Vila Itororó - Restauração e resgate da noção de comunidade

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Vila Itororó RESTAURAçãO E RESGATE DA NOçãO DE COMUNIDADE



CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO DEZEMBRO, 2017

Vila Itororó RESTAURAçãO E RESGATE DA NOçãO DE COMUNIDADE

TALITHA RODRIGUES NOGUEIRA ORIENTADOR: PROF. DR. RAFAEL MANZO


Foto de capa | Augusto Gomes, 2016


Edição 2

Dedico esse trabalho a todas as famílias viveram na Vila Itororó.



AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar gostaria de agradecer à minha mãe Maria Isabel Rodrigues, que sempre me apoiou e me ensinou pelo exemplo a nunca desistir dos meus objetivos e a dar o melhor de mim em cada missão assumida. Sem ela nada seria possível. Agradeço também a todas as minhas amigas e amigos, de dentro e de fora da universidade, que estiveram ao meu lado e contribuíram de alguma forma para a minha formação, em especial ao Ricardo, que me incentivou a perseguir meu sonho de tornar-me arquiteta e urbanista e me ajudou de diversas maneiras ao longo desses anos. Obrigada a todas as professoras e professores que compartilharam comigo seus conhecimentos, principalmente à Aline Regino, à Cristina Ecker, ao Marco Aurélio Oliveira, ao Sérgio Lessa e ao Rafael Manzo, que orientou todo o desenvolvimento desse trabalho. Sou igualmente grata ao Roberto Marin e à Ursula Troncoso por me ajudarem a transferir meus conhecimentos acadêmicos para a vida profissional. Por fim agradeço ao Centro Universitário Belas Artes de São Paulo pela oportunidade que me foi concedida, à Vivian Barbour pelo envio da sua dissertação de mestrado sobre a Vila Itororó e ao Benjamim Saviani, do Instituto Pedra, pela concessão de todo o material de levantamento arquitetônico da Vila.



RESUMO O presente trabalho tem como objeto de estudo a Vila Itororó, localizada no – não oficial – bairro do Bixiga no distrito da Bela Vista. A Vila foi fundada no início da década de 1920 pelo imigrante português Francisco de Castro, que incorporou em suas construções materiais de demolição de diversos lugares - dentre eles o antigo Teatro São José, dando a ela um caráter singular e original do ponto de vista arquitetônico. Esse projeto parte da análise sobre a complexa rede de interesses conflituosos que envolve o caso, questionando a relação entre as políticas públicas adotadas no âmbito da preservação do patrimônio edificado e a destinação final de seus usos, propondo-se a restaurar tanto sua materialidade quanto sua vida cotidiana. Palavras chave: patrimônio histórico; habitação; cultura; restauração.

ABSTRACT The present work has as study object Vila Itororó, located in the - unofficial - neighborhood of Bixiga in district of Bela Vista. The Vila was founded in the early 1920s by the portuguese immigrant Francisco de Castro, who incorporated in his constructions demolition materials from various places - among them the old São José Theater, giving it a unique and original character from the architectural point of view. This project starts from the analysis of the complex network of conflicting interests involved in the case, questioning the relation between the public policies adopted in the context of the preservation of the built heritage and the final destination of its uses, proposing to restore both its materiality and its everyday life. Keywords: historical patrimony; habitation; culture; restoration.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12 CONTEXTUALIZAÇÃO...........................................................................................................14 • PATRIMÔNIO HISTÓRICO E PRESERVAÇÃO.....................................................................16

Patrimônio histórico e teorias de restauração

Patrimônio imaterial e preservação da memória

• PANORAMA HISTÓRICO E SOCIAL..................................................................................18 São Paulo Bixiga • VILA ITORORÓ................................................................................................................21 Primeira fase: 1922 - 1949

Segunda fase: 1950 - 2005

Terceira fase: 2006 - HOJE

• ESTUDOS DE CASO.........................................................................................................30

Vila Maria Zélia

Casa Amarela

Pelourinho


PROJETO...............................................................................................................................36 • RESTAURAÇÃO E RESGATE DA NOÇÃO DE COMUNIDADE..............................................38

Memorial Descritivo

Implantação

Cortes

Perspectiva

• CENTRO DE MEMÓRIA E RESISTÊNCIA DO BIXIGA.........................................................46 • CENTRO DE INTEGRAÇÃO DA VILA ITORORÓ.................................................................52 • CLUBE ÉDEN...................................................................................................................60 • RESGATE DO USO HABITACIONAL..................................................................................66 • CASA DAS CARRANCAS...................................................................................................88 Restauro

Adaptação para moradia compacta

REFERÊNCIAS.....................................................................................................................102


introdução

A partir da análise do caso da Vila Itororó é possível compreender as transformações pelas quais a cidade de São Paulo passou – deixando de ser uma cidade colonial para se tornar uma grande metrópole -, assim como questões relacionadas ao patrimônio histórico, que teve seu conceito ampliado revelando novas teorias que contrapõe os tradicionais discursos fundamentados na valorização formal. A disputa em torno da construção dos valores e sentidos da Vila Itororó coloca em questão o protagonismo dos bens culturais edificados na produção do espaço urbano, especialmente no que diz respeito à sua destinação final e ao seu uso. Assim, o processo que reconheceu a Vila como patrimônio trouxe luz às limitações presentes nas práticas de preservação, pela falta de instrumentos e arranjos institucionais que possam garantir a concomitância da preservação material com a preservação social. (BARBOUR, 2017)

Existem três formas dominantes de intervenções em sítios históricos no Brasil: o embelezamento, a renovação e a revitalização. Essas três formas de intervenção sempre estiveram articuladas com a expulsão da população moradora de baixa renda, associando essas pessoas a um cenário de insegurança e desordem que precisaria ser vencido. A questão da habitação social, nunca foi, no Brasil, objeto central dos projetos de reabilitação de centros históricos. Tradicionalmente, as intervenções têm desconsiderado esse tema, sendo predomi-

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nante a visão de que o lugar dos pobres é nas periferias e que a recuperação dos núcleos históricos deveria estar voltada prioritariamente para o turismo e atividades culturais. Nessa perspectiva requeria-se uma reabilitação com modificação de usos e, quando necessário, de classe social, rejeitando-se os mais pobres, cuja permanência seria um obstáculo para a promoção da área como espaço seguro e atraente para o público externo. (BONDUKI, 2010, p. 316-317)

