproximação das tipologias e implantação das moradias das favelas para gerar planos habitacionais, por um “sistema de parâmetros que cria através do computador uma ordenação” de habitações assemelhando-se a configuração das favelas, sendo ressaltado em sua proposta o conceito de “private balconies” (terraços particulares), a nossa famosa laje-terraço tomada por outro olhar. “Es maravilloso participar en la construcción de lo que vas a vivir. Y no digo haciendo renders.”
Imagem 7. Laje. Favela Brasileira.
Santiago Cirugeda. 2
Santiago Cirugeda é arquiteto, graduado pela Universidade Internacional da Catalunia, em Barcelona. Seu projeto Receitas Urbanas é uma observação e análise da cidade que tem como consequencia um afrontamento das carencias urbanisticas detectadas. Aborda a realidade da cidade com sua arquitetura portátil, imediata e engenhosa em 1. VANDERFEESTEN, Eric.Confection for the masses in a parametric design of a modular favela structure Disponível em: http://favela. evanderfeesten.nl/project.php?20. Acesso em: 01 Dec. 2009 2. Frase do arquiteto Santiago Cirugeda, nascido em Sevilla em 1971, professor da Faculdade de Belas Artes de Malaga, na Espanha.
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intervenções efêmeras e estratégicas de ocupação, incitando os cidadões a participarem das tomadas de decisão sobre assuntos urbanísticos de sua cidade. Cirugeda propõe em seu projeto uma série de ações de intervenção para aproveitar os vazios legais em benefício da comunidade, sem fins lucrativos. É um processo de autoconstrução das cidades, gerenciada pela ideia do arquiteto, capacitando os cidadãos com instrumentos para fazer a diferença. ADVERTENCIA Todas las recetas urbanas mostradas a continuación son de uso público, pudiendo ser utilizadas en todo su desarrollo estratégico y jurídico por los ciudadanos que se animen a hacerlo. Se recomienda el estudio exhaustivo de las distintas localizaciones y situaciones urbanas en las que el ciudadano quiera intervenir. Cualquier riesgo físico o intelectual producido con el uso de las mismas correrá a cargo del ciudadano. Santiago Cirugeda3
As intervenções de Cirugeda se desenvolvem a partir de “brechas” na legislação. 1. CONSTRUIR REFÚGIOS URBANOS. Com a permissão da prefeitura da cidade para realizar uma obra de pequeno porte na fachada da edificação, como pintura, mudança de revestimento etc, se consegue que algum amigo arquiteto assine o projeto do andaime (exigencia de segurança para a execução da obra) para ser colocado na fachada. A partir daí, ocorre a personalização do andaime (ou refúgio urbano) com os materiais e revestimentos que satisfaçam o usuário. Quando a licensa é concedida pela prefeitura, ocorre a instalação do andaime/refúgio, com a possivel recolocação do mesmo em outros pontos da fachada. 3.CIRUGEDA, Santiago. Recetas Urbanas. Disponível em: http://www.recetasurbanas.net/ Acesso em: 01 Dec. 2009
Imagem 8. Refúgios Urbanos, projeto de Santiago Cirugeda.
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2. RECUPERAR A RUA. Visando solucionar (e chamar atenção para) a carência de espaços públicos em determinada área, é pedida autorização para que se realize uma obra no interior de uma residência ou outro espaço qualquer, e solicitada a colocação de um container. Quando dada a permissão para colocação do container, é deixado ao cidadão o encargo de utilizar esse “espaço cedido” como por exemplo : uma sala de leitura, lugar para crianças brincarem, tablado de flamenco etc. Cirugeda é professor da Faculdade de Belas Artes de Málaga e considera importante a existência de uma diciplina de livre configuração da autconstrução, trazendo para a universidade um debate sobre sobre o tema. A autoconstrução considera os cidadãos capazes, retirando do arquiteto e urbanista a tomada de decisão sobre o futuro cidades. A arquitetura e urbanismo, pensada sem a participação da população é utópica. É nesse momento que se considera a divisão do trabalho para o surgimento de uma sociedade mais participativa na construção das cidades.
Imagem 9. Recuperar a Rua. Intervenções Urbanasa. Projeto de Santiago Cirugeda.
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PRODUÇÃO HABITACIONAL E MANUTENÇÃO DAS REDES SOCIAIS. Entende-se por redes sociais todas as formas de relacionamento entre os seres e entre seus agrupamentos. As redes sociais são responsáveis por manter troca, compartilhamento entre pessoas com interesses semelhantes, bem como valores. Essa conexão entre pessoas e grupos, tornando-se uma estrutura mais ampla é essencial para que determinada rede ganhe relevância. A política de regularização fundiária, com foco nas remoções de famílias que se situam em áreas de risco, de proteção ambiental etc, resulta em intervenção nas redes sociais existentes. Redes estas que levaram anos para se configurarem. Muitas das favelas brasileiras já são históricas e as suas redes são fortes e determinantes para vida dos moradores. Assim como, antes de se realizar qualquer intervenção nas comunidades, se estudam as tipologias habitacionais, perfil dos moradores, as formas de ocupação nas favelas, os usos etc, é de fundamental importância, e talvez mais determinante que todos os outros aspectos, que sejam estudadas as redes sociais existentes em todos os seus níveis, de vizinhança, familiares, profissionais, instituições, de serviços para a comunidade etc. Algo que leva tanto tempo quando uma vida para se constituir, certamente é relevante e merece a devida atenção.
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A produção habitacional em Fortaleza hoje é resultado da política de regularização fundiária. As famílias que vão para os conjuntos habitacionais criados, são fragmentos de uma comunidade. Segundo o arquiteto Alejandro Aravena1, a quebra das redes sociais existentes pode ser um prejuízo para a comunidade e para o governo. Um exemplo simples é o de uma família formada por pai, mãe e filhos. Os pais trabalham e deixam os filhos com a avó durante o dia, ou com uma prima, vizinha, ou qualquer outra pessoa com quem tenham relação de confiança. Ao separá-los, essa relação de confiança demanda muito tempo até que seja construída novamente e enquanto isso, diminui-se a renda da família, pela impossibilidade de um dos pais trabalharem durante o dia. Como fica a comunidade sem aquelas pessoas? Como ficam aquelas pessoas sem a comunidade? As redes sociais são as referências do homem, se iniciam na infância e tem papel determinante na formação da identidade do indivíduo.
