HABITAR
ÀS
MARGENS
diretrizes para intervenção em assentamentos precários nas áreas de proteção aos mananciais tamires almeida lima
HABITAR ÀS MARGENS
diretrizes para intervenção em assentamentos precários nas áreas de proteção aos mananciais tamires almeida lima
TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO Tamires Almeida Lima ORIENTAÇÃO João Sette Whitaker Ferreira BANCA EXAMINADORA João Sette Whitaker Ferreira Karina Oliveira Leitão Luciana Nicolau Ferrara Paulo Emilio Buarque Ferreira Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Junho de 2014
Ă€ Ana, Roberto e Alex.
AGRADECIMENTOS Agradeço ao orientador e amigo João Sette pelas conversas sempre inspiradoras, pelo apoio e dedicação. À amiga Karina Leitão pela fundamental ajuda no engrandecimento do trabalho e da autora. À Luciana Ferrara e Paulo Emílio pela participação enriquecedora e por toparem fazer parte de um momento tão especial. Aos amigos do LabHab, do Obrservatório de Remoções e do B Arquitetos por ampliarem meus horizontes. Ao pessoal da Cruzeiro do Sul por abrirem suas portas e seus corações. Aos amigos de FAU, de Kenan e Kel, de Répiauer, de Sexta Marxista, de Atlética, de Jogos e de estudos às vezes. Aos amigos do colégio pela parceria interminável e inestimável. Aos amigos da vida pelos sorrisos, alegrias e companhia imprescindível. Aos meus pais por tudo que for possível imaginar. E mais. E em especial ao Alex, pelo amor, apoio e compreensão desde antes do início. Por me fazer ouvir, por me fazer sorrir, por me fazer crescer.
Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos se não fora A mágica presença das estrelas! Das utopias - Mário Quintana
09 Introdução 13 Panorama geral sobre formação e intervenção em assentamentos precários no Brasil Expansão da metrópole de São Paulo: origem de favelas, cortiços e loteamentos 14 A abordagem do poder público em relação às favelas no Brasil 19 Dificuldades e avanços 26 33 Os direitos das comunidades O Estatuto da Cidade e a Função social da propriedade 34 Direito à cidade e à moradia digna 35 Direito à assessoria técnica e à regularização fundiária 36 Direito à gestão democrática da cidade 37 Direito à informação 38 Dos direitos relativos às situações de remoção 38 Das tensões entre o direito à moradia e o direito ambiental 40 Notas conclusivas 42 45 Os mananciais A expansão urbana sobre as áreas de mananciais na região metropolitana de São Paulo 47 O uso múltiplo das águas 49 Notas conclusivas 54 57 Transformações da legislação incidente nas áreas de proteção aos mananciais Da Lei de Proteção aos Mananciais à Lei Específica da Billings 58 A Lei Específica da Billings 61 PRIS e os Planos Diretores: o caso de São Bernardo do Campo 65 Notas conclusivas 68
71 Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo O bairro dos Alvarenga 74 A comunidade Cruzeiro do Sul 78 99 Diretrizes de intervenção Diretrizes para trabalho social 100 Diretrizes de adequação urbana e ambiental 103 Inserção urbana 104 Implantação 108 Infraestruturas sanitárias 113 Unidade habitacional 129 Materiais e sistemas construtivos 134 Canteiro de obras 136 Manutenção e pós-ocupação 138 Diretrizes de regularização fundiária 140 145 Hipóteses de intervenção na comunidade Cruzeiro do Sul 161 Considerações finais 165 Referências bibliográficas
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
O tema da urbanização de favelas tem ganhado proporções significativas dentro das políticas urbanas nas últimas décadas no Brasil. De maneira geral, grande parte das metrópoles que possuem assentamentos informais em seus territórios, de alguma maneira estão habituados a realizar este tipo de intervenção, no entanto, o caminho percorrido para que essa possibilidade existisse não foi curto. Após a Constituição de 1988, que tratou de temas sociais e respondeu a alguns anseios da população que lutara para ser ouvida e se fazer ouvir, novos rumos puderam ser dados a diversas questões sociais, muitas delas estagnadas antes e durante o período do regime militar. Muitas lutas foram vencidas, mas no âmbito da Reforma Urbana, a batalha teve de se estender um pouco mais. Somente em 2001, com a aprovação do Estatuto da Cidade, demos significativos passos em direção à construção de cidades mais justas e democráticas. Visando regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição, o Estatuto implementa uma série de instrumentos urbanísticos e dá as diretrizes para a criação de tantos outros, capazes de fomentar importantes transformações na nossa sociedade, marcada pela desigualdade social e pela segregação urbana. No entanto, apesar da importante ferramenta que agora possuímos em mãos, sua utilização ainda é difícil. A tradição patrimonialista do nosso Estado e sua instrumentalização pelas elites (FERREIRA, 2007), impõe severas barreiras à criação e implementação de políticas públicas que surtam real efeito na diminuição das desigualdades e na democratização do acesso à terra, aos serviços públicos e, de maneira geral, aos direitos sociais duramente conquistados. Foi olhando para este contexto que, durante o percurso acadêmico, tive a oportunidade de desenvolver alguns estudos acerca do tema. Primeiramente, realizei iniciação científica com o tema “Violação do direito à moradia no âmbito de megaeventos esportivos: um estudo de caso na cidade de São Paulo”, em seguida, iniciei o trabalho de contribuição com o Observatório de Remoções , ainda em curso. Acrescento também a oportunidade de estagiar em escritório de arquitetura que desenvolve projeto de urbanização dentro do programa municipal de São Paulo, Renova SP. Diante de tais experiências, pareceu interessante a oportunidade de desenvolver um trabalho acadêmico, que fosse propositivo, prático e relativo às questões que têm permeado meu processo de formação. Utilizar-me do mesmo para melhor compreender como as questões teóricas encontram as práticas e de que maneiras o arquiteto pode contribuir dentro de um cenário tão complexo, onde diversos profissionais agem e interagem. Dentro deste contexto, o trabalho busca elaborar diretrizes de intervenção na favela Cruzeiro do Sul, em São Bernardo do Campo. Esta comunidade ocupa área particular inserida na APRM (área de proteção e recuperação de mananciais) da represa Billings e tem sofrido pressões para sua remoção, principalmente, devido às condições ambientais de sua localização. 10
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A empresa administradora da represa reclama a retirada dos moradores para que possam realizar manutenção e operação da represa, a existência de uma nascente e um córrego muito próximos às casas, o fato de estar do lado oposto da estrada que passou a ser o delimitador da ocupação na região, a precariedade habitacional de parte das residências e a dificuldade de controle urbano para impedir a expansão da comunidade foram fatores somados pelo município que oficializou a previsão de remoção da comunidade na elaboração do PLHIS - Plano Local de Habitação de Interesse Social - (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2010a) visando, entre outros, resolver o conflito. Conflito este pela apropriação do espaço urbano e pelo direito à moradia, que enseja uma abordagem tradicional da questão ambiental, da intervenção sobre propriedade particular do terreno e dos poucos avanços feitos em relação à manutenção e controle da expansão urbana sobre áreas ambientalmente frágeis. No entanto, baseados no conceito de planejamento insurgente que vem sendo desenvolvido recentemente pelo professor Carlos Vainer na UFRJ (VAINER, 2010), entendemos que o dado conflito pode ser base para o desenvolvimento democrático de diferentes soluções, onde o processo participativo exista não apenas para mediação do conflito e aceitação da solução de remoção dada como única, mas como meio de atuação da comunidade como planejadores ativos de seu próprio destino, buscando conciliar seu direito à moradia adequada às medidas de proteção e recuperação ambiental. Mais que um produto técnico, o projeto, sob esta ótica, figura como instrumento de luta política em defesa dos direitos urbanos conquistados. Desta maneira, o trabalho apresentado visa embasar tecnicamente as soluções discutidas e elaboradas de acordo com os anseios e demandas da comunidade, a fim de se reafirmar que, sim, é possível repensarmos as cidades e seus conflitos de maneira participativa, colaborativa e inclusiva, com respeito ao meio ambiente, mas principalmente, com respeito ao ser humano.
Introdução
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PA N O R A M A G E R A L S O B R E F O R M A Ç Ã O E I N T E R V E N Ç Ã O E M A S S E N TA M E N T O S PRECÁRIOS NO BRASIL
Expansão da metrópole de São Paulo: origem de favelas, cortiços e loteamentos No início do século XX, eram poucas as pessoas que viviam nas áreas mais distantes do centro da cidade de São Paulo, pois o sistema de transportes era baseado no bonde, que não cobria grandes distâncias e acabava por configurar uma expansão concentrada. Apesar de haver algumas linhas que levavam a lugares um pouco mais distantes, como Santo Amaro e Cantareira, o transporte ainda era caro, e a despesa diária do trajeto de ida e volta para o trabalho tornava-se um grande obstáculo (KOWARICK, 2009). Esta situação durou basicamente até os anos 30, quando começou a ser implantado o Plano de Avenidas de Prestes Maia, que criou uma grande rede viária estruturada por avenidas de fundo de vale – canalizando boa parte dos rios da cidade – que desembocam no centro. Toda a transformação gerada por este grande projeto, tornou-se aliada à continua substituição do bonde pelo ônibus, veículo mais versátil, capaz de cobrir distâncias maiores e adentrar áreas menos povoadas. Contudo, não somente a expansão do transporte viário contribuiu para o crescimento das periferias, a Lei do Inquilinato de 1942 brecou a construção de moradias para aluguel, causando um drástico aumento nos preços dos alugueis e terrenos, tornando a habitação na área central praticamente insustentável para boa parte da população trabalhadora1 (BONDUKI, 2004).
1. Dados da época indicam que cerca de 10% dos paulistanos sofreram com despejos. (Bonduki, 2004)
“Quatro cantos” esquina entre Rua Direita e São Bento onde linhas de bonde se encontravam em angulo reto. 1902. Fonte: Toledo, 1996. Dia de inauguração da Empresa Paulista de Ônibus Mooca, 1934, com ônibus perfilados e seus respectivos funcionários. Fonte: http://www.museudantu.org.br 14
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Cortiço na área central de São Paulo. Fonte: Kowarick, 2009, p. 104
No entanto, o grande fluxo migratório em direção à cidade devido ao crescimento industrial vivido na primeira metade do século XX foi o principal fator da expansão urbana. Como aponta Maricato (1995), a criação de leis trabalhistas, a introdução de tecnologia em alguns setores agrícolas e a manutenção das relações precárias de trabalho no campo, impulsionou o surto industrial nas cidades e a concentração fundiária no interior. Ainda que tenham existido políticas trabalhistas, a autora aponta estudo cujo conteúdo revelava que o Brasil, numa relação de quarenta países, estava em último lugar no valor dos salários industriais. A população rural chegava em massa à cidade que não dava condições econômicas ou sociais para seu estabelecimento, fadada às habitações precárias e distantes nas periferias ou em cortiços nas áreas centrais. A urbanização com baixos salários impunha alta rotatividade dos postos de trabalho e más condições de trabalho e moradia, e por meio da incorporação do trabalho feminino e infantil conseguiu movimentar o mercado consumidor. As décadas de 50 e 60 foram palco dos reflexos urbanos desta política desastrosa. Aliada ao prolongamento da rede de transporte e à dificuldade de habitação na área central, além da ausência de políticas públicas habitacionais, a população foi paulatinamente empurrada para as periferias, onde adquiriam terrenos a baixo custo e autoconstruiam a casa própria, em áreas distantes, carentes de qualquer infraestrutura sanitária ou equipamentos públicos. Mais tarde, já na década de 70, foi criada a Lei de Proteção aos Mananciais (1975), que proibia a construção em lotes inferiores a 500m2 nestas áreas, causando um barateamento destas terras. A ausência de fiscalização e controle por parte do poder público, abriu caminho para loteadores clandestinos venderem terrenos
Vila Brasilândia, década de 1950. Fonte: http://www.cantareira.org Loteamentos no Jardim Ângela às margens da represa Guarapiranga. Fonte: Kowarick, 2009, p. 174 Panorama geral sobre formação e intervenção em assentmentos precários
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ilegais à população de mais baixa renda que buscava alguma solução habitacional. (MARTINS, 2006) Grandes glebas foram loteadas e financiadas a longos prazos por baixos preços, pois eram desprovidas de serviços e infraestrutura, dando a oportunidade para uma infinidade de famílias de baixa renda começarem a construir “o sonho da casa própria”. Ainda na década de 70, é promulgada a chamada Lei Lehman no 6.766/79, que estabelece regras para o parcelamento do solo urbano. Nesta lei, incluiu-se uma reivindicação de moradores de loteamentos ilegais, a criminalização do loteador clandestino. A oferta de lotes diminuiu, e houve significativa redução na expansão periférica da cidade, no entanto, o loteamento ilegal era a principal alternativa de habitação do trabalhador de baixa renda, e as alternativas estavam cada vez mais escassas. (MARICATO, 1995) Ainda que o número de loteamentos tenha diminuído, poucos dados estão disponíveis sobre o adensamento dos loteamentos existentes e nota-se o intenso crescimento das favelas. “Há uma evidente correlação entre a diminuição da oferta de lotes ilegais no município de São Paulo e a explosão do crescimento das favelas. Durante o período de 1989 a 1992 a prefeitura de São Paulo aprovou o desprezível número de dois projetos de loteamentos residenciais por ano e todos eles se destinavam à classe média ou de nível de renda superior.” (MARICATO, 1995, p. 24) A situação ilegal dos loteamentos desobrigou o setor público, num primeiro momento, de sanar as deficiências urbanísticas destes bairros, contudo, após o gigantesco crescimento que sofreram e das reivindicações advindas de associações de bairro e da população residente, o poder público teve de fazer investimentos básicos, como equipamentos de saúde e educação, policiamento, transportes e saneamento. As grandes distâncias causaram um enorme custo de urbanização, uma vez que a ocupação foi desordenada e rarefeita, freqüentemente em terrenos íngremes, a beira de córregos ou em áreas alagadiças. (KOWARICK, 1993) A ação de especuladores imobiliários criou grandes vazios urbanos durante este movimento de expansão da cidade, agravando a dificuldade de urbanização e elevando o preço da terra2 conforme as obras públicas foram sendo realizadas. Neste jogo comandado pelo mercado, em que se ausentou o poder público, o trabalhador foi quem saiu perdendo, pois, ou sofreu com o brusco aumento do aluguel e foi obrigado a buscar uma alternativa mais barata de moradia, geralmente mais distante, ou, quando optou pela compra do terreno, também o fez em locais distantes e desprovidos de infraestrutura, onde o preço era mais acessível e a construção
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2. O preço da terra na Capital, entre 1959 e 1980, subiu em média mais de 150% (Kowarick, 2009)
tornou-se possível às custas de grandes sacrifícios orçamentários. Esta possibilidade de construção da casa própria e a conjuntura propícia à aquisição de terreno nas periferias postergou o crescimento das favelas até a década de 80. Estas surgiram, na cidade de São Paulo, por volta da década de 40, e constituíam pequenos núcleos em áreas municipais vazias, geralmente, originárias das desapropriações decorrentes do Plano de Avenidas de Prestes Maia (BONDUKI, 2004). Até então, as favelas eram pequenas e geralmente localizadas nas áreas centrais, próximas aos locais com maiores chances de oferta de emprego, como, por exemplo, os núcleos que se formaram na Vila Olímpia e na Marginal do Rio Pinheiros. Porém, na década de 50, o então prefeito Jânio Quadros deu início a uma operação de limpeza urbana, removendo estas habitações das áreas mais centrais da cidade. Desta forma, as vantagens das favelas nas áreas centrais foram se esvaindo e iniciou-se um processo de periferização das favelas. Foi então que esta modalidade de habitação realmente se expandiu. “Dos dez distritos que reúnem maior número de favelados e que maior incremento tiveram, todos se situam nos extremos do município” (KOWARICK, 2009, p.227). Alavancada pela Lei de Proteção dos Mananciais, a zona sul recebeu a maior parte das favelas, mas também houve crescimento na região da Serra da Cantareira, zona norte da cidade. Associa-se a esta situação a implementação de políticas de urbanização promovidas pelo poder público nas favelas, também a partir da década de 80, como ligação à rede de água, e em alguns casos, à de esgoto, pavimentação, iluminação pública, etc. Apesar das melhorias que parte das favelas receberam, estas ainda se caracterizam por serem locais de moradia extremamente precária, muitas vezes em áreas de risco e seus habitantes marcados por condições socioeconômicas adversas. Dados recentes apontam 1.600 favelas no MSP, somando cerca de 1.500.000 de favelados, somam-se a estes ainda cerca de 1.500.000 de moradores de loteamentos irregulares e 500.000 moradores de cortiços, ou seja, cerca de ¼ da população da cidade de São Paulo vive em situação irregular e precária e em alguns municípios da região metropolitana esse número chega próximo de 70%. (FERREIRA, 2014) O caso das áreas de proteção ambiental, como os mananciais, é igualmente alarmante. Ao sul da metrópole paulista, às margens das represas Billings e Guarapiranga, vivem cerca de 1.500.000 pessoas, com altas porcentagens de domicílios sem saneamento, com pouca infraestrutura urbana e em área ambientalmente frágil, muitas vezes em situações de risco. No entanto, o quadro não é exclusivamente paulista, reflete um panorama nacional de constante descaso com a questão habitacional e urbana. Todas as grandes metrópoles brasileiras têm, em média, cerca de 20% de sua população morando em favelas e 50% excluída do chamado mercado formal de habitação. (FERREIRA, 2013) Panorama geral sobre formação e intervenção em assentmentos precários
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Loteamento Vila Guiomar, divisa entre S達o Paulo e Itapecerica da Serra. Fonte: Kowarick, 2009, p. 193
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A abordagem do poder público em relação às favelas no Brasil
Mocambos nas áreas alagadiças de Recife. Fonte: Museu da Cidade do Recife
Dada esta conjuntura, é necessário que tracemos, também, um panorama sobre a ação do poder público em relação aos assentamentos precários. Villaça (1986) explicita claramente a contradição nas ações governamentais já desde o final do século XIX, quando a incipiente burguesia industrial e os antigos aristocratas ingressando no capitalismo agiam ora buscando regulamentar e organizar os cortiços (forma de habitação popular mais comum no recente Brasil urbano), ora eliminado-os ou removendo-os de determinadas áreas da cidade. Esta contradição permeia o cenário urbano ainda hoje. Se por um lado é necessário tolerar a habitação precária, pois a população trabalhadora tem que morar em algum lugar, por outro, algum mecanismo deve existir para removê-las quando necessário. Aliadas ao discurso da saúde pública, as remoções, curiosamente, ocorriam em áreas específicas da cidade, por exemplo, o Código de Posturas Municipais de São Paulo de 1886 e o do Rio de Janeiro de 1889, proibiam a construção de cortiços no perímetro do comércio e das “casas de habitação”, veladamente, buscando barrar a desvalorização imobiliária que aquele tipo de construção poderia causar nestas áreas. Villaça(1986, p.15) ainda aponta que este seria apenas o início da aliança entre a legislação urbanística e os interesses imobiliários. Nas décadas seguintes, a demolição de cortiços e habitações populares teve seqüência, por exemplo, para a abertura da Avenida Central, em 1906 no Rio de Janeiro, onde cerca de 3000 casebres foram demolidos, e em São Paulo, a política da erradicação, ainda que apoiada e exigida, só viria a se concretizar quando as habitações precárias tornavam-se empecilhos à renovação urbana que seguia em direção às áreas nobres da cidade. Tais medidas culminaram com a formação das primeiras favelas, no Rio, os desabrigados das reformas na área central carioca foram buscar abrigo nos morros, e em São Paulo, nas periferias. A partir de então, surgem as primeiras medidas legais direcionadas às favelas, também no sentido de remover e inibir. Em 1934, a cidade do Recife proíbe a construção ou reconstrução de mocambos no perímetro urbano da cidade, e no Rio de Janeiro, em 1937, o código de obras previa a eliminação das favelas e sua substituição por núcleos de habitação do tipo mínimo, proibia a construção de favelas e a execução de melhorias nas existentes. (DENALDI, 2003, p. 12) Na Era Vargas, em 1937 com o Estado Novo, alojamentos coletivos de madeira, chamados Parques Proletários Provisórios, eram construídos para abrigar a população removida compulsoriamente das favelas, no entanto, a ação autoritária e populista, contraditória e característica deste período, destinava-se somente àqueles que possuíssem cartão político. (SILVA apud. DENALDI, 2003, p. 12) Panorama geral sobre formação e intervenção em assentmentos precários
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Na década de 40, em Belo Horizonte, foi registrado um considerável número de remoções em favelas – 423 áreas, totalizando 43 mil pessoas – na maioria dos casos violentas, sendo oferecida uma indenização insignificante. (DENALDI, 2003, p. 15) Situação similar ocorreu em Recife na mesma década, onde as famílias removidas dos mocambos eram transferidas para conjuntos de casas divididos por categorias profissionais. No Rio de Janeiro, entre 1962 e 1974 foram removidas 80 favelas, a grande maioria na zona sul, para possibilitar a construção de residências para as classes média e alta, segundo interesses do mercado imobiliário, e em São Paulo, na década de 60, a administração Faria Lima cria a COHAB a fim de apoiar o desfavelamento, destinando cerca de 50% do total de moradias construídas aos favelados. (BUENO, 2000) Já no âmbito da produção de moradias, podemos citar como exemplo os IAPs (Instituto de Aposentadoria e Pensões) que, através de seus segmentos (Industriários, Comerciários, etc), elaboraram este fundo de pensões e passaram a investir na produção habitacional. A produção foi significativa, mas acabou sendo direcionada para classes especificas, não sendo capaz de sanar ou contribuir para a redução do déficit habitacional do país. (BONDUKI, 2004) Temos também o período de ação do BNH (1964-86), no entanto, a produção habitacional deste Banco foi mais expressiva para conjuntos de padrão mais alto, direcionados às classes de maior renda, devido aos interesses do mercado da construção civil. Desta maneira, a população de mais baixa renda não conseguiu ter significativo acesso à esta produção, pois as parcelas do financiamento, em geral, não condiziam com sua realidade financeira. Como exemplo da produção do BNH para a população de renda mais baixa, temos os edifícios localizados na Cidade Tiradentes, em São Paulo. Com cerca de 40 mil unidades, o distrito é o maior complexo de
Favela da Praia do Pinto às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro, removida em 1968. Fonte: favelatemmemoria.com.br
Edifício Japurá, IAPI, década de 40. Fonte: Bonduki, 2004. Conjunto Vila Guiomar na década de 50. Acervo Museu de Santo Andre. Coleção: Octaviano Gaiarsa. 20
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3. Dados: www.prefeitura.sp.gov.br
Favela Brás de Pina, Rio de Janeiro, antes e depois da urbanização. Fonte: www.favelatemmemoria.com.br
conjuntos habitacionais da America Latina3, a maior parte deles foi construído na década de 80, pela COHAB, CDHU e BNH. O bairro está localizado a 35 km do marco zero da cidade - Praça da Sé - e não contava com qualquer infraestrutura urbana para além dos conjuntos, não tinha disponibilidade de comércio e serviços suficiente e estava bastante distante dos pólos de emprego. No entanto, também existiram experiências de atuação mais inclusivas em relação aos assentamentos precários. No Rio de Janeiro, a pioneira experiência de urbanização da Favela Brás de Pina, em 1968, pelo escritório Quadra Arquitetos Associados, desenvolveu projeto de relocação de casas para abertura de sistema viário, bem como projetos de aterro, drenagem e esgotamento sanitário. Em 1979, com o programa federal PROMORAR, os estados e os municípios recebiam empréstimos para efetuar melhorias em termos de infraestrutura urbana e os moradores recebiam financiamentos para melhoria ou construção de suas moradias. O programa conseguiu produzir um grande número de unidades habitacionais, mas destacou-se por promover a melhoria das habitações populares em favelas, tendo como meta erradicar as habitações insalubres, sem, no entanto, remover os moradores do local. Em São Paulo, a experiência na Favela Recanto da Alegria, em 1985, promoveu a demolição de todas as casas, reparcelamento da área e reconstrução das moradias no mesmo local providas de infraestrutura. (BUENO, 2000) Em Recife, houve a estruturação de um arcabouço jurídico-institucional para tratar das urbanizações e legalização das favelas aliado a um modelo de gestão participativa, chamado PREZEIS (Plano de Regularização das Zonas de Especial Interesse Social – Lei 14.947/87). A cidade vivia um contexto de disputas territoriais acirradas devido à expansão urbana e à presença de muitos assentamentos ilegais, portanto, a implementação desta lei foi importante no sentido de garantir a segurança da posse para as famílias. Foi também inovadora por instituir as ZEIS (Zonas de Especial Interesse Social) passando a reconhecer a existência dos assentamentos, a admissão da manutenção da população no local e a necessidade de promover a urbanização e a regularização. (DENALDI, 2003) Em Diadema, houve contexto político propício para a criação de uma política consistente e abrangente de urbanização de favelas, devido à eleição consecutiva de três governos do mesmo partido (PT). Foram executadas obras de saneamento, melhoria e abertura de sistema viário, desadensamento e criação de espaços e equipamentos públicos, além de reparcelamento do solo segundo critérios especiais, delimitando lotes unifamiliares de, no mínimo, 44m2. A posse da terra também foi contemplada através da Lei 819/85 que autorizava o poder público a outorgar CDRUs (Concessão de Direito Real de Uso) à população. Os resultados obtidos entre os anos 80 e 90 foram animadores, a rede de água passa a abranger 99,5% dos domicílios e a de esgoto, 76% (os não atendidos localizavam-se em APMs – Área de Proteção de Mananciais – impedidos legalmente de receber Panorama geral sobre formação e intervenção em assentmentos precários
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infraestrutura), a coleta de lixo atende 98,4% dos domicílios, as escola municipais atendem cerca de 65% da demanda e a taxa de mortalidade infantil cai de 82,93 a cada mil nascidos para 20,6. (DENALDI, 2003) Após o processo de redemocratização do país e da referida transferência de responsabilidade da gestão territorial e urbana aos municípios através da Constituição de 1988, na década de 90, a maioria dos municípios das Regiões Metropolitanas passam a desenvolver programas de urbanização como parte de suas políticas habitacionais. Como principais exemplos, podemos citar o programa Favela Bairro, no Rio de Janeiro, o Programa Santo André Mais Igual, a política de urbanização desenvolvida pelo governo Luisa Erundina e o Programa Guarapiranga, ambos em São Paulo e a implantação dos Bairros Ecológicos em São Bernardo do Campo. O Programa Favela Bairro, iniciado em 1993, teve como principal direcionamento a busca por melhoria das condições de habitação através da consolidação das ocupações existentes, sendo o reassentamento e a produção de novas moradias admitidos somente para a eliminação de situações de risco, abertura de vias, construção de equipamentos ou outras situações de extrema necessidade. O mote do programa era levar cidade para onde já existia habitação. Uma das inovações trazidas por este programa baseia-se na participação dos escritórios de arquitetura e de instituições acadêmicas, através da terceirização da elaboração dos projetos e da execução das obras. A participação popular é valorizada, inicia-se junto à fase de elaboração do projeto e são convocadas assembléias gerais ao longo de todo o processo. (DENALDI, 2003) O caso de Santo André, foi uma das primeiras experiências que abordaram a questão da urbanização dentro de um contexto maior de combate a exclusão social. A proposta do PIIS (Programa Integrado de Inclusão Social), lançado em 1997, era atender as famílias moradoras de núcleos de favela com diversos programas sociais, dentre eles, habitação, educação, saúde, garantia de renda, desenvolvimento econômico, entre outros. Tratada como questão estrutural, a exclusão foi combatida em suas diversas frentes, porém, uma grande mobilização de aparato administrativo teve de ser moldada e a interação entre as secretarias e órgãos teve de ser alinhada. Iniciativa vencedora de diversos prêmios nacionais e internacionais4, deixou legado importante no sentido de promover a integração setorial municipal em prol de um programa de inclusão social onde a urbanização é apenas um dos diferentes pontos a serem tratados. (DENALDI, 2012) Em São Paulo, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1992) estruturou-se um programa municipal de urbanização de favelas como parte integrante da política habitacional, tendo como principais características a participação popular e grande alocação de recursos municipais. Como medidas inovadoras houve a criação dos escritórios regionais (13 no total) que garantiu maior agilidade e eficiência no desenvolvimento dos projetos e, principalmente, a instituição da autogestão popular dos empreendimentos. 22
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4. Em 2001, foi incluído entre as 16 melhores praticas do mundo pela ONU. Ainda em 2001, foi selecionado entre as 10 melhores práticas em Gestão Local pela Caixa Econômica Federal. Em 2002, foi eleito uma das 10 melhores iniciativas do mundo pela UN-HABITAT. (DENALDI, 2003)
Inauguração do mutirão São Francisco VIII, São Mateus, São Paulo, 1993. Fonte: http://cidadeaberta.org.br
Organizados em associação comunitária legalmente constituída, os moradores poderiam firmar convenio com a PMSP para a execução das obras, desde que contratassem uma assessoria técnica qualificada, os recursos eram repassados através do convenio e a associação adquiria o material, contratava mão-de-obra, mobilizava parte dos moradores para a execução de alguns serviços em regime de mutirão e gerenciava o projeto como um todo. (BUENO, 2000) O Programa Guarapiranga, componente do Programa de Saneamento Ambiental da Bacia do Guarapiranga na RMSP, foi elaborado em 1992 e tornou-se importante referência no sentido de romper com a visão setorial predominante até então, a fim de abordar a questão ambiental de maneira mais integrada. Para tanto, foram definidos como objetivos principais a recuperação sanitária e ambiental do manancial, o controle da qualidade da água e a implantação de sistema de gestão integrada da bacia, envolvendo o Estado, as administrações municipais e a sociedade O programa contou com grande aporte financeiro, tanto do Banco Mundial, quanto de contrapartida nacional. Cerca 62,4% do total dos investimentos realizados concentraram-se no âmbito da recuperação urbana, destes, 40% na produção de novas moradias. Porém, devido à dispersão dos recursos e da pulverização das obras as metas não foram alcançadas. A falta de integração entre os agentes de governo e a fragilidade da articulação entre os órgãos competentes dificultou a execução das obras, estando estas fadadas à cumprir as exigências impostas pelo Banco Mundial para a obtenção do financiamento. (UEMURA, 2000)
Favela São José IV, Capela do Socorro, antes e depois das obras, 1995. Fonte: www.prodam.sp.gov.br 5. O Plano Emergencial visava a recuperação dos mananciais por meio da urbanização dos assentamentos precários, assunto a ser retomado adiante
Em São Bernardo, bastante influenciado pelas intervenções realizadas no Programa Guarapiranga, e dentro da abertura dada pelo Plano Emergencial5, 63 assentamentos foram demarcados para realização de obras de urbanização e infraestrutura. As intervenções deram-se através dos TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), onde a prefeitura em articulação com o Ministério Público e a população, acordavam a realização e Panorama geral sobre formação e intervenção em assentmentos precários
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o custeio de uma série de medidas para a adequação ambiental e urbana dos assentamentos. Foram previstas obras para a implantação de rede de abastecimento de água, de coleta de esgoto, de energia elétrica, de drenagem, além de arborização e obras de contenção para áreas de risco. (FERRARA, 2013) Neste processo, a articulação com a população foi fundamental na medida em que norteou a implantação, a manutenção e as ações de educação ambiental e sanitária. Foram implantados sistemas alternativos de redução dos impactos ambientais da ocupação humana, como pavimentação e calçadas permeáveis, aproveitamento de lotes vazios com hortas comunitárias, coleta seletiva de lixo e uma ETE (estação de tratamento de esgotos) local, baseada em processos biológicos de decomposição. (FERRARA, 2013) Ainda que a implantação deste tipo de bairro tenha sido abandonada pela prefeitura por questões políticas e que a Sabesp não tenha mantido funcionando a ETE, é importante ressaltar o potencial de replicabilidade do projeto, que teve grande adesão por parte da população. Já nos anos 2000, notamos importantes avanços no âmbito federal. Com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 e a criação do Ministério das Cidades em 2003, ainda que mais de uma década após a promulgação da Constituição, o planejamento participativo e a função social da propriedade ganham força e respaldo legal dentro da questão habitacional e de gestão das cidades. A aprovação da Política Nacional de Habitação (PNH) e do Sistema Nacional de Habitação também corroboram com os eixos da política nacional, que se mostrou voltada à integração dos assentamentos precários, à provisão habitacional e à integração entre as políticas habitacional e urbana. Soma-se ainda a criação de programas sociais de distribuição de renda e inclusão social. (DENALDI, 2009) Em 2007 é lançado o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), visando o investimento em infraestrutura em todo o território nacional, prioritariamente nas áreas de saneamento, habitação, transporte, energia e recursos hídricos, contando com altíssimos recursos, que, até 2010, estavam na casa dos R$500 bilhões, oriundos de empresas estatais, recursos do orçamento fiscal da União e de investimentos da iniciativa privada, induzidos pelos investimentos públicos anunciados6. Através dos recursos do PAC, diversos municípios conseguiram alavancar programas de urbanização de assentamentos precários, principalmente pela oportunidade de extrapolar os limites dos assentamentos e investir em obras de infraestrutura para o município ou região como um todo (o que, em diversos casos, acabava por emperrar ou dificultar uma urbanização de qualidade), importante também ressaltar o maior investimento em trabalho social, articulado com a idéia geral de intervenção integrada. Apesar do grande volume de investimentos o PAC (que já se encontra em sua segunda fase – PAC2) vem enfrentando grandes desafios, principalmente no sentido de articular reais estratégias de desenvolvimento 24
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6. Dados obtidos em www.pac.gov.br
PAC Jardim São Francisco, São Paulo, 2010. Fonte: Brasil, 2010, p. 37
PAC São Luis, Maranhão, 2010. Fonte: Brasil, 2010, p. 43
7. Conclusões tecidas em conversa com o orientador João S. W. Ferreira a partir dos estudos e da palestra mencionados. 8. O programa não baseia a diferenciação de renda através de salários mínimos, utiliza-se de valores fixos. Aqui, a relação foi estabelecida para mais fácil compreensão e explicação.
