Entrevista a Pedro Pinho

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o mundo a preto e branco pedro pinho em entrevista

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m Fim do Mundo passa-se no Bairro da Bela Vista, em Setúbal, mostrando-o de uma forma nunca antes vista. Pairando entre os géneros ficção e documentário, o retrato é intimista e criativo, tendo como protagonistas jovens do próprio bairro. A METROPOLIS entrevistou Pedro Pinho, realizador de Um Fim do Mundo, que abordou as diferentes particularidades da obra.

TATIANA HENRIQUES Como surgiu a história de Um Fim do Mundo? O filme Um Fim do Mundo nasceu de um conjunto de ideias, observações e interrogações que fui tendo e que se concentraram à volta desse período do final da adolescência. Por um lado, algumas coisas que senti que estavam à acontecer nessa geração que atravessa agora essa idade e que tive curiosidade e vontade de compreender. Coisas que se relacionam com a forma como as pessoas se encontram, se conhecem, se aproximam, se tocam. Sinto que isso mudou muito nos últimos anos – e sobretudo em relação às gerações anteriores – não só o facto de haver uma série de facilidades fantásticas proporcionadas pelas tecnologias mais recentes, mas também me pareceu que ocorreram uma série de simplificações, de cruzamentos, de ultrapassagem de categorias sociais obsoletas (de

género, raciais, eventualmente até de classe), de gestos mínimos que podem apontar para uma outra liberdade, para uma outra maneira de estar junto. Não tenho a certeza, mas o processo de construção do filme e o próprio filme parecem falar um pouco disso, do aparecimento de uma nova realidade social, de um novo tecido na periferia de algumas cidades portuguesas (onde vive a enorme maioria da população mais jovem). Com muitas questões por resolver, mas também liberto de uma série de cangalhas – que a minha geração ainda carregou – através da criação de um novo sistema de referências e de desejos; através da introdução de um conjunto de propostas culturais e ideológicas que se irão apoderar lenta, mas inevitavelmente do mainstream. Por outro lado, surgiu de um sentimento que eu me lembro de atravessar, de indefinição radical. De um tempo em que te permites vagabundear porque, apesar de ter acabado a idade da infância e todas as tuas capacidades estarem no auge do seu desenvolvimento, não entraste ainda inteiramente nesse outro mundo infernal que te irá necessariamente apanhar através do trabalho, ou então da falta dele. Desse pedaço de vida em suspenso em que o que importa mesmo são os outros, as bebedeiras de desejo, o sol, a praia, andar nas ruas, desafiar o que existe.

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No fundo, se for ver bem, acho que este filme é mais uma procura de resposta a duas obsessões que tenho e que não consigo largar em tudo o que faço ou penso fazer: o Trabalho e a Europa. Dois equívocos colossais, dois flagelos que, na minha opinião, assolam a humanidade em surdina e me ocupam a atenção, o tempo e a energia toda. Como foi feita a escolha dos actores? Fizemos um casting onde escolhemos alguns, outros foram recomendados por amigos, outros ainda apareceram nas oficinas de dramatização que organizámos. No caso da Eva, abordámo-la expressamente na rua. De que forma podemos classificar Um Fim do Mundo: documentário, ficção ou um género híbrido? Não sei se essa definição é muito importante. Eu acho que não, apesar de surgir tantas vezes a propósito deste filme. Ainda para mais numa altura em que tanta gente tenta atravessar, ou mesmo situar-se, nessa fronteira entre uma coisa e outra. Acho que a vantagem de trabalhar num campo que se assume claramente como ficcional é a de se poder acrescentar as camadas de discurso e as dimensões que desejamos. No filme foram introduzidas algumas dimensões, desde os locais que atravessam, às situações, aos gestos ou ao teor de algumas conversas que não aconteceriam se eu estivesse a fazer um documentário. Até porque aquele grupo de pessoas não existe, o seu quotidiano não é aquele, etc. O que não impede cada um dos actores de se rever na sua personagem. Pois ela foi feita a partir do material que cada actor trouxe. Foi com isso que demos corpo à função dramatúrgica que cada personagem desempenhava para servir a narrativa. Essa metodologia de base um pouco documental – no sentido em que se apropria de alguns dados da realidade independentes da ficção, da improvisação, da espontaneidade – consiste em estabelecer um acordo com os actores em como iremos esticar a corda, filmar para além dos limites do acção/corta, procurar captar uma verdade qualquer na distração, no esquecimento, no que surge quando não se pede nada, na gestão do desconforto. Penso que é ela que permite abrir um buraco que nos faz mergulhar no universo ficcional, esquecer que existe uma câmara, uma sala, sentir que estamos lá. Isso para mim é importante, esse efeito da suspensão temporária da descrença, uma hipnose com os seus vários graus e efeitos. Como diz um amigo, o Luis Miguel Correia, sentir a vidinha.

deveu esta escolha? Achei que o preto e branco criava um aspecto que se adequava ao filme que eu queria fazer. Ao mesmo tempo que reduzia o excesso de informação e ruído da côr, permitindo-me aceder a um tom de intimidade que queria explorar no filme, cria um efeito de descolagem, de afastamento daquilo que estamos a ver, que me permitia situar o filme num campo mais interessante, entre um registo naturalista próximo do documentário e uma construção mais gráfica, própria de outros universos cinematográficos. Como foi filmar no bairro da Bela Vista? Porquê a escolha deste local? Escrevi o argumento para se passar em Setúbal, algures num bairro de blocos de apartamentos. Por coincidência, a câmara de Setúbal abriu um concurso para se fazer uns filmes sobre a Bela Vista. Uma amiga, a Filipa Reis, convidou-me a participar nessa candidatura e ganhámos. Foi essa a circunstância que ditou que filmássemos naquele lugar. Foi uma feliz coincidência que veio acrescentar uma série de camadas interessantes à história inicial. O que mais o surpreendeu durante a rodagem da obra? A extraordinária capacidade de adaptação, empenho e perseverança dos actores. Quais são os seus próximos projectos? Estou a acabar um documentário co-realizado com a Luísa Homem sobre as alterações na paisagem física e social provocadas pelo desenvolvimento da indústria do turismo. Chama-se As Cidade e as Trocas

O filme é todo em preto e branco. A que se

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