Foi o que ocorreu no caso da Vila Itororó, que foi local de moradia por mais de 90 anos e passou por um intenso processo de degradação e encortiçamento, que teve início na década de 1950 com a chegada de novos equipamentos culturais na região, e se intensificou em 1974 com a elaboração do Plano de Renovação Urbana para Bela Vista, culminando décadas depois na remoção de todas as famílias que viviam na Vila. Em geral, os processos de degradação não se dão por acaso. Sendo o abandono uma condição necessária para a gentrificação, os grandes capitais em conjunto com os governantes, permitem que uma região inteira se degrade, para posteriormente investir na revitalização da área e valorizar o território, compondo um cenário onde a cidade não é administrada para o público, mas agenciada para a lucratividade privada. De acordo com Sabrina Duran, “o discurso da ‘ressignificação’ limpa o território sem dizer que está limpando”.


Cariรกtide | Tatiana Missawa, 2015

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Rua Maestro Cardim: casas 7 e 8 | Arquivo Milu Leite


CONTEXTUALIZAÇÃO


PATRIMÔNIO HISTÓRICO E PRESERVAÇÃO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E TEORIAS DE RESTAURAÇÃO

às concepções objetivas e aos conceitos de verdade das “teorias clássicas”, especialSegundo CHOAY, a expressão patrimônio his- mente no que se refere à autenticidade dos tórico designa um bem destinado a usufru- objetos culturais. Isso parece ficar mais claro to de uma comunidade, remetendo a uma quando o autor passa a analisar os valores instituição e a uma mentalidade. Segundo a dos objetos de preservação, todos eles subautora, entre os bens ligados ao patrimônio jetivos e relativos aos sujeitos que mantém histórico, o que relaciona mais diretamente relações com o universo patrimonial. Para com a vida de todos é o representado pelas o autor, são as pessoas que conferem valor edificações. Em outros tempos falaríamos aos objetos, que interpretam os eixos simde monumentos históricos, porem essas bólicos e que tomam decisões sobre como conservar determinado bem cultural. duas expressões não são mais sinônimas. Quando foi criada a primeira Comissão A partir da análise de VIÑAS sobre as funde Monumentos Históricos na França, em ções culturais dos artefatos, admite-se que 1837, as três grandes categorias de monu- a restauração não interessa somente aos exmentos históricos eram constituídas pelo perts, mas à sociedade em geral, podendo remanescente da antiguidade, os edifícios estar relacionada com valores ideológicos, religiosos da Idade Média e alguns Castelos. afetivos, religiosos e muitos outros. Desse Após a Segunda Guerra Mundial o número modo, a doutrina contemporânea da restaude bens inventariados aumentou considera- ração busca satisfazer um número maior de velmente. Até 1960, o quadro cronológico, sensibilidades. em que eram inscritos os monumentos históricos, era limitado. Com o passar dos anos o domínio patrimonial deixou de se limitar aos edifícios individuais e passou a compreender os aglomerados de casas, bairros, aldeias e cidades inteiras, como as cidades da região Wachau, na Austria.

Atualmente ocorre um processo de “valorização” do patrimônio histórico, que adquire conotações econômicas, criando uma disputa desigual e perigosa dentro do campo patrimonial, onde diversos profissionais e cidadãos se voltam para essa indústria patrimonial a fim de medir a ambiguidade mantida em torno do patrimônio. CHOAY destaca cinco operações destinadas a, eventualmente, transformar o monumento histórico em um produto econômico: conservação e restauro; encenação; animação; modernização; rentabilização.

A recente publicação da Teoría contemporánea de la Restauración (2010), de Salvador Muñoz Viñas, organizou os discursos que de certa maneira reformularam conceitos e noções ligados à atividade tradicional do restauro. Nesse aspecto, tomam a forma de “teoria contemporânea”, ao qual o título do Após a análise dessas operações que incenlivro faz referência. De acordo com o autor, tivam a “comercialização do patrimônio”, a a nova doutrina demonstra clara oposição autora mergulha nas questões que envol-

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vem a atribuição de novos usos ao patrimônio em questão, destacando que para tanto não basta que exista uma mera semelhança com o destino original. Fica claro que o patrimônio industrial não deve ser confundido com aquele da era pré-industrial, evocando sua reutilização. A indústria patrimonial se faz importante nos setores de desenvolvimento e turismo, significando a sobrevivência econômica para muitas regiões, o que torna a valorização do patrimônio histórico um empreendimento considerável. Infelizmente esse condicionamento sofrido pelo patrimônio em função do consumo cultural tende a excluir dele as populações locais e suas atividades tradicionais.

ças podem fazer com que o indivíduo perca a noção do que é comum a todos os seres humanos, gerando diversos conflitos. O desafio é propor uma perspectiva coerente da diversidade cultural, que beneficie a comunidade.

O Patrimônio Cultural Imaterial foi considerado em diversas convenções1 como fonte de diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustável. A diversidade cultural pode ser encarada positivamente, devido ao intercâmbio de culturas e do processo de diálogo e troca. Em contraponto as diferen-

des, grupos e indivíduos, pois desempenham um importante papel na produção, salvaguarda2, manutenção e recriação do Patrimônio Cultural Imaterial, enriquecendo a diversidade cultural e a criatividade humana. Sem as pessoas tal patrimônio não existe.

É importante mencionar a interdependência que existe entre o Patrimônio Cultural Imaterial e o Patrimônio Material Cultural e Natural. O que se pretende preservar não é a representação do real, mas sim o valor simbólico de determinado bem cultural que configura o real. O objeto é o processo cultural em sua totalidade – atuação do homem no território presente. Não é possível visar a restauração física de um bem ou local sem interação com a subjetividade humana, que dá vida e dinamicidade. Como mencionou PATRIMÔNIO IMATERIAL E PRESERVAÇÃO Carla Gabrieli Galvão de Souza, a subjetiviDA MEMÓRIA dade humana é o porquê da construção maAo preservar a memória e a identidade de terial humana. Não existe o material sem o um local, indo além de sua estrutura física, imaterial, a exemplo podemos citar a cidade evita-se um projeto feito à sombra de uma como reflexo de uma época. falsa memória. Fica explicita a importância das comunida-

¹ Recomendação da UNESCO sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989); Declaração universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural (2001); Declaração Instambul (2002). ² Entende-se por “salvaguarda” as medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, preservação, a proteção, a promoção, a valorização e a transmissão essencialmente por meio da educação formal e não-formal e revitalização deste patrimônio em diversos aspectos.