urbano e regional às legislações complementares dos Estados e municípios (Planos Diretores e Regionais) e ao Estatuto da Cidade. Em palestra ministrada ao Grupo de Estudos sobre Favelas do LABHAB e de acordo com as pesquisas recentes que vem realizando na Universidade Federal do ABC, Rosana Denaldi acredita que o PAC em sua vertente de urbanização de favelas, tem deixado de receber incentivo. A dificuldade dos municípios em “fazer acontecer” diante de questões ambientais, fundiárias, entre outras, além da falta de visibilidade eleitoral deste tipo de intervenção tem levado à sua desestimulação, direcionando os recursos para o programa Minha Casa Minha Vida, que através da produção de novas unidades, se viabiliza mais rapidamente e atrai mais visibilidade eleitoral7. O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) é lançado em 2009, voltado para a produção habitacional em grande escala, através de recursos do FGTS e do OGU (Orçamento Geral da União) alocados no FAR (Fundo de Arrendamento Residencial) e operados pela Caixa Econômica Federal. Através de subsídios diretos e indiretos, o governo buscou fomentar a produção de novas moradias para as diferentes faixas de renda, basicamente, 0 a 3 salários mínimos8, contando com subsidio integral e necessariamente atrelado à política habitacional dos municípios (doação de terrenos, organização da demanda, etc) e 3 a 10 salários mínimos , com subsídio direto parcial de acordo com a renda, ou subsidio indireto através da isenção de taxas e impostos. De maneira geral, a maior parte da produção concentra-se na faixa de renda “de mercado”, uma vez que a indústria da construção civil é a executora dos empreendimentos, situação similar à experiência do BNH. (FERREIRA, 2012) É importante ressaltar que devido à existência de financiamento para a faixa de renda mais baixa atrelada à gestão municipal, as prefeituras têm optado por utilizar os recursos do PMCMV para a provisão habitacional necessária a seus programas de urbanização, o que tem gerado um potencial abandono por outras formas de produção pública de habitação, além de impactar no tipo de intervenção realizada, dando preferência para a remoção e reassentamento, em detrimento de urbanização, consolidação e melhoria habitacional.
Empreendimentos Minha Casa Minha Vida em Salvador (2010), Campinas (2008) e Porto Alegre (2010). Acervo LabQuapá. Fonte: Ferreira, 2012, p. 34 - 35. Panorama geral sobre formação e intervenção em assentmentos precários
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Dificuldades e avanços É importante apontar que os principais entraves observados surgem menos de questões específicas de cada projeto e mais de questões políticas e econômicas estruturais e inerentes ao nosso país. O Brasil enquadra-se junto aos países de urbanização tardia, caracterizados por forte crescimento econômico e urbano porém, sem distribuição de renda, mantendo uma situação de atraso. Segundo Maricato(1995), o desenvolvimento da indústria baseou-se na grande disponibilidade de mãode-obra e no pagamento de baixos salários. Este grande contingente populacional que se instalou nas grandes cidades industrializadas, não encontrou qualquer política habitacional que lhe garantisse adequada situação de moradia, o que, como ressaltado anteriormente, propiciou a formação dos cortiços, loteamentos irregulares ou clandestinos e das favelas, caracterizados por grande precariedade tanto da habitação quanto de infraestrutura. A ausência de políticas habitacionais voltadas para atender a população de baixa renda, além de impulsionar a precariedade, contribuiu ao longo do tempo para o crescimento do déficit habitacional, que atinge números extremamente alarmantes, tornando-se cada vez mais difícil de ser sanado. A Fundação João Pinheiro estimou o déficit brasileiro em cerca de 6,2 milhões de unidades, sendo que cerca de 80% recai sobre famílias com renda entre 0 e 3 salários mínimos. A dificuldade de implementação de adequadas políticas habitacionais, de urbanização de favelas e de outras que busquem a diminuição das desigualdades, está diretamente relacionada à maneira como se formaram o Estado e a sociedade brasileiros, fortemente calcados no patrimonialismo. O Estado instrumentalizado pelas classes dominantes conduz as políticas em direção a seus próprios interesses em detrimento do que seria mais interessante para o conjunto da sociedade. (FERREIRA, 2010) A entrada neoliberal em nosso país, por volta da década de 90, resultou em transformações econômicas características deste modelo, como enfraquecimento do papel do Estado, desregulação, privatizações e abertura do mercado interno para o capital internacional, levando à adoção de políticas assistencialistas pontuais em detrimento de políticas públicas estruturais. No entanto, a ocorrência de toda esta transformação econômica concomitante ao momento de redemocratização do país, criou um cenário bastante antagônico, onde os agora “governos democráticos” aderiram ao neoliberalismo a fim de ganhar espaço no cenário internacional, ainda que as conseqüências fossem o agravamento da concentração de renda e da crise social. (FERREIRA, 2010) No campo urbanístico não foi diferente, ainda que a Constituição de 1988 com os artigos 183 e 183, que tratam da função social da propriedade urbana, tenham iniciado um processo de democratização das cidades e que alguns governos progressistas tenham implantado políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de vida da população mais pobre e mecanismos de gestão democrática (Recife, com o PREZEIS, por 26
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exemplo), o contexto de internacionalização da economia falava mais alto e comprometia grande parte dos capitais em obras de revitalização e modernização das cidades em detrimento de políticas sociais, agravando a segregação urbana decorrente da gentrificação causada por estes grandes projetos. (FERREIRA, 2010) Treze anos depois, em 2001, a aprovação do Estatuto da Cidade trouxe novo alento à luta pela reforma urbana. No entanto, ainda que tenham sido regulamentados os artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, o Estatuto não encontra meios de ser aplicado de maneira eficaz, cerceado por interesses políticos e de classes, numa sociedade marcada pela segregação urbana, segundo Villaça, necessária à manutenção da dominação política e econômica sobre as classes de menor renda. Como elucidou Maricato (MARICATO, 2009) a origem de planos e instrumentos urbanísticos, como o Estatuto, nos países de capitalismo avançado e no contexto do pós-guerra e da constituição dos Estados de Bem-Estar Social, se dava como ferramenta necessária para que o poder público pudesse, desde o início, promover esse modelo político-econômico e social e mediar os interesses do capital face ao bem público urbano. No Brasil, o conceito “as idéias fora do lugar” (elaborado por Roberto Schwarz) resume em que medida os contextos se diferem, pois os instrumentos urbanísticos importados e adaptados, surgiram aqui como uma tentativa de reação a um modelo de sociedade e de cidade estruturalmente organizadas de forma propositalmente desigual. Ou seja, o potencial dos instrumentos e seu possível alcance, mudam completamente. “Aqui, trata-se de reverter a posteriori um processo histórico-estrutural de segregação espacial, o que significaria, em essência, dar ao Estado a capacidade de enfrentar os privilégios urbanos adquiridos pelas classes dominantes ao longo de sua hegemônica atuação histórica de 500 anos.” (FERREIRA, 2003, p. 6) Desta maneira, podemos compreender que, por princípio, os instrumentos propostos no Estatuto da Cidade não estão garantidos nem são automaticamente eficazes, tudo está na dependência de como eles serão incluídos nos Planos Diretores e na vontade política de tirá-los do papel, fazendo frente aos interesses de classe e do mercado. Villaça(1998) destaca o poder político que as classes dominantes exercem na cidade, de tal maneira que conseguem drenar boa parte dos recursos públicos para ações de seu interesse, pois desta maneira reforçam a segregação espacial que é essencial para a manutenção da dominação. Podemos citar como exemplo as operações urbanas consorciadas, no contexto da internacionalização da economia e das cidades, que apesar de trazerem consigo instrumentos que possibilitam investimento na área social, direcionam a maior parte dos Panorama geral sobre formação e intervenção em assentmentos precários
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recursos para obras viárias. Ermínia Maricato (1999, p.143) ressalta que este tipo de obra viária não é concebida para uma melhoria do sistema viário em si, pois surge dentro da lógica de valorização imobiliária acima de tudo. Cândido Malta (FILHO, 2003) as classificou como avenidas imobiliárias, pois a finalidade do sistema viário assim como é concebido não é o transporte, ou seja, a lógica não é o viário, mas o imobiliário. Uma vez que determinada localização torna-se alvo de investimentos públicos, o mercado imobiliário tende a deslocar sua atuação para esta área, visando a captação de maiores lucros devido à valorização decorrente das obras públicas. Quanto mais é investido, mais a área valoriza, criando um ciclo de aumento de preços até que a área esteja saturada. No entanto, a parcela da população de menor renda que ali se estabelece se vê impossibilitada de permanecer devido ao aumento dos preços e acaba por se deslocar para locais menos valorizados, onde é possível manter o orçamento. No entanto, tais locais tendem a ser menos servidos por infraestrutura pública e mais distantes dos pólos de emprego ou do centro da cidade. Este processo de segregação espacial pode acontecer por diferentes fatores, no entretanto, a promoção de investimento público, normalmente, é o fio condutor. Não é o caso, obviamente, de não realizá-los, mas sim, de existir um maior controle estatal sobre a lógica de mercado que opera sobre o valor do solo urbano. Este seria um segundo gargalo à implementação das políticas de urbanização de favelas. O desigual acesso ao solo urbanizado é outra característica intrínseca à formação de nosso país. Remontando à época da colonização, a coroa portuguesa concedia as terras para poucos através do sistema de Capitanias Hereditárias e sesmarias, e estes, todo poder detinham sobre elas. Ainda que o país tenha se tornado independente e o sistema tenha sido abolido, outra maneira de manter a terra nas mãos de poucos foi formulado. Através da Lei de Terras de 1850, apenas aqueles que de alguma maneira as adquirissem poderiam de fato tornar-se proprietários, desta maneira, após a abolição da escravidão, ficou assegurada a existência de mão-de-obra assalariada e a manutenção das terras nas mãos dos grandes latifundiários. (FERREIRA, 2010) A Lei das Terras, portanto coibiu a pequena produção de subsistência, limitando o acesso à terra pelos pequenos produtores e forçando o trabalho assalariado nas grandes plantações. A sociedade, então, dividiu-se em duas categorias, os proprietários de latifúndios e os ex-escravos, imigrantes e o pequenos agricultores, sem possibilidade alguma de adquirir terras, subordinados ao trabalho nos latifúndios. No meio urbano, a Lei de Terras também gerou impactos. Ainda que a produção ocorresse no campo, as cidades eram o local do comércio destes produtos e da administração. Em São Paulo, por exemplo, o investimento dos recursos oriundos da produção cafeeira intensificou a expansão de atividades urbanas, os senhores transferiram suas residências para a cidade e uma incipiente indústria surgia para suprir o consumo de uma cidade em crescimento. No entanto, tanto nas cidades quanto no campo, a estrutura institucional e política de regulamentação do 28
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acesso à terra foi implementada no sentido de não alterar a hegemonia existente. Sendo Rio e São Paulo o centro comercial e político do país era desejável que tivessem uma aparência compatível com a ambição comercial da expansão cafeeira. Segundo Ribeiro e Cardoso (apud Ferreira, 2005), por essa razão as primeiras intervenções urbanas “visaram criar uma nova imagem da cidade, em conformidade com os modelos estéticos europeus (...) as elites buscavam afastar de suas vistas – e das vistas do estrangeiro – o populacho inculto, desprovido de maneiras civilizadas, mestiço. As reformas urbanas criaram uma cidade ‘para inglês ver’ ”. Podemos associar estes fatores à referida segregação social frente aos cortiços e favelas. A cidade reproduziu a diferenciação social que existia no campo e a hegemonia latifundiária refletia-se na hegemonia da burguesia urbana. A evolução das leis, no entanto, não foi capaz de vencer a tradição, ainda que hoje em dia existam instrumentos para que se facilite o acesso à terra por aqueles de menor poder aquisitivo, o patrimonialismo herdado confere extrema dificuldade para colocá-los em prática. A pouca eficácia do Estatuto da Cidade (2001) em democratizar o acesso à terra corrobora com o panorama apresentado. Apesar do Estatuto ter dado poder aos municípios para atuar incisivamente sobre as desigualdades através de seus planos diretores, poucos são os exemplos que podemos elencar de situações verdadeiramente democratizantes de distribuição do solo urbanizado. Somados, estes fatores estruturais em muito explicam as dificuldades de implementação de reais políticas de inclusão social, habitação, desenvolvimento urbano, educação, etc, pois representam ameaça às estruturas de dominação profundamente enraizadas em nossa sociedade. No entanto, ainda que as dificuldades estruturais existam e imponham severas limitações à atuação de governos ou entidades em promover o desenvolvimento social, os exemplos de urbanização de favelas estudados e apresentados até então revelaram ainda outras dificuldades, mas também avanços. Um dos maiores impasses ainda a serem resolvidos está no âmbito da gestão do território. A necessidade de se tratar as urbanizações como uma questão territorial está latente, pois, devido ao intenso crescimento das cidades, muitos problemas dos assentamentos confundem-se com os problemas do município, principalmente aqueles relativos à infraestrutura, aos serviços públicos e à fragilidade ambiental, portanto, a urbanização poderia ser abordada de forma integral, buscando mais uma qualificação territorial e social do que a melhoria focada em um determinado ponto considerado problemático. Segundo Ferreira e Leitão (2012), os projetos têm sido abordados, em sua maioria, de maneira focalizada, através da solução – ou tentativa – de problemas específicos à cada intervenção. Existe grande dificuldade de implementação de projetos de urbanização multissetoriais, que abranjam diferentes setores da administração pública, visando uma intervenção que aborde não somente os problemas físicos e habitacionais da área, mas Panorama geral sobre formação e intervenção em assentmentos precários
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também outras questões deficientes, como educação, saúde e mobilidade, que provavelmente não se restringem aos limites do assentamento. Um bom exemplo de ação intersetorial pode ser exemplificada com o projeto Santo André Mais Igual, que tratou a urbanização como uma das vertentes de um programa maior de inclusão social, articulando as diferentes secretarias da administração (educação, saúde, geração de renda, transportes, desenvolvimento urbano, assistência social, etc) em prol de uma intervenção integrada. (DENALDI, 2003) A ação intersetorial esbarra em mais um obstáculo. De maneira geral, os quadros técnicos dos setores públicos, principalmente municipais, têm sido reduzidos através da contínua terceirização (através de licitações e consórcios) dos trabalhos. O setor público fica encarregado da gestão e aprovação, no entanto, o conhecimento técnico tem ficado restrito aos escritórios de urbanização e às gerenciadoras dos contratos, incumbidas da aprovação de projetos de setores mais especializados, como geotecnia, terraplenagem, etc. Como exemplo desta situação, podemos citar o programa Favela Bairro, no Rio de Janeiro, que segundo Denaldi (2003), baseou-se na participação dos escritórios de arquitetura e de instituições acadêmicas, através da terceirização da elaboração dos projetos e da execução das obras. Ferreira e Leitão (2012) ressaltam a importância da formação e qualificação de um quadro técnico público firme e eficaz, pois é fundamental para dar força à estrutura institucional, conduzir com mais facilidade projetos intersetoriais, promover a criação de um saber técnico apropriado pelo poder público e agregar lideranças comprometidas devido à uma continuidade de trabalho que não fique restrita às mudanças de gestão. Tratando da integração da favela ao território, verifica-se que esta ainda se demonstra frágil, uma vez que a tipologia da cidade e a tipologia das intervenções têm pouca ou nenhuma correspondência, as vezes mantendo-se as características de grande adensamento, as vezes adotando soluções “arrasa quarteirão” e, em outras ainda, situações mistas. Mas, principalmente, os poucos avanços feitos em relação à manutenção e ao controle urbano acabam por de alguma forma estigmatizar fisicamente os locais de intervenção, mantendo uma situação de não integração tipológica à cidade formal. Exemplos de atuação pública que faz frente a estes impasses podem ser encontradas nos projetos do programa Favela-Bairro do Rio de Janeiro, que implanta na comunidade urbanizada o POUSO (Posto de Orientação Urbanística e Social) incumbido da elaboração de parâmetros de uso e ocupação do solo, de limites à verticalização, identificação de áreas de risco, fiscalização e a articulação com os diferentes órgãos responsáveis pela manutenção física e promoção social. (BUENO, 2000) Dentro desta questão, podemos também destacar a predominância da lógica de redução dos custos sobre a qualidade das intervenções. Uma intervenção mais barata não implica em solução bem sucedida, apesar desta ser a lógica de grande parte das licitações para urbanização de favelas. Seria interessante que os arquitetos 30
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estivessem mais envolvidos no desenvolvimento dos projetos e que se utilizasse mais da ferramenta de concursos públicos de ideias e de projetos, ou ainda, o desenvolvimento de normativas específicas para este tipo de intervenção. (FERREIRA e LEITÃO, 2012) Muito embora as restrições orçamentárias existam, é uma opção política a alocação de mais ou menos recursos para estas intervenções. A construção de habitação social, urbanização de favelas, desapropriação para fins de moradia, entre outras, são ações estatais em direção à diminuição das desigualdades e ao devido atendimento dos direitos sociais conquistados, no entanto, têm sido tratados como gasto ao invés de investimento. Outro ponto bastante conflituoso, é a interação (ou falta de) entre as agendas urbana e ambiental. A agenda ambiental devido a sua complexidade e a sua emergência, tem sido erroneamente descolada das questões urbanas. Os nós legais que travam diversas urbanizações localizadas em áreas ambientalmente frágeis, como mananciais e APPs, não têm contribuído para a melhoria da questão ambiental, muito menos da urbana e social. Apesar de existir arcabouço legal de âmbito federal para a intervenção nestes tipos de assentamento, e de diversos municípios terem desenvolvido legislação municipal no mesmo sentido, a exigência de aprovação estadual e, em alguns casos, regional, dificulta as negociações, principalmente porque as instâncias governamentais e de aprovação nem sempre trabalham em regime de cooperação, ou então, não entendem a questão da mesma maneira. Cabe ainda ressaltar a importância de buscarmos um maior entendimento das escalas do problema, uma vez que as diferenças regionais em nosso país são extremas. Como balizar a intervenção em assentamentos precários em cidade pequenas, distantes de centros urbanos ao mesmo tempo em que se trabalha com megalópoles como São Paulo e Rio de Janeiro? Em quais pontos podemos generalizar? E em que outros devemos especificar? Por fim, é importante reconhecer os inúmeros avanços que foram conquistados ao longo destas quase 60 décadas brevemente analisadas, avanços legais, institucionais, administrativos e financeiros, mas na mesma medida em que as urbanizações ganharam espaço nas agendas governamentais, a complexidade, tanto do tema quanto dos problemas das cidades, também cresceu. A resolução dos conflitos urbanos relativos ao tema das urbanizações é complexo e delicado, cabe aos arquitetos e demais técnicos envolvidos, trabalhar com a dada indefinição e buscar, paulatinamente, a diminuição da vulnerabilidade social e urbana, na qual grande parte da população de mais baixa renda se encontra.
