Revista tavola 3. edição

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REVISTA DE CIÊNCIAS HUMANAS ANO 3 N. 3 JUN/2017

Entrevista com

João Carrascoza

A (†) Analidade

Do mal por Emir Tomazelli

A presença na ausência por Caio Garrido

Ficção e trauma em

Paul Auster por Luis Henrique do Amaral e Silva

Um anti-artigo:

As convenções de arte são

alteradas por trabalhos de arte

por Leonardo Mathias

+ Literatura | Aline Bei

Poemas | Bellé Jr.

Contos | Caio Garrido & Renato Essenfelder

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editorial

CARTA DO EDITOR A 3° edição da Tavola Magazine vem pra ratificar sua potência em falar do humano sem clichês e sem concessões. Com textos dos mais diversos, afirma sua existência dentro da “pobreza” (ausência), e decadência cultural e intelectual do país. Publicar uma revista impressa hoje dentro desse cenário é um ato de resistência e uma tarefa árdua. Literatura em tempos de “juízo final”. O traumático dos nossos tempos aflorando a cada segundo em todos os lugares. Habitar os vazios com mais esta edição foi requisito imperativo para continuarmos pensando, em meio ao turbilhão da modernidade, com os textos versando sobre ausência, e o fortalecimento da e na presença, tal qual diz João Carrascoza – escritor entrevistado desta edição – quando fala da necessidade de entrega plena ao fortalecimento dos vínculos afetivos. A Literatura é a principal presença e estrela nesta edição, que além da entrevista, vem recheada de contos, poemas, crônicas, e outros estilos literários, com autores revelações da literatura brasileira. O texto de Luis Henrique do Amaral e Silva vem também a tratar do tema da ausência, nos brindando com o relato que faz – como poucos – de seu mergulho em uma obra literária, que no caso foi na de Paul Auster. O título, mui sugestivo, é “A escrita de uma ausência”. O ano de 2015 foi marcado também pela discussão do tema da “Banalidade do Mal na atualidade”, através de vários debates realizados em São Paulo, organizados pelo Instituto Tavola | Espaço SP. Além dos relatos e frases sobre o tema que estão na edição, trouxemos também um importante texto do professor e psicanalista Emir Tomazelli (um dos convidados da “festa”), que é o texto que gerou a comunicação oral que fez no evento, e chama-se “A Analidade do Mal”. Lendo o texto de Emir, percebi o quanto o olhar do editor, enviesado, traz consigo esse olhar, metrificado, comedido, no laço que faz em relação ao texto que olha (tal qual seu escrito diz, sobre o julgamento, e a complexa operação que há entre percepção e juízo). Percebi que necessitava ler por uma segunda vez (como geralmente ocorre), mas dessa vez num sentido outro, a partir de um ponto de vista de um leitor verdadeiramente apaixonado pelo que tem em mãos. E é aí que o texto realmente salta aos olhos. É aquela leitura de andamento parcimonioso, com o gosto fora do foro do juízo, e dentro do olhar que olha pra si mesmo e para o mundo, com o sabor e o estranho prazer de quem descobre – como se pela primeira vez – o universo a que fomos lançados. Sem uma identificação com aquilo que se fala no texto, ou ao menos sem uma provisória suspensão de juízo (“sem desejo, sem memória”), é impossível conhecer ou reconhecer algo, é impossível se afetar e se enlaçar pela beleza que o outro traz e soma, criando assim um ecossistema social de menos infortúnio e mais gratidão. Falar das coisas simples. Essa também foi uma das ideias ao realizar a edição. Amizade é uma coisa simples e tão difícil de fazer! Estamos tão assustadoramente conectados às tecnologias e ao mesmo tempo tão desconectados uns dos outros. Perdemos a capacidade de compartilhar e de usufruirmos verdadeiras trocas. Por isso a crônica de Carlos Roberto Ferriani: “A bondade está de férias”. Um texto objetivo e necessário. A revista ainda traz Arte, Cinema, e Teatro, dentre as infinidades de temas tratados por cada um deles. Encerro aqui este editorial, com a frase do mestre Sigmund Freud, que não apenas retrata o amplo aspecto da realidade atual, mas também coloca em xeque a capacidade humana de superar e dominar suas próprias forças; “Parece-me que a questão decisiva da espécie humana é a de saber se, e em que medida, o seu desenvolvimento cultural será bem sucedido em dominar o obstáculo à conveniência representado pelos impulsos humanos de agressão e de autoaniquilação. Quanto a isso, talvez precisamente a época atual mereça um interesse especial. Os seres humanos conseguiram levar tão longe a dominação das forças da natureza que seria fácil, com o auxílio delas, exterminarem-se mutuamente até o último homem. Eles sabem disso; daí uma boa parte de sua inquietação atual, de sua infelicidade, de sua disposição angustiada. E agora cabe esperar que o outro dos dois “poderes celestes”, o eterno Eros, faça um esforço para se impor na luta contra o seu adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever o desfecho?” – Sigmund Freud Caio Garrido – Editor Geral | Tavola Magazine Editor Geral: Caio Garrido Jornalista Responsável: Marcos Angelini - MTB 21.329 Diagramação: Vanúcia Santos (asedicoes.com) Revisão realizada pelos autores Arte final capa: Vanúcia Santos Fotografia da capa: Giorgi Denner

Contatos: Tel.: (16) 3623-5786 Rua Visconde de Abaeté, 210 Jd. Sumaré - Ribeirão Preto - SP tavolamagazine@gmail.com

Tavola MAGAZINE é uma publicação do Instituto Tavola de Formação e Pesquisa em Psicanálise, Psicologia e Ciências Humanas LTDA Rua Visconde de Abaeté, 210, Jd. Sumaré CEP 14025-050 | Ribeirão Preto – SP –Tel.: (16) 3623-5786 CNPJ: 12.947.921/0001-45 | Luis Henrique Milan Novaes (diretor geral) e Instituto Tavola | Espaço São Paulo de Psicanálise Vila Madalena | São Paulo – SP – email: tavolasp@institutotavola.com.br

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SUMÁRIO

João Carrascoza – A presença na ausência 03 por Caio Garrido [Entrevista]

05 Editoria Relatos sobre a banalidade do mal na atualidade [eventos]

A (†)Analidade do mal: notas sobre a existência do olho! 08 por Emir Tomazelli [psicanálise]

e trauma em Paul Auster - A escrita de uma ausência 13 por Luis HenriqueFicção do Amaral e Silva [Escrita e trauma]

20 por Giorgi DennerCemitério, guardião de artes e ossos [fotografia e arte]