“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.” Poema de Carlos Drummond de Andrade.2
1.Alejandro Aravena (1967), Arquitecto de la Universidad Católica de Chile (1992). Trabaja de manera independiente desde 1994 y desde el 2006 es Director Ejecutivo de ELEMENTAL S.A. Informação disponível em: http://www.alejandroaravena.com/ Acesso em: 01 Dec. 2009 2. ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia Poetica, 1960.
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ESTUDO DE CASO Como estudo de caso, algumas experiências/propostas são revisadas aqui, com o intuito de dar suporte e contribuir com diretrizes para a proposta. Os exemplos escolhidos foram: • O conjunto habitacional conhecido como Quinta de Monrroy, situado na cidade de Iquique, no Chile, projeto do grupo Elemental, coordenado pelo arquiteto Alejandro Aravena. • Vila Operária, São Paulo, Brasil, projeto de Barbosa & Corbucci Arquitetos Associados. • Fukuoka housing, Fukuoka, Japão, projeto do arquiteto Steven Holl. • Requalificação da Comunidade Verdes Mares em Fortaleza, Ceará, Brasil, projeto ganhador do concurso da Caixa Econômica Federal, dos arquitetos Bruno Melo Braga e Igor Lima Ribeiro juntamente com os estudantes Epifanio Junior, Bruno Perdigão e Marcelo Bacelar.
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PROJETO ELEMENTAL, QUINTA DE MORROY, IQUIQUE, CHILE. “Quando pensei que uma cadeira não poderia ser menos que isso...” “...vejo o caso desse índio paraguaio. O problema de sentar-se não pode ser reduzido mais do que está ai, depois disso, desaparece o substantivo cadeira, e fica somente o verbo sentar, este é o limite.”
Imagem 10. Cadeira tradicional / cadeira de um índio paraguaio
As frases são do arquiteto Alejandro Aravena1, sobre a tentativa de chegar ao mínimo, enxugar ao máximo o problema, trabalhar com recursos exatos e projetar uma arquitetura precisa, com design irredutível. Saber trabalhar com a escassez de meios e materiais em um problema extremamente relevante no mundo. É a partir daí que se desenvolve a proposta do grupo ELEMENTAL, como deixa claro no próprio nome. “Propomos deixar de pensar a moradia como um gasto, mas como um investimento social” Alejandro Aravena.
Imagem 11. Equação Elemental.
Esse é outro pilar da proposta do Elemental2. Fazer com que as habitações construídas possam aumentar de valor no decorrer do tempo. Com isso, eles chegaram a uma estratégia para intervenções em Quinta de Morroy, no Chile. Esta estratégia consiste em garantir, com a verba disponibilizada para construção das moradias, que as famílias estejam locadas dentro da rede de oportunidades da cidade. No caso de Iquique, garantida a locação, o que sobrava da verba só permitia a construção de 30m2 por habitação (metade). 1.Alejandro Aravena (1967), Arquitecto de la Universidad Católica de Chile (1992). Trabaja de manera independiente desde 1994 y desde el 2006 es Director Ejecutivo de ELEMENTAL S.A. Informação disponível em: http://www.alejandroaravena.com/ Acesso em: 01 Dec. 2009 2. ELEMENTAL. Proyecto de viviendas. Quina de Moroy. Disponível em: http://www.elementalchile.cl/viviendas/quinta-monroy/quintamonroy/
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A idéia do Elemental foi construir a parte mais difícil da casa, que a família nunca poderá fazer sozinha (estrutura, banheiros, escadas), a responsabilidade pela construção da outra metade da casa é repassada para o morador. A escassez de recursos levou a uma solução criativa. Pela observação de favelas do mundo inteiro se percebe que a autoconstrução é realidade, e que os moradores tem condições de se assumir essa responsabilidade, juntamente com uma assistência técnica. A implantação das unidades habitacionais acontece formando pequenos grupos de 20 a 23 habitações voltadas para uma área livre central, com o intuito de criar áreas de convivência e restaurar as redes sociais existentes. A partir do problema inicial, que era a falta de recursos, encontrou-se uma solução para quebrar a monotonia tão comum nos conjuntos habitacionais. Os arquitetos então controlaram a construção do cenário final da habitação através do projeto, limitando as áreas de autoconstrução por moradia.
Imagem 11. Unidades habitacionais em Quinta de Morroy., antes e depois da ocupação e intervenção dos moradores.
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BARBOSA & CORBUCCI ARQUITETOS ASSOCIADOS, VILA OPERÁRIA, SÃO PAULO, BRASIL. Num terreno de 8m x 40m (320m2) existia um cortiço, no bairro do Ipiranga, com oito barracos de madeira, os banheiros e pias ficavam do lado de fora das casas, os moradores estavam próximos a um esgoto a céu aberto. A intervenção realizada pelos arquitetos adotou a estratégia de criar uma circulação enclausurada com escadas nos recuos exigidos pela prefeitura, essa seria a única forma de fazer um melhor aproveitamento do grande corredor. A iluminação e ventilação cruzada foi obtida através do recuo nesse lado da edificação e na fachada oposta com a criação de fossos ajardinados que no térreo se tornam pequenos quintais para as residências. A exigência inicial da COHAB foi de 18 apartamentos, o que inviabilizaria a proposta. Foram então construídos 12 apartamentos de 35m2 a 43m2. No térreo, as habitações são acessíveis. No segundo são associadas a um duplex. Para não estourar o orçamento e na urgência de retornar as famílias (que ficaram em um hotel no decorrer da construção) para a área, foi utilizado um sistema de rápida execução e baixo custo: alvenaria estrutural. Os 12 apartamentos hoje se mobilizam em gestão condominial para manutenção das áreas comuns e da edificação como um todo.