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OS DIREITOS DAS COMUNIDADES
Tratando das questões urbanísticas e sociais, julgamos importante fazer uma compilação de alguns avanços legais e institucionais feitos ao longo dos últimos anos em relação aos direitos sobre os quais as comunidades, e a sociedade como um todo, devem se apoiar a fim de garantir um processo de inclusão social e urbano efetivo, ainda que, como apontado anteriormente, sua aplicação não seja garantida nem automática, além de condicionada à circunstâncias político-administrativas e econômicas. Para tanto, foram selecionadas leis, resoluções e outros instrumentos legais, que possam vir a contribuir no processo de elaboração de planos e projetos de acordo com o que se tem de mais significativo em relação aos direitos urbanos e sociais. O Estatuto da Cidade e a Função social da propriedade A Lei Federal no 10.257 aprovada em 2001, configura-se, no contexto brasileiro, como uma conquista social importante, fruto de décadas de luta em prol da reforma urbana. Trata, fundamentalmente, das questões relativas ao governo democrático das cidades, da justiça urbana e do equilíbrio ambiental. (MARICATO, 2010) Coloca a questão urbana em pauta sem pretender resolver os conflitos urbanos, mas mostrando que a sociedade é desigualmente construída e que necessita de regulamentação específica para que sua apropriação se dê de maneira mais justa entre seus habitantes. (CARVALHO & ROSSBACH, 2010) Inova ao reconhecer a cidade real, a existência de situações de ilegalidade e a necessidade de se combater alguns dos processos históricos que corroboram para um desenvolvimento desigual das cidades. (RODRIGUES, 2004) Para além disto, reforça a Constituição Federal no que tange à competência municipal, através de Planos Diretores e legislação complementar, no papel de desenvolvimento de políticas urbanas, trazendo “normas gerais que devem ser observadas pelos municípios na ordenação de seu território e na elaboração e execução da política de desenvolvimento urbano.” (CARVALHO & ROSSBACH, 2010) No entanto, se por um lado o Estatuto foi preciso em alguns pontos – penalização a imóveis subutilizados, abertura à participação popular, etc – por outro, alguns instrumentos urbanísticos tiveram sua aplicação alongada no tempo e sujeitos à regulamentações complementares – planos diretores, por exemplo – dando margem a real indução de desenvolvimento urbano, mas também, a uma simples geração de recursos orçamentários. (MARTINS, 2006) Apesar de possuir limitações e contradições, a existência de um instrumento legal que trate das questões urbanas, ainda que frágil em alguns pontos, mostrou-se essencial, pois vem possibilitando transformações importantes no desenvolvimento das cidades através dos parâmetros que estabeleceu. Segundo Martins (2006), “compreender o Estatuto da Cidade vai além de conhecer o que ele regula en34
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quanto Direitos e os instrumentos que apresenta, mas inclui também considerar o que pode ser implementado a partir de suas disposições enquanto Política Urbana para o conjunto do país e para cada cidade em sua especificidade, de modo participativo e descentralizado”. A função social da propriedade urbana, abordagem principal do Estatuto, estabelece que a propriedade deve, necessariamente, cumprir sua função social, ou seja, impõe limites de usufruição ao proprietário, de maneira a garantir que a terra seja melhor distribuída e utilizada de acordo com as necessidades sociais da população. Para tanto, foram elaborados instrumentos para obrigar o proprietário a destinar algum uso a um imóvel vazio ou subutilizado, tais como o parcelamento, edificação e utilização compulsórios, o IPTU progressivo e a desapropriação com pagamento em títulos da divida pública. Tais instrumentos, permitem aos municípios mapear e atuar mais precisamente nas áreas que não cumprem a função social, podendo destiná-las para habitação de interesse social, por exemplo. Segundo Martins (2006), “a lei estabelece que ‘a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor’”. Desta maneira, o tradicional tratamento dado à propriedade privada como direito absoluto tem sido cada vez mais dificultado, uma vez que a promulgação do Estatuto relativizou tal direito a sua função social. (MARICATO, 2010) Direito à cidade e à moradia digna
1. www.direitoamoradia.org
Através do Estatuto da Cidade, ficou instituído que todo cidadão tem direito à cidade, o que compreende, acesso à terra urbana, moradia, saneamento (água, esgoto, coleta de lixo e drenagem), infraestrutura urbana, transporte, serviços públicos (saúde, educação, etc), trabalho e lazer. Desta maneira, as ações e políticas públicas, quaisquer que sejam seus objetivos, devem, no mínimo, respeitar estes direitos, além de trabalhar para efetivá-los onde eles não ocorrem. (PEABIRU, 2013) O direito à moradia, parte constituinte do direito à cidade, é reconhecido como direito humano desde 1948, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. No Brasil, a inclusão deste direito data da Constituição Federal de 1988 em seu Art. 6o e também nos diversos tratados internacionais sob os quais o país assina e se compromete a respeitar e fazer cumprir. O direito à moradia não se refere somente à garantia de paredes e um teto, trata-se de um padrão de vida adequado, constituído de um lar e uma comunidade, possibilitando uma vida em paz, com dignidade e saúde física e mental1. Para tanto, a moradia adequada deve contar com habitabilidade (apresentar boas condições Os direitos das comunidades
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contra as intempéries, incêndio, desmoronamento e inundação, o tamanho e os cômodos devem ser condizentes com o número de moradores, além de possuir espaços para armazenar e cozinhar alimentos), localização adequada, custo acessível (tanto para manutenção quanto para se ter acesso aos demais direitos como alimentação, lazer, etc), disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos públicos, além de segurança da posse, de maneira que seja garantida a moradia sem ameaças de remoção ou despejos inesperados. Direito à assessoria técnica e à Regularização fundiária Segundo a Lei Federal no 11.888/08, fica assegurado às famílias de renda entre 0 e 3 salários mínimos o direito à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, mediante apoio financeiro da União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, constituindo-se como mais uma ferramenta para a efetivação do direito á moradia digna. (BRASIL, 2008) Através deste direito, as famílias, cooperativas, associações de moradores ou outros grupos organizados podem ter acesso ao projeto, acompanhamento e execução da obra por profissionais de arquitetura, urbanismo e engenharia que forem requisitados para a execução de edificação, reforma, ampliação ou regularização fundiária, desde que o imóvel esteja situado em zona habitacional de interesse social ou que se dê sob regime de mutirão. Tais serviços técnicos podem ser executados por servidores públicos, organizações não-governamentais, escritórios de residência acadêmica ou profissionais autônomos previamente credenciados pelo poder público. Desta maneira, busca-se uma diminuição das situações de irregularidade, tanto fundiárias quanto construtivas, das ocupações em áreas de risco e de interesse ambiental, propiciando uma ocupação adequada e de acordo com a legislação vigente. Permite uma melhor adequação das habitações de interesse social ao espaço urbano, contribuindo para a diminuição das vulnerabilidades sociais e urbanas. A regularização fundiária é essencial pois permite a integração do assentamento à cidade (passando a ser incluso nos cadastros e mapas), a manutenção pública da área, uma vez que este direito fica mais claramente estabelecido, e a segurança da posse. (BRASIL, 2009) Para tanto, foi promulgada a Lei Federal no 6.785/99, anterior ao Estatuto da Cidade, que alterava a lei de parcelamento do solo (no 6.766/79), reconhecendo o interesse público nas ações de regularização fundiária de assentamentos. No artigo 2o do Estatuto, estão previstos como objetivos da política urbana a ordenação e o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, sendo a regularização fundiária uma das diretrizes indicadas. No item XIV do artigo, define-se como diretriz a “regularização fundiária e urbanização de 36
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áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação.” (BRASIL, 2001) Posterior ao Estatuto da Cidade, as leis federais no 10.931/04 e no 11.481/07, instituíram a gratuidade do registro de títulos de regularização e dispositivos que agilizam a regularização fundiária de ocupações de interesse social em áreas da União. No art. 47 da Lei Federal no 11.977/09, fica assegurada a aplicabilidade dos instrumentos instituídos no Estatuto às áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas de interesse para a implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social. A MP 459/09 cria o PMCMV (Programa Minha Casa Minha Vida) e em seu Capítulo III trás uma lei nacional instituindo regras diferenciadas para a regularização fundiária de interesse social e de interesse específico. Dentre as regras instituídas por esta MP, estão instrumentos de demarcação urbanística e legitimação da posse que agilizam os processos atuais de usucapião especial urbano. Marcos regulatórios não faltam, porém, este ainda é um dos pontos de maior dificuldade a serem tratados nos processos de urbanização de favelas. Muitas vezes, a situação fundiária do terreno ocupado está indeterminada ou é de difícil determinação, mas o principal obstáculo a enfrentar está na infeliz tradição, que muitos oficiais do legislativo mantém, de fazer prevalecer o direito à propriedade em detrimento do direito à moradia e do exercício da função social da propriedade. Direito à gestão democrática da cidade “[a] classe trabalhadora deve ser agente dessa luta. Aqui e ali ela nega e contesta, aqui e ali, a estratégia de classe dirigida contra ela” (LEFEBVRE, 2001) Também estabelecido pelo art. 2o do Estatuto da Cidade, o direito à gestão democrática da cidade é uma das diretrizes da política urbana. Este direito define que as ações relacionadas à política urbana, bem como as diretrizes orçamentárias do município, devem ser planejadas e implementadas com a participação da população através de consultas e audiências públicas, sendo condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal. (MARTINS, 2006) Ainda neste sentido, existem as leis 11.445/07 (Lei de Diretrizes da Política Nacional de Saneamento) e 12.587/12 (Lei de Diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana) que determinam que a gestão deve ocorrer com transparência e participação popular. A maneira como será dada a participação da sociedade nos processos decisórios fica designada segundo Os direitos das comunidades
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legislação específica dos municípios. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o Decreto no 44.667/04 em seu Art. 19, define como condição primária à elaboração de Plano de Urbanização de ZEIS, a criação do Conselho Gestor, que se encarrega de avaliar as diversas fazes da intervenção. Tal conselho é “composto por representantes do Poder Público, moradores e proprietários de imóveis localizados na ZEIS, observada a paridade entre o número de representantes do Poder Público e da sociedade civil”2. A gestão democrática da cidade e o fortalecimento dos espaços públicos de participação é essencial ao combate à corrupção e ao clientelismo, ainda bastante presentes em nosso pais, mas também propicia a redução das igualdades, a inclusão social e a construção do sentido de pertencimento e de cidadania. Mas, principalmente, é através dela que será possível atingir o cumprimento da função social da cidade e da propriedade, do direito à moradia digna e dos demais direitos sociais conquistados. Direito à informação A Lei Federal no 12.527/11 que regula os procedimentos a serem observados com o fim de garantir o acesso à informação, previsto nos artigos 5o, 37o e 216o da Constituição Federal, estabelece a publicidade como regra geral para os órgãos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Impõe como dever do Estado garantir o direito de acesso à informação mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão. Desta maneira, ficam impostos aos governos o dever de receber do cidadão pedidos de informação e respondê-los e o dever de divulgar informações de interesse público independente de solicitações específicas. Define como diretrizes, entre outras, a utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação e o fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência e de controle social na administração pública. Assim, damos um passo à frente em direção à luta contra a corrupção, ao aperfeiçoamento da gestão publica, ao controle social e à participação popular, ferramenta essencial ao exercício do direito à gestão democrática e participativa da cidade. Dos direitos relativos às situações de remoção O direito à moradia deve ser garantido à qualquer família, ainda que esta não tenha documentação regular sobre a posse do terreno ou imóvel, o direito é válido. No entanto, um número crescente de deslocamentos de famílias e comunidades tem sido observado nas cidades brasileiras e em diferentes regiões do planeta. 38
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2. Dados: www.prefeitura.sp.gov.br
3. www.observatorioderemocoes.blogspot. com.br
Diversos estudos têm se debruçado sobre esta questão. No Brasil, destacamos o trabalho do Observatório de Remoções, coordenado pelos LABHAB e LabCidade da FAUUSP, onde foram mapeadas diversas comunidades que sofreram ou estão sobre ameaça de remoção na cidade de São Paulo.3 A ONU desenvolve diversas pesquisas e avaliações neste sentido e a nível mundial. Em relatório elaborado pela Organização e pela comissão nacional para o direito à moradia adequada (ONU, 2004), foram definidas as tipologias mais freqüentes dos casos de violação do direito à moradia adequada, sendo eles: . falta de condições de habitabilidade e segurança jurídica da posse em favelas, cortiços e ocupações urbanas; . comunidades de baixa renda vivendo em áreas de risco sob grave ameaça à vida e à saúde; . planos e projetos estratégicos para a cidade construídos sem participação popular; . despejo de população de baixa renda para implantar projetos turísticos; . deslocamento forçado de comunidades tradicionais quilombolas; Dentro deste cenário, podemos enquadrar as obras de urbanização e de infraestrutura como as maiores geradoras de deslocamento e transferência de pessoas, famílias e comunidades. O referido relatório, baseando-se no Comentário Geral no 7 do Comitê dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais das Nações Unidas (ONU, 1997), desenvolve diferentes pressupostos para dar solução pacífica às situações de conflito em que haja ameaça de despejo e deslocamento forçado: . reconhecer os grupos vulneráveis como titulares do direito à moradia, que têm direito à políticas publicas especificas e que devem ser incluídos como beneficiários e agentes de qualquer projeto de desenvolvimento como meio de garantir tratamento igualitário perante os direitos humanos; . democratizar o acesso à terra e à propriedade, através de regulamentação do setor privado e instituição de instrumentos jurídicos e urbanísticos de regularização fundiária; . reconhecer e fazer valer o direito à participação: as populações mais vulneráveis devem ser consultadas e devem participar da definição de qualquer projeto estratégico da cidade sobretudo os que incidem sobre seus locais de moradia através do acesso à informação divulgada em local e tempo apropriados com procedimentos deliberativos e vinculantes, e não somente consultivos; . regulamentar a proteção legal às pessoas afetadas pelas ações de remoção, realocação e despejo, de modo que disponham de recursos jurídicos para resguardar seu direito à vida, integridade física e à preservação de seus bens e valores pessoais; Os direitos das comunidades
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No entanto, algumas situações de remoção são consideradas necessárias, como no caso de famílias vivendo em áreas de risco de deslizamento, inundação ou desabamento, por exemplo. Ainda assim, todo processo de remoção deve ser autorizado por lei e seguir os preceitos internacionais dos direitos humanos, e ainda, segundo o item 14 do citado Comentário Geral, o Estado está obrigado a tomar os seguintes cuidados e providências no caso da iminência de algum despejo forçado: . explorar todas as alternativas possíveis, tornando o despejo uma circunstância excepcional; . consultar as pessoas afetadas a fim de minimizar o uso da força ou ainda impedir o despejo; . assegurar que as pessoas afetadas pelo despejo possam utilizar os remédios legais (direito de defesa, recurso); . assegurar o direito à indenização adequada referente aos bens pessoais ou reais de que foram privados; . garantir a proteção processual das pessoas afetadas pelos despejos forçados, dando prazo suficiente para se defenderem; . prestar informações relativas ao despejo e sobre o fim a que se destinarão as terras e residências; . garantir a presença de funcionários públicos devidamente identificados; . identificar com precisão todas as pessoas que serão atingidas; . garantir que o despejo não seja executado com mau tempo ou durante a noite; . assegurar a prestação de assistência jurídica; . oferecer locais apropriados para a guarda dos bens e utensílios pessoais e abrigos; . respeitar as populações tradicionais e seus modos de vida; Das tensões entre o direito à moradia e o direito ambiental Um dos principais entraves às intervenções necessárias às comunidades situadas em áreas ambientalmente protegidas, reside na diversidade de entendimentos sobre a possibilidade de ocupação humana nestas áreas pelos órgãos competentes envolvidos. Apesar do desenvolvimento de diversos instrumentos legais nas diferentes esferas de governo, estes ainda são conflitantes no que diz respeito à gestão do território e à gestão dos recursos naturais. Dado que os limites político-administrivos quase nunca coincidem com os limites de interesse ambiental (bacias e sub-bacias, vales, rios, etc) existe uma grande dificuldade de ação regulatória e de fiscalização, exigindo um diálogo constante e harmônico entre as três esferas de governo, o que dificilmente ocorre. (MARTINS, 2006) De maneira geral, a legislação ambiental tem sido cega às questões sociais, ainda que as leis tenham sido 40
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revistas e redesenhadas, poucos foram os avanços feitos empiricamente para a conciliação do direito à cidade e à moradia com a preservação do meio ambiente. Segundo Martins (2006), “uma visão formalista da legislação ambiental acredita que a simples proibição e decorrente repressão resolvem os conflitos urbanos e a predação ambiental”. Historicamente, verificamos que justamente estas ações de proibição acabaram por gerar um cenário propício à ocupação irregular. Com a aprovação da Lei de Proteção dos Mananciais em 1975, que proibia a ocupação em lotes inferiores a 500m2, houve um barateamento destas terras devido ao desinteresse do mercado imobiliário, dando para a população de baixa renda, que se via impossibilitada de solucionar seu problema habitacional através do mercado ou de políticas públicas, uma possibilidade de habitação, ainda que em loteamentos clandestinos ou ocupações. (KOWARICK, 1993) A expressão destes conflitos se dá no âmbito legal no momento em que são aprovadas leis como o Estatuto da Cidade, que munem as comunidades de direitos sociais e urbanos, e na contramão, definem-se leis ambientais que não levam em consideração a cidade real. Se por um lado temos a demarcação das ZEIS, através dos Planos Diretores municipais, que permitem uma flexibilização das regras de uso e ocupação do solo, pelo outro, temos leis, como a Lei Federal no 7.803/89, que estende o Código Florestal para áreas urbanas, e implementa uma faixa de 30m de preservação da vegetação natural ao longo de cursos d’água com a proibição de implantação de qualquer infraestrutura, a não ser de acordo com autorização do órgão estadual competente mediante apresentação de comprovação de mitigação, através de um longo e incerto processo. (MARTINS, 2006) As últimas modificações realizadas no Código Florestal (MP 2166-67/2001) alteram o conceito de APPs, mantendo-se sob esta categoria florestas e vegetações naturais (faixas ao longo de cursos d’água, topos de morros, montes, montanhas e serras, encostas com declividade superior a 45%, entre outros) prevendo a possibilidade de supressão destas faixas para ações de interesse público ou social, mediante autorização. (SANTO ANDRÉ, 2004) O Sistema Nacional das Unidades de Conservação (SNUC) através da Lei Federal 9.985/2000, definiu dois tipos de unidades de conservação, as de proteção integral e as de uso sustentável, estas caracterizam-se por permitir a presença de populações tradicionais e a exploração de recursos desde que apresentado um Plano de Manejo. Esta mesma lei definiu o conceito de Zona de Amortecimento em torno das unidades de conservação, onde devem ser estabelecidas regulamentações específicas a fim de minimizar os impactos das atividades limítrofes às áreas de proteção. (SANTO ANDRÉ, 2004) O Estatuto da Cidade abre a possibilidade de se efetuar a regularização de moradias de interesse social em áreas de uso comum do povo em dialogo com o respeito ao direito ao meio ambiente e à cidade sustentável. (CARVALHO & ROSSBACH, 2010) Os direitos das comunidades
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A resolução no 369/06 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) busca algum diálogo com as ZEIS, na medida em que reconhece que a regularização fundiária é um interesse social e que em certas condições, justifica a intervenção em áreas ambientalmente protegidas, desde que as áreas com interesse em regularização estejam demarcadas como ZEIS, sendo necessária aprovação municipal e estadual, mediante apresentação de um Plano de Regularização Fundiária Sustentável. Infelizmente, o procedimento de aprovação ainda não está claramente sistematizado, tornando o processo moroso, e muitas vezes, negado, visto que o entendimento da questão pode não ser o mesmo no âmbito municipal e no estadual. (BRASIL, 2009) Outro exemplo, é a MP 459/09 criadora do PMCMV. Nela abordam-se os casos especiais de comunidades em áreas de APP e APM, condicionando a regularização destas à apresentação de estudo técnico detalhado demonstrando que a intervenção produzirá melhorias na qualidade ambiental do assentamento e região do entorno. Em suma, percebe-se que existem atentativas no sentido de uma aproximação entre as agendas ambiental e urbana, mas sua efetivação parece estar num plano mais distante, condicionada a um efetivo exercício da função social da cidade. Cabe aos envolvidos buscar os direitos já estabelecidos e entrar numa verdadeira luta para sua efetivação, criando condições para que estas práticas sejam apropriadas cada vez mais pelas instâncias envolvidas e para uma saudável resolução dos conflitos ambientais e urbanos. Notas conclusivas O apontamento destas leis e o entendimento do potencial de transformação que possuem, nos leva a questionar, porque não transformam, então? Se diversas leis e instrumentos estão disponíveis e se estes tratam e realmente respondem às questões sociais mais difíceis de nossa sociedade, porque observamos pouca ou nenhuma mudança? Como descrito anteriormente, a importação de instrumentos e mecanismos implantados em países ditos de capitalismo avançado, como os da Europa e América anglo-saxônica, ainda que na melhor das intenções, encontram aqui realidade social, cultural, econômica e histórica completamente diferentes. A constituição dos estados latinoamericanos tem origens diferentes e quase antagônicas à daqueles países. O período colonial, os movimentos de independência, a tardia e veloz industrialização, os regimes ditatoriais e a recente democratização, são alguns dos acontecimentos históricos que talvez dêem as pistas para uma rápida diferenciação da constituição social entre estes países, guardadas as especificidades de cada. No Brasil, a herança escravocrata, aristocrática e patrimonialista dão o tom da discussão, como demonstramos anteriormente. Desta maneira, entendemos que, no Brasil, o que falta não são boas leis, mas sim, leis que interpretem e 42
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sejam aplicáveis e condizentes com nossa realidade social, cultural e econômica, mais ainda, vontade política para criá-las e implementá-las. O Estatuto da Cidade, obrigatório às cidades com mais de 20.000 habitantes, visa regulamentar estes instrumentos na esfera local, relegando aos municípios a tarefa de moldar os instrumentos à sua realidade. No entanto, o contexto apresentado dita a formulação destes planos que, apesar de terem inserido avanços como as ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), ainda concentram seus esforços numa regulamentação baseada na cidade legal e no amplo acesso ao mercado, a revelia dos cerca de 50% de citadinos que vivem em situação de ilegalidade ou irregularidade habitacional nas grandes cidades brasileiras. “Mas isso não impede, obviamente, que hoje os planos diretores possam ser um instrumento eficaz para inverter a injusta lógica das nossas cidades (...) para isso, não devem ser um ementário de tecnicismos, mas um acordo de toda a sociedade para nortear seu crescimento, reconhecendo e incorporando em sua elaboração todas as disputas e conflitos que nela existem” (FERREIRA, 2003, p.7) Por meio de um processo de intensa discussão e participação da sociedade civil, podemos influenciar e pressionar para a elaboração de Planos Diretores mais condizentes com a realidade das cidades e mais eficazes no tratamento de seus conflitos. Ainda que possa ser um processo demorado, somente com a influência da população podemos alterar esse quadro de “leis que pegam e não pegam”, trazendo a regulamentação para o conhecimento e para o cotidiano dos cidadãos, que ao apreender seu potencial transformador e ao participar de sua elaboração, mais ímpeto terão na cobrança e fiscalização de sua implementação, utilizando-o como oportunidade de melhor conhecer e disputar o território do qual fazem parte. “Entretanto, a gestão participativa não pode se ater apenas ao aumento das audiências públicas ou dos fóruns de discussão com os diferentes setores da sociedade civil. (...) A participação deveria incorporar de forma estrutural e definitiva a presença decisória da população em todas as estruturas de gestão da máquina administrativa, da escala local à escala mais geral.” (FERREIRA, 2003, p.8)
Os direitos das comunidades
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OS MANANCIAIS
Os mananciais são todas as fontes de água, superficiais ou subterrâneas, que podem ser utilizadas para abastecimento público. Para tanto, as águas e as áreas onde elas se inserem requerem uma série de cuidados, a fim de se manter o ciclo hidrológico das águas – para que esta não se esgote – além da manutenção de sua qualidade e do ecossistema à que está associada. No caso da região metropolitana de São Paulo, as áreas dos mananciais são caracterizadas por grande disputa territorial. Nelas, encontramos usos residenciais de diferentes padrões de renda, indústrias, mineração, utilização das águas para fins de abastecimento da população e para outros fins que não este. Hoje, a calamidade a que chegou o nível de um dos reservatórios de abastecimento da cidade de São 1 Paulo , entre outros sinais de esgotamento dos recursos naturais, traz à tona uma discussão que há muito é feita mas que pouco tem avançado. A vaga utilização de termos como “sustentabilidade” tem colocado, aparentemente, do mesmo lado atores que se mostram adversos. O modelo neo-liberal de livre regulação do mercado e despolitização das relações sociais, tem adotado este termo a fim de maquiar os conflitos que lhe são inerentes. O fomento à competição e à eterna busca por crescimento econômico é oposto ao discurso de preservação do meio natural. “Se a dualidade de condições urbanas edificadas, com ‘ilhas de eficiência’ na cidade vem viabilizando nos anos recentes o funcionamento dos negócios e empresas da nova economia, as condições ambientais, que são indivisíveis, começam a demonstrar seu limite, chegando a situações críticas que afetam não só a parcela de excluídos, mas toda a sociedade.” (MARTINS, 2006, p. 63) O pensamento predominante de que o principal problema ambiental é o desperdício, e que a racionalização e os ganhos de eficiência através de modernização tecnológica são suficientes para “economizar o meio ambiente”, relegam a questão a uma lógica de mercado, criando um novo nicho de “produtos e serviços ecológicos”. (ACSELRAD, 2002) No entanto, sustentabilidade reside em muito mais do que uma economia de energia aqui e uma reciclagem de latinhas de alumínio ali. Ela se faz através de um desenvolvimento justo socialmente, através do respeito ao meio ambiente entendido como ambiente de viver do ser humano, seja de gerações futuras, seja de gerações presentes. “As cidades são expressão espacial das relações econômicas, políticas e
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1. “Nível de água do Sistema Cantareira está abaixo de 9%” Notícia da Reuters Brasil em 12/05/2014. Disponível em br.reuters.com/article/domesticNews/idBRSPEA4B01B20140512. Acessado em 18/05/2014
culturais de uma sociedade e sua história. Por isso, são naturalmente espaços de conflitos e tensões.” (FERREIRA, 2012, p. 11) A sustentabilidade, portanto, é questão estrutural, conectada às diferentes estruturas que garantem existência às cidades, ou seja, pensar em desenvolvimento sustentável, impõe rever a estrutura das relações sociais, econômicas e políticas que se dão no espaço. (FERREIRA, 2012) À luz deste raciocínio, abordaremos a questão dos mananciais buscando compreender os conflitos existentes, seus atores, e as conseqüências de seus atos sobre o meio ambiente. A expansão urbana sobre as áreas de mananciais na região metropolitana de São Paulo
Construção da Represa Guarapiranga, 1909. Fonte: DPH Mapa das vias de acesso à Interlagos, 1940. Fonte: O Livro Vermelho dos Telefones, 1940. Vista Parcial do Centro de Santo Amaro, 1936. Fonte: DPH
Os primeiros usos nas áreas dos mananciais na porção sul da região metropolitana de São Paulo, remontam aos primeiros anos após a construção das represas Guarapiranga (1909) e Billings (1927) pela The São Paulo Tramway Light and Power Co (Cia. Light). O grande equipamento aquático criado foi apropriado para usos de lazer e diversos clubes de campo e chácaras instalaram-se na região. (POLLI, 2010) Até a década de 40, por conta da valorização destas áreas devido ao valor natural que possuíam, houve a implantação do loteamento de alta renda de Interlagos, a construção do autódromo e das avenidas Washington Luis e Interlagos, além do aeroporto de Congonhas. Durante esta década, houve a construção de loteamentos industriais na região de Santo Amaro, o que atraiu a residência de uma população de renda mais baixa para a área. Houve, inclusive, a construção de um conjunto habitacional através do IAPST (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Serviços de Transporte), o conjunto Cidade Dutra. (POLLI, 2010) Nas décadas de 50 e 60, o forte crescimento industrial fomentou a migração para os centros urbanos, que explodiram em crescimento populacional. A classe trabalhadora, sem acesso à moradia através do mercado ou políticas públicas, buscou diferentes alternativas habitacionais pela via informal. Por exemplo, Polli (2010) cita o alto crescimento populacional da região da Capela do Socorro, em São Paulo. A década de 70 caracterizou-se por receber as primeiras legislações acerca das questões ambientais. Motivada pela crise de abastecimento de água decorrente da eutrofização dos reservatórios e pela expansão da ocupação nas áreas das represas, em 1975, é aprovada a Lei de Proteção dos Mananciais (LPM) no 898/75 na Região Metropolitana de São Paulo, sendo definidas densidades de ocupação que fossem compatíveis com a manutenção e preservação dos mananciais, além de restrições ao parcelamento e uso das áreas envoltórias das Os mananciais
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represas. No início do século XX a prática comum para preservação das áreas de produção de água para abastecimento da população era a desapropriação das terras da bacia, como é o caso das áreas do Parque Estadual da Cantareira, cuja desapropriação para fins de preservação e recuperação da vegetação foi executada pelo governo do Estado (SILVA, 2005). No entanto, esta prática veio sendo abandonada por volta década de 30 (em grande parte pela crise econômica mundial) passando a se controlar as áreas através das restrições ao uso e à ocupação dos lotes particulares ali instalados, situação em que se enquadra a LPM de 1975 (BUENO, 1994). A aprovação desta lei complexa, que envolve diversas escalas da gestão pública, causou uma queda no interesse do mercado imobiliário por estas áreas e, conseqüentemente, seu barateamento, uma vez que o processo de aprovação tornou-se moroso e complicado, e o aproveitamento do solo já não era suficiente para equacionar o investimento (MARTINS, 2006). O aumento da poluição das águas afastou o uso do lazer, o crescimento significativo do emprego na indústria na região de Santo Amaro e a ausência de fiscalização abriu margem para loteadores clandestinos venderem as terras à população de mais baixa renda que buscava solução de moradia popular (MARICATO, 1997). Apesar da existência de lei específica para a regularização dos loteamentos implantados antes da aprovação da LPM, as restrições eram severas e como os loteamentos haviam sido construídos sem qualquer tipo de embasamento legal e sem critérios para oferecimento de infraestruturas, a adaptação era complicada e a lei não surtiu efeito, o que relegou inúmeros loteamentos à situação de ilegalidade (MARTINS, 2006). Somado ao crescimento do déficit habitacional decorrente da ausência de políticas públicas neste setor, este contexto propiciou o crescimento do número de loteamentos clandestinos2, somados aos irregulares já existentes. A LPM, além de impor rígidos padrões de uso e ocupação do solo, proibia a implantação de infraestrutura nos loteamentos existentes, pois considerava fator de indução a ocupação. Desta maneira, além da situação de ilegalidade, as comunidades sofreram também com a extrema precariedade, carentes de água, esgoto, serviços e equipamentos públicos. Segundo Martins (2006), a região dos mananciais teve maior expansão urbana a partir da década de 70, sendo que entre 1974 e 1980 o processo se pulverizou pelas margens das represas Billings e Guarapiranga e a partir de 85 a ocupação segue em direção aos municípios da região metropolitana que compartilham as represas, como Embu, Itapecerica da Serra, São Bernardo do Campo e Parelheiros. Já na década de 90, nos anos de 1992 a 1995 houve uma intensificação da ocupação na porção sul das duas represas. Polli (2010), baseando-se em estudo de Whately, Santoro e Dias (2008), observa que as décadas seguintes caracterizaram-se por uma diminuição na expansão da ocupação na zona de proteção aos mananciais da cidade de São Paulo, no entanto, a área vem sendo atingida por grandes projetos, como o Trecho Sul do Rodoanel. 48
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Área de preservação do Sistema Cantareira. Fonte: www.ambiente.sp.gov.br
2. Adota-se o conceito de loteamento clandestino àquele feito sem qualquer tipo de aprovação, diferentemente do loteamento irregular, que em algum momento iniciou o processo de regularização mas não o completou. (FERRARA, 2013)
Ainda que ao longo das décadas a legislação tenha se modificado a fim de minimizar o impacto das ocupações urbanas nas áreas de proteção aos mananciais (tema a ser abordado no capitulo seguinte), o efeito da LPM trouxe grandes prejuízos para as águas das represas, uma vez que as comunidades, desprovidas de infraestrutura, despejavam esgoto diretamente nos cursos d’água ou nos lençóis freáticos, a ocupação desordenada impermeabilizou o solo, gerou erosão e grande desmatamento. No entanto, apesar desse estigma que estabelece que as ocupações precárias são o maior fator de degradação dos mananciais, diversos estudos e análises colocam a afirmação em cheque, como veremos a seguir. O uso múltiplo das águas
Construção da Usina de Henry Borden. Acervo da Eletropaulo.
O conceito de uso múltiplo das águas, estabelecido na Política Nacional de Recursos Hídricos, considera as águas um bem público e um recurso natural limitado, cujo uso deve ser racionalizado e diversificado de maneira a permitir seu acesso a todos. Está definida também uma hierarquia para esses diferentes usos que podem se utilizar das águas, estando o abastecimento da população e a dessedentação de animais no topo da escala. No entanto, para priorizar o abastecimento, é necessário a imposição de regras e restrições aos demais usos, o que causa grande conflito e coloca a gestão do recurso hídrico em situação de estagnação. A seguir relacionamos alguns dos usos que têm sido dados aos mananciais da RMSP e a suas bacias. No século XIX, o crescimento populacional da cidade de São Paulo demandou aumento no fornecimento de água potável, solucionado através da obtenção de água no ribeirão da Pedra Branca, situado na Serra da Cantareira, o Governo do Estado desapropria as fazendas de café, chá e cana-de-açúcar que situavam-se na região a fim de proteger o manancial e recuperar a mata ciliar (SILVA, 2005). Alguns anos mais tarde, a intensa industrialização e urbanização demandaram também um maior fornecimento de energia elétrica e para tanto, a Cia Light construiu a represa Gurapiranga (1909) que através do rio Pinheiros e Tietê aumentou a produção energética da Usina Edgar de Souza, em Santana de Parnaíba. Em 1928, por conta da insuficiência no abastecimento, a represa Guarapiranga passa também a servir a cidade, e a Light se compromete a manter a qualidade da água para abastecimento, possibilitado devido ao incremento das técnicas de desinfecção e tratamento (ISA, 2008). Uma nova demanda energética, dessa vez do complexo industrial que se implantava em Cubatão, deu uma mesma finalidade à represa Billings, construída em 1927, e através da reversão do sentido do Rio Pinheiros, a água era enviada serra do mar a baixo e gerava energia na Usina de Henry Borden. Esta situação durou basicamente até a década de 90, quando foi suspensa, podendo ser reativada somente em casos emergenciais de enchente na cidade ou insuficiência energética na usina litorânea. Os mananciais
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Tal aparato de engenharia levou a uma intensa poluição das águas, pois a maioria do esgoto coletado da cidade não era tratado e sim lançado nestes dois rios ou em seus afluentes, tanto que na década de 80, uma barragem teve de ser construída para isolar um dos braços da Billings que ainda possuía água com boa qualidade para consumo, a fim de proporcionar o abastecimento da população. (FERRARA, 2013) Além das obras e projetos voltados para a geração de energia, vemos que as obras de mobilidade têm sido bastante direcionadas no sentido da área dos mananciais, e ainda que não sejam um uso direto das águas, em muito podem causar impacto nas mesmas e em seu entorno. Neste sentido, uma das primeiras obras que podemos situar, é a construção da Rodovia Anchieta em 1947 e, mais tarde, a Rodovia dos Imigrantes em 1970, ambas, desencadearam o processo de industrialização nas cidades adjacentes, como São Bernardo do Campo, induzindo à formação e a consolidação do parque industrial. A urbanização se deu ao longo destes eixos viários que induziram, em conjunto com demais fatores apresentados, a ocupação residencial na área dos mananciais. Buscando compreender melhor os diferentes usos na bacia das represas, Whately, Santoro e Dias (2008) realizaram um extenso estudo sobre a área dos mananciais do município de São Paulo, e observaram que, no ano de 2007, as áreas eram ocupadas 44% por mata atlântica, 9% por corpos d’água, 31% por usos antrópicos (usos que não urbanos como lazer, agricultura, indústria, mineração, silvicultura e solo exposto) e 16% por usos urbanos. Ainda segundo o estudo, em 18 anos de ocupação urbana (de 1989 a 2007) foram desmatados cerca de 748 ha, já o Trecho Sul do Rodoanel, por si só, desmata cerca de 741 ha. O Rodoanel Mario Covas, mais um eixo rodoviário implantado na região, consiste em ligação perimetral entre diversas rodovias de ligação da cidade de São Paulo ao interior e ao litoral do estado e do país, visando liberar o centro da cidade da circulação de veículos de carga e de passagem. Em 1997, o projeto apresentado pela DERSA é aprovado nas três instâncias de governo, dividido em 4 trechos (Norte, Sul, Leste e Oeste) a serem construídos ao longo de 15 anos. Apesar do governo Estadual apresentar o projeto como importante obra estrutural para a RMSP, diversas restrições ambientais no trecho Sul e Norte (região das bacias das Billings-Guarapiranga e Cantareira, respectivamente) dificultaram sua implantação. O conflito entre os órgãos estaduais ligados ao transporte e a sociedade civil, os órgãos ambientais e as universidades foi intenso. A DERSA apresentava a rodovia classificada como classe 0 (número restrito de acesso às áreas urbanizadas adjacentes) e enfatizava o baixo impacto ambiental comparado ao ganho de mobilidade na cidade. Do outro lado, estudos indicavam que os impactos ambiental, social e urbano não eram tão baixos assim. Ferreira e Smith (apud. AGUILAR E ALVIM, 2013), elaboraram estudo sobre o Trecho Oeste, que foi concluído e entregue em 2002, e revelaram que: 50
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Construção do Rodoanel Trecho Sul, bairros Demarchi e Riacho Grande em São Bernardo do Campo. Foto: Marcio Cipriano
“(...) naquela região o Rodoanel foi um elemento catalisador de novos empreendimentos, iniciando um processo de valorização fundiária e acarretando o aumento dos assentamentos informais, e a implantação de uma rodovia “Classe Zero” não seria suficiente para evitar a criação de acessos ilegais e conter o avanço populacional no entorno. Assim, concluíram que efeitos de valorização imobiliária e conseqüente degradação ambiental poderiam também ocorrer nos mananciais sul após a construção do outro trecho da obra.” (AGUILAR E ALVIM, 2013, p. 206) Ainda para a região dos mananciais da RMSP, está em discussão a implantação do Hidroanel. O projeto visa criar um anel hidroviário com 170km de extensão, composto pelos rios Tietê e Pinheiros, pelas represas Billings e Taiaçupeba e pela construção de um canal artificial interligando estas represas.