JAMES BOND NA MONTANHA CELESTIAL 23 por Eduardo Tomás Pánik [cinema]

Anti-artigo: As convenções de arte são alteradas por trabalhos de arte 26 por Leonardo Mathias [arte]

legitimidade do aqui/agora - Uma reflexão sobre o fazer teatral e autonomia 28 por DonACorrea [teatro]

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[literatura] Literatura

[contos]

- Aline Bei

Renato Essenfelder: do livro “As moiras” Caio Garrido: “Cenas”

[crônicas]

[poemas]

Carlos Ferriani – “A bondade está de férias”

Bellé Jr. – do livro “Trato de Levante”


entrevista

entrevista

João Carrascoza A presença na ausência por Caio Garrido

mesmo o dilaceramento “Porque do quase nada é melhor do que o nada.” João Anzanello Carrascoza

C

aderno de um Ausente, um dos últimos livros de João Anzanello Carrascoza, é uma narrativa envolvente, trazendo um relato corajoso e ao mesmo tempo trágico do personagem principal. Como toda história que se conta, também (ou principalmente) as contamos a nós mesmos. E se pensarmos que literatura é isso também, uma busca em se aproximar da verdade do discurso de nós mesmos, através do qual ampliamos quem somos, a tarefa pode se considerar cumprida e ao mesmo tempo sempre em andamento na literatura de João. Um outro livro dele, o romance Aos 7 e aos 40 – o já conhecido “livro verde” – traz além da tessitura poética discursiva em sua máxima potência, a busca por atar as duas pontas da vida (infância e vida adulta), assim como o personagem Bento Santiago de Machado de Assis nos lembra (citado no posfácio do livro por José Luiz Passos). Na entrevista a seguir, João nos lembra os caminhos da presença e da ausência, caminhos nos quais, por vezes, são os que mais nos esquecemos de transitar. - A que ausências se remete o discurso do narrador no livro “Caderno de um Ausente”? Como diz o narrador, “à eterna partida” e não “o eterno retorno”? O narrador, João, se refere às ausências futuras, ao tempo em que não estaria mais vivo, e, portanto, impossibilitado de partilhar experiências com sua filha, Beatriz, nascida quando ele já havia passado dos cinquenta anos, embora admita que existam outras maneiras de, mesmo ausente, estar presente numa vida – pelo veículo da memória, por exemplo. Quanto à eterna partida, uma vez egressos do não-ser para o ser, estamos minuto a minuto em direção, novamente, ao esse não-ser. Daí a necessidade da entrega plena ao fortalecimento dos vínculos afetivos. Não por acaso, num trecho do conto “Dias raros”, também demarco minha obsessão pelo nosso constante “ir embora” na figura de um menino, que, depois de viver uns dias na casa da avó, vê-se no momento de retornar ao seu cotidiano: “...Num clarão, compreendeu. Era aquilo. Sempre uma ida às coisas e sua sequente despedida. Na mesma hora que ganhava a vivência, nele ela se perdia. Sorte que vinha outra, a cicatrizar a alegria ou a abrir nova ferida, também logo substituída. E as pessoas nesse renovar-se, envelhecendo. As pessoas no meio, com suas raízes sujas de terra, cavoucando seus mistérios, bem-querendo-se, e juntas, acima das malqueridas ausências. E todas, todas, o tempo inteiro, indo embora”.

- Podemos dizer que em ambos os livros (“Aos 7 e aos 40” e “Caderno de um Ausente”), há um tema silencioso sobre a natureza da dispersão na vida? “Atar as duas pontas da vida”: É esta a tarefa mais nobre e necessária da existência? Sim, você tem razão, o avanço do tempo, esvaindo a vida, ao mesmo tempo em que a nutre, é o centro, de certa forma, dos dois romances, ganhando aliás a condição de personagem. Em cada uma das obras, o tema se desdobra de uma maneira – a primeira por meio de um homem, já com uma história de vida escrita, visitando suas nascentes existenciais, consubstanciadas na infância; a segunda, pela narrativa desse pai, já velho, inquieto com os anos que lhe restam, talvez não o bastante, ou o desejado, para que ele veja a filha crescer e, mais, que possa também, com ela, elevar-se na progressão dos dias. Em “Aos 7 e aos 40”, o indivíduo revê sua trajetória e conclui que ainda pode se redimir, pode renascer, o que, de fato, acontece. No “Caderno de um ausente”, o indivíduo mira a trajetória recém-iniciada de outro ser (que, no entanto, é parte também dele), e se redime graças a esse nascimento.

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- Um tema que parece estar sempre presente e latente em alguns de seus livros é o “lugar do pai”. Em ambos os livros citados acima quem dá o tom é o pai. Mesmo quando olha para o menino que ele um dia foi. Um psicanalista já falecido, David Azoubel Neto, num livro sobre mito e psicanálise, fala sobre o desejo do pai de reivindicar sua paternidade, e assim delimitar sua condição de pai e também assumir uma certa disputa com a mulher, ela, que desde o início, é a que na maioria das vezes a que assume a propriedade da cria. Ele cita um ritual da couvade, realizado pelos índios Carajás no Brasil central, onde o homem escarifica a pele com dentes afiados de um peixe quando a mulher fica grávida, quando em seguida vai para o rio e se lava, retirando o sangue coagulado, e bebendo bastante água até formar uma protuberância na barriga como se estivesse grávido. Como você vê essa questão do lugar do pai na sua obra? “[…] o coração de tua mãe conheces há tempos, os filhos não aprendem a amar a mãe. Bia, os filhos amam a mãe desde o início, mas o pai, o pai os filhos têm de aprender a amar, porque sempre estiveram fora dele.” [Trecho de “Caderno de um Ausente”] Bonita a sua pergunta, que é também uma forma de retirar do esquecimento a expressiva participação do pai na jornada dos filhos, a qual, não raro, é vista como menor do que a da mãe, por não ter gerado, em seu próprio corpo, seu rebento. Contudo, ele o faz, não com a presença do outro em seu ventre como a mulher, mas por meio de sua ausência – é pelo vazio que o pai infla a existência do filho, já que não a pode fabricar umbilicalmente. A mãe é como os raios que convergem para o centro da roda e a sustentam, mas o vazio entre os raios, ou seja o pai, é que lhe dá o movimento – e, assim, os dois movem a roda da nova vida. O pai, diante do filho, será sempre aquele estranho, e o filho para o pai aquele que, embora vindo dele, não emergiu de suas entranhas. A corrente entre pai e filho se estabelece do lado de fora, como expõe o narrador do romance nesse trecho da obra.