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PANORAMA HISTÓRICO E SOCIAL

SÃO PAULO

Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional estimado atualmente na região metroAté a década de 1930, o Brasil conservava politana de São Paulo é de 596 mil unidades, um modelo econômico agrário-exportador sendo que 72% desse déficit está concentrabaseado na produção e comercialização do do na população com renda de até três salácafé, que acabou por agravar o quadro de rios mínimos. desigualdades regionais no país. Diante disso, São Paulo veio a se tornar a cidade com Camargo (2010) relata que as pressões exermaior potencial de desenvolvimento indus- cidas sobre o poder público para remover as trial do país, aumentando a demanda por favelas próximas dos bairros de classe mémão de obra e acarretando, consequente- dia e alta, fizeram com que, na década de mente, em altas taxas de crescimento popu- 1960, as ações de despejo e desfavelamento lacional. levassem os favelados a se mudarem para regiões mais distantes da cidade. O processo de urbanização se deu com a incorporação de chácaras nas proximidades Se por um lado há o crescimento expressivo do centro e a expansão seguindo as ferro- das periferias, por outro é possível observar vias, fazendo com que São Paulo se tornasse áreas urbanas bem servidas de infraestruuma cidade muito grande em área, mas com tura e serviços sofrendo redução da popugrandes problemas de ordenação do espaço lação. Os bairros centrais que circundam e saneamento básico, produzindo uma ur- o centro histórico passaram por um longo banização predatória e desigual. período de desinteresse por parte do mercado imobiliário, enquanto isso, os bairros Na década de 1950 a taxa de crescimento populacional na Região Metropolitana de do centro expandido têm passado por um São Paulo foi de 6,17% ao ano, pratica- intenso processo de transformação, onde mente o dobro dos valores encontrados unidades unifamiliares são substituídas por para o estado de São Paulo (3,4% ao ano) grandes edifícios. É possível observar um e para o Brasil (3% ao ano). (MEYER, processo de mudança imobiliária, onde há 2004, p. 54) a troca da população pobre por um grupo com maior poder aquisitivo, gerando uma Segundo informações coletadas pelo IBGE, reorganização espacial, transformação do Censos Demográficos e a EMPLASA, entre ambiente construído e por fim alteração nas 1950 e 2010, o número de habitantes que leis de zoneamento. São Paulo abrigava subiu de 2.198.096 para 11.253.503 habitantes, gerando desigualda- Durante muito tempo os rios foram a prinde e informalidade. De acordo com dados da cipal fonte de transporte e energia de diver-

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sas civilizações. Entretanto, a cidade de São Paulo passou por um processo agressivo de urbanização, fruto de um pensamento mercantilista e rodoviarista que se baseou na canalização de rios, em um sistema rodoviário estrutural e na construção de parques fabris e vilas operárias, valorizando a produção em detrimento de espaços dignos e gerando segregação social e degradação ambiental. Analisando mapas históricos de São Paulo, é possível perceber que há rios enterrados em cerca de 70% a 80% da área do município. Os milhares de rios de São Paulo foram lenta e gradualmente desaparecendo de sua paisagem urbana, substituídos por canais retilíneos, confinados, margeados por vias expressas ou recobertos por ruas, avenidas e edifícios. (FIGUEIREDO, 2009, p. 15)

BIXIGA A história do bairro do Bixiga vai de encontro à história do Brasil. A primeira ocupação foi de indígenas, que permaneceram no local até o primeiro massacre. Posteriormente o bairro foi ocupado pelos escravos que fugiam do leilão de escravos – que havia em uma praça onde hoje é o Terminal Bandeira, tirando proveito da topografia acidentada da região, que facilitava a criação de esconderijos e espaços de resistência.

Após o loteamento que ocorreu em 1878, o Bixiga passou a abrigar um grande número de imigrantes italianos, que construíram, de modo artesanal, várias casas na região. A valorização dos mestres e artesãos que No ano de 1927, José Pires do Rio solicitou construíram essas casas gerou um discurum sistema viário com capacidade de suporso de manutenção e valorização histórica, tar o crescimento da cidade e suas possíveis fazendo com que mais de mil casas fossem expansões. A resposta para sua solicitação tombadas no bairro, dificultando o processo foi a chamada “teoria de fundo de vale”, de verticalização. usada para consolidar as grandes avenidas da cidade de São Paulo. A atual Av. 23 de No final do séc. XIX, imigrantes portugueses maio foi orginalmente chamada de Aveni- e espanhóis chegaram ao Bixiga, atribuindo da Itororó, em homenagem ao rio Itororó ao bairro uma heterogeneidade que carace chegando a receber o nome de Avenida teriza o bairro até os dias atuais. Nessa époAnhangabaú em 1938. Já em 1958 o projeto ca, o bairro do Bixiga e o bairro da Bela Vista da avenida passou a fazer parte do “Plano eram núcleos residenciais distintos pertendas vias expressas diametrais urbanas”, re- centes ao distrito da Consolação, que foi cebendo oficialmente o nome de Avenida desmembrado em 1910, fazendo com que Vinte e Três de Maio, que foi inaugurada em esses dois bairros se unissem em um único 1969. distrito – o “Distrito da Paz e da Bela Vista”.