RIO TIETÊ
REPRESA TAIAÇUPEBA
RIO PINHEIROS CANAL ARTIFICIAL
REPRESA BILLINGS
Mapa dos trechos do Hidroanel. Fonte: www.metropolefluvial.fau.usp.br Os mananciais
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Baseado na Política Nacional de Recursos Hídricos que estabelece o uso múltiplo das águas, o projeto ambiciona impulsionar o transporte de cargas e passageiros pelas novas vias navegáveis. O projeto aborda a obrigação do poder público de dar destino à cargas públicas de sedimento de dragagem de canais, lodo de ETEs e ETAs, lixo urbano, entulho e terra (solo e rocha de escavação) e atrela esta obrigação ao anel hidroviário, tornando-o o principal meio pelo qual estas cargas chegariam a seu destino final, também abordados no projeto através da implantação de portos para cada tipo de carga, além de eco-portos encarregados de receber materiais recicláveis. Outro grande projeto de mobilidade está previsto para a região dos mananciais, o Monotrilho. Segundo o Metro, o monotrilho é um sistema de transporte coletivo composto por trens que trafegam com pneus de borracha em via elevada. Movido a eletricidade, opera sem condutor e viaja a uma velocidade de até 80km/h, com intervalo entre trens de 90 segundos. Na RMSP, as linhas previstas são a 15-prata (na zona leste da capital), a 17-ouro (na zona sudoeste) e a linha 18-bronze, que fará a ligação entre a estação Tamanduateí (linha 2-verde) e o Bairro dos Alvarenga em São Bernardo do Campo, passando pelos municípios de São Caetano e Santo André. O trecho até o centro de São Bernardo está em fase de licitação, o restante, está em fase de estudos. Este último trecho coincide com a área de proteção aos mananciais. Ainda em discussão, é possível que a mobilização da sociedade civil, das universidades e de órgãos e institutos ambientais possam contribuir para uma melhor adequação do projeto às realidades dos municípios e da gestão da bacia dos mananciais. No entanto, vemos que o histórico desta luta em favor da adequada utilização das águas e de seu entorno, funciona com pesos diferentes na balança. Mais recentemente, foi apresentado à Prefeitura do município de São Paulo a proposta de construção de um aeródromo em Parelheiros, no extremo sul da capital paulista. O projeto foi apresentado em 2013 pela Harpia Logística, dos empresários André Skaf (filho de Paulo Skaf, presidente da FIESP) e Fernando Augusto Botelho (acionista da construtora Camargo Corrêa)3. Em desacordo com o Plano Diretor municipal, o aeródromo exclusivo para jatos executivos e taxi aéreo, seria instalado em área de cerca de 100 hec52
Habitar às margens
Linha 18-bronze do Metrô. Fonte: Relatório de Impacto Ambiental, 2012.
3. Segundo matéria de Mônica Reolom para O Estado de São Paulo em 28/01/2014. Disponível em: http://tinyurl.com/m8bshsw
4. Idem 3. 5. Manifesto disponível em: http://tinyurl. com/n3eetm9
Região do Bairro dos Alvarenga. Foto: André Bonacin
tares às margens da represa Guarapiranga, região demarcada como Zona Especial de Proteção Ambiental (ZEPAM) e Zona de Proteção e Desenvolvimento Sustentável (ZPDS), além de área de proteção aos mananciais (Lei Específica da Gurapiranga) inconciliáveis com o uso aeroportuário. Mais além, o projeto, incompatível com leis das três instâncias de governo, é potencial de degradação de mata nativa, nascentes e fauna e flora em estágio de recuperação, essenciais à manutenção da qualidade das águas da represa, além de impactos sociais e urbanos, devido à valorizaçao imobiliária e à mudança no uso e ocupação do solo, hoje, próximo ao rural. Apesar da autorização que recebeu da Secretaria Nacional de Aviação Civil, responsável pelo espaço aéreo, teve duas negativas por parte da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano em 2013 sobre a não concessão de licença ambiental para a construção do aeródromo, além de mais duas negativas do Tribunal de Justiça, em 2014, pela incompatibilidade jurídica do projeto. No entanto, os empresários afirmam4 que irão recorrer da decisão. Apesar dos incontestáveis argumentos apresentados, tanto pelos órgãos que emitiram as negativas, quanto pela sociedade civil e por membros respeitados da academia por meio de manifesto5 os empresários têm exercido forte presão para a aprovação do projeto, principalmente pelo contexto de revisão do Plano Diretor do município de São Paulo. Ainda em referência aos diferentes usos que se instalam nas bacias dos mananciais, a prefeitura de São Bernardo do Campo anunciou a construção de uma usina termoelétrica, de incineração de lixo, na região do bairro dos Alvarenga, área de proteção aos mananciais. Prevista para entrar em funcionamento a partir de 2015, a usina ambiciona chegar a utilizar 90% dos resíduos sólidos da cidade para a geração de energia, com capacidade para abastecer uma cidade de 200 mil habitantes. Usinas termoelétricas com base em resíduos sólidos urbanos funcionam através da queima do material por tempo predeterminado a altas temperaturas, o calor gerado aquece a água que, transformada em vapor e em alta pressão, aciona as turbinas que ativam o gerador de energia. Neste processo, são gerados a escória do forno de incineração, as cinzas, possivelmente resíduos líquidos que dependem do processo utilizado e gases como gás carbônico CO2, óxidos de enxofre SOx, óxidos de nitrogênio NOx e em menor quantidade ácido clorídrico HCl e ácido fluorídrico HF, além de metais pesados e produtos da combustão incompleta, como monóxido de carbono CO, hidrocarbonetos, etc. Neste processo, os resíduos sólidos são reduzidos a cerca de 10% de seu volume inicial, o que implica, ainda, na destinação aos aterros de certa quantidade de lixo. (CAIXETA, 2005) Todo estes poluentes podem ser descartados na atmosfera desde que submetidos a um rigoroso e tecnologicamente avançado processo de tratamento, possibilitando atingir níveis mais reduzidos e aceitáveis ambientalmente (CAIXETA, 2005). Os mananciais
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A aprovação de implantação de empreendimentos desta categoria é responsabilidade da CETESB, que os classifica como “empreendimento de potencial ou efetivamente causador de degradação ambiental”, este órgão segue, entre outras legislações, a resolução CONAMA no 316/02 que trata dos processos de tratamento térmico de resíduos e cadáveres e exige estudos para análise de alternativas tecnológicas, Estudo e Relatório de Impacto Ambiental, análise de risco, entre outros. Notas conclusivas A área dos mananciais da RMSP é palco histórico de diversos conflitos urbanos, aqui esboçados brevemente. Ao longo do tempo, diferentes usos instalaram-se no território que compreende as bacias das represas Billings e Guarapiranga, à revelia ou não da legislação. A partir da expansão industrial, as ocupações de menor renda passaram a se instalar na região, devido à oferta de emprego na industria que migrou para estas áreas, mas principalmente devido ao processo de segregação urbana que direciona as classes de menor renda às periferias do município e às áreas de menor valor imobiliário. Vimos que a LPM provocou um processo de ilegalização das ocupações existentes nas APMs ao mesmo tempo em que fomentou a ocupação clandestina devido ao efeito de desvalorização imobiliária que causou na região. Os assentamentos precários ali instalados, ainda hoje, são deficientes de infraestrutura sanitária e urbana e estigmatizados como os principais fatores de poluição das águas da represa. No entanto, através dos diferentes estudos apresentados, demonstramos que, baseados na premissa de uso múltiplo das águas, diversos projetos e obras têm sido implantados na região dos mananciais, amparados pelo poder público, e têm promovido impactos diretos e indiretos muito maiores na qualidade da água. Observando a situação à luz dos estudos de Villaça (1998) e Ferreira (2010), podemos ao menos compreender porque a legislação opera com pesos e medidas diferentes sobre o mesmo território. O brutal investimento em infraestruturas, principalmente as de mobilidade, e na mitigação de seus impactos (ainda que insuficientes) atende aos interesses de uma determinada classe social que detém poder político sobre o Estado, classe esta que instrumentaliza as decisões estatais a fim de favorecer a manutenção de sua situação. A implantação de estradas, usinas e transporte público, através da mídia, ganham respaldo perante a população por serem expostas como necessidade ao conjunto da sociedade, no entanto, omite-se o fato de que os impactos também recairão sobre o conjunto da sociedade, e mais diretamente, sobre àqueles que estão nas áreas de influência dos projetos. Desta maneira, ainda que a legislação opere na contramão de seus interesses, move-se todo um aparato legal e estatal para que se justifique a intervenção. “Estão aí as ideias dominantes, produzidas pela classe dominante e 54
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pelo poder público e reproduzidas pela grande imprensa. (...) tais ideias são a versão que aquela classe dá para a realidade social, que tende a esconder dos homens o modo real de produção de suas relações sociais. Fazer pensar que o Quadrante Sudoeste é a cidade e que suas principais vias são as principais vias da cidade, e que beneficiar o Quadrante Sudoeste é beneficiar a cidade, faz parte da ideologia dominante. Também faz parte dessa ideologia a justificativa por ela construída para fundamentar o Rodoanel: a que ele melhora a fluidez do trânsito nas principais vias da cidade. (VILLAÇA, 2010, p. 115.) O conceito de Sociedade de Risco desenvolvido por Ulrich Beck e discutido por Henri Acselrad (2002) aponta: “o fracasso das instituições responsáveis pelo controle e pela segurança, que sancionam, na prática, a normalização legal de riscos incontroláveis.” (ACSELRAD, 2002, p. 50) Acselrad acrescenta a dimensão política da situação, salientando, assim como Villaça, o papel do Estado na condução e direcionamento desigual no espaço urbano, neste caso, de danos ambientais. Os bairros predominantemente pobres estão mais expostos aos riscos de deslizamento, inundação e contaminação por esgoto e lixo tóxico, marcas características das desigualdades social e ambiental. O passivo acumulado de cerca de 1,5 milhão de pessoas que residem na área dos mananciais da RMSP tornou a situação inviável à retirada destas pessoas destes locais, tanto financeiramente quanto socialmente. O que Martins (2006) afirma, é a necessidade de adequação urbanística e ambiental destes assentamentos como única solução possível, por meio da adoção de parâmetros específicos para a convivência com as águas. Segundo Acselrad (2000), o enfrentamento da degradação do meio ambiente é também momento de incremento à democracia, uma vez que a capacidade da sociedade se defender da injustiça ambiental se dá através de um exercício democrático de validação de direitos. O pouco e difícil investimento em políticas públicas habitacionais, sociais e de desenvolvimento urbano nos loteamentos e favelas localizados nas margens das represas, como explicitado em capitulo anterior, decorrem dos mesmos impasses estruturais da sociedade brasileira, porém, acrescidos do estigma de serem os principais poluentes das águas, da constante incerteza se poderão ou não permanecer na região e da precariedade habitacional e urbana comum à estes assentamentos. Os mananciais
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T R A N S F O R M A Ç Õ E S da legis lação incidente nas áreas de proteção aos mananciais
Com o objetivo de melhor compreender as condicionantes de intervenção nos assentamentos em áreas de proteção aos mananciais, buscamos fazer um breve sequenciamento histórico das leis, instrumentos e diretrizes que se aplicam a estes territórios. Da Lei de Proteção dos Mananciais à Lei Específica da Billings A LPM (Lei de Proteção aos Mananciais) no 898/75 e no 1.172/76, foi promulgada pelo governador Paulo Egídio como parte do Plano Metropolitano de Desenvolvimento Integrado, num momento em que o crescimento populacional na RMSP aumentava a demanda por água na mesma medida em que se aumentava o aporte de poluição nas represas. Como já comentado anteriormente, os efeitos da LPM sobre o território a que se aplica não correspondeu ao esperado pelo texto redigido. Os restritivos parâmetros de uso e ocupação do solo e o refreamento na implantação de infraestrutura nos bairros (tida como vetor de estímulo à ocupação) barateou as terras, que serviram como solução de moradia a uma população desatendida em termos habitacionais pelo Estado, com baixos salários e sofrendo com o aumento do desemprego. (MARTINS, 2006) Paralelamente, dava-se início ao SENEGRAN (Projeto de Saneamento para a Grande São Paulo) que incrementou a rede coletora de esgoto nos municípios da região metropolitana, no entanto, devido à carência de um sistema metropolitano de tratamento, estes eram lançados nos rios Tietê e Pinheiros, comprometendo a qualidade das águas. (FERRARA, 2013) Dentre outras situações, estas são as que mais explicitam a falta de articulação entre a LPM e outros projetos e políticas, revelando a inexistência de uma gestão integrada do território. “Pode-se dizer que legislação da década de 1970, além de não corresponder ao processo social de expansão metropolitana que estava em curso, serviu para encobrir questões de gestão pública do território e de saneamento muito relevantes para proteção dos mananciais, que acabaram ficando em segundo plano diante da responsabilização da ocupação irregular como a principal causadora da degradação do manancial nas décadas seguintes.” (FERRARA, 2013, p.260) A gradativa piora na qualidade da água e a insalubridade dos assentamentos devido à ausência de in58
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fraestrutura sanitária, gerou uma pressão para a revisão da Lei vinda de diversos setores, polarizando diferentes opiniões. Dentre estes, estão os ambientalistas, os juristas, a academia, os municípios, o setor empresarial e a população residente em área de proteção aos mananciais. (MARTINS, 2006) O governo Luisa Erundina (1989-1992), na cidade de São Paulo, dá início a uma série de projetos e intervenções, dentre eles a urbanização de favelas em área de mananciais, principalmente devido ao processo de eutrofização sofrido pela represa Guarapiranga, que alterou o gosto e o odor da água servida à população. Neste contexto, a Sabesp e a prefeitura da cidade de São Paulo, em 1992, dão início ao Programa Guarapiranga (Programa de Saneamento Ambiental da Bacia da Guarapiranga), com financiamento do Banco Mundial, a fim de buscar alternativas para a recuperação das águas da represa. (ANCONA e BALTRUSIS, 2006) Diante desta situação, o então governador Mario Covas institui a Comissão Especial de Revisão da LPM, e é aprovada a Lei Estadual no 9.866/97, “Nova Política de Mananciais”, que apesar da resistência de grupos conservadores, recebeu contribuição de outros grupos que discutiam a necessidade de compatibilização da preservação com a ocupação existente. Interessante observarmos que esta nova política não substituiu a LPM, mas, através do Plano Emergencial, abriu a possibilidade para a implantação de infraestrutura nas ocupações mais precárias das bacias. “A revisão da legislação de proteção de mananciais se deu para ampliar sua abrangência e por considerar que a legislação anterior não conseguiu impedir a ocupação predatória e a conseqüente deterioração da qualidade dos mananciais. Ela considera a necessidade de preservar e recuperar os mananciais do Estado, compatibilizando a proteção do meio ambiente com o uso e a ocupação do solo e o desenvolvimento socioeconômico das regiões protegidas.” (BERÉ, 2005, p. 44)
O Programa Guarapiranga promoveu diversos avanços no sentido de uma melhor compreensão do estado em que se encontravam as águas da represa e na direção de novos caminhos para sua recuperação. O Plano de Desenvolvimento e Proteção Ambiental (PDPA) desenvolveu uma série de estudos técnicos a fim de compreender o impacto da ocupação humana na qualidade de água, e a partir destes dados, desenvolver instrumentos para conciliar o saneamento dos assentamentos e a recuperação das águas. Dentre estes estudos, destaca-se o MQUAL (Modelo de Correlação entre o Uso do Solo e a Qualidade da Água) que estabeleceu a carga-meta Evolução da legislação incidente na área de proteção aos mananciais
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Área de proteção ambiental da Represa Guarapiranga. Base: Prefeitura Municipal de São Bernaro do Campo. Edição da autora.
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máxima de poluição que a represa suportaria. Os trabalhos e conclusões desenvolvidos pelo PDPA serviram de base apara a criação da Lei Específica (LE) da Guarapiranga. Esta Lei, no 12.233/06 regulamentada no Decreto no 51.686/07, funciona de maneira similar a um “plano diretor” da bacia, na medida em que define parâmetros urbanísticos para áreas delimitadas por um mapa de zoneamento. A Lei também define um sistema de planejamento e gestão composto por órgãos colegiado, técnico e públicos, estaduais e municipais, além de instituir um sistema de monitoramento de qualidade ambiental. Trouxe como principais avanços o bom nível de detalhamento dos diferentes temas relativos à preservação do meio ambiente, admissão da necessidade de qualificar e promover usos nas áreas de preservação de maneira a modificar a forma de ocupação, e principalmente, o reconhecimento legal de que a implantação de infraestrutura de saneamento básico é condição importante para a recuperação dos mananciais, no entanto, não venceu o debate que aponta a implantação de infraestrutura como indutora de mais ocupações e conseqüente piora na qualidade da água. (MARTINS, 2006; FERRARA, 2013) A Lei Específica da Billings A Lei Específica da Billings (no 13.579/09) foi construída nos moldes da LE Guarapiranga, menos pelos resultados obtidos e mais pelas pressões do Banco Mundial e da prefeitura de São Paulo para replicar o modelo, cujas implicações técnicas já haviam sido “dominadas” por determinado grupo de empresas de consultoria e construção. (FERRARA, 2013) No entanto, antes da implementação da LE Billings, muito já havia sido discutido e debatido sobre os usos e a possível recuperação das águas da represa para o abastecimento da população. Na década de 80, uma parte da represa encontrava-se em estado grave de poluição, o que levou à construção de uma barragem para separar o braço Rio Grande (com água em melhor qualidade) do corpo central da represa, que recebia as águas dos poluídos rios Tietê e Pinheiros. Com o crescimento populacional e a maior demanda por abastecimento de água, foi necessário repensar a utilização da represa para que mais água estivesse disponível para consumo. Em 1997, o governo de estado de São Paulo decreta a criação da Unidade de Gerenciamento do Projeto Billings e visando o desenvolvimento de um projeto específico, foi elaborado o Termo de Referência para o Programa de Recuperação Ambiental da Bacia da Billings, coordenado pela Secretaria do Meio Ambiente e financiado pela Sabesp. O relatório resultante continha um extenso diagnóstico que abordava, entre outras questões, dados sobre uso e ocupação do solo e socioeconômicos, avaliação da carga poluidora e da interface entre a Bacia da Billings e os demais problemas estruturais da RMSP. Indicou ainda, diretrizes de ação e ativiEvolução da legislação incidente na área de proteção aos mananciais
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Área de proteção ambiental da Represa Billings. Base: Prefeitura Municipal de São Bernaro do Campo. Edição da autora.
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dades a serem realizadas para que os objetivos fossem atingidos, foi elaborada uma estimativa de custo e todo o processo de produção do relatório foi submetido a consulta e participação de agentes do setor público e da sociedade civil. (FERRARA, 2013) Apesar de inovador pela proposta de trabalho integrado, o Projeto Billings esbarrou na falta de recursos, e aliado às pressões anteriormente mencionadas, o projeto foi marginalizado pelo PDPA-Billings e na elaboração da minuta da Lei Específica. (MARTINS, 2006) A LE Billings é o instrumento que regulamenta o uso e a ocupação do solo na bacia, tendo como objetivo principal o abastecimento da RMSP. Uma das complexidades inerentes a este território, está no fato de que ele é compartilhado por 6 municípios, sendo dificultosa a integração administrativa e política entre estes e o governo do Estado. Os principais objetivos da LE-Billings, além do já citado, são a integração de programas e políticas regionais e setoriais, a recuperação e melhoria das condições de moradia, a transparência sobre metas e avanços obtidos e a compatibilização dos usos da represa com a sua preservação, conservação, recuperação e proteção. Para tanto, criou um conjunto de regulamentações relativas à gestão e às formas de licenciamento e financiamento, forneceu instrumentos de monitoramento da qualidade da água e estabeleceu diretrizes e parâmetros urbanísticos de acordo com a especificidade dos territórios demarcados no mapa das áreas de intervenção, segundo o critério de que diferentes usos geram diferentes cargas de poluição, e com isso, permite a instalação de infraestruturas e a regularização fundiária nas ocupações, de maneira a minimizar os impactos sobe as águas. (FERRARA, 2013) O mapa das áreas de intervenção demarca as áreas sobre as quais incidem diferentes parâmetros e diretrizes urbanísticas. A LE propõe que as ocupações consolidadas até 2006 sejam regularizadas e aplica os parâmetros para as novas ocupações. São estabelecidos três tipos de áreas: ARO: área de restrição à ocupação AOD: área de ocupação dirigida ARA: área de recuperação ambiental (estas áreas devem ser demarcadas pelos municípios como ZEIS, e após recuperadas, devem ser convertidas em AOD ou ARO) Evolução da legislação incidente na área de proteção aos mananciais
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ÁREAS DE INTERVENÇÃO Ocupação dirigida - Ocupação urbana consolidada Ocupação dirigida - Ocupação urbana controlada Ocupação dirigida - Baixa densidade Ocupação dirigida - Ocupação especial Ocupação dirigida - Conservação ambiental Restrição à ocupação (UC’s e faixa de 50m do reservatório)
Áreas de intervenção da APRM-Billings (anexo I da Lei no 13.579/09) Fonte: Ferrara, 2013, p. 288 64
Para a realização das regularizações urbanística, fundiária e ambiental, dispõe-se de três instrumentos: . compensação: alteração de índices e parâmetros urbanísticos para licenciar e regularizar desde que se mantenha o valor da carga-meta máxima e demais condições que permitam o consumo da água. . PRAM (Projeto de Recuperação Ambiental em Mananciais): deve ser elaborado e executado pelos responsáveis pela degradação. . PRIS (Projeto de Regularização de Interesse Social): deve ser elaborado e implantado pelo poder público ou com responsabilidade compartilhada com a comunidade, com o responsável pelo parcelamento ou proprietário da área. Permite novas construções, desde que melhor adequadas à situação física e ambiental da área. O PRIS é o instrumento utilizado para serem realizadas obras e ações de adequação urbanística e ambiental nos assentamentos precários situados na APRM-Billings. Este deve ser encaminhado aos órgãos de aprovação pela prefeitura do município, sendo necessário o desenvolvimento de uma justificativa de enquadramento do projeto acompanhado de diagnóstico físico, socioeconômico e ambiental. O órgão técnico responsável pelo licenciamento dos projetos é a CETESB, que exige a apresentação de plano de urbanização com os projetos de infraestrutura de saneamento e ambiental, de terraplanagem, pavimentação, paisagismo, trabalho social e circulação de transporte coletivo, demonstração de propostas e estratégias relativas à recuperação ambiental de áreas livres ou a serem desocupadas, à regularização fundiária e além do projeto das habitações de interesse social, explicitando como a relação entre área construída e gabarito mostram-se mais adequadas e que as áreas de permeabilidade e revegetação são as maiores possíveis. No entanto, como a LE não prevê regulamentação para o processo de aprovação junto à CETESB, os projetos encaminhados acabam tendo enormes dificuldades para sua liberação. Os principais obstáculos encontrados pelos municípios têm sido exigências técnicas que acarretam em alto custo dos projetos, lentidão e extrema burocracia no processo de aprovação. O que tem sido observado, é um processo de negociação caso a caso, em detrimento da elaboração de um regulamento mais condizente com a realidade de atuação dos municípios. PRIS e os Planos Diretores: o caso de São Bernardo do Campo Segundo Alvim e Itikawa (2008), o município de São Bernardo do Campo desenvolve, desde o início dos anos 2000, discussões e políticas urbanas que envolvem questões de desenvolvimento urbano e recuperação das áreas protegidas. O Plano Diretor (Lei no 5.593/06), desenvolvido de acordo com as propostas do Estatuto da Evolução da legislação incidente na área de proteção aos mananciais
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Cidade, apesar de aprovado anteriormente à LE Billings, já previa uma série de instrumentos e diretrizes relacionados à recuperação das APMs, controle da expansão da ocupação sobre as áreas protegidas e a promoção de atividades econômicas estratégicas nestas regiões, no sentido de promover a não desvalorização destes territórios. No entanto, as ações que haviam sido planejadas pelo município ficaram condicionadas às aprovações dos órgãos estaduais que regem o território da bacia após a aprovação da LE (ALVIM e ITIKAWA, 2008). Ferrara (2013), cita dois exemplos de PRIS na cidade de São Bernardo do Campo, de maneira a perceber como a legislação se reflete no espaço construído1. O primeiro exemplo trata do PRIS Capelinha-Cocaia que obteve o licenciamento pela CETESB em novembro de 20132 e possui financiamento aprovado pelo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento do Governo Federal) e pelo Orçamento Participativo do município. Em diagnóstico realizado pelo escritório de assessoria técnica Peabiru, responsável pelo projeto, somadas, as duas ocupações contam com cerca de 1.612 unidades habitacionais carentes de infraestrutura de água, esgoto e drenagem e parte das famílias encontra-se na beira de córrego ou nascente. O segundo exemplo é o PAC Alvarenga, segundo a autora, único PRIS em andamento da cidade de São Bernardo do Campo.
1. Os parâmetros de projeto dos dois casos citados, são explorados por Ferrara (2013) de forma a identificar menor ou maior aderência à condição socioterritorial onde se instalam. 2. Informação divulgada pela Prefeitura de São Bernardo do Campo. Disponível em: http://tinyurl.com/mggnjc6 Acessado em 19/04/2014.
Imagens do Projeto de Urbanização Integrada Capelinha-Cocaia. Fonte: Prefeitura de São Bernardo do Campo. Placas do financiamento do PAC para a urbanização dos núcleos Capelinha-Cocaia. Fonte: Prefeitura de São Bernardo do Campo. 66
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O projeto teve início em 2005, antes da aprovação da LE Billings, seguindo outros parâmetros, no entanto, após a aprovação da Lei, alterações foram feitas para que se enquadrasse nos termos da nova legislação, obteve o licenciamento pela CETESB e o financiamento pelo PAC-Mananciais e em 2010, as obras se iniciaram. Das 2.514 unidades habitacionais cadastradas, 610 foram consolidadas, 878 realocadas e 1026 reassentadas em unidades fora da APM. Quanto à infraestrutura de saneamento, a SABESP executou as ligações às redes de água e esgoto. A prefeitura do município elaborou uma tabela, apresentada por Ferrara (2013, p. 324), na qual quantifica alguns ganhos ambientais obtidos com o PRIS, como 100% das unidades com coleta de esgoto, abastecimento de água e coleta de lixo, aumento da área permeável tanto na área total quanto nas APPs e eliminação das situações de risco. No entanto, o real ganho ambiental para a bacia hidrográfica da Billings é de difícil quantificação, uma vez que não se dispõe de índices ou métodos de avaliação.
Núcleos a serem urbanizados no PAC Alvarenga. Fonte: Prefeitura de São Bernardo do Campo. Local de reassentamento do PAC Alvarenga, Conjunto Três Marias. Fonte: Prefeitura de São Bernardo do Campo.