Imagem 12. Imagens da situação anterior (ocupação irregular e do projeto finalizado.
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PROJETO DO FUKUOKA HOUSE, DE STEVEN HOLL. São 28 apartamentos, O partido tomado pelo arquiteto foi o da flexibilidade original das casas japonesas, com suas paredes de papel (fusuma) e tatames. O reflexo disso no projeto foi um espaço interno extremamente rico e variado. Com paredes que se dobram e se abrem. Durante o dia, com a reconfiguração do espaço interno pode-se ter mais áreas de convivência livres, anoitecento, as paredes voltam para os seus lugares e criam um espaço mais reservado para a dormida a noite.
Imagem 13. Croquis do projeto de Steven Holl e imagens do espaço interno dos apartamentos
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BRUNO BRAGA, IGOR RIBEIRO E EQUIPE, REQUALIFICAÇÃO DA FAVELA VERDES MARES, FORTALEZA, CEARÁ BRASIL. A proposta do concurso consiste em intervir na comunidade Verdes Mares, no bairro do Papicu, em meio a uma área bem atendida pela infra-estrutura da cidade, a região sofre forte especulação imobiliária, com uma série de terrenos vazios. Pelo novo plano diretor da cidade, a área ocupada é classificada como zona especial de interesse social (ZEIS) tipo 01, e os terrenos vazios ZEIS tipo 03, dessa forma, a terra deve cumprir sua função social. O partido arquitetônico surgiu da idéia de relocar as famílias sem privilegiar nenhuma, no caso todas as casas com acesso pelo pavimento térreo, com a possibilidade de criação de uma fonte de renda, o comércio ou serviço. Assim foi pensada a unidade de dois pavimentos mais estreita possível, tentando garantir a flexibilidade para as famílias com a ampliação futura das residências pela autoconstrução. A proposta abordou a sustentabilidade de forma bastante coerente, considerando mão-de-obra local, e soluções tradicionais para adaptação climática. Foi utilizado também o tijolo solo-cimento. Imagem 13. Esquema de crescimento da unidade habitaçional proposto.
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É fácil perceber as influências das propostas do grupo Elemental nesse projeto. As questões arbodadas de valorização da casa, inserção em área com infra-estrutura na cidade, bem com os processos de autoconstrução. É interessante a adequação das idéias no que se refere a caracterização da comunidade hoje, como sendo bastante comercial, e isso ter sido determinante no partido, configurando a implantação e a dimensão em largura de cada moradia, dirigindo o crescimento para a verticalização e apropriação das áreas de varanda.
Imagem 14. Perspectiva geral da proposta.
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O CAMPO DO AMÉRICA
PANORAMA HISTÓRICO 1
Panoramica do Campo do América e o contraste com seu entorno. Imagem 15.
As primeiras casas da comunidade do Campo do América foram construídas aproximadamente há 70 anos em 1940, quando algumas famílias, vindas do interior do Ceará em busca de uma vida melhor na cidade grande, ocuparam seu espaço, construindo pequenas casas de taipa, com recuos de frente, laterais e de fundo configurando um espaço bastante diferente do que se encontra hoje no local. Essa ocupação não sofreu resistências visto que a área não tinha grande visibilidade para a cidade: estava deslocada do núcleo central urbanizado de Fortaleza. Os bairros Aldeota e Meireles eram utilizados pelos fortalezenses com local de veraneio. 1.PINHEIRO, Abel Táiti Konno: Estratégias de intervenção urbanística no Campo do América.Trabalho final de graduação. Universidade Federal do Ceará: Fortaleza, 2007.
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Nos anos 60 as políticas públicas existentes tinham a intenção de liberar áreas centrais ocupadas irregularmente para dar espaço à infra-estrutura pública. Dessa forma, a comunidade, que já se encontrava bastante consolidada, começa a sofrer pressões imobiliárias pelo crescimento da cidade que já se espalhava a leste. Em 1979, no entanto, em oposição às ações urbanas de transferência dos favelados para áreas periféricas, os moradores ganham um apoio no poder: o então governador, Virgílio Távora, vizinho da comunidade, que iniciou um processo de regularização fundiária no Campo do América, com o intuito de garantir a permanência dos moradores e impedir as pressões imobiliárias através da PROAFA (Programa de Assistência às Favelas da Área Metropolitana de Fortaleza). O projeto de regularização fundiária proposto pela PROAFA para o Campo do América garantia que os moradores, através de arrecadação de taxas ao estado por um determinado período, obtivessem a escritura do terreno. Muitos moradores, no entanto, desacreditaram no projeto e não aproveitaram a oportunidade. A intervenção proposta foi a de desmembramento de lotes, para agregar duas unidades e, através da verticalização de baixa densidade, criar mais áreas livres. A intervenção, por unanimidade, não foi aceita. Os moradores temeram a desvalorização do seu patrimônio fundiário, tão visado na época. A área do campo de futebol foi a única a qual o governo não obteve sucesso na desapropriação. Supostamente, em 1970 o terreno pertencia ao INSS que estaria interessado em repassá-lo ao mercado imobiliário. Alguns moradores contestam e falam da existência de um documento que cede o uso do campo para os moradores da comunidade. É assim que a comunidade do Campo do América resiste no local, contrastando ainda mais com o grande desenvolvimento da Aldeota e sofrendo com o crescimento da pressão imobiliária. Esse cenário crescente, entretanto, recebe um freio com a criação do novo plano diretor aprovado pela prefeitura atual, que destina a área à regularização fundiária e permite que os moradores sonhem mais tranqüilos com seu futuro no local.
