Entrevista a Marcelo Machado

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Viagem à explosão c marcelo machado em entrevista

TATIANA HENRIQUES “Tropicália” é um documentário que fala de um movimento muito particular da História: o Tropicalismo. Enriquecido com uma impressionante reunião de arquivos e entrevistas exclusivas aos protagonistas da época, consegue contar de forma diferente um pedaço de história tão dissecado ao longo de 40 anos. A METROPOLIS conversou com o realizador Marcelo Machado sobre as particularidades do seu trabalho, o movimento em si e os rumos do cinema brasileiro. Porquê a escolha do Movimento Tropicalista como tema de um documentário? Porque acredito que talvez tenha sido o último movimento artístico muito interessante que aconteceu no Brasil com força e num período muito importante da nossa História, que é o começo do regime militar. Também era o momento em 66 metropolis MAIO 2014

que era criança, um menino em 1968, tinha 10 anos, e é a música que ouvi na minha adolescência – você sabe que a música que a gente ouve quando é jovem fica quase como a música da nossa vida inteira? Para mim, também tinha essa importância. Quando viajei para fora do Brasil – inclusive com outro documentário que fiz, o “Ginga” – percebi que havia um grande interesse

dos jovens de hoje por essa música e fiquei surpreso por ver que a música da minha adolescência era também uma música valorizada por pessoas jovens hoje. Podia falar-nos um pouco sobre este movimento? Quando chegámos aos anos 1960, o Brasil vem vivendo um sonho de ser um país moderno. O Brasil


criativa brasileira era um país-colónia por um período, baseado nas suas riquezas naturais como o ouro (que foi em grande quantidade para a Europa), a cana, café – a parte agrícola. Quando chegaram os anos 1940/1950, o Brasil começa a tentar transformar-se num país moderno. Acontece que esse país moderno era ainda cheio da herança desse país colonial e era atrasado, escravagista, desigual, injusto. No entanto, o mundo naquele momento dividiase muito entre esquerda e direita. Havia artistas que falavam da revolução social e artistas que defendiam uma espécie de modernização e industrialização do Brasil. Os tropicalistas são os primeiros artistas que começam a perceber que a realidade é mais complexa do que isso, que o país é contraditório, cheio de desigualdades e que não é simplesmente andar para a frente ou andar para trás, ou seja, ser colonial/ agrícola ou moderno/ industrial. A convivência dessas realidades e de muitas outras deixavam o país muito mais diferenciado, complexo, contraditório. Esses são os primeiros artistas que vão, de alguma forma, falar que o Brasil tem que seguir os seus próprios caminhos, que passam por entender que ele não é nem Europa, nem Estados Unidos, que deixou de ser a colónia de Portugal e que precisa de ser alguma coisa nova, que é muito diferente e muito própria. São os artistas que no cinema, nas artes plásticas e na música tentam entender o seu tempo e entender um tempo um pouco mais complexo do que

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a modernização industrial ou o passado colonial. E um movimento que vive em plena ditadura militar, certo? Exactamente, isso tudo acontece no momento em que existe um golpe militar, em 1964, o fim da democracia. Até 1968 ainda existia um espaço para manifestações contra a ditadura militar, mas em 1968 – no auge do tropicalismo – veio a AI-5 e aí começa a censura aos meios de comunicação, a prisão e torturas das pessoas que faziam oposição ao governo militar. O país entra mesmo num período de ditadura, com a impossibilidade de expressão individual e colectiva e

é bem nesse momento que isso [tropicalismo] está acontecendo. Está a acontecer uma tentativa de entender um Brasil diferente mas, ao mesmo tempo, uma proibição total de qualquer manifestação. É claro que essas duas coisas entram em conflito e também fazem desse momento algo muito especial na História das artes, da cultura e também da política do Brasil. Como decorreu o processo de “Tropicália”? Em que consistiram as suas pesquisas? O processo do filme foi, num primeiro momento, quando procurei os artistas, mas a reacção que tive foi que, depois de 40 anos, essa história tinha sido muito MAIO 2014 metropolis 67