Conjunto habitacional para reassentamento interno no Sitio Bom Jesus. Fonte: Prefeitura de São Bernardo do Campo. Evolução da legislação incidente na área de proteção aos mananciais
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Notas conclusivas A partir do panorama traçado, foi possível tecer algumas considerações sobre a legislação incidente na área dos mananciais. A situação já comentada de sobreposição de legislações sobre um mesmo território trava o processo de elaboração e aprovação dos PRIS, dada a diferença com que é abordado o mesmo assunto pelos diferentes órgãos envolvidos. Em entrevista ao Diário Regional, em 2012, Gilson Gonçalves Guimarães, secretário executivo do Subcomitê Billings/Tamanduateí, admite a dificuldade da situação: “DR: Nesse aspecto, o senhor acredita que a Lei da Billings é excessivamente burocrática? GG: Quando você elabora uma lei, o legislador às vezes se cerca de tantos cuidados que acaba dificultando a aplicação da própria lei, mas faz isso com a melhor das intenções. Quer um exemplo? A Lei Específica prevê a compatibilização da lei estadual com a municipal. Isso é muito importante porque, às vezes, o estado determina “A”, a prefeitura determina “B” e o cidadão fica no meio sem saber a quem deve obedecer. Às vezes o sujeito torna-se até infrator com o aval da prefeitura. Porém, achávamos que a compatibilização era simples de fazer, mas não foi o que ocorreu.” (DIÁRIO REGIONAL, 2012) Ademais, a baixa ou nenhuma sistematização e discussão do conhecimento adquirido através dos projetos implantados e em andamento cria um vazio em relação à avaliação dos reais ganhos ambientais para a bacia, a falta de indicadores ou parâmetros de comparação dificulta ainda mais esta avaliação. Ferrara (2013) observa o descompasso existente entre os PRIS e o sistema metropolitano de saneamento da RMSP. A dependência de obras estruturais da Sabesp (coletores tronco, por exemplo) acaba por criar um cenário onde grandes obras e “pequenas obras” (de urbanização) estão desalinhadas. No caso dos esgotos, por exemplo, a inexistência de um coletor tronco faz com que o esgoto coletado nas casas continue a ser direcionado para os córregos e para a represa, tornando o investimento ineficiente. Este tipo de situação nos faz indagar se o padrão implantado atualmente, onde o esgoto é encaminhado à uma das 5 ETEs existentes na RMSP, ainda que a distância a ser percorrida por meio dos coletores-tronco seja longa, responde às necessidades e especificidades da realidade dos mananciais e se a racionalidade econômica 68
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Localização das 5 ETEs da RMSP. Fonte: Ferrara, 2013, p. 141
não está sendo cegamente sobreposta ao interesse público. Apesar do desenvolvimento de diversas soluções alternativas de tratamento local dos esgotos, de maneira descentralizada, existe certo desinteresse da companhia responsável em administrá-los. Podemos observar ainda que a LE Billings, apesar de estabelecer restritos parâmetros à ocupação urbana na APM, não trata com mesmo rigor os demais usos que se dão no território da bacia, como a mineração e a industria, uma vez que não definiu formas de controle e compensação para estes usos. O exemplo emblemático é o Rodoanel, que segundo Ralla (2011), torna-se um fator indutor e causador de impactos para a região dos mananciais na medida em que, além de induzir a ocupação, contribui para a valorização da terra de seu entorno, sujeita a represa ao perigo de acidentes com veículos que transportam cargas perigosas e causa ruptura nos corredores da fauna e flora locais. Além dos já citados Hidroanel, Monotrilho, aeródromo e incinerador de lixo que também incidirão sobre área de proteção aos mananciais. Finalmente, assim como a LE Guarapiranga, através da forma diferenciada com que trata as ocupações humanas das demais e de não tratar do sistema de saneamento de forma ampla e integrada, a LE Billings acaba por reiterar a premissa de que as ocupações de baixa renda são os principais focos de degradação dos mananciais. (FERRARA, 2013) Evolução da legislação incidente na área de proteção aos mananciais
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ASSENTAMENTOS NAS ÁREAS DE PROTEÇÃO AOS MANANCIAIS EM SÃO BERNARDO DO CAMPO
Na cidade de São Bernardo do Campo, o crescimento populacional se dá a partir da década de 50. A construção da Rodovia Anchieta em 1947 e, mais tarde, da Imigrantes, em 1970, propiciou a implantação do parque industrial, marcado pelos setores automobilístico e químico, fomentando a abertura de grandes loteamentos. Entre as décadas de 50 e 70, houve uma grande expansão industrial, trazendo consigo uma quantidade maior de trabalhadores e uma continuação do processo de abertura de grandes loteamentos. Este quadro associado a uma crescente valorização fundiária e imobiliária das áreas mais centrais da RMSP ocasionou uma intensa ocupação irregular das áreas devolutas distantes do centro urbano (FERRARA, 2013). Quando, em 1975, é aprovada a Lei de Proteção dos Mananciais (LPM), restringindo bruscamente a ocupação nestas áreas, a situação de irregularidade e clandestinidade foi agravada, como já explicitado em capítulo anterior. Desta maneira, segundo Kowarick (1993), o número de favelados em São Bernardo do Campo passou de 281 mil em 1974 para 374 mil em 1978. Comparativamente, na cidade de São Paulo haviam 500 mil no mesmo ano. No período que antecedeu a Constituição de 1988, as prefeituras tinham pouca autonomia financeira para a atuação na área habitacional e urbana, em São Bernardo, a política habitacional, por exemplo, era baseada na produção de lotes urbanizados (5.046 unidades) e quase nenhuma produção habitacional (50 unidades) através de recursos próprios (FERRARA, 2013). Hoje, o município possui 765.463 habitantes numa área de 409.478 km2 (IBGE, 2010). A prefeitura contabiliza 261 assentamentos precários e/ou irregulares com 82.570 UHs, acrescidos de 3.429 UHs em conjuntos habitacionais irregulares, utilizando o dado médio de 3,2 habitantes por domicílio (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2011a), chegamos a um número aproximado de 275.197 pessoas em situação de precariedade habitacional, até o ano de 2010. Cerca de 66% do território do município está inserido em área de proteção ambiental, entre proteção aos mananciais e à serra do mar. Aproximadamente, 30% da população total (229 mil) reside na área de proteção e recuperação da represa Billings, destas, cerca de 137 mil (60%) estão alocadas em 151 assentamentos precários e/ou irregulares. (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2010a) A partir deste cenário, a prefeitura municipal apresentou em 2012 (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2012) o Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS) a fim de acessar os recursos disponibilizados pelo SNHIS (Sistema Nacional de Habitação) no âmbito da implementação da PNH (Politica Nacional de Habitação) no intuito de melhor caracterizar a situação habitacional do município e dar início às intervenções que se verifiquem neste plano, em direção ao enfrentamento da questão habitacional latente. O planejamento ensejado no PLHIS decorre de um mapeamento de assentamentos precários e irre72
Habitar às margens
Favela Parque São Bernardo, São Bernardo do Campo, 1984/1985. Fonte: Denaldi, 2003, p. 44
São Bernardo do Campo APRM-Billings Sem escala
gulares, com intenção de caracterizar com maior precisão a precariedade habitacional e a irregularidade no muncípio. O enquadramento desses assentamentos em tipologias, serviu de orientação para a ação da SEHAB (Secretaria de Habitação), e sua política de habitação municipal decorrente. Mapa de caracterização dos assentamentos precários no município. Fonte: São Bernardo do Campo, 2012, p. 50. Mapa de classificação dos assentamentos segundo as tipologias elaboradas no PLHIS. Fonte: São Bernardo do Campo, 2012, p. 56.
< Área de Proteção e Recuperação dos Mananciais - Billings sobre o território de São Bernardo do Campo. Fonte: Prefeitura de São Bernardo do Campo. Montagem da autora.
Favela fora de manancial
Represa Billings
Tipologia 1
Tipologia 4
Loteamento fora de manancial
Hidrografia
Tipologia 2
Tipologia 5
Favela em manancial
Limite APRM-B
Tipologia 3
Tipologia 6
Áreas com projeto SEHAB
Loteamento em manancial Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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As tipologias caracterizam os assentamentos em: . tipologia 1: consolidados que somente demandam regularização fundiária . tipologia 2: parcialmente urbanizados, que demandam obras complementares e nenhuma remoção . tipologia 3: irregulares parcialmente urbanizados, que demandam obras complementares com remoção . tipologia 4: precários e irregulares consolidáveis com carência de toda a infraestrutura e percentual significativo de remoções . tipologia 5: não consolidáveis, remoção total com atendimento habitacional . tipologia 6: conjuntos habitacionais irregulares promovidos pelo poder público
Localização do bairro dos Alvarenga no município. Fonte: Prefeitura de São Bernardo do Campo.
Conforme o mapa anterior, verificamos que grande parte dos assentamentos se localizam no bairro dos Alvarenga, precisamente onde está a área em estudo deste trabalho. O bairro dos Alvarenga O bairro dos Alvarenga localiza-se na porção noroeste do município, ocupa área de 14,66 km2 e está totalmente inserido na APRM Billings. Dados socioeconômicos da prefeitura (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2011a) apontam que dos 52.992 residentes do bairro (maiores de 10 anos), 41,3% (21.878) não têm rendimentos ou dependem exclusivamente de benefícios sociais e dos 58,7% restantes (31.114), a maioria é de baixa renda (86,7%), predominando a faixa de renda de 1 a 2 salários mínimos (45,9%)1. A condição é ainda mais emergente quando a renda é avaliada por domicílio, 20,2% possui renda de até ½ salário mínimo, 33,2% de ½ a 1, 29,9% de 1 a 2, 7,7% até 3 salários mínimos e 5,8% enquadram-se nos sem rendimentos e beneficiários de programas sociais (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2011a). Em termos de serviços públicos o bairro também se mostra carente. Estão disponíveis para a população três UBS (Unidade Básica de Saúde) e uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), dois postos de assistência social, um campo de futebol, um ginásio de esportes e nenhum equipamento cultural (apenas algumas ações e oficinas nas escolas). O número de escolas é bastante considerável, são 8 creches, 6 pré-escolas, 9 para o nível fundamental, 5 para o médio e 6 supletivos, divididas em 17 estabelecimentos pelas redes municipal, estadual e conveniadas. Para os demais equipamentos, devemos atentar para o fato destes estarem concentrados na região central do bairro que é bastante segmentado por um dos braços da represa Billings, desta maneira a porção norte encontra-se bastante desatendida, principalmente pela mobilidade interna ao bairro ser debilitada. 74
Habitar às margens
São Bernardo do Campo Bairro dos Alvarenga APRM-Billings Detalhe página seguinte Sem escala
1. Salário mínimo utilizado R$510
2. O Pró-Billings prevê ligações domiciliares de esgoto, assentamento de 105 km de redes coletoras, 33 km de coletores-tronco e a implantação de três estações elevatórias de grande porte para exportação dos esgotos da bacia Billings, margem norte, até a ETE ABC. Informações disponíveis em www.sabesp.com.br
A rede de abastecimento de água abrange 96,9% dos domicílios e a coleta de esgoto atinge somente 66,8%, no entanto, dados da Sabesp apontam que, até 2009, somente 27% do esgoto coletado no município é encaminhado à ETE ABC (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2010b; 2011a). O bairro dos Alvarenga ainda não está incluso nesta porcentagem. Obras da Sabesp pelo Programa Pró-Billings2 estão sendo executadas através de financiamento do JICA (sigla em inglês para Agência Internacional de Cooperação do Japão) e é previsto que até 2016 um sistema de coletores-tronco e estações elevatórias exportem o esgoto da região até a ETE ABC.
Sistema de esgotamento sanitário na região do bairro dos Alvarenga, Projeto Pró-Billings, Sabesp, 2012. Fonte: Ferrara, 2013, p. 323.
Sistema de esgotamento sanitário e encaminhamento para ETE ABC. Sabesp, 2012. Fonte: Ferrara, 2013, p. 323. Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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PRINCIPAIS EQUIPAMENTOS PÚBLICOS NO BAIRRO DOS ALVARENGA PONTO DE ÔNIBUS
MERCADO
ESCOLA PÚBLICA ENSINO FUNDAMENTAL | MÉDIO
FEIRA-LIVRE
ESCOLA PÚBLICA CRECHE | INFANTIL
FARMÁCIA
IGREJA
HOSPITAL | UBS RODOVIA IMIGRANTES
CRUZEIRO DO SUL
ESTRADA DOS ALVARENGAS
0
250 100m
1km 500
BASE: GOOGLEMAPS, 2012 FONTE: SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2011a Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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A comunidade Cruzeiro do Sul A norte do braço da represa que segmenta o bairro dos Alvarenga está o assentamento Jardim Cruzeiro do Sul. Sua formação data de 1993, quando algumas famílias compraram um pequeno terreno de loteadores e construíram suas casas. Em 1998 existiam 83 residências na área, hoje, a associação de moradores contabiliza 149 moradias3 e o recente cadastramento realizado pela prefeitura4 computou 155. A comunidade vive em situação irregular. Apesar de terem adquirido o terreno, os loteadores eram clandestinos. Este fato, coloca a comunidade numa situação bastante diversa, uma vez que é caracterizada como favela, mas a lógica de sua formação é similar à dos demais loteamentos, havendo documentos de compra e venda, como contratos e notas promissórias5. Os moradores mais antigos da área contam que Robertão, Almeida e Damasceno foram as pessoas que lhes venderam os terrenos, e que na época, não tinham conhecimento do que era lei de mananciais, APM, ou qualquer outra legislação do tipo, somente buscavam uma alternativa habitacional que coubesse no orçamento. A área é desprovida dos serviços básicos de saneamento, as ligações de água e energia elétrica foram improvisadas pelos próprios moradores e não há rede de esgoto ou drenagem. As ruas e vielas não possuem pavimentação adequada, tornando a circulação bastante complicada, principalmente na época das chuvas, pois muitas delas possuem inclinação bastante acentuada.
3. Dados obtidos em reunião com a comunidade em 19/10/2013 4. Dados obtidos em oficina promovida pela Secretaria de Habitação do município em 16/06/2014. 5. Idem 3
Caminho por onde é possível circular automóveis. Foto da autora. 78
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Caminho por onde é possível circular automóveis. Foto da autora.
Escada improvisada. Foto da autora. Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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Caminho improvisado. Única via de acesso por automóvel à parte mais baixa da comunidade. Fotos da autora. 80
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Caminho improvisado. Foto da autora.
As ruas em cota mais elevada encontram-se em melhores condições, inclusive as moradias ali localizadas. Foto da autora. Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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Ausência de rede de esgoto. Tubulações improvisadas e encaminhamento de parte dos efluentes em direção às áreas mais baixas e, consequentemente, à represa. Fotos da autora. 82
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Habitações em madeira. Foto da autora.
Habitação mais consolidada. Foto da autora. Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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Perímetro do Jardim Cruzeiro do Sul ESC | 1:2000 Base: GoogleMaps, 2012. Edição da autora. 84
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Perímetro da comunidade. Caminhos onde é possível a circulação de automóvel. Caminhos improvisados percorridos pela autora ESC | 1:2000 Base: GoogleMaps, 2012. Edição da autora. Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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Segundo dados levantados pela Prefeitura de São Bernardo do Campo em 20095, cerca de 60% das casas eram de alvenaria, 39% de madeira e 1% de materiais improvisados, aproximadamente 80% das famílias têm renda até 5 salários mínimos, 65% dos responsáveis pelo domicílio têm até 7 anos de escolaridade e 40% dos residentes têm menos de 18 anos. Desta maneira, no entender da prefeitura do município e pelo diagnóstico realizado para a elaboração do PLHIS, a comunidade foi enquadrada na tipologia 5, a ser totalmente removida e reassentada em conjunto habitacional.
. escolaridade dos responsáveis pelo domicílio
. condição das construções
sem instrução/menos de 1 ano de estudos | 9,83% 1 a 3 anos | 14,95% 4 a 7 anos | 40,91%
alvenaria | 60%
8 a 10 anos | 21,61%
madeira | 49%
11 a 14 anos | 11,45%
materiais improvisados | 1%
. renda familiar
15 ou mais | 1,27%
. faixa etária menos de 10 anos | 25,35% 0 a 3 SM | 58,12%
11 a 18 anos | 16,23%
3 a 5 SM | 22,35%
19 a 59 anos | 55,80%
5 a 10 SM | 17,32%
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mais de 60 anos| 2,62%
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5. Dados obtidos em entrevista com Thais Lopes em 27/03/2014.
Contato inicial A decisão pela remoção, de acordo com o PLHIS, causou uma grande repercussão na comunidade, que se viu ameaçada, pois as condições de como se dará essa remoção é algo não explicitado pelo Plano, que ainda carece de estudos mais aprofundados. No entanto, a presidente da associação dos moradores, Marli, procurou os coordenadores de um grupo de pesquisa que vinha atuando na região do bairro dos Alvarenga já há alguns anos. A pesquisa “Manejo de Águas Pluviais em Meio Urbano”, financiada pela FINEP e sob coordenação da Prof. Dr. Maria Lucia Refinetti, desenvolvida pela equipe de pesquisadores do LABHAB, com colaboração do Laboratório de Culturas Construtivas - Canteiro Experimental da FAUUSP – LCC, tem como um dos objetivos articular soluções não convencionais de drenagem urbana à configuração física de assentamentos precários visando elaborar recomendações para sua regularização urbanística e ambiental. Através da já existente aproximação da Dra. Luciana Ferrara com a região, foram iniciadas, no início de 2013, uma série de reuniões com os moradores, para discussão da realidade urbana do bairro dos Alvarenga. As reuniões, que aconteciam de 15 em 15 dias na Sede da Associação dos Moradores do Parque dos Químicos, resultaram na proposta e concretização da atividade “Canteiro Escola - Águas Urbanas em Áreas de Mananciais”, iniciada em setembro de 2013 e ainda em curso. Além da criação de um repertório de soluções não convencionais, o Canteiro Escola tem também como objetivo contribuir para uma participação qualificada dos moradores no debate de futuros projetos de intervenção nessas áreas, colaborando assim com o poder público local na execução de projetos de urbanização. Me integrei a este projeto através do acompanhamento destas atividades, e passei a fazer parte da equipe tanto como pesquisadora do LABHAB como do Observtório de Remoções. Marli, a partir de sua participação no projeto, trouxe a situação da remoção da comunidade como ponto a ser discutido no Canteiro Escola, sobre a questão da relação entre habitação e as áreas de manancial. Deste contato, houve a intenção de se desenvolver um trabalho mais específico com esta comunidade, uma vez que os demais bairros da região não passam por ameaça de remoção. Os demais loteamentos do chamado baixo Alvarenga, composto pelos Parque Ideal I e II, Novo Horizonte I e II, Nova America e Parque dos Químicos, por sua situação física ser mais consolidada, segundo o PLHIS, são áreas a serem consolidadas e regularizadas. Nesta região, há bastante tempo já se discute a situação dos bairros que ali se constituíram através de loteamentos irregulares ou clandestinos, e diversas ações civis públicas já recaíram sobre estes, muitas vezes pelo seu desfazimento. Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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Desde 1993, tramitava um processo judicial sobre o assentamento Novo Horizonte II que resultaria na demolição das casas do bairro, no entanto, através de acordo proposto pelo Ministério Público, foi posto fim a este processo, tendo a prefeitura se comprometido a elaborar um Plano Estratégico Global (PEG) para toda a área do então chamado Alvarenguinha, para cumprir a recuperação ambiental e requalificação urbana dos seis loteamentos mais o Jardim Cruzeiro do Sul. O PEG Alvarenguinha é elaborado a fim de enquadrar a área no PRIS (em atendimento à Lei Específica da Billings) por meio da concepção de projetos urbano, de infraestruturas, ambiental, jurídico-fundiário e de trabalho social de maneira integrada, a fim de obter as licensas necessárias à execussão das obras. Em articulação da prefeitura com a população local, o PEG foi aprovado nas plenárias do Orçamento Participativo de 2013 (FERRARA, 2013) e no primeiro semestre de 2014 iniciou-se o processo de selagem e cadastro das famílias dos 6 loteamentos e do Cruzeiro do Sul pela Hagaplan, empresa licitada pelo município para execução do Plano.
Perímetros abrangidos pelo PEG Alvarenguinha. Fonte: Secretaria de Habitação de São Bernardo do Campo. 88
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Relação com a comunidade
Reunião no Jardim Cruzeiro do Sul. Fotos: Luciana Ferrara.
Depois do primeiro contato com Marli, foi organizada uma primeira reunião com os moradores. Neste momento encontramos uma situação de bastante desarticulação entre eles, no entanto, aos poucos e a partir da participação nos encontros do Canteiro Escola, tentamos colaborar para o esclarecimento das situações colocadas pelo poder público para a área, e para a instrumentalização dos moradores sobre seus direitos. Dada a especificidade da comunidade em relação aos demais loteamentos do Alvarenguinha, foi discutido em reunião com os moradores a intenção de se desenvolver soluções alternativas à remoção no contexto do PEG, somando-se à demanda por um projeto alternativo colaborativo que já vinha sendo manifestada por alguns representantes da comunidade nos encontros da pesquisa. Desta maneira, as reuniões realizadas posteriormente tiveram a intenção de ampliar a interlocução com um número maior de moradores da área. Em 19 de outubro de 2013, foi realizada uma primeira conversa mais ampla entre os moradores e os representantes da pesquisa “Manejo de Águas Pluviais em Meio Urbano”, Karina Leitão e Chico Barros, além de mim, Tamires Lima, a fim de esclarecer a proposta e buscar o respaldo e a participação dos moradores neste processo.
Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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Neste primeiro contato, buscamos explicar o papel dos pesquisadores de arquitetura e urbanismo e da universidade perante a situação urbana em que os moradores se encontram e quais poderiam ser nossos campos de atuação, como pesquisa documental, reuniões e contato com órgãos responsáveis, desenvolvimento e embasamento técnico para soluções alternativas, etc, esclarecendo que o sujeito a assumir a negociação com o poder público que se pretende empreender, sempre teria de ser a comunidade e seus representantes, colocando-nos como elemento de respaldo técnico. Os moradores mostraram-se bastante entusiasmados e se prontificaram a colaborar com o que fosse necessário para levantamento de dados, participação em reuniões, etc. Pudemos, então, dar início a um levantamento de informações sobre a área, como a situação fundiária e os projetos em andamento na prefeitura. Relação com o poder público No mês de março de 2014, por ocasião do início dos trabalhos do PEG Alvarenguinha, a secretária de habitação Tássia Regino organizou uma oficina onde diferentes secretarias, escritórios que atuam pela prefeitura e pesquisadores trocassem informações e conversassem sobre os planos e projetos que têm para a cidade de São Bernardo, especificando, num segundo momento, por região. Participaram diversas secretarias como Habitação, Desenvolvimento Urbano e Gestão Ambiental, estiveram presentes representantes de alguns dos escritórios de arquitetura e urbanismo responsáveis por projetos de urbanização na cidade e, pela parte dos pesquisadores, participaram as professoras Maria Lucia Refinetti, Karina Leitão e Luciana Ferrara, que me convidaram para o trabalho de maneira a buscarmos mais embasamento e informações sobre o PEG Alvarenguinha. A busca por uma integração e possível articulação entre as secretarias resultou, no primeiro dia de trabalho, numa rica apresentação de levantamento de dados, estudos, planos e projetos em curso, porém, com pouca ou nenhuma articulação entre si. No segundo e último dia de encontro, secretarias, arquitetos e pesquisadores organizaram-se em grupos de trabalho por áreas de projeto, ficando cada professora responsável por uma área. A professora Luciana Ferrara e eu, ficamos no grupo que conversaria sobre o baixo Alvarenga e sobre o PEG Alvarenguinha. As discussões deste grupo, norteadas por Luciana, tiveram foco nas seguintes questões: quais as ações estratégicas para atuação na área? Quais os principais problemas da área? Quais princípios de atuação cabem? Como garantir a continuidade e manutenção das ações? Desta oficina conseguimos melhor compreender em que estágio estava o PEG e quais diretrizes estão norteando a condução do plano. Foi ressaltada pela prefeitura a importância da regularização fundiária dos 6 90
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6. Através destes dados mais precisos, acreditamos que será possível uma discussão mais qualificada sobre as propostas apresentadas pela prefeitura, além de sermos capazes de tecer outras hipóteses para a área.
loteamentos e a remoção do Cruzeiro do Sul. A professora Luciana colocou em pauta as questões de se realizar a regularização fundiária num assentamento ainda com deficits urbanísticos, e de se afirmar a remoção de uma área onde ainda seriam realizados estudos e diagnósticos mais aprofundados que poderiam resultar em outras soluções, mas este mostrou-se um ponto de divergência, discutido, porém sem muita conclusão. Após a oficina, em 27 de março de 2014, a advogada da Secretaria de Habitação, Thais Lopes, me concedeu uma entrevista, mais como uma conversa, a cerca da situação da comunidade, esclarecendo melhor as decisões da Secretaria até o momento e fornecendo os dados que as embasaram. Thais salientou novamente a questão das áreas sob administração da EMAE, sobre as quais parte do Cruzeiro do Sul estaria assentado, no entanto, ainda não possuíam a cartografia exata da demarcação para que conferíssemos. Os moradores, andando pela área, verificaram algumas estacas com o símbolo da empresa, mas estas estão bastante afastadas das casas que mais se aproximam da represa. Thais se prontificou a me apresentar uma copia da matricula do terreno e o diagnóstico preliminar realizado pela prefeitura, através dos quais pudemos ter mais certezas sobre a situação fundiária do terreno, do perímetro atribuído à comunidade e mais alguns dados socioeconômicos. Ainda em conversa com a advogada, as demais condicionantes levantadas em diagnóstico preliminar pela prefeitura determinam a remoção da comunidade, como a precariedade habitacional, situações de risco, existência de córrego e nascente na área, e existiu também um reconhecimento da dificuldade de fiscalização para se evitar a expansão da área, mesmo após uma hipotética urbanização. No entanto, sempre foi salientado pela prefeitura que o maior detalhamento do projeto estava condicionado à finalização do já iniciado levantamento topográfico e cadastro socioeconômico de toda a região do Alvarenguinha. Neste período, até a conclusão deste trabalho, foi realizado o levantamento planialtimétrico cadastral (LEPAC) e o cadastro socioeconômico de toda a região. Nova oficina realizada pela SEHAB em 16/06/2014, buscou aproximar os trabalhos desenvolvidos pela Hagaplan e pela pesquisa Manejo de Água Pluviais, a fim de compartilhar informações, experiencias e sincronizar as ações na área, complementando-se, na medida do possível. Desta oficina, obtivemos o compromisso por parte da secretária Tássia Regino de receber o LEPAC6 e o diagnóstico assim que concluídos, e pudemos ter acesso aos dados preliminares obtidos pelo cadastro sócioeconomico do Alvarenguinha realizado pela Hagaplan. Específicamente sobre o Cruzeiro do Sul, foram seladas 155 unidades, divididas em 143 residências (96,26%), 5 comércios, 5 unidades mistas, 1 de uso religioso e 1 não informado. Foram contabilizados 453 residentes, cerca de 3,1 por domicílio. Sobre as infraestruturas, foi verificado que 97,3% tem acesso improvisado à rede de água e 98,65% à rede de energia elétrica, 96,62% utiliza fossa séptica como destinação dos esgotos e 95,27% deposita os resíduos sólidos em caçambas para ser realizada a coleta. Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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Código de identificação da selagem. Casa da Jô Foto da autora.
Bar da Jô. Foto da autora. 92
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Unidades seladas. Fotos da autora. Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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Selagem. Casa da Marli. Foto da autora.
Selagem. Bar da Cleonice com seu neto. Foto da autora.
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Cadastro das ĂĄrvores e elementos vegetais. Fotos da autora. 96
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A proposta geral
7. Dia 21/06/2014 já está prevista reunião para apresentação do diagnóstico preliminar elaborado e no mês de julho terão início as reuniões focadas na discussão sobre as propostas alternativas, como encaminhamento das pesquisas FINEP e LabHab, bem como sequência do trabalho aqui apresentado.
Mesmo sem maiores detalhamentos cadastrais da situação sócio territorial do Cruzeiro do Sul, o trabalho se propôs a compilar soluções e recomendações para intervenção em assentamentos precários localizados nas áreas de manancial, no intuito de acumular ideias e experiências que possam ser aproveitadas quando da elaboração das propostas alternativas a prefeitura, bem como no contexto do Canteiro Escola. De maneira mais abrangente, o trabalho que se busca desenvolver em conjunto com os moradores do Cruzeiro do Sul, baseia-se no estudo de alternativas de intervenção na área, a partir dos dados topográficos e socioeconômicos mais precisos que foram levantados para o PEG. No entanto, algumas hipóteses já puderam ser estudadas de maneira preliminar, como a possibilidade de urbanização da área, com a permanência da maioria das famílias no local, possibilidade também de reassentamento interno, e em última instância, caso a remoção seja reafirmada como alternativa, buscar o remanejamento para areás próximas ao local, encurtando ao máximo o deslocamento das famílias. Estas alternativas, serão discutidas em conjunto com os moradores, de acordo com as necessidades e demandas que surgirem das reuniões organizadas7, reafirmando a posição de condutores de seus próprios destinos, através de um processo de discussão e conscientização das limitações e especificidades de se habitar nas áreas de manancial.
Assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo
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DIRETRIZES
DE
INTERVENÇÃO
Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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Toda a compilação bibliográfica e os casos até então apresentados e estudados, nos levaram a tecer conclusões e diretrizes para boas intervenções em assentamentos precários e, mais especificamente, nas áreas de mananciais. Três pontos de ação foram identificados como estruturais aos processos de urbanização, o trabalho social, a adequação urbana e ambiental e a regularização fundiária. Concluímos que quanto mais as intervenções articulam estes três pontos, melhor sucedida elas tendem a ser, uma vez que estas frentes são capazes abranger as principais fragilidades encontradas nestas comunidades, como as vulnerabilidades social e econômica, a insalubridade e o risco do assentamento e da habitação, a carência de serviços e infraestrutura e a segurança da posse. A solução destes problemas é o passo mais importante que se pode dar em direção a intervenções que visem a real integração social e urbana de assentamentos precários. Note-se que não estamos dizendo com isso, que esses componentes sejam os únicos a serem observados para o êxito de soluções em assentamentos precários. E tratando-se aqui de um conjunto de diretrizes para urbanização de assentamentos em área de manancial, trataremos de incluir uma série de recomendações quanto aos aspectos de infraestruturas sanitárias, sobretudo de drenagem, pois entendemos que elas merecem um olhar detalhado quando se trata da ocupação em áreas produtoras de água, onde a tensão pelo uso habitacional e a questão ambiental impõe maiores desafios à consolidação dos assentamentos precários e ou irregulares. Ainda que existam dificuldades e entraves a este tipo de intervenção, como levantado em capítulos anteriores, consideramos de extrema importância elaborar um conjunto de diretrizes que possam nortear uma intervenção adequada em área de mananciais, buscando abordar as diferentes escalas e fases do processo e tendo como referência o caso da comunidade Cruzeiro do Sul. Diretrizes para trabalho social O trabalho social é primordial às intervenções em assentamentos precários, através dele, pode-se empreender um processo mais abrangente de integração social, urbana e econômica da população mais carente. Seus objetivos, de maneira geral, são promover a participação popular, a organização social e a gestão comunitária, promover ações de inclusão social e econômica através de acesso a emprego e renda, ações de educação sanitária e ambiental, além da mediação social entre projetistas, poder público e a população atingida. Desta maneira, o trabalho social se faz presente em todas as etapas do processo, desde o diagnostico preliminar até o momento pós-obras. O Ministério das Cidades (BRASIL, 2009) elenca uma série de responsabilidades e atribuições ao trabalho social, devendo ser destinado 2,5% do investimento total a este setor. 100
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Em habitação, ele dá a ancoragem social necessária às intervenções e faz a costura estratégica das várias dimensões e variáveis que atuam na urbanização. Acrescido da participação popular, visa imprimir uma nova configuração à relação entre o poder público e a população, articulando o processo de mobilização social e de fortalecimento da cidadania. Mais além, o trabalho social fomenta um processo coletivo de aprendizagem e convocação de vontades para uma mudança de realidade, o compartilhamento de visões e informações, além de preparar e instrumentalizar a população para compreender, interagir, propor e participar. O desafio está na interação entre o saber técnico e o saber popular. Dentre as atribuições do trabalho social, a que baseia as demais frentes e a organização dos trabalhos como um todo é o cadastro ou selagem, através deste instrumento firma-se um pacto com a população, esclarecendo que o investimento é planejado para aquele determinado número de famílias, e que o aumento deste número pode implicar na incapacidade de atendimento a todos. Também são informadas as novas regras de proibição de construir, vender ou alugar, e se estabelece a equipe de fiscalização que notifica e executa notificações. O trabalho social é ainda responsável por identificar as vulnerabilidades sociais e as potencialidades da comunidade. Vulnerabilidade é definida como a incapacidade de pessoa ou família de aproveitar as oportunidades disponíveis para melhorar sua situação de bem-estar ou impedir sua deterioração. As situações mais freqüentes de vulnerabilidade são baixa renda, baixa escolaridade de jovens e adultos, relações precárias de habitação e/ou emprego, elevado número de crianças e jovens, chefes de família muito jovens, idosos ou sozinhos, baixo capital social e dificuldade de mobilização, violência e tráfico de drogas, carência de serviços de saúde, educação, assistência social, esporte, cultura e lazer (BRASIL, 2009). É fundamental mapear e identificar a capacidade de adaptação e os meios de resistência que podem ser mobilizados para fazer frente às adversidades, além de perceber o quanto a melhoria habitacional e urbana podem ser catalisadores de processos de desenvolvimento. Características que podem ser aproveitadas, geralmente são, identidade positiva da comunidade consigo mesma, organização social, laços de vizinhança, programas sociais ou parcerias, atuação de ONGs ou entidades, vocações produtivas e mercado local. As ações relacionadas ao desenvolvimento da educação sanitária e ambiental mostram-se de extrema importância na manutenção e na continuidade das melhorias implantadas. Neste sentido, deve-se fomentar a sustentabilidade socioambiental a partir da própria população, ampliando o conhecimento sobre as condições de uso e conservação das obras implantadas, alimentando a compreensão de que são parceiros na manutenção das áreas recuperadas, através do desenvolvimento de práticas sustentáveis de convivência com o meio ambiente e criando uma visão comum do problema. Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
101
A parceria com escolas e postos de saúde pode ser importante na condução e desenvolvimento dos temas a serem desenvolvidos, como praticas de higiene e saúde, disposição de resíduos sólidos, preservação de áreas verdes e conscientização quanto às questões de água, esgoto e energia. O trabalho social pode também desenvolver ações relacionadas à geração de emprego e renda, afim de promover o desenvolvimento, a inclusão social e a redução de vulnerabilidades. Em geral, são promovidas ações de capacitação profissional, de acesso às políticas sociais e de apoio ao cooperativismo e ao empreendedorismo, de acordo com as vocações e o mercado local. Após as obras, o acompanhamento e a avaliação podem requerer demandas técnicas diferenciadas, uma vez que abrange as dimensões físico-ambientais, fundiárias e sociais. Em geral, o acompanhamento é feito para dar apoio e orientação na adaptação ao novo local de moradia, no uso correto das redes e das novas unidades, na constituição de condomínios e nos impactos no orçamento familiar, alterado por impostos, taxas, contas e prestações. Avalia-se também a qualidade e eficiência das intervenções e implantam-se ações de controle urbanístico. Identificam-se os problemas e alternativas são construídas em conjunto com a população. Nesse sentido, espera-se que no momento da elaboração do projeto de urbanização ou reassentamento do Cruzeiro do Sul, a prefeitura desenvolva dinâmicas de diálogo efetivo com a comunidade, para que esta possa se colocar como sujeito ativo e decisório nesse processo. Note-se que com estas considerações, não estamos concluindo que as possibilidades de participação se esgotam nos canais de participação oficialmente abertos pelo poder público no campo das suas ações, muito menos no campo das urbanizações de favelas. O próprio trabalho aqui apresentado, insere-se numa perspectiva de interlocução direta entre academia e associações comunitárias, sem mediação do Estado, com base no entendimente de que há um limite para a participação popular mediada pelos canais oficiais de interlocução. Estes, se por uma lado são um avanço conquistado social e insticucionalnemte no Brasil pós-constituinte, por outro, têm hoje em dia seus limites reconhecidos. Como já dito, este trabalho insere-se numa perspectiva de planejamento baseada numa abordagem que se pretende insurgente, como nos moldes de planos recentemente formulados para a Vila Autódromo no Rio de Janeiro e a Vila da Paz em São Paulo (AMPVA, 2012; PEABIRU, 2013).