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ESCOLHA DA LOCALIZAÇÃO “A vida no campo do América segue por onde a bola for.” Revista Farol 1
Não é bem assim que acontece a vida das pessoas que moram no Campo do América. A comunidade fica a somente 400 metros da praia e dista aproximadamente 1km do centro da cidade e do coração da aldeota. Situado em uma área na qual o valor do metro quadrado é um dos mais caros da cidade, está inserida parte no bairro Meireles, parte na Aldeota e contrasta com seu entorno: os prédios mais caros de Fortaleza, como exemplo o Mansão Macêdo, com apartamentos de até 900m2 e heliponto em sua cobertura. A área já é vista pelos moradores (tanto da comunidade quanto dos prédios vizinhos) como um bairro, tão forte é a barreira social que os separa do seu entorno. Dividida em quatro quadras, percebe-se que a vida é bem diferente em cada quadra e que apesar da situação de “igualdade” que os une socialmente, a comunidade encontra-se bastante segregada quanto as vontades para o futuro.
Imagem 16. Fotografia do Google Earth destaando a localização da comunidade
Uns acham que o campo deveria se tornar um grande espaço construído, coberto, para realização de atividades da paróquia, do centro comunitário, se queixando da má utilização do campo, um espaço tão grande e com tão pouca
1.RIBEIRO, Cláudio. Revista Farol, ed 1. Publicação gratuita da Prefeitura de Fortaleza. Fortaleza, 2007.
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utilidade, outros vêem no campo como um lazer, e até mesmo possibilidade da ascensão social pelo futebol, tão comum no nosso país . O que os une, na verdade, não é o campo, apesar de este ter grande importância para a comunidade, mas sim a vontade de permanecer no local pelo valor de identidade e pela relativa boa qualidade de vida que os moradores tem acesso, ao serem atendidos pelo que existe de melhor da infra-estrutura pública da cidade de Fortaleza. A localização da casa de uma família com renda abaixo de três salários mínimos é algo que a mesma dificilmente vai ter condições de mudar, preferir, escolher. Fica então a cargo dos governantes a responsabilidade de proporcionar um lugar atendido pela rede de oportunidades da cidade para essas pessoas morarem, visto que já são desprivilegiadas em vários aspectos e uma boa localização da moradia pode fazer uma grande diferença. A escolha por intervir no Campo do América se deu exatamente por essas condições privilegiadas de localização e acesso a rede de oportunidades da cidade (trabalho, educação, saúde, transporte, lazer) tão diferente da realidade dos conjuntos habitacionais produzidos em Fortaleza, vendo o gasto social como um investimento para diminuir essa desigualdade. Melhorar as habitações da área é investir no social, de forma que cada moradia tenha o valor além de propriedade o valor da localização, que fazem com que eles queiram permanecer no local.
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LEGISLAÇÃO De acordo com o Plano Diretor Participativo de Fortaleza 1, no mapa de macrozoneamento, a área em estudo encontrase classificada como ZOC - Zona de Ocupação Consolidada, no entanto, dentro da ZOC é ainda classificada como ZEISZona Especial de Interesse social, tipo 01. Art. 86 - A Zona de Ocupação Consolidada - ZOC caracteriza-se pela predominância da ocupação consolidada, com focos de saturação da infra-estrutura; destinando-se à contenção do processo de ocupação intensiva do solo. Dos os objetivos da Zona de Ocupação Consilidada - ZOC I - Controlar o adensamento construtivo de modo a evitar a saturação do sistema viário e da infra-estrutura disponível e inadequações relativas à qualidade da paisagem e ao conforto ambiental; II - Recuperar, para a coletividade, a valorização imobiliária decorrente de investimentos públicos; III - Implementar instrumentos de indução do uso e ocupação do solo; IV - Tornar adequadas as condições de mobilidade urbana, considerando focos de saturação do sistema viário; V - Incentivar a valorização, a preservação, a recuperação e a conservação dos imóveis e dos elementos característicos da paisagem e do patrimônio histórico, cultural, arquitetônico, artístico ou arqueológico; VI. Promover a integração e a regularização urbanística e fundiária dos núcleos habitacionais de interesse social existentes; 1.Prefeitura. Plano Diretor Participativo. Fortaleza, 2008
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Dos os objetivos de ZEIS 1- Zona Especial de Interesse social 01 Art. 119 - As Zonas Especiais de Interesse Social 1 - ZEIS 1 são compostas por assentamentos irregulares com ocupação desordenada, em áreas públicas ou particulares, constituídos por população de baixa renda, precários do ponto de vista urbanístico e habitacional, destinados à regularização fundiária, urbanística e ambiental. Art. 120 - São objetivos das Zonas Especiais de Interesse Social 1 - ZEIS 1: I - Efetivar o cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana; II - Promover a regularização urbanística e fundiária dos assentamentos ocupados pela população de baixa renda; III - Eliminar os riscos decorrentes de ocupações em áreas inadequadas; IV - Ampliar a oferta de infra-estrutura urbana e equipamentos comunitários garantindo a qualidade ambiental aos seus habitantes; V - Promover o desenvolvimento humano dos seus ocupantes.
Imagem 17. Mapas destacando o macrozoneamento e zonas especiais em Fortaleza
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DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO DA ÁREA Para o desenvolvimento de uma proposta de intervenção para o Campo do América, foi realizada uma pesquisa com aplicação de questionários para que fosse traçado o perfil sócio-econômico dos moradores. Com o intuito de compreender melhor as transformações realizadas nas habitações, foram escolhidas, como ponto de partida, as famílias que participaram do programa Casa Bela, que se trata de um programa da prefeitura que financia a compra de materiais de construção para realização de reformas em habitações de famílias com renda de 1 a 3 salários mínimos e com isso fazer uma analise de como a habitação se encontra hoje, após a reforma, tentando compreender que tipo de alterações vem sendo feitas nas habitações de baixo custo. Foi definido que seriam aplicados 30 questionários, juntamente com registro fotográfico e levantamento da área da residência. De 30 famílias, 19 eram participantes do Casa Bela (foram entrevistadas todas as famílias que participaram do programa) e as outras 11 foram indicadas por entrevistados. Imagem 18. Questionário aplicado na pesquisa.
