Entrevista a David Michôd

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tudo em famĂ­lia... reino animal



A lei e a desordem

A

produção cinematográfica da Austrália suscita muitas vezes o mesmo cliché que, com frequência, ouvimos a propósito dos estúdios britânicos: é um “sítio” onde os americanos vão rodar filmes... De facto, as coisas estão longe de ser tão esquemáticas e há, continua a haver, toda uma criatividade australiana cujos méritos vale a pena descobrir. Reino Animal (Animal Kingdom), de David Michôd, poderá ser um excelente exemplo. Desde logo, porque o filme se inspira em factos verídicos, relacionados com a família Pettingill e as suas actividades criminosas na cidade de Melbourne, em finais da década de 80; depois, porque Michôd, também responsável pelo argumento, faz valer as emoções próprias do thriller, transfigurando a intriga policial numa perturbante viagem pelo espaço familiar e a sua teia perversa de fidelidade e traição. A personagem de Joshua (James Frecheville) funciona, assim, como ponto de fuga de uma complexa teia afectiva: por um lado, emerge como o “marginal” dentro da própria família, já que é integrado no clã logo após a morte da mãe (na cena de abertura do filme); por outro lado, essa integração vai levá-lo a descobrir a lógica implacável de uma hierarquia cujos valores ou motivações nem sempre domina. Daí a importância simbólica de Janine (Jacki Weaver, espantosa actriz), a avó que quase parece saída de um velho western, administrando com a sua brandura feminina a violência de um universo dominado por gestos e desígnios masculinos. Moral da história: a lei da família existe, aqui, entre a miragem da ordem e a crueldade da desordem. João Lopes

Guy Pearce

Mirrah Foulkes

(texto publicado originalmente no encarte da Sessão Metropolis de Reino Animal (30 de Setembro de 2013 - Cinema UCI El Corte Inglès)

Sullivan Stapleton


anatomia do crime

D

avid Michôd é um realizador australiano multi-facetado, sendo também argumentista, produtor e actor. Além disso, foi editor, entre 2003 e 2006, da revista Inside Film. Michôd começou a sua carreira como realizador em 2006, com a curta-metragem Ezra White, LL.B., seguindose mais curtas-metragens e documentários. Reino Animal foi a sua primeira longa-metragem e impressionou a crítica, recebendo várias nomeações e prémios. O reconhecimento mais sonante foi a nomeação de Jackie Weaver para a categoria de Melhor Actriz Secundária, mas foi Melissa Leo quem acabou por levar a estatueta para casa. David Michôd prepara agora a sua nova longa-metragem, The Rover, um western futurístico, com Guy Pearce e Robert Pattinson como protagonistas. Reino Animal é um drama que tem o crime como palco, mostrando os dois lados: os criminosos e quem tenta combatê-los. No meio da barricada, está Joshua Cody (James Frecheville), um jovem de 17 anos, órfão, que tem na sua família recheada de criminosos a sua única segurança – e desgraça. Participam também na obra Ben Mendelsohn, Joel Edgerton, Luke Ford, entre outros. A Metropolis conversou com David Michôd sobre este filme poderoso e surpreendente, que chega às salas portuguesas em Outubro. Tatiana Henriques


david michôd em entrevista

que mais o surpreendeu no mesmo?

Como surgiu a ideia para o argumento? Mudei-me de Sidney para Melbourne quando tinha 18 anos e, no processo de descoberta desta nova cidade, li bastante sobre a sua história criminal. Estava especialmente interessado no período de 1980 a início de 1990, que foram a última “época” do roubo à mão armada profissional, roubos a bancos e de folhas de pagamentos. Foi o fim dos grupos de bandidos profissionais e de gangues armados renegados na polícia de Melbourne. Não queria fazer um filme passado na década de 1980 – Reino Animal passa-se simplesmente no passado recente – mas sim uma grande história de crime em Melbourne sobre este aspecto particular da crise criminal. Passou oito anos a escrever o argumento de Reino Animal. Como foi esse processo e o

O que mais me surpreendeu foi o quanto o argumento mudou ao longo dos anos. Quando comecei, não sabia bem o que estava a fazer. Tinha acabado a escola de cinema e comecei a escrever. Mas quando terminei era um argumentista muito diferente – melhor, penso eu – e não houve uma única cena ou fala de diálogo do primeiro rascunho que tivesse entrado na versão final. Reino Animal foi a sua primeira longa-metragem. O que achou desta experiência? Foi fantástico e assustador ao mesmo tempo. Estava bastante entusiasmado por fazer alguma coisa que nunca pensei ter a oportunidade de fazer e estava bastante assustado por poder estragar tudo. Hoje em dia, os realizadores têm de fazer os seus primeiros filmes de forma muito especial se esperam poder fazer outro e en-

metropolis


vários momentos da narrativa. Como caracterizaria esta personagem e a sua importância para a história? A Smurf é a cola que une este gangue criminal tão díspar. A sua presença é a única razão por que eles funcionam como uma família no seu todo. Ela ama os seus filhos, mas do que gosta mais é da ideia de estar no centro de um gangue de poderosos e perigosos homens e é isso que ela vai fazer de tudo para proteger. Como foi trabalhar com este elenco fantástico e como foi feita a selecção dos actores? Escrevi as personagens especificamente a pensar em alguns deles, como Jacki Weaver, Ben Mendelsohn e Joel Edgerton. Outros são alguns dos meus actores preferidos – Guy Pearce, Susan Prior, Mirrah Foulkes e Dan Wyllie. Os miúdos foram difíceis de encontrar, mas os miúdos perfeitos são sempre difíceis de encontrar. Adoro o elenco e foi a trabalhar com eles que o filme ganhou vida. A sequência inicial dos créditos mostra um roubo a um banco, que nem sequer acontece no filme. Porquê a inserção destas imagens?

tão senti que havia muita coisa em jogo. Ainda assim, senti-me exactamente da mesma forma com o meu segundo filme, que estou agora a terminar. Em Reino Animal, encontramos dois opostos morais: Pope e Leckie. Como construiu estas personagens? Queria construir uma história com personagens fortes e claramente definidos, quase arquétipos. Com Leckie e Pope, temos dois pilares claros do bem e do mal, mas para fazer com que a história seja detalhada e com várias camadas, é importante que essas personagens tenham os seus próprios níveis de complexidade moral, que os tornem humanos. A “maldade” de Pope é um claro produto de um profundo trauma infantil, enquanto que a “bondade” deriva muito da sua ambição profissional.

Queria fazer uma história criminal sobre uma família criminosa em declínio, onde o crime que eles cometem é o crime de pessoas perigosas num beco sem saída. Para comunicar esse perigo, precisei de dar ao público algum sabor daquilo que os tornou perigosos. Essas imagens de abertura servem como um modo muito simples e poderoso de fazê-lo. O que pretendia mostrar com Reino Animal? Queria construir uma grande história sobre o crime e não apenas sobre os criminosos e a polícia, mas também sobre as vidas das pessoas que estão no meio e fora desses mundos, como namoradas, famílias, advogados ou vizinhos insuspeitos. Uma série de personagens estão cosidas numa grande e perigosa tapeçaria. O seu próximo filme é Rover, certo? O que podemos esperar desta obra? Podem esperar ver Guy Pearce e Robert Pattinson todos sujos e com armas num deserto da Austrália do futuro.

A Smurf (Jackie Weaver) está no centro de metropolis

T.H


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