102
Habitar às margens
Diretrizes de adequação urbana e ambiental De maneira geral, é importante que a decisão de se intervir em determinado assentamento não fique restrita aos limites do assentamento em si. A qualificação de um território com elevado grau de precariedade, raramente se dá com ações estritamente físicas e localizadas, normalmente, as carências surgem de um contexto maior, de deficiências regionais, municipais ou de um bairro, sendo importante que isso seja diagnosticado previamente. A indicação do Ministério das Cidades é que a sub-bacia seja o parâmetro de unidade territorial mínima para intervenção, uma vez que as redes de infraestrutura em muito são condicionadas pelas características geomorfológicas e hidrológicas da sub-bacia, sendo mais eficiente o dimensionamento segundo estas condicionantes. (MARTINS, 2006) Vale reafirmar que a sub-bacia deve ser encarada como unidade mínima, ou seja, outras condicionantes podem requerer um aumento na área de intervenção, como conexão com outros bairros, precariedade que se estende por mais de uma sub-bacia, deficiências na rede de transporte, etc. Na área de proteção aos mananciais esta diretriz é mais clara, na medida em que a adequação ambiental e urbanística dos assentamentos está dire-
Sub-bacias do Alvarenga. Base: Prefeitura de São Bernardo do Campo. Montagem: Mariana Guimarães Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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tamente relacionada à presença do manancial e à rede hidrográfica da região. Destacamos também, a importância de se aplicar usos sustentáveis e compatíveis com a área dos mananciais nas áreas desocupadas da sub-bacia como forma de controle urbano e integração social e urbana. Parques, agricultura, piscicultura, entre outros, podem ser objeto de inclusão social e econômica das famílias, além de garantir que estas áreas livres assim permaneçam. No entanto, estas propostas devem ser debatidas e demandas pela população local, caso contrario, é possível que caiam em desuso. No entanto, áreas vazias em setores mais consolidados devem ser encaradas como potencial área de reassentamento ou de adensamento, visando a utilização de redes de infraestrutura já implantadas e evitando a expansão de novas frentes de urbanização. Martins (2006) destaca enfaticamente a necessidade da criação de mecanismos de regulação compatíveis com a realidade social e econômica das cidades brasileiras, como já citado anteriormente, a elaboração de leis e normas que se mostram inaplicáveis, assim serão, perpetuando um processo de exclusão e ilegalidade. A área de proteção aos mananciais é exemplo claro da ineficácia das leis restritivas e do caos urbano gerado a partir da impossibilidade de fiscalização de tamanho território. A revisão e adequação destas leis a um quadro social, econômico e urbano real, que seja passível de gestão e fiscalização pelas municipalidades, é primordial na construção de assentamentos mais dignos para a população e mais adequados à região os mananciais. A seguir, elencamos as diretrizes de acordo com as escalas de análise, partindo da inserção urbana até a manutenção e avaliação pós-ocupação. Inserção Urbana A inserção urbana diz respeito à localização da comunidade no território, sua distância em relação ao centro da cidade, aos pólos de emprego e aos equipamentos e serviços públicos, à oferta de transporte público e à capacidade de locomoção pela cidade. Dadas as características segregadoras da expansão urbana nas grandes cidades, exatamente os bairros de população mais carente, que mais uso fariam de serviços e equipamentos públicos, estão localizados nas regiões mais distantes e menos equipadas. Ainda que muitas comunidades situadas em área de proteção aos mananciais sofram com a escassez de infraestrutura e serviços públicos, a adequação urbanística e ambiental destes assentamentos é considerada por Martins (2006), entre outras bibliografias sobre o tema (Ferrara, 2013), como a única solução para a convivência saudável entre a ocupação urbana e a qualidade das águas. 104
Habitar às margens
< Horta Comunitária Vila da Esperança, Campinas. Fonte: Prefeitura Municipal de Campinas. Foto: Carlos Bassan
A falta de investimentos em política habitacional e em controle urbano sobre estas áreas, ao longo de várias décadas, criou um passivo de cerca de 1,5 milhão de pessoas habitando estas regiões, ou seja, tornou-se socialmente e financeiramente impossível deslocar toda esta população para fora das zonas de proteção. Por meio da adequação urbanística e ambiental destes assentamentos é possível que haja a convivência entre a população e as represas, desde que exista continua educação ambiental, manutenção e melhoria dos serviços de infraestrutura sanitária e, principalmente, efetivo controle e fiscalização para a contenção da expansão. A comunidade Cruzeiro do Sul localiza-se numa área pouco servida por serviços e equipamentos públicos. Ainda que o Bairro dos Alvarenga possua quantidade significativa de escolas e hospitais, a mobilidade do bairro é bastante reduzida, uma vez que a única via de circulação é a Estrada dos Alvarengas e poucas linhas de ônibus servem a região, o que dificulta o acesso aos equipamentos situados nas outras partes do bairro. Portanto, para a permanência não só desta comunidade, mas dos outros loteamentos do bairro, é primordial o investimento em equipamentos públicos e mobilidade. No entanto, algumas situações requerem a transferência das famílias, como situações de risco de deslizamento ou alagamento, risco estrutural da residência, construções muito próximas à cursos d’água e nascentes, necessidade de criação de ruas e acessos e outros casos mais específicos que possam surgir em determinada
< Parque Manancial de Águas Pluviais, China. Fotos: Archdaily
Áreas de ZEIS 2 situadas a 1 e 2,5 Km de distância da comunidade Cruzeiro do Sul. Base: GoogleMaps, 2012 Fonte: Plano Diretor do Município de São Bernardo do Campo, Lei no 5.593/06 Montagem da autora.
2,5
Km
m
1K
ESC | 1:40000 Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
105
comunidade. Mesmo nestes casos, o esforço deve ser em minimizar o deslocamento para cerca de 1 ou 2 Km de distância da área original, mas preferencialmente, optar pelo reassentamento na própria área urbanizada da comunidade. Deve-se considerar também que a execução de melhoria habitacional pode evitar o deslocamento de diversas famílias, ou seja, é importante esgotar as possibilidades alternativas à remoção, considerar os investimentos já realizados pelas famílias (em suas casas e na infraestrutura local) e os impactos que o deslocamento pode causar, como dificuldade de acesso ao emprego e estudo, perda dos laços de vizinhança e as dificuldades de adaptação social e financeira em um novo local de habitação. Desta maneira, o caso da comunidade Cruzeiro do Sul poderia ser melhor estudado e outras possibilidades de intervenção poderiam ser levantadas. Segundo as orientações do Ministério das Cidades (2009), recomenda-se a elaboração de três alternativas para comparação de custos, qualidade e benefícios, e através do debate com a comunidade e a reflexão coletiva, selecionar a melhor opção. Na reordenação da comunidade, seja consolidação ou reassentamento, é importante assegurar a fluidez da malha urbana, buscando integrar o novo traçado à malha viária existente. A implantação de muros, ou a manutenção de um viário muito descontínuo ou destoante do entorno, pode comprometer a circulação de pessoas e veículos pelo bairro. Existe uma falsa segurança creditada aos muros, propagandeados por empresas de marketing imobiliário como proporcionador de controle, porém, gera efeito contrario na medida em que promove a menor circulação de pessoas pelas ruas, tornado-as desertas. Segundo Jane Jacobs (2000), a presença de movimento e animação nas ruas é o principal fator de segurança, uma vez que o ambiente está “vigiado”.
Esquema de adequação de sistema viário. Montagem da autora.
Esquema da importância de se manter a rua “vigiada” e da falsa segurança atribuida aos muros. Montagem da autora.
!!!
Programa PROSAMIM Igarapé São José, Manaus, 2010 e Parque Residencial Mestre Chico, Manaus, 2012. Fonte: prosamim.am.gov.br 106
Habitar às margens
Moradias Haarlemmer Houttuinen, Holanda, 1969. Fonte: Hertzberger, 199, p. 51
A apropriação do espaço da rua como “um lugar onde o contato social entre os moradores pode ser estabelecido como uma sala de estar comunitária” (Hertzberger, 1999, p. 48) foi desvalorizado ao longo do tempo, o automóvel recebeu prioridade sobre este espaço, o acesso às moradias perdeu o contato direto com a rua através dos halls e elevadores e, em geral, houve uma diminuição da densidade e do número de habitantes por residencia. A conjunção desses fatores esvaziaram as ruas, que tornaram-se “o começo de um mundo com o qual pouco temos a ver, um mundo sobre o qual praticamente não conseguimos exercer influência.” (idem). A devolução das ruas às pessoas e ao convívio social passa por diversos fatores, desde a organização e distribuição dos diferentes usos pela cidade até o desenho de implantação das edificações. No escopo da inserção urbana, podemos incluir a diversificação dos usos do bairro, abrigando comércio, serviços e áreas de lazer mesclados com o uso residencial, na busca por uma quebra da monotonia e da monofuncionalidade, criando deslocamentos e usos saudáveis no nível do espaço público.
Esquema de rua estritamente residencial e ruas multifuncionais com espaço público qualificado. Montagem da autora. Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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Implantação A implantação trata da quantidade e disposição dos edifícios no terreno, de como eles se acomodam na topografia e da organização dos espaços livres e de uso comum. Uma implantação adequada pode minimizar gastos com infraestrutura e otimizar sua utilização, diminuir os impactos ambientais da urbanização e conferir qualidade urbanística ao bairro. A Lei de Proteção aos Mananciais, propõe para a área em estudo ocupação de baixa densidade, ou seja, poucas habitações espalhadas por uma grande área, com a intenção de minimizar o impacto que a habitação gera no meio ambiente, como a produção de esgoto, o consumo de água e a impermeabilização do solo. No entanto, a realidade socioeconômica da região, e do país, condiciona a ocupação destas áreas com uma densidade muito maior, semelhante às dos centros urbanos, tornando-se habitada por uma grande quantidade de pessoas. Segundo dados da prefeitura (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2011a) a área que compreende o baixo Alvarenga possui densidade bruta (população pela área real que ocupa), aproximadamente, 46,3 hab/ha. Esta é uma densidades considerada baixa, comparativamente, o centro da cidade de São Paulo possui cerca de 450 hab/ha e muitas de suas favelas chegam a 1500 ou até 2000 hab/ha. A densidade é um número que vai direcionar o investimento público em transporte, equipamentos, serviços e infraestrutura, uma vez que, com o aumento da densidade, mais investimentos são necessários para atender a população que ali se concentra. Mascaró (1989) propõe uma relação entre a densidade e o custo de implantação das infraestruturas urbanas. CUSTO POR HABITAÇÃO 15
30
60
120
75
150
300
600
1.099,60
571,30
305,20
159,30
16.494
17.131
18.327
19.124
388,40
207,20
106,20
54,40
5.976
6.215
6.375
6.354
87,10
47,80
29,20
19,80
1.307
1.436
1.753
2.367
ESGOTO
488,70
247,00
126,10
63,80
7.331
7.410
7.570
7.649
GÁS
217,80
121,40
66,60
39,20
3.267
3.641
3.995
4.701
ENERGIA ELÉTRICA
168,90
125,70
97,10
63,80
2.534
3.769
5.823
7.665
2.450,50
1.320,30
730,40
400,30
36.908
39.603
43.842
48.040
REDE
hab/ha
PAVIMENTAÇÃO DRENAGEM ÁGUA
TOTAL
108
CUSTO POR HECTARE
Habitar às margens
Tabela dos custos de infraestrutura de acordo com a densidade em dólares. Fonte: Mascaró, 1989.
A tabela aponta para uma redução dos custos conforme o aumento da densidade, ainda que desejável minimização de custos e aproveitamento máximo das infraestruturas, deve-se considerar os impactos que uma ocupação densa traz para o meio ambiente e para a qualidade urbana. Elevar demasiadamente a densidade habitacional nas áreas de manancial, pode significar aumento da impermeabilização do solo, desmatamento e aumento no volume de efluentes a serem tratados, portanto, devese atentar para a elevação da densidade em relação à possibilidade de controlar e minimizar os impactos ambientais. No caso de novas construções para reassentamento, por exemplo, é importante a definição da densidade através da adequação ao entorno, da capacidade de atendimento dos serviços e equipamentos públicos e da implantação ou preexistência de infraestrutura.
Diagrama esquemático de densidades. Montagem da autora.
baixa densidade, similar à proposta pela LPM, com pouca ocupação e grande área de infiltração
configuração de baixa densidade com baixa impermeabilização
configuração de densidade mediana, com maior taxa de impermeabilização
configuração de alta densidade com alta impermeabilização
Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
configuração de baixa ocupação do solo, porém alta densidade devido à altura dos edifícios 109
Nestes casos, a incorporação da declividade natural do terreno e de elementos naturais preexistentes na concepção da implantação pode oferecer diversas vantagens ao projeto. Primeiramente, as declividades naturais podem ser aproveitadas para a implantação das infraestruturas de drenagem e esgoto, que requerem determinada inclinação para seu adequado funcionamento. Segundo Mascaró e Yoshinaga (2013), os custos totais destas redes variam conforme a declividade da área. Terrenos com inclinação inferior a 4% têm seus custos elevados pelo aumento da extensão e pela necessidade de maiores diâmetros para que o escoamento possa fluir corretamente. Declividades superiores a 6% também sofrem aumento de custo por ter de lidar com o aumento na velocidade do escoamento, que requer materiais mais resistentes ou implantação de dispositivos dissipadores de energia, como degraus. As declividades entre 4% e 6% são as mais desejáveis, pois permitem um equilíbrio entre necessidade e velocidade de escoamento. O aproveitamento do declive natural do terreno implica também na diminuição no volume de terra gerado por grandes áreas de corte e aterro, contribui para a diminuição dos custos com movimentação de terra e construção de grandes contenções, além de oferecer melhor estabilidade ao terreno, uma vez que permanece mais próximo de suas condições naturais. Contenções e taludes com até 2 metros de altura podem ser executados com estruturas mais simples, implicando menor custo com materiais, maquinário e mão-de-obra.
Esquema de implantação mais adequada à forma natural e à declividade do terreno, com taludes mais baixos e aproveitamento de elementos naturais préexistentes. Montagem da autora.
A implantação das construções descoladas do solo, por meio de pilotis, por exemplo, pode ser uma solução de baixo impacto ao perfil natural da área, permitindo também a diminuição da impermeabilização do solo. Estas áreas podem abrigar equipamentos de uso comum, como playgrounds, quadras de esporte ou espaços de convivência, adotando pavimentos permeáveis conforme o caso. Além da declividade, o aproveitamento de elementos naturais preexistentes como árvores e cursos d’água na elaboração do desenho também contribui para a redução do impacto ambiental e influi positivamente no microclima da região, estes podem ser incorporados ao projeto paisagístico criando áreas de sombra, qualificando espaços de convívio e permanência, garantindo áreas permeáveis e a recuperando margens de córregos. 110
Habitar às margens
Edifícios elevados do solo por pilotis. Projeto de intervenção no Sítio Joaninha, Diadema, em área de proteção aos mananciais. Luciana Ferrara, 2003. Fonte: Martins, 2006, p. 161
O projeto paisagístico está intimamente ligado à forma de ocupação do terreno e à disposição das construções. É importante que o desenho busque garantir insolação e ventilação adequados às residências e aos espaços livres, privacidade entre as unidades habitacionais, espaços de convívio e espaços de transição entre áreas mais movimentadas e as mais reclusas.
Esquema de implantação privilegiando a disposição de vagas de estacionamento e em contraposição, implantação onde os espaços livres e verdes e a relação entre os edifícios configuram o desenho. Montagem da autora. Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
111
Esta espécie de “zoneamento” entre áreas públicas, privadas e de transição, muitas vezes é feito através de muros, grades e elementos de barreira, no entanto, um desenho arquitetônico mais sugestivo e menos restritivo pode exercer esta função. “A criança sentada no degrau em frente à sua casa está suficientemente longe da mãe para se sentir independente (...) mas, ao mesmo tempo, sentada ali no degrau que é parte da rua assim como da casa, ela se sente segura, pois sabe que sua mãe está por perto.” (Hertzberger, 1999, p. 32) Os espaços sugeridos, em geral, são apropriados pelas pessoas na medida em que elas se sentem envolvidas, tanto por poder imprimir marcas individuais ao local como por zelar pela sua limpeza ou manutenção. Exemplos comuns são o plantio de flores ou pequenas árvores, colocar assentos para conversar com amigos e vizinhos ou enfeites que remetam à um gosto pessoal. Nestes espaços, sabe-se que existe condição para a privacidade tanto quanto para o contato social. No entanto, a vida destes locais está fadada a uma clara identificação das responsabilidades, não por meio de cartas ou leis, mas pela configuração que sugere quem está encarregado ou responsável, sem, no entanto, levar a sua privatização. “O segredo é dar aos espaços públicos uma forma tal que a comunidade se sinta pessoalmente responsável por eles, fazendo com que cada membro da comunidade contribua à sua maneira para um ambiente com o qual possa se relacionar e se identificar.” (Hertzberger, 1999, p. 44) Desta maneira, é importante evitar a configuração de grandes espaços distantes das residências ou comércios, que acabem tornando-se demasiadamente impessoais, como grandes áreas de estacionamento ou gramados sem destinação definida. O desenho da implantação pode contemplar diversas soluções que diminuam o impacto ambiental e que tornem a urbanização mais apropriada à área de mananciais. Além da adequação à topografia local, como já discutido, outras técnicas podem ser incorporadas, principalmente àquelas relacionadas às infraestruturas.
112
Habitar às margens
Infraestruturas sanitárias As infraestruturas sanitárias são aquelas que conferem salubridade e condições higiênicas ao assentamento e às unidades habitacionais. Na especificidade das urbanizações em área de manancial, estas têm papel protagonista na redução do impacto ambiental sobre as águas. A adequada implantação e manutenção das infraestruturas sanitárias são fator decisivo para manutenção da qualidade e quantidade das águas disponíveis para captação. A seguir, apresentamos soluções alternativas aos métodos convencionais implantados, uma vez que estes têm se mostrado insuficientes ou ineficazes na manutenção dos recursos hídricos. Infraestrutura de abastecimento de água O sistema tradicional de abastecimento de água é baseado na seguinte estrutura: . captação: retirada da água do meio natural, oriundas de lagos, represas e rios ou ainda de fonte subterrânea, como os lençóis freáticos . adução: é o conjunto de encanamentos de maior porte que transporta a água da fonte ao tratamento e do tratamento às redes de distribuição. . recalque: sistema elevatório necessário quando há desnível em aclive a ser superado na distribuição . reservação: visa atender a variação de consumo e manter pressão mínima e constante na rede . tratamento: de acordo com a qualidade da água, o tratamento pode existir ou não . distribuição: conexão entre reservatório ou adutora e os pontos de consumo Este modelo, associado à rede de esgoto doméstico, encaminhas as águas servidas às estações de tratamento ou aos cursos d’água. No entanto, sistemas alternativos que reutilizem a água captada podem ser implementados a fim de completar a provisão de água potável.
Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
113
A tabela apresenta o volume médio de água necessário aos usos domiciliares. ATIVIDADE
CONSUMO
litros/pessoa/dia
BEBER
1a3
LAVAGEM E PREPARAÇÃO DE ALIMENTOS
2a5
LAVAGEM DE UTENSÍLIOS DE COZINHA LAVAGEM DE MÃO E FACE
6 10
DUCHA
50
DESCARGA LAVAGEM DE ROUPA
25
LIMPEZA DA HABITAÇÃO
10
Consumo mínimo de água em usos domiciliares. Fonte: Mascaró, 2010a.
5
O consumo será maior conforme a disponibilização de água encanada e o aumento renda. O volume mínimo está situado entre 100 e 150 litros/pessoa/dia, enquanto que em algumas regiões de alta renda, pode chegar a até 1500 litros/pessoa/dia. (MASCARÓ e YOSHINAGA, 2013) Dois sistemas alternativos de abastecimento são propostos. No sistema fechado, a água servida de lavagem de louça e roupas é destilada e reaproveitada num ciclo, sendo necessário um reabastecimento diário de 5 a 10 litros/pessoa, para compensar as perdas. No sistema semi-fechado, a água das chuvas é captada e utilizada em natura para lavagem de louça e roupas, parte da água servida é reaproveitada nos vasos sanitários e outra parte segue para o sistema de destilação que permite seu consumo. A necessidade de reposição diária é da ordem de 30 a 40 litros/pessoa, cerca de 30%, pois o sistema consegue reaproveitar 70%. (MASCARÓ e YOSHINAGA, 2013) É importante ressaltar que, de toda a água que necessitamos no dia à dia, somente de 10 a 20% necessita de potabilidade, o restante pode ser de qualidade inferior. Beber, lavar e preparar alimentos e a lavagem de mãos e face são hábitos que necessitam de água na sua melhor qualidade, no entanto, os demais usos requerem água menos tratada em diferentes níveis, para banho, lavagem de utensílios de cozinha e lavagem de roupa, é requerido um boa qualidade, já para descarga e limpeza geral, o nível de potabilidade pode ser ainda menor. Esta reflexão simples, é ponto chave para o questionamento do sistema tradicional de abastecimento, que fornece água na mesma qualidade para consumo e para descarga. Segundo Mascaró (2010a), uma moradia de 50m2 é capaz de captar 1mm de chuva por dia, volume suficiente para manter o reservatório cheio, uma vez que 365mm de chuva por ano é menos do que chove na 114
Habitar às margens
RADIAÇÃO SOLAR
CAPTAÇÃO DE ÁGUA DA CHUVA
EVAPORADOR RESERVATÓRIO SUPERIOR
EVAPORADOR RESERVATÓRIO SUPERIOR
RECALQUE MANUAL
1. Dados da Defesa Civil do município. Disponíveis em dcsbcsp.blogspot.com.br acessado em 06/05/2014
RESERVATÓRIO INFERIOR
RESERVATÓRIO SUPERIOR RECALQUE MANUAL
PIA OU TANQUE
Sistema fechado e semi-fechado de reuso de água. Fonte: Mascaró e Yoshinaga, 2013, p. 113. Edição própria.
RADIAÇÃO SOLAR
PIA OU TANQUE
ÁGUA POTÁVEL
RESERVATÓRIO INFERIOR
maioria das regiões do país. Assim, a implantação de sistemas localizados de abastecimento de água com reciclagem contribui na diminuição da captação de água nos mananciais e da emissão de águas servidas na rede de esgoto, além de contribuir para uma redução no orçamento mensal das famílias. Entendemos que o sistema é relativamente simples e de baixo custo, podendo ser utilizado individualmente ou por um conjunto de casas, desde que corretamente dimensionado. A implantação e a manutenção, através de educação ambiental e capacitação, pode tornar-se medida de inclusão social e geração de renda, por meio da formação de técnicos capacitados. A média pluviométrica de São Bernardo do Campo, em 2013, foi da ordem de 119,3 mm por mês1, o que supera o mínimo de 30mm mensais para se manter um reservatório local abastecido. Ou seja, é possível a captação de água das chuvas como método complementar de abastecimento de água na região de São Bernardo, principalmente se atrelado a um projeto de urbanização, como no caso da comunidade Cruzeiro do Sul. Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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Infraestrutura de tratamento de esgotos De maneira geral, a rede de coleta e tratamento de esgotos baseia-se em tubulações locais ligadas aos coletores-tronco conectados às estações de tratamento. No entanto, como vimos em capítulo anterior, apenas cerca de 30% do esgoto coletado na cidade de São Bernardo do Campo é encaminhado para a ETE ABC, devido ao cronograma da Sabesp ser descompassado da realidade urbana da RMSP. Assim, questiona-se este modelo atual, onde os dejetos chegam a viajar cerca de 30 km ou mais até chegarem às estações de tratamento, necessitando de grandes obras de infraestrutura para sua implementação. Apresentamos a seguir algumas soluções locais possívelmente compatíveis com as áreas de manancial e com a região onde se localiza a comunidade Cruzeiro do Sul, a fim de estudar alternativas plausíveis a este caso. Lagoas de Estabilização São tanques construídos para que os efluentes fiquem depositados por tempo determinado, assim, entram em contato com o oxigênio do ar e com a ação dos raios solares, que promovem a proliferação de algas microscópicas, responsáveis pela oxigenação da água, através da fotossíntese, e pela digestão do material orgânico. O oxigênio liberado pelas algas é utilizado também por bactérias aeróbicas que incorporam o gás carbônico dos efluentes. O sistema visa reduzir a DBO (demanda bioquímica de oxigênio), quanto maior a DBO, mais oxigênio é retirado da água para a degradação da matéria orgânica, tornando-a imprópria para a vida de organismos aquáticos. Desta maneira, quanto menor for a DBO das águas provenientes dos esgotos, menor será o impacto de seu retorno ao meio ambiente. As lagoas de estabilização têm conseguido ótimos resultados na redução da DBO, da ordem de 70 a 95%, valores bastante satisfatórios. Os melhores resultados têm sido obtidos através da disposição de lagoas em série e sua disposição paralela permite a manutenção do sistema sem interrupções. (MASCARÓ, 2010a) O tamanho do sistema é calculado, em média, de 3,5 a 5m2 por pessoa servida. Lagoas nestas condições levarão de 20 a 40 dias para que o processo se complete. A incorporação de plantas aquáticas ao sistema permite a diminuição da área pela metade, sem prejuízo ao tratamento. Recomenda-se a utilização de plantas com altas taxas fotossintéticas, como jacinto d’água, mururá, orelha de veado, rainha do lago, vitória régia, etc, e deve-se considerar um sistema de reaproveitamento para a coleta das espécies, como compostagem para adubo. No entanto, a lagoa não deve estar muito próxima da urbanização e deve estar situada na direção oposta dos ventos dominantes, pois os elementos vegetais levam a proliferação de mosquitos. 116
Habitar às margens
Esquema de funcionamento e implantação de uma lagoa de estabilização. Fonte: Mascaró, 2013. Montagem da autora.
CONCRETO PLANTAS AQUÁTICAS MATERIAL IMPERMEABILIZANTE
Cortes esquemáticos de uma lagoas de estabilização simples e associada a elementos vegetais. Fonte: Mascaró, 2013. Montagem da autora.
CONCRETO
MATERIAL IMPERMEABILIZANTE
Ainda que a implantação ideal de uma lagoa de estabilização seja em sitio plano, é possível situá-la em locais com maior declividade, através da divisão em lagoas estreitas e bastante compridas (até atingir a área calculada) acompanhando as curvas de nível, em cascata, o que também colabora com a oxigenação dos efluentes, acelerando a remoção da DBO. No caso da comunidade Cruzeiro do Sul, com cerca de 450 moradores, seria necessária uma área de aproximadamente 2.300m2 para uma lagoa simples e 1.150 m2 para uma lagoa associada à elementos vegetais. Devido às variações na declividade da região, poderia ser utilizado o sistema de cascata, visando adequar a estrutura às condições do terreno. A coleta dos esgotos poderia ser feita de maneira “horizontal”, seguindo paralelamente às curvas de nível, direcionando os efluentes das casas para a lagoa situada na mesma cota ou em cota inferior. Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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Wetlands Construídos Wetlands são ecossistemas naturais que ficam total ou parcialmente submersos durante o ano, como várzeas, pântanos, igapós e manguezais. Suas características principais são: . . . . .
capacidade de regularização do fluxo d’água, amortecendo pontos de enchente capacidade de modificar a qualidade da água contribui na alimentação e reprodução da fauna aquática oferece refúgio à fauna terrestre controle de erosão, evitando assoreamento de rios
Os wetlands construídos são ecossistemas artificiais que se utilizam dos princípios básicos de modificação da qualidade de água dos wetlands naturais. Diferentes técnicas podem ser utilizadas em sua construção, de acordo com o tipo de solo e com o tipo de efluente a ser tratado. De maneira geral, são canais alongados, não profundos e estreitos associados à plantas aquáticas, responsáveis pela absorção de partículas, nutrientes e metais, e os microrganismos associados às raízes promovem a oxigenação da água. (SALATI, 2006) Estes canais, associados a um sistema simples de pré-tratamento, com caixa de gordura e tanque de sedimentação, têm garantido um retorno seguro das águas servidas à natureza, atendendo os índices ambientais estipulados.