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Depois de concluída a etapa de conhecimento do perfil da comunidade foi feita a seguinte análise do produto: a opção por iniciar o estudo a partir das famílias participantes do programa Casa Bela, pouco contribuiu para compreender as alterações realizadas nas casas. O financiamento oferecido pela prefeitura era somente para a compra de material, e não existiu nenhum tipo de assistência técnica para auxiliar a realização dessas reformas pelos próprios moradores. Como conseqüência, as famílias tiveram gastos a mais com mão-de-obra, não previstos inicialmente, o que prejudicou bastante o resultado final. A maioria dos participantes, somente teve condições de revestir banheiros, ajeitar uma algo na coberta, realizar pintura etc, o que é pouco para a pesquisa aqui realizada, no que se refere à necessidade de compreender as alterações das residências. É importante ser ressaltada a interferência na escolha dos participantes do programa (e como conseqüência, dos entrevistados nessa pesquisa) por esta passar necessariamente (exigência da prefeitura) pelo conselho ou associação de cada comunidade participante do Casa Bela. A existência de uma rede social fica clara, tanto pela localização das residências dos participantes, quanto por relações sociais existentes entre eles freqüentemente definidas nas entrevistas como de familiares, amigos, antigos vizinhos etc. A tentativa de traçar um perfil geral da comunidade não foi possível. Com os dados obtidos não se reconhecia o todo, mas se conhecia bem uma parte. Após essa etapa, cada residência foi analisada através do programa Agna e posteriormente visualmente (com diferenciação por cores) as conexões entre os ambientes da casa (sala, cozinha, banheiro, quarto, serviço etc.) e foi observada uma repetição na disposição somente das áreas molhadas de banheiro e cozinha e de serviços. Com os dados da pesquisa em mãos foi iniciada a proposta, lançando novamente a pergunta, tema deste trabalho: Qual seria a solução habitacional para o Campo do América? Imagem 19. Relações entre ambientes.
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Inicialmente foram pensadas propostas que envolviam uma produção de habitação para toda a comunidade, entretanto, que não pareciam responder a pergunta acima. Em uma conversa no Habitafor, com o arquiteto André Almeida, um dos responsáveis pelo setor operacional da instituição, o mesmo comentou sobre o Campo do América ser uma ocupação consolidada e falou sobre a postura da prefeitura de Fortaleza na política habitacional. Explicou que o trabalho realizado no habitafor é de intervenções urbanas, da urbanização de favelas, nas quais a produção habitacional é uma conseqüência por serem realizadas remoções e reassentamentos, com o intuito de erradicar as situações de risco existentes, que não possuem infraestrutura, habitabilidade etc, requalificando do ponto de vista ambiental e reorganizando juridicamente o espaço. A compreensão do Campo do América como uma ocupação consolidada, estabilizada, com suas redes de relações sociais e algumas edificações já bem estruturadas, direcionou a proposta para outra forma de intervenção: em etapas, considerando que para que ocorra a regularização na área, uma série de intervenções deve acontecer nos becos e nas casas, para garantir condições mínimas de habitabilidade para os moradores. Após definida como intervenção em etapas, foi necessário mostrar como esta aconteceria através de um recorte, no qual se aplicariam as diretrizes gerais do plano proposto. Escolhido esse recorte e definida a intervenção, envolvendo 10 lotes, 23 famílias, 88 pessoas, um novo levantamento é feito mais profundo, com o intuito de conhecer melhor cada família envolvida.
Imagem 20. Destaque para área de intervenção.
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A INTERVENÇÃO : UM RECORTE DO CAMPO DO AMÉRICA O princípio básico da regularização fundiária é garantir que as comunidades fiquem onde estão, porém em condições melhores e com direitos reconhecidos. Para que a situação encontrada hoje na comunidade do Campo do América seja regularizada, devem ser melhoradas as circulações, ventilação, a qualidade das casas, devem ser criadas áreas publicas, afinal, uma série de intervenções para que o espaço se torne habitável. A proposta é então definida: identificar situações críticas de hiperadensamento, bem como áreas com potencialidade para tornarem-se áreas públicas. A seguir propor o desemembramento desses lotes e chegar a uma proposta de habitação multifamiliar associada a um espaço livre ou de circulação, o que se torna viável com uma pequena verticalização. É importante ressaltar que mesmo que a regularização fundiária priorize a requalificação das habitações, existem casos que essa requalificação se torna inviável sem algumas relocações. Para a escolha da área de intervenção, alguns aspectos foram analisados cuidadosamente:
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1.Localização de situações críticas de hiperadensamento próximas e áreas com potencialidade para melhorar a qualidade do espaço 2.Facilidade na obtenção de dados. 3.Através de entrevistas, verificação da possibilidade de insersão de lotes onde existam famílias que não vivem em situações críticas na proposta. 4.Levantamento : quantidade de famílias envolvidas / perfil socio-econômico /perímetro total das edificações agrupadas. 5.Relações entre as residências existentes. uso / parentesco (redes sociais) 6.A proposta como um recorte dentro de um possível plano geral de intervenção da regularização fundiária do campo do américa. O beco da rua Jaguaribe, a Cracolândia (assim chamada pelos próprios modadores devido ao trafico de drogas), foi tomada como exemplo para essa proposta. Com acesso direto pela rua José Vilar, no beco encontramos uma potencialidade.
Imagem 21. Área de intervenção. Lotes a serem desmembrados . Fotos do local.
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Um pequeno largo que tem sua porção central ocupada por um lote. A condição da edificação que se encontra no lote, no entanto, é precária, nela vivem duas famílias, 14 pessoas numa área de 101 metros quadrados. Parte da edificação ainda se encontra em taipa, em condições precárias. Próximo a esse beco existe um galpão que abriga algumas atividades do Centro Comunitário de Defesa Social do Campo do América, um edifício que foi construído pela PROAFA em parte do terreno de dona Ivone, que cedeu o espaço em troca de ter sua casa reconstruída, pois havia sido incendiada. O acesso a esse galpão, entretanto, encontrase sufocado. Pretende-se com a intervenção, liberar um acesso generoso para o mesmo, que merece um melhor tratamento por ser a única área edificada que a comunidade tem para realizar qualquer atividade.
Imagem 22. Vista geral da quadra 01 do Campo do América. Edifício em vermelho é o galpão do Centro Comunitário, acesso sufocado.