É pelo vazio que o pai infla a existência do filho, já que não a pode fabricar “umbilicalmente. A mãe é como os raios que convergem para o centro da roda e a sustentam, mas o vazio entre os raios, ou seja o pai, é que lhe dá o movimento – e, assim, os dois movem a roda da nova vida. O pai, diante do filho, será sempre aquele estranho, e o filho para o pai aquele que, embora vindo dele, não emergiu de suas entranhas. João Carrascoza

- Você acha possível que através da literatura consigamos retirar alguns dos grilhões que nos acompanham? Os grilhões de nossas neuroses, por exemplo? Ou será que o conhecimento (em certa medida) é ilusório nesse ponto? Creio que toda e qualquer atividade que catalise o processo de individuação, e, sobretudo, de conscientização do nosso ser e estar no mundo, pode nos libertar, senão da dor de nossa condição, de achaques menores que, todavia, ganham dimensões maiores em nossa existência. Por vezes, temos pleno conhecimento, digamos, da teoria, mas a sua aplicação na vida diária e mundana resulta numa porção ínfima dessa sabedoria. Uma obra artística, literária no caso, pode, ainda assim, engrandecer o seu autor, aprimorá-lo como indivíduo e levá-lo a um espaço sublime, ao qual ele raramente tem acesso.

- No livro “Aos 7 e aos 40” há uma passagem¹ bela, mas sutil. Num momento em que o casal reflete sobre uma possível separação entre os dois. Neste ponto, você deu aos pés – tão estigmatizados pela questão do fetiche – uma outra visão, um outro estatuto, indo para o campo da ternura, entre outros campos possíveis ali postos implicitamente. Se formos nos aproximar de uma verdade ampliada sobre a questão, você acha que o olhar humano em relação à figuração que os pés têm e sua respectiva relevância fenomenológica vai muito além do fetiche e do sexual? ¹ “Foi um erro (entre tantos que cometi, ele ia acrescentar) e baixou a cabeça, mirando os próprios pés e os dela pequenos e inacessíveis nas sandálias (os pés que a revelavam por inteiro mais do que o rosto e o jeito de aceitar a vida sem pedidos) Fico grato pela sensibilidade da pergunta e penso que, sim, talvez por que eu me sinta o tempo inteiro um peregrino. E um peregrino, como o próprio viver, não tem mapa pré-determinado, não há caminho senão o caminho que os seus pés vão traçando. Tão pequenos são os pés, e, no entanto, sustentam todo o corpo, como o fazem as raízes das árvores – ocultas, são a base sobre a qual as árvores crescem, não é o tronco, vigoroso e fácil de ser visto, que sustém o carvalho. Os pés de alguém que amamos, belos ou lacerados pelas bolhas, são raízes que saíram da terra como as nossas, às vezes se emaranhando nelas; são os pés que nos conduzem na vida, desde o “sim” do começo até o “não” do fim.

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João Anzanello Carrascoza é paulista de Cravinhos, interior de São Paulo. Escritor e professor universitário, estreou com o livro Hotel Solidão (1994). Publicou várias coletâneas de contos, como O vaso azul (1998), Duas tardes (2002), O volume do silêncio (2006, prêmio Jabuti) e Aquela água toda(2012, prêmio APCA), ambos pela Cosac Naify. Em seu primeiro romance, Aos 7 e aos 40 (Cosac Naify, 2013), Carrascoza escreveu que “o presente é feito de todas as ausências”. Em Caderno de um ausente (Cosac Naify, 2014), essa ideia se materializa de forma contundente, alçada por um lirismo poucas vezes visto na literatura brasileira. Caderno de um Ausente esteve entre um dos premiados na categoria de melhor romance para o Prêmio Jabuti 2015.


eventos

Relatos sobre a Banalidade do mal na atualidade por Editoria

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m 2015, o Instituto Tavola Espaço | SP realizou na Livraria da Vila em São Paulo um Ciclo de eventos chamado “Banalidade do Mal na atualidade”. Foram 4 encontros distribuídos ao longo do ano, cada um deles com dois ou três convidados debatendo o tema. Com curadoria e organização de Caio Garrido, o ciclo contou com as presenças ilustres de psicanalistas, filósofos, escritores e críticos de renome brasileiros no intuito de discutir e pensar sobre a o retrato da cultura atual no Brasil e no mundo, uma Cultura que não legitima o outro. Entre os convidados, estiveram Maria Rita Kehl, Marcia Tiburi, Luiz Felipe Pondé, Miriam Chnaiderman, Edson Teles, Emir Tomazelli, Ruy Filho, Luis Henrique Milan Novaes, e Durval Mazzei Nogueira Filho, além das participações como mediadores de Caio, e Fábio Zuccolotto. No extrato sobre o evento nesta edição da revista, vão presentes algumas das frases e pensamentos lapidares mais importantes, desenvolvidos durante os debates:

Maria Rita Kehl

maior condição de se praticar o mal radical, é você estar convicto que o está praticando “emAnome do bem. Não tem nada pior do que você dar a um sujeito – em qualquer regime – plenos poderes de praticar o bem, sejam os cristãos nas cruzadas, sejam os torturadores na ditadura, crentes que estão, de estarem fazendo o bem. Lacan tem uma frase lapidar sobre ‘dispositivos’, na época em que estava discutindo uma nova fórmula para uma sociedade psicanalítica que desejava criar, onde ele diz: ‘Se o dispositivo for perverso, qualquer um de nós pode estar pervertido por ele.’ Ou seja, se o dispositivo der margem a autoritarismos, por exemplo, se exigir personalismos, vaidades desenfreadas, qualquer um pode ficar a mercê dele. Porque o pior está garantido. O pior mora em nós. Não precisa ser um Eichmann para ter isso. O pior vai sempre aparecer (o ciúme, vaidade; falando de coisas ‘banais’). Isso é fundamental; O que a ditadura faz (fez) é instituir um dispositivo em que sujeitos comuns viram torturadores. Um dispositivo que além de tudo pode premiar o sujeito. Precisamos de dispositivos que barrem o pior, que extraiam das pessoas o melhor. E isso é o mais difícil.