CAIXA DE TANQUE TANQUE DE GORDURA DE UNIÃO SEDIMENTAÇÃO
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Esquema de funcionamento e implantação de uma wetland construída. Fonte: Ferreira e Paulo, 2009. Montagem da autora. Habitar às margens
Antes e depois de wetland construída na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Fonte: Ferreira e Paulo, 2009, p. 6-7
2. aguasclarasdoriopinheiros.org.br
Estudos (COSTA et. al., 2003; FERREIRA e PAULO, 2009) têm demonstrado grande eficiência do sistema. Ferreira e Paulo, apontam redução média de 90% para os índices de DBO e DBQ, sendo que DBO chegou a 98%. Costa et. al, obtiveram valores de remoção média de 88,4% de DBO, 99,96% de coliformes fecais, 99,75% de colífagos somáticos e 99,86% de bacteriófagos, após sete meses de análise de um tanque que recebia as águas de um córrego poluído por esgotos domésticos. O dimensionamento de uma wetland construída ainda é baseado em experimentos e aplicações em outros países, sendo da ordem de 0,5 a 3 m2 por pessoa (BEGOSSO, 2009). A manutenção do sistema concentra-se principalmente na fase do pré-tratamento, através da simples limpeza da caixa de gordura, do tanque de união e de sedimentação, onde resíduos mais grosseiros ficam retidos, garantindo melhor desempenho à wetland. Uma iniciativa recente chamada Águas Claras do Rio Pinheiros2 está implantando o que denominam de “alagados construídos” no córrego Ponte Baixa e no canal da represa Guarapiranga, localzados respectivamente nos distritos de Jardim São Luís e do Socorro, zona sul da cidade de São Paulo, para contribuir no tratamento dos efluentes despejados neste rio. Para a comunidade Cruzeiro do Sul seriam necessários cerca de 850 m2 para atender todas as famílias. Similar à lagoa de estabilização, a estrutura poderia se situar de acordo com a declividade do terreno e a coleta dos esgotos seria feita de maneira “horizontal”, direcionando os efluentes das casas para a wetland situada na mesma cota ou em cota inferior. O sistema de pré tratamento seria parte individual (caixa de gordura e tanque de união) e parte coletivo (tanque de sedimentação) abrangendo um grupo de casas de uma mesma rua, por exemplo, e em seguida direcionados à wetland. Sistema similar já foi implantado na cidade de São Bernardo, no Bairro Ecológico Pinheirinho uma ETE local foi construída, e utilizava-se de um sistema de biodecomposição para o tratamento dos efluentes, no entanto, a Sabesp, que assumiu a administração dos serviços de saneamento no município em 2003, manteve a ETE funcionando por certo tempo, mas logo a desativou (FERRARA, 2013, p. 220). Acreditamos que o desestimulo ao tratamento local dos efluentes em muito está relacionado com a importância financeira que o sistema centralizado tem para a concessionária e para as empreiteiras que realizam estas grandes obras, em detrimento de soluções que busquem uma real contribuição à melhora na qualidade das águas. Infraestrutura de drenagem
ETE local no Jardim Pinheirinho. Foto: Luciana Ferrara, 2005.
A infraestrutura convencional de drenagem das águas pluviais é baseada em ruas pavimentadas, equipadas com guias, sarjetas e bocas de lobo, que encaminham as águas às galerias e tubulações conectados aos cursos d’água. A adoção deste sistema, associada à impermeabilização do solo devido à urbanização, são responDiretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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sáveis pelo aumento na velocidade e no volume de água que chega aos rios, que muitas vezes não são capazes de fazer o escoamento de toda a água, causando enchentes e inundações. A impermeabilização também é vilã, na medida em que a diminuição do volume de água infiltrada no solo, afeta a manutenção dos lençóis freáticos. A drenagem urbana, portanto, deve ser encarada como um conjunto de medidas, estruturais e não estruturais, a fim de preservar as condições hidrológicas da bacia. Além de um sistema bem dimensionado e com manutenção periódica, deve-se atentar para o controle e a fiscalização do uso e ocupação do solo, gestão dos resíduos sólidos e medidas mitigadoras da poluição pontual e difusa.
TIPO DE URBANIZAÇÃO Edificação muito densa, áreas urbanas centrais com pátios e calçadas Edificação medianamente densa, normalmente partes adjascentes ao centro, com jardins privados e ruas calçadas e arborizadas
2 a 10% 10% a 30%
Edificação pouco densa, com recuos de jardim, jardins interiores, ruas pavimentadas e calçadas parcialmente gramadas
20 a 50%
Edificação de baixa densodade, tipo cidade jardim, grandes áreas gramadas, calçadas predominantemente gramadas e ruas pavimentadas
40 a 70%
Subúrbios com edificação esparsa, lotes baldios, ruas sem pavimentação e praças com arborização
Parques, campos de esporte, reservas florestais urbanas
50 a 80% 70 a 98%
POLUENTE
ORIGEM
IMPACTOS
Nitrogênio e fósforo
Sistemas sépticos inadequados, desmatamento, fertilizantes
Reduz o OD (oxigênio dissolvido), crescimento excessivo de algas, degradação da água para consumo
Sedimentos
Obras de construção, áreas desmatadas, processos erosivos
Aumento da turbidez, redução do OD, degradação da vida aquática
Organismos patogênicos
Lançamento de efluentes domésticos, sistemas sépticos inadequados
Riscos à saúde humana pelo consumo, inviabilidade para uso recreacional
Metais pesados: chumbo, cádmio, zinco, mercúrio, alumínio, entre outros
Processos industriais, resíduos Toxicidade da água e do sedimento, de óleo motor, mineração, acumulação na atividade biológica e na cadeia alimentar queima de combustíveis
Herbicidas, fungicidas, Pesticidas, produtos inseticidas, processos sintéticos industriais, lacagem de solos contaminados 120
TAXA DE INFILTRAÇÃO
Toxicidade da água e do sedimento, acumulação na atividade biológica e na cadeia alimentar Habitar às margens
Taxa de infiltração das águas pluviais para diferentes tipos de ocupação, solo e pavimentação urbana. Fonte: Mascaró e Yoshinaga, 2013, p.95
Tabela com os principais poluentes urbanos, suas fontes e impactos produzidos. Fonte: Righetto, 2009, p. 28
As áreas de manancial, nesse sentido, recebem atenção especial pois concentram grande quantidade de nascentes, e necessitam de um ciclo hidrológico preservado para que possam continuar a produzir água. É premissa na legislação vigente que as urbanizações atendam a padrões específicos visando a minimização dos impactos da urbanização no meio ambiente. Para tanto, buscamos estudar diferentes técnicas compensatórias possíveis para a urbanização da comunidade Cruzeiro do Sul. A implantação de sistemas compensatórios de drenagem deve ter como base a sub-bacia em que irão se localizar, qual era ou é o sistema natural de drenagem e quais as interferências sofridas no local. A partir destas informações pode-se traçar um conjunto de ações físicas, de infraestrutura, e não estruturais, como leis, processos administrativos e de gestão, fiscalização, educação ambiental, etc. Righetto (2009, p. 155) fez a seguinte classificação das técnicas compensatórias:
TÉCNICAS COMPENSATÓRIAS NÃO ESTRUTURAIS
TÉCNICAS COMPENSATÓRIAS ESTRUTURAIS CONTROLE CENTRALIZADO
regulação do uso do solo
CONTROLE NA FONTE
criação de áreas verdes recuperação de matas ciliares desconexão de áreas impermeáveis uso de revestimentos de elevada rugosidade em vias e canais manejo de fertilizantes, pesticidas e detergentes Fonte: Righetto, 2009. Montagem da autora.
ESTRUTURAS
LOCALIZADO
LINEAR
bacias de detenção ou retenção
telhado verde
trincheira de infiltração
bacias de infiltração
microrreservatório
vala de detenção
bacias de detenção e infiltração
poço de infiltração
pavimento reservatório
áreas úmidas artificiais
plano de infiltração
pavimento permeável
Ainda segundo Righetto, as principais condicionantes para a escolha dos dispositivos à serem implantados são: disponibilidade de espaços físicos; a relação entre o dispositivo e os tipos de poluentes predominantes na região; o comportamento dos lençóis freáticos; o perfil do solo quanto à capacidade de infiltração; e a avaliação dos custos de implantação e manutenção. Desta maneira, selecionamos algumas soluções que melhor se adéquam ao caso estudado. Das técnicas não estruturais elencadas, destacamos o potencial que a recuperação da mata ciliar e a criação de áreas verdes pode ter na região, que é carente de espaços livres qualificados, como parques e praças, Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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além de equipamentos de lazer e cultura. A associação entre estes dois fatores pode ser de grande contribuição para a drenagem local, bem como para a melhoria da inserção urbana destes assentamentos. Dentre as técnicas compensatórias estruturais, e para o caso mais específico da comunidade Cruzeiro do Sul, as soluções de controle na fonte podem ser aproveitadas na medida em que existe carência total de infraestrutra, portanto, urbanização ou reassentamento, existe a possibilidade, assim como para as demais redes de infraestrutura apresentadas, de se implementar um sistema diferenciado, a fim de buscar melhor desempenho para a área de mananciais e para a comunidade em si. Apresentamos mais detalhadamente as seguintes. Telhados Verdes A proposta apresentada anteriormente de captação das águas da chuva para abastecimento pode ser complementada pela implantação dos telhados verdes. O sistema funciona através da adequada impermeabilização da cobertura, seja ela, telhado ou laje, seguida de isolamento térmico, proteção mecânica e camadas de drenagem e filtragem, além do substrato e da vegetação. Deve-se atentar também para que a estrutura da edificação suporte a carga extra de água acumulada, além do sistema como um todo. De maneira geral, as vantagens de um telhado verde são, a melhora do conforto térmico da unidade, contribuição para a melhora do microclima da região e a diminuição do volume de água encaminhado ao sistema de drenagem. Segundo Cunha e Mendiondo (2004), um telhado verde leve com cerca de 15cm de espessura de solo é capaz de retardar o escoamento da precipitação pluvial em cerca de 14mm, no momento de pico. Os autores VEGETAÇÃO
ESTRUTURA DO TELHADO 122
SUBSTRATO
CAMADA IMPERMEÁVEL
PROTEÇÃO MECANICA
Corte esquemático de um telhado verde. Sem escala. Fonte: Cunha e Mediondo, 2004. Montagem da autora.
DRENO
Habitar às margens
também concluem que os custos tradicionais do telhado de barro sobre laje comparado ao do telhado verde é cerca de 10% maior. A escolha da vegetação segue de acordo com o porte de telhado verde que se propõe, na medida em que mais ou menos substrato é necessário, além das condições de insolação que as espécies terão. As coberturas leves (sistema extensivo) e o clima tropical têm sido favoráveis ao cultivo de onze-horas, coração roxo, margaridão, jasmim amarelo, magnólia, azaléia, amor-perfeito, begônia, além das comestíveis cebolinha e louro, estas, caracterizam-se pela resistência à seca, às variações pluviométricas e aos solos com menos de 20 cm de espessura, demandando pouca manutenção. As coberturas intensivas, com substrato maior que 20 cm, demandam espécies que consomem mais água, e conseqüentemente mais manutenção, no entanto, o porte da cobertura acaba não sendo adequado às condições aqui estudadas. O sistema poderia, então, ser implantado tanto em casas já construídas, através da adequação de suas coberturas, quanto em novas unidades a serem produzidas. Trincheira de infiltração Este dispositivo atua na compensação dos efeitos da impermeabilização do solo. A vala escavada é preenchida com pedra britada e a água fica retida sem correr o risco de transbordar, pois um dreno faz conexão com a rede de drenagem, desta maneira, atenua o pico de cheia, reduz o volume escoado à rede e permite infiltração da água no solo. As camadas, com diferentes graus de granulação, funcionam como um filtro, retendo parte da poluição difusa. Quando associadas à espécies vegetais, sendo chamadas de trincheiras de biorretenção, a qualidade da água infiltrada pode aumentar consideravelmente, pois a vegetação possui a capacidade de remover sólidos em suspensão, coliformes, metais em solução e nutrientes. A implantação da trincheira fica condicionada à capacidade de infiltração do solo e à posição do lençol freático, que não deve estar muito próximo da superfície. Quando em vias inclinadas, monta-se um sistema em cascata de valas, de modo a controlar a velocidade da água que escoa pelos drenos e manter a capacidade de retenção. A manutenção e longevidade do sistema ainda é pouco conhecida no país, uma vez que é raramente utilizado, estudos realizados em cidades americanas que aplicam a técnica, constataram que 50% das trincheiras falharam parcial ou totalmente num período de 5 anos. Acredita-se que a manutenção necessite de aperfeiçoamento e que estudos possam levar a um avanço do sistema e dos materiais componentes (JÚNIOR, 2013). Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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Ainda que um tanto incerta, o fomento à utilização de técnicas alternativas é o passo inicial à concretização e evolução das mesmas. Os benefícios sociais e econômicos advindos de sua implantação são peso importante na balança, principalmente no caso das áreas dos mananciais. Resgatando a implantação dos Bairros Ecológicos em São Bernardo, calçadas permeáveis com jardins foram adotadas a fim de aumentar a permeabilidade do solo, a alteração destes jardins para trincheiras poderia ser uma alternativa viável de implantação, além de aumentar o volume absorvido em relação a um simples jardim.
Bairro ecológico Senhor do Bonfim. Fonte: www.bonfim.org
MATERIAL GRANULAR FILTRO DE AREIA
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INFILTRAÇÃO
DRENO
Corte transversal esquemático de uma trincheira de infiltração. Sem escala. Fonte: Júnior, 2013. Montagem da autora. Habitar às margens
GALERIA DE ÁGUAS PLUVIAIS Corte longitudinal esquemático de uma trincheira de infiltração ao longo de uma via. Sem escala. Fonte: Júnior, 2013. Montagem da autora.
Pavimento permeável reservatório Assim como as trincheiras, os pavimentos permeáveis reservatórios buscam atenuar os efeitos da impermeabilização, visto que a pavimentação de vias, calçadas e estacionamentos são os principais fatores de impermeabilização do solo, juntamente com as edificações. Existem materiais permeáveis disponíveis para pavimentação de áreas calçadas e também para a circulação de veículos. Para áreas calçadas e estacionamentos, existem blocos capazes de manter uma área impermeabilizada de até 50%, ou seja, numa área de 100m2 de estacionamento, por exemplo, 50m2 mantêm-se passíveis de infiltração. Existem diferentes tipos de pavimentos veiculares permeáveis, os mais comuns são aqueles similares à paralelepípedos ou pedras, que, dependendo da via a se pavimentar, ocasionam demasiada trepidação e desconforto ao motorista, principalmente em vias de maior velocidade. A manutenção e a durabilidade destes materiais é baixa, bem como sua permeabilidade às águas pluviais. (MASCARÓ e YOSHINAGA, 2013) Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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No entanto, já existem materiais disponíveis no mercado que oferecem maior capacidade de infiltração e melhor desempenho como pavimento. Concreto e asfalto poroso, além de permitirem a infiltração, contribuem para a redução da distância de frenagem e redução da lamina d’água. Compõem a camada mais superficial da pavimentação, seguidos de uma camada de transição e uma base de brita, que possui porosidade de 30% a 35%. Martins (2012) demonstra que em alguns estudos realizados, a eficiência do sistema foi da ordem de 66%, ou seja, um escoamento de 30mm é reduzido para 13mm. Os pavimentos permeáveis dotados de reservatório, são capazes de armazenar água nos interstícios de suas camadas e lentamente encaminhá-las à rede de drenagem, retardando o escoamento, no entanto, não permitem a infiltração da água no solo, pois afetaria a funcionalidade do próprio pavimento.
DRENO
Pavimento permeável reservatório. Corte esquemático transversal. Sem escala. Fonte: Martins,2012. Montagem da autora.
GALERIA DE DRENAGEM PLUVIAL
Sua manutenção acaba por ser um ponto desfavorável, pois é bastante específica, na medida em que os materiais finos oriundos da poluição difusa podem obstruir os poros, reduzindo sua eficiência. A inclinação das vias também pode ser fator de inviabilização, uma vez que vias com declividade superior a 6% requerem aumento no volume de brita utilizado, tornando o sistema economicamente inviável (MARTINS, 2012). No entanto, ressaltamos a possibilidade de implantação deste sistema em ruas menos inclinadas, que, associada a outras técnicas compensatórias, compõem um sistema alternativo de drenagem urbana. Resgatamos a adoção de sistema similar pela própria prefeitura de São Bernardo do Campo, que já há 126
Asfalto poroso CPA e bloco de concreto poroso. Fonte: Martins, 2012
Habitar às margens
alguns anos vem utilizando pavimentação permeável em alguns bairros da cidade. Ao agregar a função de reservatório nas vias com inclinação favorável, haveria maior redução na velocidade do escoamento das águas para a rede de drenagem. Bacias de estocagem
Pavimento permeável implantado nos Bairros Ecológicos. Fonte: Prefeitura de São Bernardo do Campo
Bacia de estocagem de águas pluviais. Fonte: Mascaró, 2005, p. 172
Estas soluções de maior porte, agem no sentido de conter ou atenuar o grande volume de água que chega aos cursos d’água nos períodos de chuva. Segundo Righetto (2009), se as técnicas localizadas forem aplicadas e bem implantadas, as soluções concentradas não seriam necessárias. No entanto, como a aplicação das soluções localizadas nem sempre é possível em bairros consolidados, como é o caso dos Alvarenga, analisamos a possibilidade de implantação de um tipo de bacia de estocagem. Estas podem ser de retenção, detenção e infiltração, além de combinações entre elas. As bacias de detenção já têm sido aplicadas em algumas cidades brasileiras, como São Paulo, são os chamados piscinões, que armazenam o volume excedente de água e devolvem-no à rede lentamente, ficando secas quando não há chuva. Não há processo de tratamento ou infiltração das águas, a função é simplesmente retardar seu escoamento. As bacias de retenção caracterizam-se por armazenar o volume excedente, no entanto, uma lamina d’água permanece mesmo sem chuva, esta solução é normalmente utilizada associada a parques ou áreas verdes, configurando-se como elemento aquático no paisagismo. As bacias de infiltração normalmente são uma variação das duas anteriores, com a característica de permitir que a água penetre no solo. “Revestidas com vegetação, podem ter maior eficiência na remoção de poluentes. Seu uso permite absorver os impactos da urbanização, aumentando as condições de armazenamento e de infiltração da água na bacia.” (Righetto, 2009, p. 42). Ainda que sejam importantes para evitar inundações, no caso da área dos mananciais, o ideal seria a adoção de bacias com infiltração, de maneira a reabastecer o aqüífero subterrâneo. As soluções impermeáveis, aumentam a impermeabilização do solo, caracterizando-se como medida paliativa ou emergencial. A associação de bacias de estocagem à equipamentos públicos de lazer é potencial a ser apropriado no bairro dos Alvarenga, que, como citado anteriormente, carece de equipamentos de lazer e áreas verdes qualificadas e possui áreas livres de maiores dimensões próximas à represa e à cursos d’água, oferecendo condições ideais à implantação destas soluções. As soluções alternativas às infraestruturas sanitárias convencionais apresentadas visam a minimização do impacto da urbanização nas águas da represa e no funcionamento hidrológico da bacia como um todo, Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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ainda que a aplicação de todas elas num mesmo setor pareça complicado, a participação e sensibilização da população local aliada à educação ambiental e à medidas de inclusão social, podem ser trunfos que garantam êxito às intervenções. Para tanto, propomos a criação de equipamento público que concentre funções educacional, cultural e de lazer, que possa oferecer cursos técnicos e científicos para jovens e adultos a fim de fornecer capacitação profissional, inclusão social e econômica, manutenção das técnicas implantadas, fomento ao desenvolvimento de novas alternativas e aprimoramento das existentes, além da manutenção da cultura de preservação e valorização da água como recurso natural. 128
Habitar às margens
Corte esquemático de uma bacia de estocagem associada à equipamento público em dia seco e em dia com forte chuva. Sem escala. Elaboração da autora.
Unidade Habitacional Analisando a questão da unidade habitacional dentro do contexto de uma urbanização, três são as principais abordagens, consolidação de edificações existentes, consolidação com execução de melhoria habitacional e provisão de novas unidades às famílias removidas. Trataremos separadamente de maneira a melhor compreender as dificuldades e os entraves que recaem sobre cada. UHs consolidadas As unidades habitacionais a serem consolidadas devem prover a mesma qualidade que novas unidades oferecem, com infraestrutura e qualidade arquitetônica, além de regularização fundiária, portanto, devem passar por especifica análise e diagnóstico a fim de se verificar as intervenções pontuais necessárias à garantir segurança estrutural, salubridade e conforto. A implantação de um programa de melhoria habitacional é fundamental para prevenir a consolidação da precariedade, pois, ainda que instaladas as infraestruturas sanitárias no assentamento e eliminadas as situações de risco, muitas moradias, devido a autoconstrução e ao adensamento dos assentamentos, muitas vezes encontram-se em situação precária, ainda que não apresentem alto grau de risco ou insalubridade. Barrio (2013) desenvolve a questão de maneira mais aprofundada e elabora metodologia de trabalho para o desenvolvimento de projetos de melhoria habitacional, propõe articulação próxima entre arquiteto e cliente, além de abordar o potencial pedagógico deste envolvimento e do processo de projeto e construção. A autora questiona ainda a recente implantação de obras de infraestrutura na região dos Alvarenga descolada de uma política de melhoria habitacional, ainda que vivamos momento econômico favorável, com governo federal e prefeituras dispondo de recursos para a execução de intervenções adequadas. A deficiência em programas de melhoria habitacional e a consolidação da precariedade não é exclusividade das áreas de manancial. Apesar da existência da já citada lei de assessoria técnica, pouco tem sido implementado. No caso do baixo Alvarenga e da comunidade Cruzeiro do Sul, a implantação desta política abre a possibilidade para execução de técnicas compensatórias dentro dos lotes, permitindo uma maior redução no impacto da urbanização sobre o manancial, além da melhoria na qualidade de vida da população local.
Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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Novas UHs Assegurado que tenham sido esgotadas as alternativas à remoção das famílias e devidamente identificadas aquelas que encontram-se em situação de risco, contaminação, extrema precariedade habitacional, ou ainda, em locais necessários a abertura de vias ou espaços, serviços e equipamentos públicos, inicia-se o processo de provisão de novas moradias às famílias afetadas. Além de levar em consideração este conjunto de diretrizes que aqui se propõe para as demais escalas de intervenção, reflexões foram feitas acerca da unidade de habitação que se propõe às famílias. Premissas arquitetônicas básicas consideram conforto ambiental, dimensionamento adequado, flexibilidade e arranjos que atendam a perfis e composições diferenciadas de famílias e grupos sociais, como elementos essenciais a um bom desenho arquitetônico. O conforto ambiental da unidade refere-se à priorização do aproveitamento dos ventos dominantes e da iluminação natural, além de desempenho acústico adequado. A disposição dos cômodos e das aberturas (janelas e portas) associados aos materiais utilizados na construção devem oferecer condições climáticas agradáveis nas diferentes estações do ano e adequadas às regiões bioclimáticas em que se inserem. Estes fatores, além de configurar ambiente agradável, promovem a salubridade, pela incidência da radiação solar e da renovação do ar, e a eficiência energética, através da diminuição da utilização de aparelhos elétricos como ventiladores e ar-condicionado e da iluminação artificial. A flexibilidade da unidade habitacional refere-se às possibilidades de alteração interna às unidades, de maneira que a evolução pessoal e familiar possa ser atendida pela habitação. Os filhos crescem, os pais envelhecem e a unidade habitacional será melhor aproveitada se puder comportar as alterações do ciclo de vida humano. A indicação técnica seria a utilização de alvenarias mais leves nas divisórias internas, possibilitando a reconfiguração dos cômodos. Flexibilidade também pode se dar na configuração de cada ambiente. Cômodos extremamente reduzidos, que não permitam ao morador a troca de posição ou a aquisição de um móvel maior, cria um ambiente engessado às mudanças familiares e aos anseios pessoais. 130
Habitar às margens
Representação esquemática de ventilação cruzada, proteção contra raios solares e apriveitamento da iluminação natural. Elaboração da autora.
Planta esquemática de unidade com possibilidade de diferentes configurações, exeto pelas áreas molhadas, organizadas em torno de uma “parede hidráulica”. Elaboração da autora. ESC | 1:75
Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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O dimensionamento adequado das unidades, além de permitir diferentes configurações de mobiliário, deve prever a utilização dos mesmos para outras funções, como estudo e trabalho. É importante considerar a freqüência de uso e o tempo de permanência nos ambientes, otimizar espaços de circulação e ponderar a utilização de um mesmo ambiente por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Ainda que as normas estabeleçam padrões mínimos, a aplicação dos números ao pé da letra pode gerar espaços insuficientes ao uso cotidiano e às relações pessoais que se estabelecem no ambiente doméstico. A discussão sobre padrões mínimos para as unidades habitacionais remonta ao início do século XX, com o movimento moderno, os CIAMs, a Carta de Atenas e os estudos desenvolvidos por arquitetos como Le Corbusier. Ao nosso tempo, apresentamos a discussão feita por Mascaró (2010b), que baseando-se nos custos atrelados aos componentes estruturais, instalações prediais, elementos verticais e horizontais da unidade habitacional, verifica que um aumento de 10% na área de um cômodo hipotético, acarreta uma elevação de cerca de 5,73% nos custos de construção. Concluindo que os fatores que mais influenciam nos custos são independentes do dimensionamento horizontal da unidade, concentrando-se na estrutura, fundação e instalações. Portanto, a redução das áreas das habitações, principalmente as de interesse social, justificadas pela necessidade de redução nos custos, torna-se uma espécie de desculpa com pouco fundamento. E ainda que haja incremento significativo no custo da provisão de uma unidade habitacional de qualidade, estes custos acabam sendo diluídos na medida em que haverá menos manutenção, menos adaptações improvisadas por parte dos 132
Habitar às margens
Planta esquemática de um mesmo cômodo que oferece dimensões para diferentes configurações de layout. Elaboração da autora. ESC | 1:50
moradores e mais longevidade da construção em si. Mais além, a extrema padronização das unidades desconsidera as diversidades familiar e social. A fim de evitar o conflito da distribuição de unidades maiores ou menores a uns ou a outros, opta-se pela construção de unidades iguais, e as famílias arcam com o processo de adaptação, muitas vezes impossibilitado, o que leva à troca da nova unidade por outra, muitas vezes nas condições precárias que a família se encontrava anteriormente. As diversas configurações familiares implicam na necessidade de diferentes configurações de unidades, com 1, 2, 3 quartos, ou ainda com área para trabalho, por exemplo, e este se caracteriza um momento importante de discussão e debate entre os moradores, que, devem ser os condutores na definição das regras e parâmetros que justifiquem a distribuição das diferentes unidades.
Diferentes configurações familiares. Elaboração da autora.
Vale ressaltar, também, uma questão de caráter mais estrutural inerente à esta discussão. É característico às sociedades desiguais que a mídia e a propaganda concentrem-se nos produtos e padrões oferecidos às classes de mais alta renda, despertando no consumidor uma busca constante por melhores aparelhos eletrônicos, marcas importadas ou de grife, etc. Com o “produto habitação” não acontece diferente. Ainda que as necessidades locais e familiares sejam modestas, é inegável o fato de que sempre almejamos uma moradia cada vez maior, com mais itens de conforto, lazer e luxo, desejos impregnados à sociedade consumista. No entanto, abrimos a discussão para uma avaliação arquitetônica sobre o que é produzido pela cidade formal e quanto dela devemos buscar aplicar à urbanização da cidade informal. Ainda que salubres e confortáveis, mostram-se insustentáveis do ponto de vista ambiental e urbano; número elevado de quartos, vagas de garagem, banheiros, agravam as situações de alta impermeabilização do solo, indiscriminada utilização do automóvel e consumo desproporcional de água, por exemplo. Destacamos também o intenso marketing enaltecendo a casa isolada no lote, os condomínios clube, a segurança atrás dos muros e cercas, enfim, uma série de elementos característicos das construções de classe mais alta, que comprometem a qualidade urbana e ambiental da cidade, mas que torna-se produto almejado também pelas classes menos favorecidas. Acreditamos que a questão mereça maior espaço de discussão, no entanto, se faz presente na proposDiretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
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ta desenvolvida, uma vez que a participação da população nas definições dos anseios e diretrizes para a urbanização requer cuidado e esclarecimento acerca destes paradigmas. *** Relativamente à produção de novas moradias, buscamos ainda elencar algumas medidas adequadas às obras que venham a ocorrer nas áreas de manancial. No entanto, ressaltamos que em um contexto de obras de urbanização, ainda que as medidas aqui elencadas possam ser levadas em consideração, o cenário de atuação é diverso e bastante específico, requerendo diretrizes e medidas específicas a cada obra que se pretenda executar, por exemplo, pavimentação de vias, implantação de iluminação pública ou de galerias de infraestrutura sanitária, para as quais, tanto a escolha de materiais quanto a montagem e gestão do canteiro de obras, difere do contexto de produção de novas unidades. Desta maneira, ressaltamos que as diretrizes para materiais e sistemas construtivos, além das relativas ao canteiro de obras, aqui propostas estão mais direcionadas à produção habitacional. Materiais e Sistemas construtivos A escolha de materiais e sistemas construtivos na construção civil brasileira está diretamente relacionada com os custos. Ferreira (2012) aponta a utilização indiscriminada de determinados sistemas à revelia de questões como especificidade climática da região, impacto ambiental e novas tecnologias. O déficit habitacional e o impulso econômico vivido pelo setor imobiliário na última década, acrescido do aporte de recursos federais, levou a uma produção em massa de unidades habitacionais, movimentando o mercado da construção e de suas matérias-primas em todo o país, no entanto, materiais e tradições locais não têm sido considerados nessa produção. O domínio das grandes construtoras e incorporadoras sobre a produção nacional, induziu à produção descaracterizada, uma vez que a padronização do projeto e a aquisição dos insumos em larga escala são fatores de redução de custo. Por exemplo, é possível que saia mais barato construir em alvenaria num local produtor de madeira, mesmo que o transporte e a logística sejam complicados, pois o custo final valida a opção. Ainda que o sistema convencional de construção ofereça durabilidade, baixa manutenção, grande oferta de insumos e alta produtividade, a regionalização da produção é importante na medida em que contribui para a diminuição do longo transporte rodoviário, a diversificação da produção nacional e a uma melhor adaptação às condições locais. 134
Habitar às margens
Padronização da construção e utilização de materiais convencionais. Fonte: Ferreira, 2012, p. 90. Fotos: Beatriz Tone, 2008.