contada e eles tinham um pouco de cansaço em repetir as mesmas entrevistas e falar das mesmas coisas. Optei então por outro caminho, que era a pesquisa de arquivos. O centro do filme é uma grande pesquisa de arquivos para encontrar o material de três anos específicos: 1967, 1968 e 1969. Tentei concentrar-me nesses três anos e pesquisar profundamente esse período. Então, todo o centro do filme é essa longa pesquisa em arquivos de televisões, cinematecas e também na casa das pessoas que viveram o período. Quanto tempo é que demorou esse processo de pesquisa? O filme, como um todo, tomou-me 5 anos. Pesquisei do começo ao fim, mas com uma equipa contratada. A fazer a pesquisa mais importante foram dois anos. Foi difícil contactar os entrevistados sobre este tema? Pode falar-nos um pouco sobre o que chama “caverna da memória”? Na verdade, não foi tão difícil porque quando percebi que existia esse cansaço sobre entrevistas de 40 anos sobre temas que eles já tinham repassado tantas vezes nos jornais, revistas, televisões, optei por essa pesquisa e afastei-me dos artistas. Então, não houve dificuldade porque também não fiquei insistindo no assunto. Quando comecei a concluir essa pesquisa, achei que tinha material suficiente – material que não vou dizer inédito, mas, pelo menos, que os artistas não viam há mais de 40 anos –, convidei os artistas para fazer um depoimento mas para lhes mostrar o material 68 metropolis MAIO 2014

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que tinha conseguido. Nessa hora foi muito fácil, não teve problema porque eles tinham, claro, curiosidade natural para ver esse material e foi uma forma de contacto muito agradável e interessante, porque a minha curiosidade com eles era talvez igual à curiosidade que eles tinham para com o material que eu estava levando. E procurei tomar esse cuidado, de não levar num computador portátil, mas fiz essas salas escuras, com uma tela grande onde projectava o material para que eles pudessem ficar imersos também, pudessem

entrar nesse momento que eu gostaria que fosse – e acabou sendo – um momento de emoção, não só de lembrança, mas também de emoção. Acabei mostrando isso no filme, a sequência final em que você percebe o Caetano e o Gil a olhar a tela. Foi esse dispositivo que usei para poder conversar com eles e evitei, de alguma forma, ficar insistindo numa tentativa de entrevistas, de abordagem, que se mostrava pouco interessante para eles. Foi essa a solução que encontrei e acabei tendo sucesso.


luís apolinário (Alambique) em entrevista As novas plataformas possibilitam outras formas de distribuição, num mercado competitivo e exigente. Assim, o documentário Tropicália poderá ser visto não só nas salas de cinema, mas também através dos clubes de vídeo das televisões, num lançamento day&date. A Metropolis falou com Luís Apolinário, da Alambique, que explicou de que se trata esta iniciativa. Qual é a principal razão desta iniciativa? A principal razão é a de sempre: como distribuidores cumpre-nos tentar, por todos os meios ao nosso alcance, que os filmes encontrem os seus espectadores. E pela constatação que o modelo tradicional de fazer as coisas pode já não ser o melhor para alguns filmes. Filmes que evidentemente têm o seu público mas que, pelas suas características, podem não aguentar o embate com um mercado hiper-exigente (ou cruel) com os resultados de curto prazo. Os direitos de autor são, por vezes, dispendiosos. De que forma isso pode ter alterado a realização da obra? Quando comecei a fazer esse filme sabia muito bem que ele não seria feito se nós não fizéssemos um trabalho muito bom, eficiente e preciso na libertação dos direitos de autor. Já tinha visto outros filmes sobre temas com relatos a serem feitos e não terem sido distribuídos porque não tinham libertado os direitos. Procurei a Bossa Nova Films, que é uma produtora

grande, com uma estrutura administrativa e jurídica muito boa e nós também fizemos um orçamento que pudesse pagar todos esses direitos. Olhámos para isso tudo de uma forma bem profissional, evitámos um caminho muito alternativo, tentando liberar apenas no contacto pessoal ou pedindo favores. Não, nós fizemos esse trabalho de uma forma bem profissional porque sabia, desde o começo, que se não fosse feito assim, o filme simplesmente não existiria. Procurei uma produtora grande que tinha

O filme Viramundo foi a primeira experiência de lançamento day&date. Como correu? A tentação nestas coisas é sempre para dizer que tudo foi fantástico. Para ser franco, é sempre muito complicado tirar conclusões de uma primeira experiência. O que podemos dizer, sem artifícios, é que de outra forma o filme não teria chegado ao público português, e que os resultados de acesso pelas diferentes plataformas são muito interessantes. A fazer crer que é um caminho…