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EstĂĄtua na fachada frontal do Palacete | SĂŁo Paulo Antiga, 2011


VILA ITORORÓ

PRIMEIRA FASE: 1922 - 1949 Em 1922, ano em que se comemorou o centenário da proclamação da independência do Brasil, o imigrante português Francisco de Castro inaugurou oficialmente a Vila Itororó, uma vila particular implantada às margens do Vale do Itororó - que se encontra atualmente sob a Av. 23 de maio. Na época toda a área compreendida entre o que hoje conhecemos como a Praça da Bandeira e o Parque do Ibirapuera, era composta por uma mata repleta de árvores frutíferas, trilhas, planta-

ções e casebres isolados. Tratava-se de um espaço urbano com características rurais. Mais adiante do aterro que cortava o Vale do Itororó, onde se desenvolveu o Viaduto Pedroso, uma faixa de terra foi regularizada e transformada em um campo de futebol onde eram realizadas as atividades do Éden Liberdade Futebol Clube. O campo contava com traves e as laterais do vale formavam arquibancadas naturais onde a população se reunia para assistir às calorosas partidas de futebol aos domingos.

Vale do Itororó | Claude Lévi-Strauss, 1935

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Fonte de 1822 | Acervo Milu Leite

O tema das águas é muito importante na história da Vila, uma vez que as nascentes do riacho do Itororó estão localizadas dentro do terreno, o que influenciou uma série de decisões formais. Quando Francisco de Castro chegou ao terreno na década de 1910 algumas casas já existiam, assim como uma fonte com a data de 18221 que se tornou um mote ideológico para a ampliação do casarão que existia ao lado (casa 1) e que veio a se tornar o Palacete, que ele chamou de “Um Monumento Comemorativo da Fonte de 1822”. A boa qualidade das águas levou Castro a criar instalações para melhor aproveitamento. Surgiu então uma área coberta dotada de um tanque ao centro, que motivou a criação da primeira piscina particular de uso público de São Paulo, alimentada pela água de uma das nascentes. A piscina por sua vez passou a fazer ligação com a sede do Éden

Liberdade Futebol Clube (casa 8), contando também com uma quadra de bola ao cesto. Por se tratar de uma região de fundo de vale, o terreno é irregular e sua topografia é acidentada, o que possibilitou uma situação peculiar de implantação, que se relaciona com a paisagem local, diferenciando-se dos traçados convencionais de loteamento da época. Na Vila Itororó as casas estão voltadas para dentro do miolo de quadra, permitindo diferentes situações de uso e criando em um formidável espaço público para sociabilização e encontro dos moradores da Vila e das proximidades. Com essa configuração, a Vila Itororó pode ser considerada uma tipologia urbana e habitacional de transição entre as vilas rentistas e o processo de ocupação informal de lotes gerado pelo auto empreendimento da casa própria. (PEDRA, 2015, p. 8)

¹ Em 1935 a fonte foi demolida dando lugar à casa 11, um prédio de aluguel para a classe média com acesso independente pela rua Martiniano de Carvalho, de onde podem ser avistados apenas dois de seus cinco pavimentos.

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Piscina da Vila Itororรณ | Sรฃo Paulo Antiga

Eden Liberdade Futebol Clube | Documentรกrio Vila Itororรณ Canteiro Aberto

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Miolo de quadra da Vila Itororó | Antonio Lucio, acervo Estadão

Após o falecimento de Francisco de Castro em 1932, todos os imóveis da Vila Itororó foram arrematados por Augusto de Oliveira Camargo, que posteriormente os passou para o nome de sua esposa: Leonor Mendes de Barros, que também mantinha a Santa Casa de Indaiatuba1. Até então a maior parte dos inquilinos da Vila era imigrante ou amigo de Francisco de Castro e a cobrança dos aluguéis era feita diretamente por ele, entretanto, depois de sua morte os antigos inquilinos foram sendo substituídos por pes-

soas que residiam nos bairros vizinhos. Em 1948 é construído o teatro brasileiro de comédia do bairro da Bela Vista, dando início a um intenso processo de transformação que atribuiu à região uma forte identidade cultural. Diferentes equipamentos culturais e de lazer como bares, boates, casas de show, cinemas e teatros passam a se concentrar no bairro, que ficou conhecido como a “Broadway Paulistana”. Trata-se do início de um novo ciclo para o Bixiga e para a Vila Itororó.

¹ Segundo Byron Gaspar, após o falecimento de Francisco de Castro a vila passou a ser de propriedade da Instituição Beneficente Augusto de Oliveira Camargo, mantedora da Santa Casa de Misericórdia de Indaiatuba.

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SEGUNDA FASE: 1950 - 2005 Contemporaneamente às transformações culturais pelas quais o bairro passava, São Paulo estava vivendo um período de grandes mudanças em termos de desenho, expansão urbana e legislação. A abertura de grandes avenidas na região gerou uma série de despejos e demolições, enquanto novos prédios de apartamentos com dois a três cômodos eram construídos e transformados em cortiços. Em 1967 é inaugurado o trecho da Av. 23 de maio que passa pela Vila Itororó, transformando drasticamente a paisagem urbana e o movimento em seu entorno. Entretanto a vida cotidiana que existia no interior da Vila se manteve, graças à sua implantação. A partir dos anos 1970 ocorre uma migração de atividades sociais e econômicas do centro tradicional da cidade para a região da Avenida Paulista que estava ganhando protagonismo social e econômico, compondo uma nova centralidade. Com isso, a Bela Vista que se encontrava em uma situação intermediária entre as duas centralidades passa a ganhar visibilidade e a Vila Itororó entra na agenda do poder público.

o projeto original já desconsiderava o uso habitacional do lugar. Diante desse cenário a Vila Itororó mergulha em um intenso processo de abandono e encortiçamento, quando a Fundação Leonor de Barros interrompe o recebimento dos aluguéis. Quando os moradores descobriram que não havia mais ninguém para realizar as cobranças começaram a sublocar os quintais e cômodos das casas. Foi nessa época que o Palacete passou a funcionar como uma pensão. 1996: o cearense Manuel José Aureliano é chefe de uma das três famílias que moram no segundo andar do casarão. Ele divide o aluguel de R$300,00 com o pai da outra família. A dona da pensão ajuda nas contas de luz e de água. (Coletivo Micrópolis, 2017)

Em 2002 a Vila Itororó foi tombada na esfera municipal, pelo CONPRESP (Res. 22/2002), e em 2005 na esfera estadual pelo CONDEPHAAT (Res. SC 09/05). Ainda em 2005 a Vila entra oficialmente na SeHab (Secretaria da Habitação de São Paulo) como um cortiço² - para ser readequada de acordo com as normas especificadas na Lei Moura - e no Em 1976 foi elaborado pelo arquiteto Decio ano seguinte passa para as mãos da SecretaTozzi o “Projeto de recuperação urbana da ria da Cultura, tornando-se um bem de utiVila Itororó”, que contava com bibliotecas, lidade pública, o que invalidou o direito de oficinas, galerias de arte e um complexo gas- muitas das famílias ao usucapião. tronômico. Embora a Vila ainda não tivesse passado pelo processo de mudança de uso, ² Trata-se do programa de atuação em cortiços criado em 2002, cuja implantação foi delegada à CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo) pelo governo do Estado de São Paulo junto ao BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), ao qual os moradores da Vila foram enquadrados.