Imagem 23. Perspectiva do acesso ao beco da Rua Jaguaribe.
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MEMORIAL DESCRITIVO DO PROJETO Diretrizes gerais para intervenção no Campo do América: Escolha da área de intervenção: - que a área escolhida tenha possibilidade de ganho na qualidade urbanística. - sejam desmembrados lotes muito adensados e em péssimo estado. Projeto do espaço: -produção de habitação multifamiliar de baixa altura e média densidade para liberação de espaços públicos. - atendimento a demanda de habitações acessíveis no pavimento térreo.
Imagem 24. Low hise, high density.
- quando restarem espaços no térreo, estes devem ser ocupados com áreas institucionais, cursos profissionalizantes, centrais de emprego se no térreo e lajes de convivência no topo da edificação. - utilização de coordenação modular de 1,25 metros na edificação.
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- não utilização de paredes internas a não ser em áreas molhadas. -utilização de divisórias móveis. -priorizar a planta livre de forma a garantir flexibilidade interna e apropriação dos espaços de varanda considerando a autoconstrução. - garantir a utilização de redes como opção para dormida.
IMPLANTAÇÃO O Beco, com acesso pela rua José Vilar sofre alterações para que tanto pedestres, quanto motoristas em seus veículos sejam avisados de que se está adentrando em uma área diferenciada, na qual o pedestre tem prioridade. Rampas são colocadas para garantir a acessibilidade, a via é elevada e a pavimentação alterada, cria-se uma ruptura com o grande fluxo de carros da rua José Vilar e se proporciona melhor qualidade do acesso ao beco. A diferenciação entre passeio e via é feita somente através da coloração do piso intertravado escolhido. O lote central é liberado para dar lugar a uma pequena praça que se conecta ao galpão do Centro Comunitário de Defesa Social através de uma praça corredor, criada através da liberação parcial do lote remembrado, garantindo um acesso mais imponente ao centro de atividades da comunidade, acesso esse que passa pelos dois edifícios multifamiliares projetados para receber as famílias que viviam nesses lotes desmembrados e no lote central.
Imagem 25. Perspectiva Geral da Proposta.
As duas edificações têm planta em “U”, com a abertura voltada sempre para as
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áreas de praça, reduzindo o impacto da verticalização no beco e proporcionando resguardo dos apartamentos, garantindo áreas sombreadas e ventiladas para todos. Por uma escada no centro do “U” se acessa os apartamentos nos demais pavimentos e no ultimo andar se chega diretamente a uma laje livre para convivência. Um fator importante considerado na implantação é o acesso às garagens dos edifícios. São poucos os edifícios com garagem, e eles somente existem no começo do beco, ficando a praça livre da necessidade de permitir o acesso de carros.
A PRAÇA
Imagem 26. Proposta de acesso ao beco.
Eduardo Barra 1 fala em seu livro Paisagens Úteis sobre o surgimento do conceito Pocket Park. Segundo o autor, em maio de 1967 surgia o primeiro Pocket Park em Nova York, o Paley Park. Uma boate é demolida em plena Manhattan, onde cada metro quadrado vale uma fortuna, para dar lugar a um espaço público em meio a malha urbana adensada. A intenção do William Paley, presidente da emissora CBS na época era criar um espaço como um memorial em homenagem a seu falecido pai. O projeto do parque é dos arquitetos Robert Zion e Harold Breen. A escolha dos arquitetos não foi aleatória, os mesmos já haviam divulgado seus questionamentos a respeito das determinações feitas pelo Departamento de Parques de Nova York (que dizia que um parque urbano somente seria viável se tivesse no mínimo 12mil metros quadrados de área). Zion e Breen, numa exposição da associação de parques da cidade, apresentam parques completamente inusitados para o contexto existente. As dimensões, os usos, a forma de atingir a um determinado público e até mesmo o mobiliário determinado não eram nada convencionais.
1. BARRA, Eduardo. Paisagens úteis: escritos sobre paisagismo. São Paulo, Mandarim, 2006.
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Argumentavam a necessidade de se construírem muitos parques desse tipo para que ocorresse uma real melhoria da qualidade do espaço urbano.
“so a ação pública ou a filantropia privada podem tornar possível o sonho de um mini-parque” The New York Times, 1967, logo após a construção do primeiro pocket park.
O beco da Rua Jaguaribe, é uma área com esse potencial. A retirada das edificações do lote central deu condições à existência da praça, e o Campo do América ganha mais uma área pública, além do campo. A necessidade de espaços livres na comunidade foi levantada nas varias entrevistas feitas com os moradores. O próprio Campo não é muito utilizado durante o dia, por ser extremamente quente e não possuir arborização. No período da noite o mesmo é utilizado para as tradicionais partidas de futebol, impedindo a flexibilização do seu uso. Os moradores se queixam da falta de espaço para se reunir, realizar comemorações, apresentações, cultos e para as crianças brincarem. Quando questionados sobre a existência de espaço de lazer para crianças, essas foram algumas das respostas:
Imagem 27. O campo, vazio .
“tem não, aqui não tem aonde a criança brinque, não tem. Até meus netos quando vem eu fico doida que eles vai jogar bola e eu fico com medo de eles morrerem na pista, ai eu proíbo. Mando eles jogarem no campo, eles não vão porque é longe, aqui se não for pro campo não tem nada.” Maria Alice. “ as meninas brincam dentro de casa.” Eridan. “o lazer só é ai, no meio da rua.” Angelita.
