Entrevista a David Mitchell

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David Mitchell

Como surgiu o gosto pela escrita? TATIANA HENRIQUES

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avid Mitchell, de nacionalidade britânica, é o autor de «Atlas das Nuvens» (Editorial Presença), livro que daria origem ao filme dos irmãos Wachowski e Tom Tykwer. Viveu em Itália e no Japão e já foi considerado como uma das pessoas mais influentes pela revista “Time”.

Fui-me apercebendo, muito lentamente durante os primeiros 25-26-27 anos da minha vida, que escrever fazia-me sentir completo, legitimado e até feliz, enquanto que não escrever fazia-me sentir enjaulado, incompleto e silenciosamente infeliz. Os prazeres da escrita de uma frase bem trabalhada que encaixa perfeitamente; criar uma personagem não cliché; encontrar um argumento sinuoso que é inesperado quando o leitor o encontra, mas inevitável em retrospectiva… Penso que são prazeres simples, mas eu adoro este trabalho. Viveu em Itália e no Japão. De que forma é

A Metropolis conversou com ele sobre que essas vivências podem ter influenciado “Cloud Atlas” e o prazer pela escrita. a sua escrita? Oh, não, de forma alguma. Não existe uma forma de comparar este “eu” com o outro “eu”


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que ficou em Inglaterra durante toda a sua vida. Claro que posso incluir os temas italianos e japoneses no meu trabalho porque vivi nesses países, por isso talvez os saltos espáciotemporais nos meus romances não teriam existido. Mas não podes ter a visão de um caminho que nunca tomaste, como o Obi Wan Kinobi acaba por realçar algures. Em 2007, foi considerado uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista “Time”. O que achou desta nomeação? Eu fiquei grato à “Time” por esta opinião altamente considerada do meu trabalho, claro, mas a minha mulher salientou-me que eu nem sequer sou a pessoa mais influente em casa (eu coloco-me no 5º lugar, após a senhora, as duas crianças e a máquina de lavar. Eu costumava ficar em 6º, depois da nossa gata, mas ela foi atropelada no mês passado, por

isso agora estou no 5º outra vez). Contudo, ficar preocupado com o teu estatuto no mundo literário é narcísico, viciante e desastroso. A grande questão que um escritor deveria pensar sobre isso é Como posso fazer com que o raio do romance funcione? Deste modo, poderás – apenas – evitar a obsolescência literária antes de juntares à gata. Sabia que outras edições da Pessoa do Ano pela “Time” incluem Hitler, Stalin (duas vezes), Corazón Aquino e aquele vampiro genocida que actualmente suga a vida dos seus cidadãos na Coreia do Norte? “Cloud Atlas” é uma obra complexa, com várias personagens e diferentes alturas temporais. Como surgiu esta história? Ao colocar um espelho no final do romance de Italo Calvino, Se numa Noite de Inverno um Viajante, e pensar “Pergunto-me o que aquela besta pareceria se eu fosse realmente imprudente ao ponto de escrever aquilo?”. Era para ser mais louco, com nove secções, mas seis formam um rectângulo arejado enquanto nove é um quadrado frio e a narrativa simplesmente ficou melhor com seis partes. Após essa decisão, escrevi-o da forma habitual: escrever diferentes versões de cada secção que não resultava, rever


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e repensá-las até algo útil finalmente aparecer. Escrever é muito aquilo de “errar melhor”, como Beckett disse, a cada passo. Participou na adaptação da obra para filme? Na verdade, não. Os irmãos Wachowski e o Tom Tykwer, os três realizadores do filme, são argumentistas muito capazes e não precisaram de recorrer aos meus serviços e também não me voluntariei. Os argumentos são uma arte diferente e eu estou profundamente casado com o romance para querer gastar alguns anos a aprender como se escreve para o ecrã. Talvez seja também demasiado tirânico. No mundo dos romances, o romancista é deus; no mundo dos filmes, o escritor é mais um empregado. Ainda assim, trabalhei em alguns libretos de ópera, toda a gente precisa de uma mudança de ares de vez em quando. Natalie Portman mostrou a obra aos realizadores em 2005 e estava interessada em interpretar uma das personagens. Quão importante pensa que foi a iniciativa da actriz para o desenvolvimento do filme? Quão importante para um casamento é o casamenteiro que apresenta o futuro casal feliz? Provavelmente não haveria filme sem a Natalie Portman, portanto sou-lhe até mais grato do que sou à revista Time. Como foi a experiência de fazer um cameo no filme? Muito divertido e altamente informativo. Talvez o melhor aspecto do filme Cloud Atlas tenha sido a hipótese de conhecer todas as tribos especializadas para a criação de um filme: os actores, realizadores, a equipa de efeitos especiais, o designer de naves especiais, os artistas de guarda-roupa e maquilhagem (eles são mesmo “artistas”), advogados da área do entretenimento e treinadores de diálogos. Sempre pensei que os romancistas era os campeões do mundo de nerds em palavras, mas tenho de admitir que os treinadores de

“No mundo dos romances,o romancista é deus; no mundo dos filmes, o escritor é mais um empregado” diálogos levam a Medalha de Ouro nos Jogos Linguísticos. Também aprendi que representar, tal como a guerra, trata-se de nove partes a ficar sentado sem fazer muito e uma parte de acção intensa. Gostou do resultado final? Sim, bastante. Há diferenças entre o filme e o meu livro, mas sinto que as diferenças são muitas vezes engenhosas, audaciosas e responsáveis pelo sucesso do filme.


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