Marcia Tiburi Sobre o diálogo como resistência: [...] Já que a gente está vivendo em uma cultura de informação, de comunicação, em que as ‘guerras’ se travam nesse contexto, talvez a gente devesse insistir nessa coisa. Só que não estamos sabendo fazer isso. E estamos sendo minados justamente por uma cultura de informação em que ninguém está tentando dialogar; É discurso pra todo lado. E tem os dispositivos técnicos pra que isso não aconteça: celular, televisão, redes sociais. Pensem nas redes sociais: Não é pra conversar. Aí a gente pensa assim: ‘O que aconteceu que o facebook virou esse fascismo todo?’ Mas, claro: ele foi feito pra isso. Não foi feito pra gente ficar de bem uns com os outros. Foi feito justamente pra minar nossa capacidade de nos comunicarmos. Faz-se isso emitindo compulsivamente informações totalmente inúteis.

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REVISITAR

Durval Mazzei Nogueira Filho

Trecho do poema “Nosso tempo” de Carlos Drummond de Andrade:

A fragmentação atual do discurso (tão livre!) – cada um fala do que quiser e estamos conversados… Qualquer discurso que passe por cima de nossas contradições é um discurso falso.

Esse é tempo de partido, tempo de homens partidos.

[…] Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra. […]

Luis Henrique Milan Novaes

A relação com o outro é sempre um inferno. Se nos perguntarmos o que nos extremismos as pessoas estão defendendo: Parece que estão defendendo a ‘posição de estar num lugar’; Precisar do outro para que continue da mesma forma. Ser livre envolve a capacidade de vivenciar lutos.

Luiz Felipe pondé

Num mundo em que a gente vive tal como um ‘parque te“mático’, a gente quer ter mais certeza de que não estamos no campo do mal, e sim do bem (fazemos personagem que somos sempre do bem). Tenho a impressão de que temos uma guerra da indústria cultural contra a noção de ambivalência humana. Ninguém suporta mais ser ambivalente. Um exemplo: A busca de um lugar onde o amor não faz sintoma. A minha crítica em relação a isso é que a ‘banalidade do bem’ dissolve o conflito moral. Dissolve o fato de que somos criaturas de conflito moral. O capitalismo precisa que sejamos do bem. Pois senão, você não compra. Para o capitalismo, você tem que negociar ‘bens’. Acredito que a banalidade do bem fortalece e dá cimento para o caráter alienado que tem na banalidade do mal.

Emir Tomazelli

dia, conversando sobre as coisas da psicanálise e so“breUmo estado geral dos nossos vínculos com o mundo e com os outros, esbarramos na espinhosa questão da brutalidade nas relações sociais e nos limites trazidos pela imaturidade emocional em que ainda vivemos. Conclusão: eternos bebês violentos! Estamos na aurora de nossa chegada a este mundo e acabaremos extintos antes mesmo que possamos acontecer por inteiro, e saber ao que viemos.

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Calo-me, espero, decifro. As coisas talvez melhorem. São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto. Tenho palavras em mim buscando canal, são roucas e duras, irritadas, enérgicas, comprimidas há tanto tempo, perderam o sentido, apenas querem explodir.


Ruy Filho

Sobre a banalização do real e do artista na contemporaneidade: […] Isso significa que o artista também deixa de possuir a capacidade de construir realidades, e passa a se aprisionar por dogmas e subjetividades impostas a ele, incapaz de construir fugas e outros parâmetros para novas reflexões e novas abordagens ao homem. O artista, dentro desse ponto de vista, é um ser inútil no contemporâneo. Esse processo de esfacelamento da possibilidade de ampliação do real e de novas subjetividades é o que estou chamando de banalização do real. A gente assume o real como irreal e dá conta de que isso é suficiente para lidar com todas as nossas ansiedades, e a partir disso fugir do real mesmo estando aprisionado a ele. Se o artista se torna essa figura inútil dentro do contemporâneo – por algum sentido muito cruel – ele acaba provocando também uma espécie de mal circunstancial. O artista se volta apenas a ele, em alguma instância, pois não consegue mais lidar com a presença do outro, não consegue mais dialogar com o outro, não consegue provocar o outro; Ele trata o outro como um processo de diálogo de serviço […], mas não de forma provocadora efetivamente ao novo e nem de novos acontecimentos e subjetividades. Minha provocação final: O mal no contemporâneo, ao se fazer ausente e completamente banal na construção de percepção da realidade, chama-se artista.

Miriam Chnaiderman

Sobre os resquícios da ditadura: O que está aí é algo atuando nas engrenagens, no jeito como a polícia funciona, no jeito que o Estado se faz presente na vida de todos nós. A tortura é o dia a dia das prisões. Mudou o nome, mudaram as estatísticas. São mecanismos que eram muito presentes na ditadura e que estão aí.

Em relação aos mecanismos conservadores na política brasileira atual: Eu acho que falta sim uma militância, e falta uma liderança. Estamos assistindo a um desmoronamento de um sonho, que é algo muito terrível. Acho que a gente tem que refazer o sonho, reconstruir um sonho de um mundo melhor. Mas será que é só na clandestinidade, só na luta contra um sistema opressor terrorífico que a gente se estrutura dignamente?

Como psicanalista, a gente milita pela vida, pela possibilidade de transformação, abertura, pela criação do “novo. ”

Edson Teles

As inversões, criações, transformações que somos capazes de fazer sobre os ‘trajetos’ ou as ‘vias’ públicas já “determinadas seriam os pontos onde deveríamos atingir. Eu apostaria na quebra das determinações dos percursos que temos que percorrer em nossas vidas. Ou seja, muito mais do que aguardar por uma nova militância, ou uma nova forma de fazer política, eu apostaria numa política em que os bloqueios fossem desfeitos. Porque a nossa capacidade subjetiva de agir criativamente é muito grande, apesar de todos os enganos que cometemos em qualquer processo criativo. Por exemplo, ao fazer um documentário, como se bate a cabeça pra chegar num resultado final é uma enormidade. Acredito, por exemplo, que junho de 2013 foi algo desse tipo. Houve uma tentativa de uma ação política que invertesse esses caminhos, ou que quebrassem esses bloqueios, apesar de todos os enganos cometidos, o que também é próprio de uma faixa etária, que é a que mais esteve nas ruas naqueles dias.

Para mais informações e visualização de vídeos dos debates, acesse: nosso canal do Youtube :Instituto Tavola - https://www.youtube.com/channel/UCVekf3fdx2thVvIDu3U8NLw Debate Banalidade do Mal na atualidade – c/ Emir Tomazelli e Ruy Filho-https://www.youtube.com/watch?v=HU7Mcj5WlPg Debate Banalidade do Mal na atualidade – c/Maria Rita Kehl e Marcia Tiburi https://www.youtube.com/watch?v=QfImwROY7iA

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Psicanálise

A (†)Analidade do mal: notas sobre a existência do olho! por Emir Tomazelli

Dedico este texto, em primeiro lugar, a todas as instituições que se dedicam à transmissão da psicanálise. Em segundo, a todas as instituições de ensino. Em terceiro, aos meus alunos que me ensinaram o quanto de irresponsabilidade eu conquisto por me submeter. * Texto apresentado durante Comunicação oral no debate organizado pelo Instituto Tavola | Espaço São Paulo, sobre “A Banalidade do Mal na atualidade”, em setembro/2015 na Livraria da Vila.