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O beco da rua Jaguaribe é chamado por alguns moradores da comunidade de “cracolândia”. O trafico de drogas acontece ai 24 horas por dia. Muitos aderem ao esquema “drive thru”, no qual chega o comprador em uma moto ou carro, bate na mão do vendedor e num piscar de olhos a venda foi feita. O uso do parque deve desencorajar esse tipo de atividade, tornando-o visível e atrativo para o exterior, convidativo. No parque, as atividades recreativas podem existir, no entando sem se tornarem determinantes. Em torno dessa necessidade, de tornar o espaço multiuso, é que se desenvolve o projeto. Garantir a utilização, sem permitir a ocupação
Imagem 27. Pocket park proposto.
irregular e não determinar por completo o tipo de uso inserindo uma quadra, ou um playground, criando possibilidades de ocupação e interação dos moradores. Investir na estética do espaço também garante maior identificação dos moradores com o local onde vivem. As ondulações em concreto no centro da praça chamam os moradores para a interatividade. Permite, por não ser desenhada para um público específico, que as pessoas se apropriem do espaço interpretando-o a sua maneira. Além disso, bancos são colocados próximos às áreas de residência e às árvores.
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O espaço do beco é pequeno e as edificações do entorno já garantem com sua sombra que o mesmo se torne mais agradável a permanência. Essa condição de área sombreada garantida através das edificações existentes é de importante consideração, pois livra a praça de necessitar de uma de árvores com grandes copas, que tomariam muito espaço visual e físico. A proposta para o paisagismo no beco se desenvolve com a criação marcos, guiando o caminho dos moradores e dando uma referência visual à praça.
“A sombra é uma espécie de edifício invisível” Alejandro Aravena.
Imagem 27. Sombra realizada no beco pelo edifício situado na esquina da Rua Jaguaribe com José Vilar.
Imagem 28. Diagramas de apropriação do espaço proposto.
1.Alejandro Aravena (1967), Arquitecto de la Universidad Católica de Chile (1992). Trabaja de manera independiente desde 1994 y desde el 2006 es Director Ejecutivo de ELEMENTAL S.A. Informação disponível em: http://www.alejandroaravena.com/ Acesso em: 01 Dec. 2009
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OS EDIFÍCIOS Uma malha modular de 1,25m x 1,25m foi desenhada de forma a garantir o aproveitamento máximo do terreno remembrado, deixando os espaços que sobraram pela irregularidade do terreno como área de quintal/serviço para os apartamentos situados no térreo. Dessa malha definida pelo aproveitamento do lote é liberado o espaço de conexão entre o beco da rua Jaguaribe e o galpão do Centro Comunitário de Defesa Social, que tinha antes acesso somente pela travessa Amora. Dessa fragmentação do lote são criados dois edifícios multifamiliares. Os dois possuem planta em “U”, essa forma garantiu ventilação cruzada a todos os apartamentos. Às áreas comuns de circulação se tem acesso por uma escada metálica no centro do “U”. Os dois edifícios seguem a mesma linguagem formal e funcional, com pequenas diferenças. As áreas molhadas e shafts também estão voltados para o centro do “U”. Essa estrutura central rígida e permanente proporciona maior liberdade para as extremidades. A estrutura é em concreto armado. A laje é nervurada para garantir que os vãos sejam vencidos. A não regularidade na distribuição dos pilares se deu pela necessidade de uma planta livre dentro de um sistema construtivo simples. Os pilares que necessitaram ser colocados internamente, para reduzir o vão, foram locados em pontos onde não ocorrerá flexibilização: as áreas molhadas e os
Imagens 28 e 29. Perspectiva geral das edificações.
demais nas extremidades da edificação e no limite dos apartamentos com a circulação comum. No pavimento térreo são colocadas as famílias que têm idosos ou portadores de necessidades
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especiais de acordo com a demanda encontrada na pesquisa. Como diretriz geral para intervenções, tendo a demanda por apartamentos acessíveis atendida, o espaço restante no térreo deve ser utilizado para atender à comunidade com usos institucionais, serviços, comércio etc. A determinação de que o térreo possui banheiros acessíveis orientou a localização dos banheiros nas plantas dos demais pavimentos. A vedação que contorna toda a circulação comum possui aberturas com combogós prémoldados em concreto, dando condições a ventilação e iluminação natural à área de serviços e banheiro de todos os apartamentos. A estrutura, painéis de vedação e esquadrias seguem uma modulação de 1,25. Fora a rigidez da área central do “U”, a planta é livre e os apartamentos têm varandas. As varandas são a possibilidade de expansão do espaço interno dos apartamentos, e também podem resultar em variações na fachada do edifício de acordo com apropriações posteriores. Os painéis utilizados são fixados por fora na própria estrutura aparente da edificação. As vedações que não são fachadas são feitas em alvenaria comum. Foi pensado em como as relações sociais existentes anteriormente poderiam ser mantidas, e essa ação determinou uma alteração significativa para o aspecto estético da construção. Primeiramente as estudou-se a possibilidade de colocar, num mesmo andar, as famílias que tivessem relação anteriormente. Essa idéia foi descartada a partir do momento que se decidiu colocar os apartamentos acessíveis no térreo. Resumidamente, as relações dentro de um lote acontecem mais ou menos da seguite forma: Imagem 30. Diagrama esquemático do sistema.
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Uma família mora em uma casa em um lote. Logo, os filhos crescem, se relacionam e tem seus filhos e vêem a necessida de ter seu lugar, para sua família. Os pais cedem aos filhos um espaço em cima da casa, ou ao lado, ou os dois, dependendo do tamanho da família. O que se percebe é que existem várias gerações vivendo em um mesmo lote e praticamente em todos eles existe uma família com idosos. Não há como manter essa relação de vizinhança entre casas do mesmo lote horizontalmente, se tornaria inviável garantir o atendimento à demanda de apartamentos acessíveis no térreo. Dessa forma, foram colocadas escadas externas individuais, conectadas às áreas de varanda e essa relação passou a ser mantida verticalmente. Essas escadas externas alteram a fachada. É a estética criada a partir de uma organização social existente. A fachada ganha uma dinamicidade e as relações se fortalecem. Essa proximidade entre famílias do mesmo lote é comum hoje e contribui para a flexibilização do uso dos apartamentos, através da remoção de paredes e englobamento de um apartamento vizinho, ou criação de um comércio no térreo, no apartamento que foi da mãe de um morador etc. Divisórias internas A especulação imobiliária e o crescente valor do metro quadrado na habitação refletem numa procura por soluções que garantam maior aproveitamento do espaço. É um verdadeiro quebra cabeça que, muitas vezes, o usuário do
Imagem 31. Relações existentes entre famílias dentro de um mesmo lote. Cada letra representa uma família.