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essa estrutura, fomos atrás de um dinheiro que no Brasil é muito para um documentário – os documentários no Brasil fazem-se com menos da metade do que custou “Tropicália”. Que repercussão tem tido com o filme que já estreou algum tempo no Brasil e que chegou agora a Portugal? Primeiro, queria dizer que, para mim, é muito especial poder exibir esse filme em Portugal. Essa é uma história que, como toda a nossa História, está relacionada com Portugal. O filme começa com um programa de televisão português, da RTP, dos anos 1960, o “Zip-Zip”. O Tom Zé tem uma participação muito divertida em que ele deixa muito claro que as ideias do tropicalismo vêm com a cultura moçárabe, através da Península Ibérica, através da nossa colonização por Portugal e que ficaram ali decantando no sertão da Baía, até que a televisão traz à luz essas ideias antigas que vieram lá dos árabes. Não existe país no mundo que gostasse mais de exibir esse filme – a não ser o Brasil – que seja Portugal. Portugal é o país em que realmente sempre quis mostrar esse filme. Estou muito feliz de que ele possa ser exibido aí. Aqui, no Brasil, foi muito interessante a exibição. Tive uma reacção muito boa do público mais jovem, 20 e poucos anos, que mostrou muito interesse por esse momento, por essa música. A minha expectativa é que o público jovem de Portugal possa ver o filme também, não só os mais velhos que curtiram quando eram mais jovens a música do Tom Zé, Caetano, Mutantes, Gilberto Gil, mas também tem aqueles 70 metropolis MAIO 2014

que estão a ouvir música de hoje. Acho que é um filme que, antes de tudo, fala sobre artistas que viveram intensamente o seu próprio tempo. Não vejo “Tropicália” como um filme saudosista, mas um filme que tem artistas com coragem e disposição de viver o seu tempo. Como vê o cinema brasileiro actualmente? Acho que o cinema brasileiro vive um bom momento, tem uma abertura de mercado e uma conquista de público para o cinema nacional. Mesmo com o cinema norteamericano ainda sendo muito forte no Brasil, acho que, cada vez mais, o cinema brasileiro está a ocupar um espaço. Sinto que o país, criativamente, não pára.

Agora, o problema do Brasil é o problema de qualquer outro país. Não adianta você ter uma força criativa e de artistas se a economia não vai bem. Você precisa de um ambiente próprio para os artistas. Vivemos nos últimos 10,15 anos um bom momento económico. Neste momento, o desafio é um pouco maior, voltamos a ter inflação, a crise na Europa, de alguma forma, reflectese aqui. Os artistas acabam sofrendo um pouco com isso, não tendo o seu trabalho tão divulgado. Mas não vejo falta de talento e de criatividade. Pelo contrário, vejo muita coisa boa e nova surgindo aqui no Brasil. Quais são os seus próximos projectos?


De que forma é que este novo lançamento day&date se vai concretizar? Tal como no caso do Viramundo, os filmes estreiam simultaneamente, no dia 24 de abril, nos cinemas e nos Clubes de Vídeo da Televisões. A novidade neste caso é que estendemos a experiência também ao DVD, com a edição do Tropicália logo no dia 28 de Abril. A ideia é dar aos espectadores a maior variedade possível no acesso aos filmes, envolvendo o maior número possível de parceiros. Como estão a reagir as várias plataformas envolvidas? Sobretudo com curiosidade. Todos querem perceber o que, de facto, está a acontecer. E começar a ter dados que confirmem, ou desmintam, as teorias que se vão construindo… Pensa que o futuro passa por aqui?

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Estou a trabalhar agora em torno de uns vídeos para uma exposição de uma arquitecta que inclusive esteve muito ligada ao tropicalismo, que se chama Lina Bo Bardi, e também a ajudar um grupo que está a trabalhar num documentário de um outro arquitecto, em São Paulo, chamado Vilanova Artigas. Sou arquitecto de formação e tenho muito prazer em fazer esses dois trabalhos que são documentários sobre a Lina Bo Bardi e o Vilanova Artigas. Venho há algum tempo estudando também a obra de um músico dos anos 1940, no Brasil, que é o Villa-Lobos, tenho vontade de fazer um documentário a seu respeito. Mas confesso que esse documentário ainda está em projecto, estou apenas a estudar e a tentar chegar

a um argumento sobre a obra do Villa-Lobos. Venho também trabalhando há alguns anos com um pianista de música instrumental brasileira, que se chama Benjamim Taubkin, mas é um documentário ambicioso e que precisa de patrocínio para acontecer. Então, tenho olhado a música que se faz hoje através do trabalho do Benjamim, olhando de alguma forma a música que se fez ontem através do Villa-Lobos e trabalhando em torno dos arquitectos em São Paulo, dando vazão à minha formação de arquitecto, podendo fazer documentários sobre o trabalho desses dois génios da arquitectura brasileira tão pouco conhecidos que são a Lina Bo Bardi e o Vilanova Artigas.

O que está a ser tentado, aqui mas sobretudo lá fora (importa reconhecer que estas experiências se inspiram no que está ser feito, há já algum tempo, em mercados de referência), parte de uma série de discussões e análise dos problemas que enfrentamos, pelo que todos acreditamos que estes novos modelos de distribuição podem ser um forte contributo para que a actividade se adapte aos novos tempos. Agora o futuro tem aquela coisa irritante de não se deixar prever… T.H.

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