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m dia, conversando com o Caio Garrido sobre as coisas da psicanálise e sobre o estado geral dos nossos vínculos com o mundo e com os outros, esbarramos na espinhosa questão da brutalidade nas relações sociais e nos limites trazidos pela imaturidade emocional em que ainda vivemos. Concluímos: eternos bebês violentos! Estamos na aurora de nossa chegada a este mundo e acabaremos extintos antes mesmo que possamos acontecer por inteiro, e saber ao que viemos. Nesse mesmo dia ele me perguntou se eu toparia pensar com ele um evento que tocasse na questão levantada pelo texto de Arendt sobre o julgamento de “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”. Curioso tema: o mal banal. A banalidade e o mal juntos! Casamento perigoso! Nem William Blake pensou nessa possibilidade, quando casou o céu com o inferno! Falamos um pouco e demos vida e asa à nossa imaginação. Caio tinha intenções de fazer um seminário que agregasse alguma reflexão sobre o momento político brasileiro e sobre a questão existencial do mal no mundo. Mais tarde trocamos umas palavras por escrito e fomos cada um para o seu lado, entrados no cotidiano. Hoje, pelo que entendo, e o que me alegra muito é que este evento é a parte realizada dessa pergunta/convite lançada a mim lá no tempo que já passou. Importante que este evento esteja acontecendo, de tal modo que realiza um sonho inicial que também foi meu. Fico feliz com isto. Queria agradecer mais uma vez ao InstitutoTavola, em público, pela honrosa oportunidade de estar em mais este projeto e em mais este encontro junto de um time tão querido para mim, cujo pensamento libertário institui, ou melhor, recupera crenças antigas e indica que a verdadeira formação psicanalítica é aquela onde tudo convive, principalmente porque a curiosidade e a sede de conhecimento prevalecem sobre o juízo moral que um homem faz sobre a teoria do outro quando formula seu pensamento no campo da psicanálise. Comemoro isto também. Para abrir minha fala, faço três citações. “Se as paixões se excitam no olhar e crescem pelo ato de ver, não sabem como se satisfazer, o ver abre todo o espaço ao desejo, mas ver não basta ao desejo. O espaço visível atesta ao mesmo tempo minha potência de descobrir e minha impotência de realizar. Sabemos o quanto pode ser triste o olhar desejante.” Jean Starobinski, L’oeil vivant (citação colhida em O fogo escondido, Adalto Novaes) “À razão uma só cajadada basta para matar dois coelhos. Ao ódio sempre serão necessárias duas cajadadas para matar a um só. A lógica, não basta ao desejo... o ódio e a morte querem sempre mais, sempre uma vez mais...” [Emir Tomazelli]

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Emir Tomazelli é psicanalista, psicólogo e professor. É formado pelo Instituto Sedes Sapientiae (ISS), Membro do Departamento e professor do curso de Formação em Psicanálise do ISS. É também professor pelo Instituto Tavola. Doutor em Psicologia pela USP. Tem três livros publicados: Corpo e conhecimento (Casa Psicólogo); Psicanálise: uma leitura trágica do conhecimento (Ed. Rosari); Idealcoolismo (Casa do Psicólogo).]


“Aqueles a quem o mal foi feito, o mal farão em retribuição.” (“Those to whom evil is done/Do evil in return.” September 1, 1939 - W. H. Auden, in Joseph Brodsky, 1999, p. 367)1

“Quisera chorar, mas nesta aldeia está proibida a tristeza.” (Mia Couto) http://globotv.globo.com/canal-brasil/sangue-latino/v/mia-couto/4409892/

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m minha experiência como psicanalista, professor e homem comum, percebo que na esfera social, no espaço coletivo, apesar de tudo que procuramos fazer para não ser assim, o que se joga é o violento e estúpido jogo do status2. Cheios de medo, angústia e ódio para dar conta de nossa relação com a mesquinhez e com a taxação do reconhecimento. Reconhecimento que se tem para oferecer e aquele que se tem para receber. Observo que a dor maior do homem é não ter significado, não ter nenhuma importância, nenhum valor, tanto para si quanto para o outro. Observo que há uma aflição contínua, um desespero, uma urgência de sentir-se constituído pelo reconhecimento do outro; é “necessário” ser reconhecido por esse outro; e, lhes recordo, odiamos a tudo que necessitamos, porque aquilo que necessitamos é aquilo sem o que não podemos viver! Tanto isto é verdade, que todo aparelho psíquico está fundado nas alucinações de experiências de satisfação, que são somente recordações da satisfação. E isto indica que o aparelho psíquico, primeiro investe em ilusão e se satisfaz com isto. E, se levarmos esse pensamento adiante, acabaremos compreendendo que nossa espécie prefere a impressão de solução à relação real com a solução. Ou seja, no lugar do trabalho da solução real, somos tendentes à mentira porque preferimos o que aplaca a realidade àquilo que inclui a verdade e todo o trabalho que seria exigido pelo real para podermos chegar a acessa-lo e talvez resolvê-lo. Observo que paira em nosso espírito profundo terror, miséria, enfim, um jogo que implica em uma série de distorções que desembocam num composto de vínculos de submissão amalgamados à crueldade, fazendo de nossos encontros momentos onde alguém detém o poder de chancelar ou de endossar a presença viva do outro, versus alguém que implora por este reconhecimento. Ou seja, nossa relação com o campo social está marcada pela busca do reconhecimento que vem do olhar do outro: um suplício de espera e súplica. Noto – para mim lamentavelmente – que, muito rapidamente, esse jogo de status, essa angústia por ser, significar e poder sentir que alguém o reconhece, descamba sem freios para uma relação de negócios afetivos que instaura na relação humana um campo de vínculo que se pauta pelo controle e pelo julgamento moral, onde prevalece o exercício de abuso de poder usando o juízo como forma de maldade. Exerço o controle permitindo que a maldade e o poder possam juntos operar de modo a criar um campo de diferença hierárquica que não está baseado no uso da relação com a realidade, nem no uso da relação com a verdade e, portanto, não constitui um universo de distinção, mas, institui ‘o’ juízo de desvalor e a degradação da ética como a forma mais violenta de opressão do ser de cada um. (Tomo nota de alguns pensamentos que me ocorrem enquanto penso para escrever: uma coisa – ter olho me obriga à visão e me condena e/ou me lança sem piedade no universo do juízo; outra coisa – todos praticamos mentalmente o mal, dia após dia; outra coisa - ver e perceber são verbos que nos podem levar a um outro mundo, ao mundo do rancor, ao mundo da vingança e da punição, ao mundo da inveja e, neste ponto, o olhar passa para um outro registro e cai no campo do reter, do aprisionar, do sequestrar, do possuir, do ofender, do invadir, do violar...; outra coisa – olhar pode ser menosprezar, pode ser pavonear-se, porque há medos sem nome que nos obrigam a arrogância e constroem um tipo de certeza e de superioridade que está baseada na diminuição e inferiorização agressiva que faço, com meus olhos, do objeto. Desta forma, olhar pode ser esmagar, estraçalhar, desmoralizar, denegrir, desprezar. Outra coisa – se entendo o que Freud diz, posso afirmar que é possível controlar a libido e o investimento de amor que sai dos meus olhos. Este é o método e a ética que se desenvolve na fase anal. Por isto denomino meu texto de a “Analidade do mal”, suprimindo o ‘B’ que na verdade deveria estar representado por um caixão mortuário. Outra coisa: Seguindo Freud, eu posso dizer que todo eu narcisista tem como retirar ou pôr esse investimento quando e como quer, basta que o superego ponha um esfíncter Brodsky, Joseph Less than one –selected essays - Collins Publishers, Toronto, 1999 (ninth printing). Wystan Hugh Auden (poeta inglês (21 de fevereiro de 1907, York – 29 de setembro de 1973, Viena)) 2 Alain de Botton escreve um livro sobre o tema. Status Anxietys https://www.youtube.com/ watch?v=t1MqJPHxy6g 1