imóvel tendo condições financeiras, contrata um arquiteto de interiores para solucioná-lo. Ao pensar a divisão interna dos apartamentos, algumas possibilidades foram levantadas: paredes que correm em trilhos, removíveis, o sistema “fold it” com paredes articuladas, no entanto muitas dessas soluções representam um alto investimento na industrialização dos componentes e também dificuldades na manipulação das partes. Os mecanismos na proposta foram pensados o mais simples e próximo possível dos usuários, sendo operados unicamente com força humana. 48
Utilizar móveis como divisórias tem sido uma estratégia comum em habitações das mais diversas clases sociais. Na Habitação de baixo custo, além de garantir maior aproveitamento do espaço essa solução reduz custos. A Universidade Federal do Paraná - UFPR está desenvolvendo em seu Núcleo de Design e Sustentabilidade - NDS1 o projeto Do-it-yourself (faça você mesmo), desenvolvendo produtos, os quais a própria população participa da montagem, segundo eles, pensado a partir da observação e constatação de uma forte característica da população brasileira: a autoconstrução como realidade no dia a dia.
“Cerca de 85% desta população recebe até 3 salários mínimos como rendimento mensal e constrói suas próprias moradias sem acompanhamento profissional. O objetivo maior da pesquisa é melhorar a qualidade de vida desta população, auxiliando esta auto-construção, tornando-a prática, segura e dentro dos princípios da sustentabilidade. “ 2
Um dos produtos desenvolvidos nesse projeto é o Kit Mobiliário, utilizando mobiliário como divisória. A supressão das paredes internas já garante economia na construção, bem como ganho de área. De acordo com o professor Aguinaldo dos Santos, coordenador do projeto “Projeto Kits Faça-Você-Mesmo coordenados modularmente para cobertura e mobiliário-divisória de habitações de interesse social” relacionado ao Programa Habitare/FINEP “A substituição de uma parede convencional por um mobiliário oferece o potencial de aumentar a área útil da
Imagem 32. Divisórias móveis. Kit Mobiliário - NDS - UFPR
habitação e de reduzir gastos com a aquisição de um armário”.
1.Nucleo de Design e Sustentabilidade-UFPR: Projeto Kits faça voce mesmo para habitação de interesse social. Disponível em: [http://www. design.ufpr.br/nucleo/index.php?site=kits.htm] Acesso em: 01 Dec. 2009 2. idem.
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A urgência e a grande escala das construções de habitações de baixo custo muitas vezes distanciam os usuários dos projetistas, o que pode prejudicar bastante os resultados. Buscando também minimizar esse prejuízo, é proposto para o projeto a organização do espaço interno posterior a ocupação com o kit mobiliário proposto pelo NDS - UFPR. Uma das barreiras encontradas com a solução do espaço interno com mobiliário foi a impossibilidade de permitir o uso de redes de dormir nos apartamentos. Acontece que dormir em redes é um costume local que é freqüente, cultural e extremamente flexível, o que se tornaria inviável com a retirada das paredes. Dessa forma foi previsto na laje uma solução para que os armadores sejam fixados no teto e as divisórias possam ser feitas com móveis. Através da modulação é possível compatibilizar os diversos projetos de uma mesma construção. Assim, evita-se que ocorram problemas entre arquitetura, estrutura, instalações, esquadrias, mobiliário etc, estabelecendo uma conexão entre quem projeta, produz e constrói através do módulo. A coordenação modular garante que ampliações posteriores se tornem mais fáceis, bem como pequenas intervenções que podem ser feitas através da susbtituição de alguns dos componentes da edificação. Esses princípios são essenciais para ter aproveitamento máximo da estratégia de divisórias-móveis, de forma que uma peça pode ser um conjunto de módulos agrupados, com maiores possibilidades dentro do espaço modulado.
Imagem 33. Diagrama - flexibilidade possibilitada pelo uso de armadores.
Imagem 34. Propostas para fixação do armador na laje, com o intuito de liberar as paredes.
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IMAGENS 51
Imagem 35. Área de intervenção proposta é a primeira quadra da comunidade do Campo do América. O Beco da Rua Jaguaribe está sendo destacado em cinza escuro, as casas que compreendem aos lotes a serem remebrados estão em branco, na parte mais central da imagem. O edifício em vermelho é o galpão do Centro Comunitário de Defesa Social.
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Imagem 36. Percebe-se claramente a dificuldade de acesso ao galpão, sendo esse edifício, o único espaço livre que o Centro Comunitário tem para realiza suas atividades, no entanto, se encontra em pessimo estado.
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Imagem 37. Acesso ao beco da Rua Jaguaribe proposto.
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Imagem 38. Rampas em concreto, pocket park para a comunidade. Permitindo a interatividade e liberdade de apropriação de um espaço de convívio.
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Imagem 39. Novo acesso criado para o o galpão através da liberação de um lote. Vista casas com escada independente.
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Imagem 40. Um espaço que antecede o galpão do centro comunitário, de convívio, permanencia.
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Imagem 43. Perspectiva geral do conjunto.
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Imagem 44. Laje liberada para convivencia.
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Imagem 45. Simulação da apropriação do espaço.
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Imagem 46. Simulação da apropriação do espaço residencial.
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Imagem 47. Vista geral do espaรงo ja um pouco modificado pelos moradores.
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Imagem 48. Possibilidade de uso para o espaรงo livre criado.
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CONCLUSÃO É importante que tenhamos a consciência da capacidade do arquiteto e dos instrumentos que esse pode fazer uso para melhor se comunicar com os usuários. Permitir, ou melhor, garantir que os mesmos tenham participação no edifício é oferecer melhores condições de apropriação de um espaço. Considerar o sistema aberto, significa aceitar o usuário como capaz de intervir. Esse é um grande passo para uma reinterpretação do papel do arquiteto, essencial para que ocorra uma produção arquitetônica consciente.
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