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O Estado de S. Paulo | Doc. Vila Itororó Canteiro Aberto

TERCEIRA FASE: 2006 - HOJE Depois que a prefeitura de São Paulo compra o título da propriedade da Vila Itororó, em 2006, a Vila é desapropriada pelo governo do estado e a Secretaria Municipal da Cultura fica encarregada de levar adiante o processo de transformação da mesma em um Centro Cultural. Sob a sombra da iminente ameaça de despejo e como fruto da organização das próprias pessoas que residiam na Vila Itororó, nasceu a AMAVila (Associação de Moradores e Amigos da Vila Itororó) que contou com o apoio de coletivos e organizações de diferentes áreas do conhecimento, como política, direito e artes. A associação discutia assuntos como o processo de despejo, realocação e usucapião, além de organizar manifestações artísticas de resistência - como o Mapa Xilo-

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gráfico, a festa junina e a 1ª Vilada Cultural – na luta pelo direito dos moradores de permanecer em seus lares, mostrando que habitação também é cultura.Naquele mesmo ano o Mosaico, escritório modelo da FAU Mackenzie em conjunto com Grupo de Pesquisa em Habitação Vida Associada, iniciou o desenvolvimento de uma contraproposta de projeto para o restauro da Vila Itororó, onde foi prevista a construção de unidades habitacionais no galpão anexo e destinação do Palacete (casa 1) ao uso cultural. No ano seguinte o Serviço de Assessoria Jurídica da USP (SAJU) começa a apoiar a AMAVila e dá início a uma ação de usucapião, que segue em andamento até 2009, quando a CDHU informa a viabilização de três conjuntos habitacionais verticais na região central da cidade para os moradores Vila, abrindo as portas para as primeiras remoções.


Festa junina na Vila Itororó | Lígia Pinheiro, 2006

Fundação da AMAVila | Arquivo Graziela Knusch, 2006

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Do encontro entre 15 artistas engajados em discutir a arte em espaços públicos e investigar territórios ameaçados pela gentrificação2 que ocorreu na região em 2009, nasceu o “Vende-se”, uma manifestação performática idealizada pelo grupo Hangar de Elefantes que fez parte da 1ª Vilada Cultural ao lado de outras participações artísticas que buscavam colocar luz sobre questões que relacionadas ao direito à moradia em conflito com a especulação imobiliária. Entre 2011 e 2013 todas as famílias que viviam na Vila foram removidas, tendo sido Dna. Antônia – presidente da AMAVila - a última moradora a deixar o local por meio de intervenção policial em 20 de janeiro de 2013. A remoção das famílias que residiam na Vila Itororó despertou o interesse especulativo da região, uma vez que não se tratou de uma simples medida inerente ao processo de restauro de um bem público, mas sim de uma medida para substituir os modos de vida incompatíveis com a valorização do território, afim de viabilizar o surgimento de novos empreendimentos imobiliários no entorno. Uma das vilas urbanas mais antigas de

São Paulo, a Vila Itororó foi cenário, nos últimos anos, de uma batalha envolvendo prefeitura e governo do Estado de São Paulo, que queriam transformá-la em centro cultural, e moradores, que lutavam para ter seus direitos reconhecidos. Por fim, venceu o poder público, e às famílias restou apenas sair do lugar onde viveram por tantos anos. (Patrícia Benvenuti, em 07 de março de 2013 para o jornal Brasil de Fato).

Atualmente o processo de restauro está sob responsabilidade do Instituto Pedra, que se propôs a constituir um centro cultural temporário onde os rumos do projeto pudessem ser discutidos em conjunto com a sociedade, afim de experimentar diversas possibilidades de apropriação desse espaço. Nasce então, em 2015, o Canteiro Aberto Vila Itororó que ocupa um galpão desapropriado pela prefeitura. Também em 2015 foi realizado o workshop “A cultura da moradia na Vila Itororó” onde estudantes de arquitetura e recém-formados propuseram alternativas para compatibilizar o uso cultural com a moradia. Os projetos foram apresentados, mas as propostas não foram incorporadas.

¹ Se trata de um fenômeno que afeta uma região ou bairro através de um processo de mudança imobiliária, onde há a troca da população pobre por um grupo com maior poder aquisitivo, gerando uma reorganização espacial, transformação do ambiente construído e por fim alteração nas leis de zoneamento.

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Projeto Vende-se | Hangar dos Elefantes, 2009

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ESTUDOS DE CASO A escolha dos estudos de caso foi pautada na temática dos patrimônios históricos, realizando um cruzamento entre as questões de moradia e diferentes tipos de apropriação cultural desses espaços para compreender quais são as melhores alternativas para compatibilizar a manutenção do uso habitacional com um novo uso cultural de modo a preservar as manifestações espontâneas da vida cotidiana e evitar a gentrificação.