no lugar de onde vem o amor e o símbolo e pregue a opressão como forma de governo e de vínculo.)

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– vamos nos pôr de acordo! – não é só a boca que fala. Os olhos, além de falar, servem também, já que falamos de Eichmann, para “judiar”3, servem para infligir dor moral e nos erguer até o céu e nos rebaixar até o calabouço ou à pocilga. Chamo a atenção dos senhores para o olho e sua força judicial, para o olho e seu poder de opressão, de tortura e de humilhação. Para os olhos e sua função de olhar e ver, de olhar e julgar; e, de julgar de uma forma tal, que este julgamento inclui o não ver, e o não olhar, o não reconhecer - este último seria algo equivalente a não simbolizar a presença do outro na vida do si mesmo. Por esta razão faço questão de chamar a atenção de vocês para a relação complexa que há entre percepção e juízo, entre ver e emitir um julgamento com o próprio olhar, entre ver e, enfim, banir, expulsar, renegar e, como se o resto não bastasse, assassinar. Noto que há algo semelhante a um sistema métrico no olhar. Uma ‘Cama de Procusto’ – o intolerante – que atravessa o intervalo da relação entre um sujeito e outro. É um processo de medição, de sopesamento e de restrição ou oferta de valor à imagem, processo de redução ou aumento do tamanho, até atingir um ponto... “certo”. Uma espécie de diafragma moral. O assustador esfíncter psico-afetivo. Algo como um músculo que é usado para exercer pressão moral, um exercício de edição e de recorte que precede ou está simultaneamente presente no próprio processo de percepção. É uma régua óptica, uma regra, uma compulsão a comunicar com o olhar a impressão subjetiva de uma avaliação que o eu faz quando se relaciona com qualquer objeto; comunicação não verbal que envolve a emissão da opinião e não a construção de uma percepção “real” a respeito da imagem. Em suma, é um juízo óptico sobre o comportamento, uma avaliação sobre os modos e sobre o tipo de pensamento que está se expressando diante de nós, conduzido pelos efeitos que nossa emoção produz em nós quando estamos junto dos outros prestando atenção neles. De alguma forma noto que em todo encontro humano há uma luta por impor-se ao outro, uma espécie de dança ritual, que equivale ao momento que precede o ataque do louva-a-deus sobre sua presa, momento imóvel que busca submeter um sujeito ao outro sujeito pela concentração de frieza e precisão, usanExpressão curiosa para denominar a maldade feita aos outros. Google: - judiar verbo1.intransitivo m.q. JUDAIZAR (‘seguir a religião e lei judaicas’). 2. transitivo indireto pej. tratar com escárnio; zombar. “j. com a infelicidade alheia”

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do tipos distintos de olhar, usando jogos de olhar que se servem de angústias que estão ligadas aos temores que temos das mensurações, e que controlam os padrões da presença viva do outro e da nossa própria presença. É o mundo da mesura, do medido, do comedimento, é o mundo do rapapé. É o mundo do controle muscular do universo, o mundo do controle daquilo que sai ou daquilo que entra ‘dentro’ do olho, é o mundo da pulsão de domínio. Aquele mundo onde nasce a força e a agressividade, rapidamente travestidas - quando banhados pelas fragrâncias das pulsões anais - de maldade e violência sem pensamento. É o mundo dos orifícios, dos detalhes, das imposições de ordem, de métrica e, surpreendam-se, é também o mundo da obediência, sob a qual todos devemos estar. Por isto, esse mundo é imposição de lugar e de saber, é imposição de modo, é prescrição de norma, é controle racionalizado e apoiado na ideia de que há um jeito certo de se fazer uma coisa. - Ah! Nosso senhor sabedor de tudo. O superego do mundo está nos olhos, vê tudo, mede tudo, é ele que está no âmago da visão, está também dentro de nossas mentes e fala conosco sem que ninguém o perceba, comandando nossa vida, nossos atos. Creio que não necessitemos andar muito para nos dar conta que todos sabemos muito bem de quantas palavras violentas dirigimos a nós mesmos enquanto estamos em silêncio. Sabemos da violência que nos habita e do ódio diário que é dirigido a nós por não termos desempenhado como “deveríamos”(!!!). Aqui se exige o desenvolvimento da grande arte de tolerar-se, porque possuir olhos é como estar exposto a um tipo de escala de valor e de castigo ao mesmo tempo. É como se estivéssemos à mercê de um juiz sobre quem não temos controle, marcando-nos com uma vulnerabilidade tal a esta escala de seu juízo, que adoecemos de temor e de angústia, que transformam a submissão em uma espécie de desejo perverso de tornar-se sem significado. Maldade e percepção, neste caso, fariam um laço com a invasão e a violência na capacidade de julgar, eis aí o pensamento obsessivo. Eis aí a analidade constituindo e regulando o universo; eis aí onde nasce o sanitário e tirânico lema do nazismo, que não fez mais que impor a insanidade louca das soluções obsessivas como forma de pensar a humanidade e lidar com ela como se medidas, métodos e rituais de higiene dessem conta de operar com aqueles que foram escolhidos para representar o que não posso conter em mim.