Segundo Mateus (2004), a escolha dos materiais deve obedecer a diferentes critérios específicos, como:
Energia incorporada: ter em conta o custo energético relacionado à energia utilizada nos processos de extração, transformação, aplicação e descarte ou reutilização Água incorporada: observar a quantidade de água necessária aos processos de extração, transformação, aplicação e descarte ou reutilização Impacto ecológico incorporado: atentar para o impacto no meio ambiente como consequência da extração, transformação, aplicação e descarte ou reutilização Observar o potencial de reutilização e reciclagem do material
Verificar a toxicidade do material para os seres humanos e ecossistemas
Fonte: Mateus, 2004. Montagem da autora.
$
Ter em conta os custos econômicos associados ao ciclo de vida, como custo inicial, custo de manutenção e custo de demolição ou reaproveitamento
Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
135
A adoção de materiais que atendam de maneira eficiente a estas questões, contribui para a execução de uma obra mais sustentável, tanto pelo produto produzido, quanto pela redução no impacto da produção em si. A diminuição na distância percorrida pelos materiais até o canteiro, além da possível diminuição no número de veículos de transporte é importante para uma área ambientalmente frágil como a dos mananciais. O investimento em novas tecnologias é iminente e a questão é urgente tanto pela escassez de recursos, quanto pela redução nos impactos decorrentes de sua utilização. A reversão deste quadro pode iniciar por meio da substituição de materiais com alta carga energética e ambiental incorporadas e da otimização dos sistemas construtivos com vistas a obras menos poluidoras em todo seu ciclo. Canteiro de obras
Habitar às margens
CONSUMO DE ÁGUA litros/kg
AÇO NÃO RECICLADO
3.400
ALUMÍNIO (50% reciclado)
29.000
ARGAMASSA DE CIMENTO
170
ARGILA (telhas cerâmicas)
640
ARGILA (tijolo cerâmico)
520
CONCRETO
170
BLOCO DE CONCRETO
190
COBRE NÃO RECICLADO
A gestão do canteiro de obras tem ganhado prioridade no setor da construção civil. O aumento no gerenciamento dos materiais e da execução visa a economia de recursos, tempo e dinheiro. No entanto, as questões relativas ao impacto da obra no meio ambiente acabam perdendo espaço no cenário da contenção de custos. A adequada gestão do canteiro, além da redução de custos, deve visar a redução no consumo de energia, água, materiais e na produção de resíduos, aumento da reutilização e reciclagem de materiais, além da adequada disposição dos resíduos gerados. Os resíduos de construção civil representam um significativo percentual dos resíduos sólidos produzidos em áreas urbanas. A rápida urbanização e o adensamento das cidades de médio e grande porte têm gerado dificuldades para a destinação do grande volume de resíduos gerados em atividades de construção, renovação e demolição de edificações e infraestrutura urbanas (PINTO apud. ARAÚJO, 2009). Apesar da geração de resíduos em um canteiro de obras ser inevitável, a Resolução Conama 307/02, legislação especifica para os resíduos da construção civil, preconiza, em primeiro lugar a não geração e, secundariamente, a redução, reutilização, reciclagem e cuidados na destinação final. A quantidade de resíduos sólidos urbanos gerada é, em média, de 150kg/m2 construído, sendo que os resíduos da construção constituem de 41% a 70% da massa destes resíduos, ou seja, em muitos municípios mais da metade dos resíduos gerados por toda a cidade são resíduos da construção civil (GEHLEN, 2008). Segundo a Associação Brasileira para Reciclagem de Resíduos da Construção Civil e Demolição (ABRECON), os resíduos recicláveis para a produção de agregados são os compostos de cimento, cal, areia e brita como concreto e argamassa e os materiais cerâmicos como telhas, manilhas, tijolos, azulejos. Outro grupo de materiais não são aproveitados na produção de agregados, mas podem ser reciclados com outras finalidades, são estes: solo, metal, madeira, papel, plástico, vidro e isopor. 136
MATERIAL
GESSO LÃ DE ROCHA
15.900 240 1.360
MADEIRA LAMINADA
390
VIDRO
680
Quantidade de água utilizada na produção de alguns dos principais insumos da construção civil. Fonte: Mateus, 2004, p. 71
Araújo (2009) desenvolve importante rol de diretrizes a serem adotadas para a implantação de canteiros mais sustentáveis, dentre estas, destacamos as seguintes.
GESTÃO DE RECURSOS
CONSUMO DE ÁGUA E ENERGIA
desenvolver projeto de formas visando
emprego de dispositivos economiza-
seu reaproveitamento;
dores, como bacias sanitárias de 6L;
planejamento do transporte interno dos
utilização de fontes alternativas de água;
materiais minimizando perdas;
manutenção dos equipamentos;
manutenção dos equipamentos;
conscientização
orientação e treinamento aos funcionári-
funcionários;
e
orientação
dos
os sobre gestão de recursos; IMPACTOS SOCIAIS E ECONÔMICOS apoio ao desenvolvimento e capacitação de
funcionários,
subcontratados
e
fornecedores; apoio ao desenvolvimento local através da interação com ONGs ou escolas; apoio ao desenvolvimento de valoração local de resíduos da construção civil;
RESÍDUOS
DE
CONSTRUÇÃO
E
DEMOLIÇÃO resolução Conama 307/02; adoção de indicadores de manejo de resíduos:caracterização, triagem, movimentação
e
acondicionamento
de
resíduos e limpeza da obra; emprego de resíduos na própria obra; realização de demolição seletiva direcionada para materiais de maior valor econômico
Fonte: Araujo, 2009. Montagem da autora.
e
para
subcadeias
de
aproveitamento; Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
137
Existem ainda, materiais não recicláveis como gesso e espumas e os resíduos perigosos, como tintas, solventes e óleos. Estes, devem possuir local de armazenagem temporária nos canteiros, ao abrigo da chuva e de fácil acesso para retirada do material e sua correta destinação. Para a área de proteção aos mananciais a gestão correta de resíduos sólidos é imprescindível. A incorreta destinação destes materiais acaba direcionando-os às galerias de esgoto e drenagem e às margens de rios, córregos e da represa, comprometendo o funcionamento das infraestruturas e a qualidade das águas. Manutenção e Pós-Ocupação Principio fundamental para manutenção e controle urbano nas áreas urbanizadas é a organização e participação social. Somente por meio do real envolvimento dos moradores e de sua apropriação pelo espaço em que habitam é possível garantir sustentabilidade e continuidade às intervenções realizadas. O fomento à organização comunitária autônoma em relação ao Estado e ao mercado, permite aos indivíduos exercer seus direitos de informação e opinião, questionando as decisões políticas do Estado, oferecendo alternativas para novas decisões e parâmetros de atuação compatíveis com os interesses do conjunto da sociedade (TEIXEIRA, 1997). Mais além, permite o desenvolvimento da intersubjetividade e o intercâmbio argumentativo entre os cidadãos para formação de opinião e definição da vontade coletiva (ECHAVARRÍA, 2005). A partir dessas premissas, a atuação da equipe de trabalho social tem papel estratégico, na medida em que, além de fomentar a organização independente, faz a mediação com o poder público e com os mecanismos de efetivação da participação. A atuação da população organizada é imprescindível em todas as etapas do processo de urbanização e para além deles, a existência de um grupo popular articulado em torno dos problemas coletivamente identificados legitima ações públicas de fiscalização e controle, além de, potencialmente, torná-las menos necessárias. No entanto, todos os ambientes urbanos estão sujeitos à transformações e intervenções espontâneas, cabe ao poder público incorporar esta premissa e compor quadro técnico que às acompanhe e supervisione. No caso de urbanização de favelas, o acompanhamento pós-obras é essencial, pois a grande transformação ocorrida no território e nas condições de vida podem suscitar imprevistos físicos e sociais. A periódica avaliação dos serviços e equipamentos implantados, associados à sua manutenção são imprescindíveis para garantir a continuidade dos ganhos e evitar o retorno de condições de precariedade e vulnerabilidade. É importante a criação de mecanismos de informação e apoio aos moradores para a manutenção, utilização e transformações que necessitem realizar em suas moradias e no bairro de modo geral. Exemplo desta 138
Habitar às margens
prática são os POUSO (Posto de Orientação Urbanista e Social) implantados pelo Programa Favela Bairro no Rio de Janeiro, fornecem regras, diretrizes e orientação técnica para as construções nas favelas urbanizadas, buscando prevenir e fiscalizar novas construções. Além da manutenção física dos elementos implantados (infraestrutura, espaços e equipamentos públicos, unidades habitacionais, etc) é fundamental a criação de rotinas de fiscalização e controle urbano, visando coibir a degradação do ambiente urbanizado por mau uso, depredação ou ocupações irregulares, no entanto, vale reforçar que estas ações devem ser respaldadas pelo apoio da população local, por meio de seu envolvimento no processo de elaboração e manutenção, ficando claro para ambas as partes que o objetivo é a manutenção da qualidade de vida e do bem-estar social conquistados (ABIKO e COELHO, 2009). Diferentes metodologias podem ser aplicadas a fim de coletar dados e informações sobre o funcionamento e a qualidade das obras realizadas, o importante é que estes dados sejam sistematizados e que exista uma efetiva ação na direção de solucionar os conflitos que possam existir a partir da nova realidade.
Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
139
Diretrizes de regularização fundiária A regularização fundiária é o terceiro ponto fundamental para a adequada intervenção em assentamentos precários. Ainda que as melhorias físicas e sociais aconteçam, sem a segurança da posse o direito à moradia não é totalmente atendido, e as famílias podem continuar a sofrer ameaças de remoção. De maneira geral, a regularização fundiária só se completa algum tempo depois de entregues as obras, pois a adequação urbanística e ambiental é a condicionante para a concessão dos títulos. No caso da área dos mananciais, já foi explicitado anteriormente o caminho a ser percorrido para que o assentamento adquira regularização urbanística e ambiental, de acordo com a Lei Específica da Billings, uma vez concluído o PRIS, o assentamento possui as bases legais para abrigar as residências, os equipamentos, a infraestrutura e as áreas verdes, devendo ser devidamente registrado em cartório. No entanto, o processo só será realmente finalizado quando os moradores possuírem a posse individual ou coletiva dos lotes, o que caracteriza a segurança da posse. Nos dedicaremos então, a entender quais são os mecanismos e instrumentos disponíveis para a regularização fundiária dos lotes. No caso de lotes particulares, os seguintes instrumentos podem ser acionados: . Usucapião Especial Urbano: transferência ao possuidor a propriedade plena do imóvel particular por meio de sentença judicial, se comprovado o exercício da posse mansa e pacifica no prazo fixado em lei. Pelo usucapião, o antigo proprietário que abandonou seu imóvel perde seu direito sobre ele para o posseiro, que fez valer a função social da propriedade ao utilizá-la como moradia. A pessoa que possuir para sua moradia ou de sua família, área de até 250m2, pelo prazo de 5 anos ininterruptos e sem oposição, não sendo proprietário de outro imóvel urbano ou rural, adquire o domínio sobre a área e poderá solicitar ao juiz que assim o declare. Instrumento aplicável somente a áreas particulares, a constituição proíbe sob qualquer modalidade o usucapião em área publica, tendo sido criados outros instrumentos. O Estatuto da Cidade regulamentou que o domínio pode ser particular ou coletivo, sendo, no caso coletivo, instituído um condomínio, atribuindo a cada um uma fração ideal da gleba. . Usucapião administrativa: criado no ambiente do PMCMV (Lei Federal no 11.977/09), a legalização da posse é feita exclusivamente através de processos administrativos, por impulso próprio da administração pública e prescindido de apreciação pelo poder judiciário. Utiliza os mesmos parâmetros da usucapião urbana, tempo mínimo de posse cinco anos, utilização como moradia familiar, área máxima 140
Habitar às margens
do lote de 250 m2 e proibição de posse ou propriedade de outro imóvel urbano ou rural. . desapropriação: só pode ser utilizada quando não se configurar o direito dos moradores ao usucapião, pode ser realizada a compra do terreno pelos próprios moradores, sendo o poder público o mediador técnico e político. . Direito de superfície: o proprietário cede ao superficiário o direito de uso do solo, subsolo e espaço aéreo do terreno. Deve ser feito através de Escritura Pública registrada em cartório. Oneroso ou gratuito por tempo indeterminado ou não. O título pode ser dado em garantia para fins de financiamento habitacional, desde que respeitado o prazo de vigência. . Adjudição compulsória: aplica-se quando o morador possui documento que comprove aquisição e pagamento do imóvel, mas não possui escritura. Move-se uma ação judicial e o juiz decide, ou não, pela adjudicão compulsória e o registro em nome do comprador. Só poderá ser registrada se o imóvel for regular, ou seja, existir matricula ou transição em nome do vendedor. Para o caso de assentamentos em áreas públicas, aplicam-se os seguintes instrumentos: . Concessão especial de uso para fins de moradia (CUEM): regularização fundiária em área publica da União, Estados, municípios e DF. Criado junto com o usucapião urbano pelo art. 183 da Constituição. Reconhecido direito de posse sobre área pública ocupada de forma mansa e pacifica, ininterrupta por 5 anos. Lotes individuais e a fração ideal no caso de lotes coletivo devem ser menores que 250m2. Pode ser vendida, doada e oferecida como garantia para financiamentos habitacionais. O poder público deve garantir novo local de moradia ao possuidor quando o local de ocupação acarretar risco de vida ou saúde. Se a ocupação estiver em área de uso comum do povo, destinada a projeto de urbanização, de preservação ambiental ou de ecossistemas, destinada a construção de represas ou obras congêneres, ou em via de comunicação, o poder público poderá optar entre garantir o direito no próprio local ou assegurar o exercício deste direito em outro local. A concessão será extinta se mudar o uso ou adquirir outro imóvel. . Alienação e doação: se a área estiver afetada para outro uso, por exemplo, uso comum do povo, como praças e ruas, é necessária aprovação da lei de desafetação. Exige autorização legislativa e avaliação prévia.
Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
141
. Aforamento (enfiteuse): separação entre propriedade indireta (domínio) e propriedade direta (uso, gozo ou fruição) mediante pagamento de taxa (foro). Segundo o novo código civil, somente acontece com bens públicos. A SPU (Secretaria do Patrimônio da União) utiliza o aforamento visando manter o domínio sobre áreas consideradas de segurança ou interesse estratégico. É passível de alienação ou transmissão, pode ser rescindido pela SPU no caso de interesse público, desde que indenize as benfeitorias. . Inscrição de Ocupação: aplicável exclusivamente a imóveis da União. A Lei no 9.636/98 cria o termo ocupação visando regularizar imóveis e cadastrar ocupações em áreas da União. Ocupação é situação temporária até que a SPU regularize a área. É titulo precário que pode ser revogado a qualquer tempo, a critério exclusivo da administração. É cobrada uma taxa de ocupação calculada sobre o valor do imóvel. Ocupantes até 06/97 podem exercer o direito de preferência na compra do imóvel, caso a União ofereça. Pessoas carentes são dispensadas das taxas de ocupação. O ultimo instrumento apresentado é aplicável tanto a áreas públicas quanto particulares: . Concessão de direito real de uso (CDRU): o proprietário dá o domínio útil de um imóvel a um terceiro interessado. Contrato gratuito ou oneroso em que o proprietário outorga o direito de usar o imóvel por tempo determinado ou não, segundo contrato. Para fins de regularização fundiária a Lei no 8.666/93 autoriza a dispensa de licitação, mas exige autorização legislativa e avaliação prévia. Pelo art. 48 do Estatuto da Cidade, quando utilizado para fins de HIS os contratos de CDRU terão caráter de escritura pública, desde que registrados em cartório. A Lei no 11.481/07 consolidou a possibilidade de usar o CDRU como garantia para financiamentos habitacionais. Diversos instrumentos estão disponíveis para se viabilizar a regularização fundiária dos lotes nas diferentes situações de ocupação. No entanto, a dificuldade de implementação está atrelada à estrutura do poder judiciário, muitas vezes em dissonância com o Estatuto da Cidade, fazendo prevalecer o direito relativo à propriedade privada sobre o Direito fundamental à moradia. Assim como acontece com os demais direitos sociais e com os instrumentos urbanísticos apresentados anteriormente, o direito à regularizacão fundiária está condicionado a uma intensa disputa judicial e social, uma vez que as características patrimonialistas e segregadoras de nossa sociedade e Estado dificultam a implementação das leis conquistadas através das lutas populares. Além destas questões estruturais de nossa sociedade e administração pública, outras questões tornam-se 142
Habitar às margens
empecilhos à regularização fundiária. A dificuldade de se determinar a situação fundiária das terras é comum nos cartórios brasileiros, bem como a regularidade destas propriedades e sua situação legal perante ao poder público. Muitas vezes os registros são bastante antigos, a descrição perimétrica das áreas remete à uma configuração geográfica completamente diferente da atual, desmembramentos e parcelamentos que se conformaram legalmente mas não fisicamente, entre outras complicações de ordem burocrática. Desta maneira, muitas vezes a regularização fundiária não ocorre ou leva longos anos de espera.
Diretrizes de intervenção em assentamentos nas áreas de proteção aos mananciais
143
144
Habitar Ă s margens
HIPÓTESES DE INTERVENÇÃO NA COMUNIDADE CRUZEIRO DO SUL Hipóteses de intervenção na comunidade Cruzeiro do Sul
145
A partir das técnicas e diretrizes elencadas e frente ao contexto que se coloca ao Jardim Cruzeiro do Sul foram estudadas duas alternativas de intervenção diversas da solução que vem sendo apontada pela prefeitura de São Bernardo do Campo. Ainda com poucas informações sócio-territoriais precisas, pudemos elaborar de maneira preliminar estas duas propostas a fim de discutí-las com os moradores, instrumentando-os para que possam argumentar segundo suas próprias necessidades e demandas. Espera-se que a partir das informações a serem disponibilizadas pela prefeitura (LEPAC e diagnósticos) estas hipóteses possam ser mais aprofundadas, na medida em que também se aprofunde a discussão com a comunidade. A proposta geral do trabalho, portanto, não é o projeto como desenho acabado, mas sim, um projeto instrumento de conscientização e formação, construído democraticamente, aperfeiçoado conjuntamente e que permita aos moradores participar do processo de elaboração do projeto oficial de maneira mais qualificada. Esta proposta de trabalho baseia-se em duas experiências similares observadas. No município de Rio de Janeiro, a Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo, em parceria com pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), elaboraram projeto alternativo1 ao proposto pela prefeitua municipal e pelo consórcio responsável pelas obras de requalificação da área e do entorno do autódromo de Jacarepaguá, no contexto das obras para os Jogos olímpicos de 2016, que previa a remoção da comunidade estabelecida ali há mais de 30 anos. A elaboração do projeto alternativo de maneira conjunta e democrática, possibilitou aos moradores discutir, propor e questionar os órgãos públicos em pé de igualdade, conscientes de seus direitos e do quanto o projeto apresentado era condizente ou não com as necessidades e demandas da comunidade e da cidade como um todo. Já na cidade de São Paulo, estudamos o caso da comunidade Vila da Paz, ameaçada de remoção devido às obras de requalificação do entorno do estádio Arena Corinthians, em Itaquera. Em conjunto com o escritório de assessoria técnica Peabiru Trabalhos Comunitários, desenvolveram o Plano Popular Alternativo para a Comunidade da Paz2, frente à proposta de remoção apresentada pela prefeitura municipal para construção de um parque linear. O plano apresenta uma proposta alternativa à remoção, mas também elenca diretrizes de reassentamento, caso a remoção se confirmasse. E se confirmou alguns meses após a publicação do plano, no entanto, a prefeitura do município respondeu às pressões, e ainda que tenha sido mantida a remoção, está prevista para se de dar de acordo com as diretrizes construídas coletivamente no plano. À luz destas experiências, iniciamos as conversas com a comunidade Cruzeiro do Sul e propusemos duas hipóteses iniciais a fim de comerçarmos a discutir coletivamente diretrizes, necessidades e demandas. A primeira reunião acerca das propostas será realizada dia 21/06/2014 e pretende-se dar sequência ao longo do mês de julho. 146
Habitar às margens
1. Plano Popular da Vila Autódromo. AMPVA, 2012.
2. Plano Popular Alternativo para a Comunidade da Paz. Peabiru, 2013.
Reunião de moradores da Vila Autódromo. Fonte: AMPVA, 2012, p. 15. Solução habitacional para a relocação das habitações mais precárias. Fonte: AMPVA, 2012, p. 19.
Maquete de diagnóstico realizado com os moradores da Vila da Paz. Fonte: Peabiru, 2013, p. 24. Proposta alternativa à remoção total da Vila da Paz. Fonte: Peabiru, 2013, p. 39. Hipóteses de intervenção na comunidade Cruzeiro do Sul
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Hipótese 1: Urbanização A primeira proposta baseia-se na possibilidade de manutenção da comunidade no local onde se encontra, sendo dada a mesma diretriz que se deu aos demais assentamentos do PEG Alvarenguinha, adequação urbana e ambiental, trabalho social e regularização fundiária. Através da avaliação sócio-territorial preliminar e das visitas realizadas na comunidade pudemos ter noção do grau de precariedade das construções e da comunidade. Foram identificadas residencias em madeira, mistas e em alvenaria com condições precárias de construção, bem como unidades em boas condiçoes de habitabilidade e de implantação no terreno. Desta maneira, entende-se que serão necessárias algumas remoções, inclusive para adequação do sistema viário e para a implantação de infraestruturas sanitárias, bem como das moradias localizadas nas margens do córrego a ser recuperado. Portanto, propomos a construção de novas unidades habitacionais da tipologia unidades sobrepostas, visto que a volumetria geral da comunidade é de casas terreas e sobrados. Estudamos de maneira preliminar também adequação do sistema viário, baseado no existente, mas de maneira a facilitar a circulação dentro da comunidade e o acesso à Estrada os Alvarengas, principal via da região. Espera-se também a adequada pavimentação das vias associada à implantação das técnicas alternativas de drenagem, como o pavimento permeável reservatório e trincheiras de infiltração. Para a coleta e tratamento dos esgotos, propomos a implantação de wetlands construídas, de maneira que se possa iniciar o processo de reversão da poluição encaminhada à represa independentemente do cronograma de obras da Sabesp. Pensando no cenário geral do bairro dos Alvarenga, onde foi identificada a carência de equipamentos culturais, de esportes e lazer, propusemos a construção de equipamento público que promova cursos relacionados à construção e manutenção das estruturas alternativas implantadas na região, à manutenção e preservação do meio ambiente e da qualidade das águas, bem como atividades culturais relacionadas à água, a sua presença no meio urbano e à sua preservação, direcionadas à diferentes faixas etárias. Foram propostas também algumas áreas livres baseadas em espaços já existentes, porém carentes de qualificação, nestes podem ser implantadas soluções alternativas de drenagem, como valas e trincheiras de infiltração, bem como equipamentos de estar, lazer e esportes, além de hortas comunitárias.
148
Habitar às margens
unidades a serem removidas vias identificadas em vistoria perímetro da comunidade
Mapa hipotético de remoções de unidades precárias, lindeiras ao córrego e em áreas necessárias à implantação de sistema viário, infraestrutura ou áreas livres.
ESC | 1:2000 Base: GoogleMaps, 2012 Montagem da autora. Hipóteses de intervenção na comunidade Cruzeiro do Sul
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área para provisão habitacional recuperação das margens áreas livres equipamento público vias propostas vias de pedestres propostas perímetro da comunidade
Proposta de urbanização da comunidade Cruzeiro do Sul.
ESC | 1:2000 Base: GoogleMaps, 2012 Montagem da autora. 150
Habitar às margens
wetlands construídas em cascata encaminhamento dos efluentes vias propostas perímetro da comunidade
Esquema de implantação de um sistema de wetlands construídas.
ESC | 1:2000 Base: GoogleMaps, 2012 Montagem da autora. Hipóteses de intervenção na comunidade Cruzeiro do Sul
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Hipótese 2: Reassentamento A segunda proposta considera um cenário onde as condições físicas da comunidade (tanto do terreno quanto das construções) inviabilizam a consolidação do assentamento e a implantação das infraestruturas, tornando-se ncessário um redesenho do espaço. Desta maneira propusemos o reassentamento das famílias no terreno poquíssimo ocupado, com cerca de 17.755 m2 de área, localizado do outro lado da Estrada dos Alvarengas, em frente onde hoje está o Cruzeiro do Sul. No local existem cerca de 20 residências, que podem ser atendidas pelas unidades a serem produzidas. Para a elaboração desta hipótese foram utilizadas unidades sobrepostas de 54m2, possibilitando a construção de 191 unidades habitacionais e 46 postos de comércio ou serviços. Foi proposto que na área onde hoje é a comunidade, seja construído um equipamento público como o da proposta anterior, relacionado à cultura, educação, lazer e esporte. É importante ressaltar que a condição primeira caso seja necessário o reassentamento, é que ele se dê “chave por chave”, ou seja, que as famílias só deixem suas casas no momento em que as provisões foram concluídas, evitando toda situação traumática e custosa de aluguel-social ou moradias provisórias. No caso desta proposta, é possível que se executem as novas moradias antes da demolição das existentes, por se localizaem em terreno diverso.
152
Habitar às margens
Vista do terreno lindeiro à comunidade Cruzeiro do Sul. Foto da autora.
Terreno apontado para reassentamento da comunidade Cruzeiro do Sul.
ESC | 1:2000 Base: GoogleMaps, 2012 Montagem da autora. Hipóteses de intervenção na comunidade Cruzeiro do Sul
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Implantação.
ESC | 1:2000 Base: GoogleMaps, 2012 Montagem da autora. 154
Habitar às margens
espaços livres com equipamentos de lazer e estar
trincheiras de infiltração
pavimento permeável reservatório
unidades mistas voltadas para a Estrada dos Alvarengas
Detalhe da quadra proposta.
ESC | 1:500 Hipóteses de intervenção na comunidade Cruzeiro do Sul
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Corte esquemático. Relação entre as unidades. ESC | 1:250
Modelo das unidades mistas, de fundos e sobrepostas em renque.
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Habitar às margens
Vista geral da proposta.
Hipóteses de intervenção na comunidade Cruzeiro do Sul
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Primeiro pavimento Pavimento tĂŠrreo
Unidade sobreposta. ESC | 1:100 158
Habitar Ă s margens
Primeiro pavimento Pavimento térreo
Unidade mista; comércio no térreo e habitação no primeiro pavimento. ESC | 1:100 Hipóteses de intervenção na comunidade Cruzeiro do Sul
159
160
Habitar Ă s margens
CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerações finais
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O trabalho se propôs a compreender a relação entre as ocupações urbanas e as áreas de manancial a fim de elaborar um conjunto de diretrizes que norteasse propostas de intervenção nos assentamentos precários situados nestas áreas. Por meio da pesquisa histórica e bibliográfica, foi possível tecer conclusões sobre o impacto das ocupações e dos demais usos que se instalam na região dos mananciais e verificar que a urbanização destes assentamentos deve ser uma dentre diversas medidas a serem tomadas em direção à recuperação das águas e da preservação e ocupação adequada de seu entorno. A urbanização dos assentamentos precários, frente ao passivo acumulado de cerca de 1,5 milhão de pessoas residindo nas áreas dos mananciais, tornou-se a única solução viável econômica e socialmente para a requalificação destas regiões, visto a impossibilidade de se deslocar tamanho contingente populacional. Portanto, julgou-se imprescindível a elaboração de um conjunto de diretrizes de intervenção mais específico ao caso das áreas de manancial, baseado-se e somando-se aos desenvolvidos por Bueno (2000), Denaldi (2003) e demais autores, cuja compilação de ideias e metodologias se debruçou sobre um contexto mais geral de intervenção em assentamentos precários. Longe de ser inédito no tema, o trabalho buscou reunir técnicas compensatórias já em utilização para a urbanização em áreas ambientalmente frágeis, bem como práticas mais sustentáveis para a provisão de infraestruturas e para a execução de obras, além de diretrizes gerais tanto de intervenção em assentamentos precários, como de desenho urbano, na busca de um horizonte por cidades e bairros mais justos e democráticos, tanto quanto o desenho possa influenciar neste quesito. Ainda que o desenho possa ser responsável por mais qualidade urbana e ambiental nos assentamentos e na cidade, no trabalho de pesquisa desenvolvido para este projeto e para os demais dos quais tive a oportunidade de participar, ficou claro que a luta a ser travada antes de colocar o lápis no papel é o maior desafio imposto a nossa sociedade, e não somente aos assentamentos precários, mas em especial a eles. As estruturas sociais e de poder que se articulam no território urbano ditam o ambiente de desigualdade social, urbana e ambiental entre as classes sociais, e ainda que num Estado democrático, muito das estruturas arcaicas de gestão estão baseadas no patrimonialismo, na concentração de renda e de terras, e na segregação espacial entre ricos e pobres. O cenário inquietante – e em muitos casos, indignante - constatado no percurso do trabalho, ao invés de niilismo, nos motivou ao embate político e social à nossa frente, fundamentalmente ancorado na participação e mobilização social, certos de que a universidade possui papel fundamental na construção de cidades melhores num futuro, talvez, distante, mas esperançosamente, próximo. Via de acesso à comunidade Cruzeiro do Sul. Foto da autora. 162
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