VILA MARIA ZÉLIA Localizada no bairro do Belenzinho (São Paulo - SP), a Vila Maria Zélia foi idealizada pelo industrial Jorge Streef afim de abrigar os funcionários de sua Cia. Nacional de Tecidos de Juta. O projeto ficou a cargo do arquiteto francês Paul Pedraurrieux e a construção teve início em 1911. A Vila é composta por casas e edifícios comunitários: as escolas de meninos e de meninas, a igreja e os armazéns. O uso desses edifícios foi iniciado entre os anos 1917 e 1922. Após um período marcado pela compra da Vila por diferentes grupos, em 1931 o INPS (atual INSS) passou a administrar o local. Em 1939 a Goodyear compra a fábrica e

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parte do terreno da Vila, levando a um consequente processo de descaracterização. Na década de 1960 os moradores adquirem o direito de comprar os imóveis de uso residencial e os edifícios comunitários ficam sob administração federal. Em 1992 a Vila Maria Zélia foi tombada nas esferas municipal e estadual: Resolução 39/92 (CONPRESP) e Resolução 42/92 (CONDEPHAAT). Em 2003, o Grupo XIX de teatro, motivado pelo estudo das formas de morar do séc. XX, entra em contato com a Associação Cultural Vila Maria Zélia com a proposta de se apropriar parcialmente do espaço buscando um uso comum. A Associação Cultural apoiou a iniciativa e foi iniciado o processo de instala-


Antigo Armazém da Vila | Marcel Mendes Carvalho, 2017

ção do grupo de teatro no antigo armazém de secos e molhados – Armazém número 9.

um novo uso, chamam a atenção para o descuido com o patrimônio edificado, levantando uma série de questões referentes ao uso do espaço público e a atuação dos órgãos de patrimônio... (BRANDÃO, 2016, p. 26)

O processo de instalação se deu da seguinte forma: limpeza e desocupação do espaço, que estava entulhado de objetos dos próprios moradores, seguida pela adaptação Esse estudo de caso se faz pertinente por dois fatores principais. O primeiro deles é das instalações hidráulicas e elétricas. por se tratar de uma vila operária construAtualmente as 180 casas residenciais conti- ída no início do séc. XX - mesmo período da nuam ocupadas pelas famílias dos operários construção da Vila Itororó. O segundo fator da Fábrica de Juta. Os demais edifícios se é o fato de a Vila Maria Zélia abrigar tanto o mantêm inutilizados e em estágio avançado uso residencial, quanto o uso cultural de cade degradação. ráter coletivo levado pelo Grupo XIX, possiA residência artística do Grupo XIX de bilitando aos moradores uma nova vivência teatro no Armazém número 9 da Vila Ma- do espaço que habitam, além de fazer com ria Zélia é um exemplo de como práticas que outros cidadãos tomem conhecimento referentes à coletividade, por meio de da Vila.

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Apresentação do Grupo Shandala | Monge Art, 2014

CASA AMARELA

década de 1950. Entre os anos 1990 e 2000, o INSS alugou o espaço para sediar a creche Também construída no início do séc. XX, a do TRT-SP. Casa Amarela é um casarão em estilo fiorentino localizado na Rua da Consolação, em Em 2006 o casarão foi tombado pelo São Paulo. Acredita-se que o responsável CONPRESP por meio da Resolução 03/06. pela construção desse casarão foi Giuseppe Apesar de estar desocupado desde a saída Sachetti. da creche, uma vistoria realizada em 2012 revelou que o imóvel permanecia em bom O imóvel, originalmente de uso residencial, estado de conservação. com 27 cômodos distribuídos em três pavimentos e um térreo de aproximadamente Em 2014, uma ação realizada pelo movi1650m², foi administrado pelo INPS desde a mento cultural MOPEO (Movimento de

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Ocupação de Espaços Públicos Ociosos) fez com que cerca de 120 artistas ocupassem a Casa Amarela. Esse movimento tem o objetivo de realizar atividades culturais permanentes em espaços públicos ociosos pertencentes às esferas municipal, estadual ou federal, promovendo o contato entre a população local e as atividades artísticas realizadas pelos grupos integrantes.

tante destacar o caráter não lucrativo das atividades realizadas no espaço, que – com exceção daquelas desenvolvidas para arrecadar fundos para conservação, manutenção e limpeza – são gratuitas.

O maior ensinamento que o caso da Casa Amarela traz para o presente trabalho é referente à maneira de ocupar o espaço. Ao colocar um movimento de rua para ocupar, Atualmente o Ateliê Compartilhado Casa a consequência é uma ausência de limites Amarela conta com 52 apoiadores, entre entre a cidade e o espaço, uma vez que a grupos, cias, trupes e instituições. É impor- rua não possui portas e nem janelas.

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Aqui podia morar gente | Cláudio Marques

PELOURINHO

se desse em dois níveis: a cidade alta e a cidade baixa. A cidade alta cresceu como cenAssim como ocorreu em São Paulo, o centro tro administrativo, enquanto a cidade baixa histórico de Salvador passou por um pro- se expandiu como centro comercial e popucesso de degradação durante a década de lar da orla. 1960. O bairro do Pelourinho está localizado no coração da cidade e conta com um con- Entre os séculos XVI e XVIII a cidade se dejunto arquitetônico de origem colonialista senvolveu prosperamente, sendo o Pelouriportuguesa, tendo sido classificado como nho o centro da aristocracia colonial. Porém, Patrimônio Histórico da Humanidade pela com a transferência da capital para o Rio de UNESCO, em 1985. Janeiro, em 1763, o bairro começou a perder o prestígio. Para entender o caso do Pelourinho, é necessário compreender como se deu a formação No séc. XIX o bairro começa a sentir os efeie a história de Salvador. Suas características tos da especulação imobiliária que vem topográficas fizeram com que a urbanização ocorrendo fora de seus limites e aos poucos

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a população de alta renda vai deixando o bairro e migrando para a cidade baixa que foi valorizada com a modernização do porto no séc. XX.