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nervo óptico nazista faz do outro uma dejeção do mundo. Mas notem, é isto que faz o desespero de todo homem violento, porque todo violento não pode sentir a dor que lhe é causa de vida, e por isto projeta no objeto o que não pode conter em si. Aí estão as velhas regras psicóticas das defesas projetivas. E aplicadas em grande escala não fizeram mais que destruir o laço do olho com o sentido do outro e com a capacidade de vermos sua dor e compartilhá-la. O tiro dado face a face indica que o rosto daquele que será morto diz apenas que o olhar perdeu sua capacidade humana de ver a si mesmo e amparar-se desse desespero e desse desamparo que a violação constitui exclusivamente o sintoma. É deste modo que constituímos o campo social. Nada de amor, as relações são de utilidade e uso. A astúcia e a esperteza prevalecem sobre o sentido de fraternidade, gratidão e laço amoroso. É no campo da educação social que projetamos nosso desespero. É nele que se deve jogar a crueldade do ver. Com isto usamos os mais diversos tipos de olhar, movimentos do cenho, e uma mímica facial complexa que controla, maltrata e tenta lidar com a presença aflitiva do outro ao lado, porque, estranhamente, suponho que ele está pensando em mim e fazendo avaliações e medidas que podem não ser as que espero ter. Notem que em toda obsessividade há um alto índice de paranoia por um lado, e por outro uma entrega completa ao masoquismo e a autotortura.

Então... Já que são os olhos que retiram os homens do campo da autoconservação para jogá-los, sem perdão, no campo do narcisismo e logo no da heteronomia, vamos louvá-los. O olho nos põe na mão do outro, o ego nos põe na mão do outro, o ego e o olho nos põem sob o comando do outro, nos localiza num estado emocional que se assemelha a um tipo de ‘loucura’ por ser reconhecido e visto e, além disto, precisar ser amado. Aqui se paga qualquer preço pela morfina social do valor narcisista. Aqui se paga com a arrogância e o desmedir-se, mantendo esse olho acima de nossa subjetividade pouco conhecida. Ou seja, os olhos nos levam a viver a humilhação de necessitar do tributo do outro, que invariavelmente se expressa no comportamento de suplica por migalhas de afeto e de significado. O homem nasce aí no terreno da esmola de amor. E isto configura o poder da heteronomia, e sublinha que o valor do eu está no território onde o mandato é do outro. Daí a pedagogia, a obediência, a submissão e a dependência nos impõem baixar a cabeça para engolir o que resta.

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O olho: Esse é o objeto mandante, esse é o superego que sabe das regras... Pena que não sabe quem somos e não conhece o respeito pelo sujeito, nem o amor por si. É este olho cego, cego de razão e certeza, é este o grande verdugo que manda em nós e nos diz quem somos. Tenho comigo a impressão triste e angustiante de que no viver diário não há nada mais dolorido para o homem grupal, aquele homem que necessita reportar-se ao grupo, do que a interrogação contínua que põe em dúvida o valor dele ser. É assustador saber que nosso medo, que se focaliza no olho daquele que eu temo, retire de mim o valor de ser para olhos dele. Isto nos faz compulsivos buscadores de valor e não de sobrevivência. Buscadores de olhar e da libido que vem do olhar.

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nsisto. Não há nada que traga mais sofrimento que se perceber (ou mesmo se imaginar) não tendo importância alguma para o outro com quem alguém se articula numa relação singular, nem para o grupo ao que supostamente pertence ou sente pertencer. Em uma palavra, é do olho do outro – é do olho do grupo – que vem o nosso valor. A essência de nosso sentido de ser emana, se não do cuidado, pelo menos dos olhos de alguém que nos olha e, mais que tudo, nos vê, validando assim o visto. E, curiosamente, aquele por quem e diante de quem somos validados, é esse que pode ao nos ver, desejar ter poder sobre nós, mais que nós mesmos. É esse o possuidor do olho de onde vem o nosso valor. É no olhar de alguém que saciamos nossa fome de sermos validados. E é justamente por isto que demandamos por mais validação. E assim, sedentos pelos investimentos de amor que vêm dos olhos, morremos em vida, porque não fomos validados. Ou seja, mesmo existindo, não alcançaremos a possibilidade de ser, se alguém não nos valida. Sintetizo: “É dos olhos do outro que vem a validação do valor e do significado do eu.” (Pausa para uma recordação amorosa do olhar. Recordo-me que Winnicott escreveu em algum canto de sua deliciosa obra, que: “Quando vejo sou visto, logo existo!”) Mas... Desafortunadamente... Nem sempre nos veem. Nem sempre há disponibilidade no olhar de alguém, que pressente a intensa presença da morte como finalidade da vida, para nos ver e com isto nos validar. Repito e retomo o que minha visão do ver indica: O que estou querendo destacar, diferentemente de Winnicott, é que quando os olhos estão carregados de impossibilidades, desespero e desamparo, carregados de um tipo de desejo que envolve uma desistência radical de si e do mundo, e uma aposta na não existência