vestir pesadamente na recuperação do centro histórico, modificando muitas das diretrizes estabelecidas no projeto original. Os casarões e os solares foram convertidos em Em 1970, a implantação do Centro Adminis- usos culturais e de entretenimento - assim trativo da Bahia (CAB) nas proximidades do como se pretende fazer na Vila Itororó, o aeroporto internacional de Salvador fez com que impossibilitou a permanência dos antique o Pelourinho ficasse completamente gos moradores do bairro. Apenas 16% dos isolado das atividades político-administrati- imóveis restaurados mantiveram uso resivas, o que intensificou o processo de dete- dencial, enquanto o projeto de Lina Bo Bardi determinava que um conjunto de casarões rioração e a presença de atividades ilícitas. fosse restaurado e destinado ao uso resiDepois que o bairro foi declarado Patrimô- dencial da população local de baixa renda e nio Histórico da Humanidade, em 1985, o térreo seria disponibilizado ao comércio. grupos intelectuais passaram a pressionar a “... uma realidade rica, com muitos proprefeitura para que intervisse de forma atiblemas, é claro, mas frágil, que merecia va na reversão desse quadro. Foi então que toda a atenção e delicadeza no trato a arquiteta Lina Bo Bardi foi convidada para sociológico/urbanístico da intervenção, fazer o projeto de reabilitação do centro recebeu um “trator” do turismo global histórico. Foi necessário descartar o termo e da limpeza social. Uma cidade cenário “revitalização” uma vez que a região contise instalou sobre 400 anos de intensa nuava densamente habitada, conservando vida urbana. Só se pensou no turismo. ” ali uma vida urbana. (FERRAZ, 2011, p. 196) O projeto piloto foi desenvolvido entre 1986 e 1989. Começou com o levantamento das edificações do bairro, onde se verificou que cerca de 30% dos imóveis nas áreas tombadas estavam completamente arruinados ou em estágio avançado de deterioração. O projeto apresentava um programa diverso que permitia a manutenção da vocação tradicional do centro como ponto de encontro, moradia e lazer da população, evitando um processo de gentrificação e a transformação do bairro em um parque turístico, uma vez que é necessário preservar a essência do local e não apenas os aspectos físicos. Na década de 1990 o governo passou a in-

Graças às diretrizes de cunho social que foram estabelecidas, o processo de gentrificação não se deu por inteiro, uma vez que a população residente é formada predominantemente por famílias com renda entre 0 e 5 salários mínimos. É possível fazer uma relação entre os acontecimentos do Pelourinho e a problemática da Vila Itororó, onde os moradores se viram obrigados a aceitar as condições de um acordo com a prefeitura que resultou a remoção de todos os moradores para que seja implantado um Centro Cultural e Gastronômico criado à sombra de uma memória lhe foi roubada.

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Blocos 3 e 2 | Nicoli Barea Tirada, 2009


PROJETO


RESTAURAÇÃO E RESGATE DA NOÇÃO DE COMUNIDADE

A Vila Itororó, conjunto arquitetônico composto por 11 edificações - que totalizam 37 unidades habitacionais segundo o historiador Benedito Lima de Toledo – foi crescendo por meio de sucessivos acréscimos e sobreposições, fazendo uso de materiais de demolição de diferentes lugares como era de costume na época, levando o poeta Mário de Andrade a apelida-la de “Vila Surrealista”.

de na implantação do projeto. ***

Diante do debate político que envolve o caso da Vila Itororó, o objetivo principal desse trabalho é viabilizar o acesso à moradia para a população de baixa renda dentro de suas edificações, propondo-se a restaurar tanto sua materialidade quanto sua vida cotidiana. Para tanto foram tomadas medidas Tendo sido tombada em 2002 pelo CONPRESP para evitar um possível processo de gentrifi(Conselho Municipal de Preservação do Pa- cação oriundo de sua restauração e garantir trimônio Histórico, Cultural e Ambiental da os usos espontâneos no local, conciliando o Cidade de São Paulo) – Res. 22/2002 - e em uso residencial com outros usos, utilizando 2005 pelo CONDEPHAAT (Conselho de De- como fundamento ideia de que interesses 1 fesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, diversos constroem a noção de público . Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) *** – Res. SC 09/05 -, a Vila hoje é considerada oficialmente um patrimônio histórico. Com A forma como a Vila foi implantada permite exceção do casarão principal que foi tomba- que diferentes usos coexistam em seu miolo do a nível de preservação integral do bem de quadra, colaborando para a manutenção tombado (NP-1), todas as edificações da Vila de um estilo de vida pertencente a uma São foram tombadas a nível de preservação par- Paulo de outrora, quando as crianças brincial (NP-3), possibilitando maior flexibilida- cavam na rua enquanto suas mães podiam ¹ Ideia justificada no texto “Urbanismo de (r)existência” de Marcella Arruda onde a autora parte do entendimento do filósofo Antônio Negri sobre o assunto.

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observá-las da janela de suas casas. A rua, a água, aumenta a capacidade de drenagem antes de um local de passagem, era um local e escoamento. de encontro e aprendizado. Foi mantida uma área descampada ao lado Os espaços de uso coletivo foram projetados da piscina, em frente à casa 8 para a realide modo a facilitar o acesso e a transposi- zação de práticas esportivas, rememorando ção de pedestres – uma vez que a Vila possui o antigo Eden Liberdade Futebol Clube que acesso pelas ruas Martiniano de Carvalho, teve sua sede implantada exatamente naMonsenhor Passalacqua e Maestro Cardim. quele local. Para tanto foi proposta uma rampa acessí*** vel ao lado da icônica escadaria que dá para a rua Maestro Cardim, além de um novo A história que dá valor ao patrimônio é consconjunto de escadas que além de facilitar o truída na vida cotidiana, então para compreacesso a todos os pavimentos do Palacete, ender o que deve ser preservado é necespermitem o cultivo de uma horta comunitá- sário compreender quais são os grupos que ria em seus patamares, contribuindo para a compõe a identidade do local, detectando, autossuficiência da Vila. valorizando e preservando suas referências culturais. Com o objetivo de incentivar a maFoi feita a opção por manter tanto o para- nutenção e difusão dos saberes, práticas e lelepípedo quanto o piso de pedra “pé de formas de expressão desses grupos, foi promoleque” que se encontram em boas con- posto o Centro de Memória e Resistência do duções, uma vez que remetem diretamente Bixiga, a ser implantado no galpão anexo à à cidade do séc. XX. A rusticidade dos pisos Vila. de pedra e de concreto dialoga com os novos decks de madeira colocados estrategi- O Bixiga é considerado por muitos como um camente nos espaços dinâmicos da quadra, “estado de espírito”, caracterizado pelo sencriando uma condição favorável para encon- so de cooperação, a malemolência e o sorritros, brincadeiras e práticas diversas, como so fácil de seus habitantes. Outra caracteríspor exemplo yoga em grupo. tica marcante do bairro é a mistura cultural que engloba tradições que vieram com os Aproveitando o solo argiloso e úmido do imigrantes italianos, com os negros fugidos terreno, foi proposto um pequeno pomar que fundaram seus quilombos na grota do ao lado da casa 1 e em frente à casa 11, bairro e com os migrantes nordestinos, que onde devem ser plantadas árvores frutífe- hoje compões a maior parte da população ras nativas da Mata Atlântica para usufruto que mora na região. dos moradores e visitantes. Outra decisão importante foi a de recuperar a nascente A memória do bairro está em disputa, fazendo riacho do Itororó, devolvendo-a às suas do-se necessária a implementação de uma condições naturais e criando um pequeno política para preservação da memória, priojardim de chuva em frente ao Palacete, que rizando as narrativas não predominantes, além de ampliar a relação entre as pessoas e uma vez que a construção dessa memória

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para o desenvolvimento de sua própria história. No pavimento superior deve ser desenvolvido um projeto museológico que O Brasil tem uma memória fraca e frag- permita o acesso a novas linguagens expomentada que lembra dos homens ricos sitivas que efetivamente explorem o sentido brancos, e eu acho que a memória desse imaterial de cada narrativa. Como forma de bairro é uma memória importante que incentivar a produção e economia locais foi tem que ser apropriada pela cidade, por- proposta uma loja de produtos locais no paque disso aqui nasceram muitas ações e vimento logo abaixo do Museu da Vila, onde iniciativas que incomodaram ou impactamoradores do bairro poderão vender seus ram o Brasil inteiro. (Amelinha, bloco da produtos periodicamente.

se deu, até então, de forma a privilegiar o homem branco de origem europeia.

Dona Yaya).

O bairro é e foi palco de diversas lutas sociais, como a luta dos negros por liberdade, a luta dos migrantes nordestinos por melhores condições de vida, a luta por moradia, a mais recente luta dos refugiados por liberdade e a luta das mulheres2. Logo, para além de manter e difundir a memória que compõe a identidade do bairro, o Centro de Memória e Resistência do Bixiga foi projetado para ser o ponto de encontro entre todas essas lutas, incentivando a troca de ideias e a união entre as diversas pautas presentes em prol de um bem maior. *** O Centro de Integração da Vila Itororó, implantado no Palacete, deve acolher a memória do local e dialogar com as novas gerações, devolvendo elementos fundamentais

*** Como forma viabilizar o acesso às habitações pela população de baixa renda e evitar a gentrificação, deve ser implantado um programa de locação social semelhante à política adotada na África do Sul, onde a prefeitura - em parceria com uma empresa particular – constrói casas que ao invés de se tornarem propriedade privada como acontece no programa Minha Casa Minha Vida, permanecem nas mãos do poder público e servem à função de aluguel social. É feito um acordo onde a empresa que financia a construção recebe uma porcentagem das unidades habitacionais que podem ser incorporadas ao mercado imobiliário, garantindo também que pessoas de diferentes classes sociais compartilhem de um mesmo espaço.

² No Bixiga estão sediadas a União de Mulheres de São Paulo (organização autônoma feminista que trabalha com educação popular), o CIM (Centro de Informação à Mulher), a fundação Outro Olhar e a Casa da Mulher da Bela Vista..

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IMPLANTAÇÃO

ESCALA 1:750

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Galpรฃo vazio | Vila Itororรณ Canteiro Aberto



Estive navegando em rios que dividem ilhas. Levado pelas águas, pensava no espírito do tempo. Vou vendo os movimentos sociais que se reconhecem tão maravilhosamente bem em sua identidade e fico feliz demais de ver como é bonito. O movimento negro, o ambientalista, o lgbtt+, o feminista, o indígena, o de defesa dos animais, o vegano entroutros tantos. Ilhas com seu clima, sua fauna, sua história. [...] Se eu pudesse chacoalhar o mundo, apertando pelos ombros, e dizer quando os olhos arregalarem pra ouvir, lembraria que ninguém é só ilha. Lembraria que a busca agora é por unir forças e nos reconhecer como humanidade. Como parte do arquipélago. [...] Que nessa primavera floresça a consciência de que por baixo dos rios entre ilhas, tudo se liga por Terra. Que cada ilha é única e legítima, mas que é sempre parte de um todo maior. E que então todas as ilhas se juntem tão próximas e virem continente.

Lucas Gobatti

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CENTRO DE MEMÓRIA E RESISTÊNCIA DO BIXIGA

Experiência comunitária para crianças| Vila Itororó Canteiro Aberto, 2017

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Atual estado do Palacete (Bloco 1) | Nelson Kon



CENTRO DE INTEGRAÇÃO DA VILA ITORORÓ

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"Sala cívica" | Documentário Vila Itororó Canteiro Aberto

Cariátide no interior da sala de jantar | Fernando de França, 2012

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BLOCO 1

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Espaรงo Goethe na Vila - Casa 8| Fernando Stanknus, 2017



CLUBE ÉDEN

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Evento "Clube Éden" - Coletivo Micrópolis | Acervo pessoal, 2017


BLOCO 8

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Bloco 6 | Documentรกrio Vila Itororรณ Canteiro Aberto



RESGATE DO USO HABITACIONAL

Tapume Casa 1 | Elohim Barros, 2007

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BLOCO 2

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BLOCO 3

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BLOCO 4

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BLOCO 5

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BLOCO 6

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BLOCO 7

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BLOCO 9

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BLOCO 10

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BLOCO 11

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Crianรงas na janela do Bloco 3 | Elohim Barros, 2007



Carranca | Simone, 2016


CASA DAS CARRANCAS: RESTAURO E ADAPTAÇÃO PARA MORADIA COMPACTA

Casa das Carrancas vista do interior da Vila| Simone, 2016

Acesso pela rua Martiniano de Carvalho| Eli Kazuyuki Hayasaka, 2015

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Casa das Carrancas| Rigoberto Costa

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MAPEAMENTO DE DANOS

Material fornecido pelo Instituto Pedra.

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SOLUÇÕES TÉCNICAS

Material fornecido pelo Instituto Pedra e adaptado para esse projeto.

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MORADIA COMPACTA

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MORADIA COMPACTA - SITUAÇÃO 1

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MORADIA COMPACTA - SITUAÇÃO 2

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REFERÊNCIAS

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