do outro, carregados do peso enorme da inveja e do rancor em relação ao objeto, ou seja, quando os olhos já não podem mais ver porque só julgam, é aí, nesse ponto agudo de cegueira psíquica em que imploramos por reconhecimento. É aí, exatamente aí que nasce o nazismo, o fascismo, a intolerância de todos os totalitarismos, todos regidos pelas pulsões anais. É neste ponto, em que a fé toma conta do desespero, o ponto onde se constrói a religião obsessiva como uma via alternativa ao ser capaz de sentir a dor de todos nós juntos e absolutamente sós, coroada por não sabermos para onde ir. Esta última dor o poderoso não sente. É aqui, onde não mais sabemos quem somos, que surgem os rituais obsessivos e as práticas implacáveis de submissão como forma de obter amor e visão. Ajoelhados no solo, com a testa apoiada no chão entre nossas mãos também ali apoiadas, e com nossas nádegas erguidas aos céus, suplicamos por esse reconhecimento do deus que deveria nos amar. E é isso o que fazemos com nossa cabeça e nossa nádega, isto é, fazemos qualquer coisa para recebermos uma migalha de aprovação vinda de qualquer olho disponível. Suplicantes do olhar, nos transformamos em pedintes de resíduos de aceitação! Dependentes de libido e vida que do olho do outro brotam para serem comercializadas no mercado das trocadas por reconhecimentos, e assim seguimos na fila masoquista dos que imploram. E, mais que tudo, é lógico, somos sabedores de que essa aceitação que almejamos tem um preço, essa aceitação tem um custo emocional a ser pago e a ser considerado por nós e por aqueles que nos validam. Essa aceitação, mesmo que falemos dos babuínos no reino animal, envolve a oferta do ânus e a exposição submissa da genitália e do pescoço para a investigação perigosíssima do macho dominante. Em outras palavras, há um comércio de afeto que transita pelo olhar, que implica em um complicado desenho de hierarquias e títulos que são comercializados, e todos sabemos que pagamos fortunas afetivas para receber uma validação derivada do olhar de alguém. Aqui, clara e direta, a crueldade e o comércio de “amor”, e com este comércio e esta crueldade entramos na conclusão a que quero chegar e que agora passo a me deter mais tempo: a ‘analidade do mal’. - Nota: Apenas a título associativo recordemos, antes de prosseguir, e em alusão às mortes autorizadas por Eichmann nas câmaras de gás, que não existe metáfora mais anal do que matar os outros com gases. Melanie Klein estaria exultante por ver confirmadas as teorias que indicam uma fase de sadismo máximo na evolução da criança e que se inicia com a fase anal. Seguimos nos genufletindo diante das coisas do ânus, ò deus do olho!

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que desejo apontar é o poder e o fascismo esfincteriano que está no olho. É da crueldade excitante que está no ver, carregado pelos primitivos gozos da pulsão anal, e do gozo que está no não ver como forma de maltratar e submeter. É sobre isto que desejo falar. É do esfíncter, que a fase anal coloca no olho, de onde se deriva o poder narcísico que tem o ver e o ser ou não ser visto. É esse esfíncter que controla ‘se e quando’ de alguém deve ser retirado ou se a alguém deve ser dado o olhar. É o esfíncter psico-oftálmico que, piscando em alarme, comunica ao sujeito que ele está entrando em área de risco, aproximando-se dos limites a partir dos quais o homem já se encontra fora da jurisdição dos investimentos grupais – fora daquele “amor” que o grupo sente pelo indivíduo, até onde o indivíduo possa interessar ao grupo -, já se encontra no campo do banimento, reduzido a nada. Há uma sinalética anal que organiza o campo intersubjetivo destruindo a subjetividade para dar lugar a uma disciplina do desprezo, do rancor, da medida, do triunfo, do controle e do extermínio. Quando vejo que significar e pertencer são experiências que parecem ser da ordem do necessário ao homem, ou seja, são experiências da ordem daquilo que não pode não ser, me assusto por ver aí se abrir a perigosa fresta para a submissão e para o negócio oportunista das trocas, vejo a porta aberta para a mesquinhez, para o jogo de favores e para confusão entre o desamparo comum de todas as vidas e a miséria e humilhação humana. Se, de algum modo, nosso sentido vem do encontro entre os rostos, e se nosso sentido vem do valor que vem do olhar, e se o significado do ser vem do ser visto e ser levado em consideração, então posso pensar que uma forma do mal se manifestar, através das inúmeras figuras do ódio, é reter, é contrair o esfíncter que libera o amor e sugar esse mesmo amor de volta para o eu. É também retirar de alguém esse algo que está no olhar e que não nos pertence, que transforma o olhar não mais em ver, mas em negar o ver, fazendo que a visão seja a sede de um não visto que anula o significado da vida e do que pode significar uma coletividade mais capaz de fraternidade, e que parou de entender que o semelhante é o invasor. Assim, e infelizmente, o poder se torna aderido à retirada do olhar sobre a imagem, e isto dá à imagem seu poder maior que o ser. O poder eleva a imagem ao estatuto de ícone, de ideal, de sinal exterior que aponta para a prisão da identidade que uma identificação com o ideal constitui. Capturados no mundo óptico idealizado do objeto, visto como um deus a quem devemos imitar, caímos no universo do mimetismo. Universo de pura perda de ser, porque o que vale é se parecer com o que está nas cercanias, e assim esse impulso à identidade revela o quão pouco sabemos do eu e de como temos que nos basear no objeto para definir o que é nosso ser.

É aqui que nascem as relações violentas entre os que imploram e os que podem não dar o que os que imploram lhes pedem. Aqui nasce o jogo denominado crueldade social – paixão e fascinação –, aqui surgem os princípios da educação punitiva. A classificação meticulosa e hierárquica, o zelo desumano de quem vigia e o cuidado que não cuida, mas espia. No grupo social, na escola, no espaço de trabalho... Essas relações se espalham como praga por todos os cantos. Constituímo-nos em seres que espiam não para ver, nem para ensinar ou oferecer um campo de pensamento, pelo contrário, aqui o cuidado é apenas uma forma de encobrir o desejo de acusar e ver o castigo acontecendo. É apenas mais uma forma do ódio professoral do instrutor ter espaço para engordar. É mais um momento de dizer ao que veio o olhar cruel e o que, de fato, pretende. Aqui, todos sabemos, a pedagogia é a pedagogia da punição, e são as nádegas e o rosto os alvos primaciais de todas as instruções educacionais obsessivas, sempre em busca de construir o respeito pela via do medo, da culpa e do castigo. Na verdade o erro garante a quem ensina um bom motivo não para ensinar, mas para entregar-se a punir. O tapa na cara, a surra de vara nas nádegas consagram o triunfo da estupidez e da brutalidade sobre o pensamento e a inteligência. Enfim! Um “viva!” para aqueles que ainda não entenderam o que estamos fazendo aqui.

Ok!

Uma criança autista nega aos pais o seu olhar, desde bebezinho. Nega que seu órgão de visão seja também um órgão de troca. Prende o que está no olho dentro do próprio olho, e com isto priva o outro humano de sua presença viva e do jogo de sedução e conquista que está no cotidiano dos vínculos nos movimentos de ver e ser visto. Mecanismo simples e radical: o autista destrói o afeto da visão dentro do olho para não ver, nem sentir-se sendo visto e controlado pela visão. Eros está morto no olhar. Autismo é autoerotismo sem Eros! No entanto, o que importa não é o autismo, nem a paranoia que faz do olho um agente conspirador, incerto, fugidio. Aqui, o que destaco é a formação obsessiva do olho, sua função de cego para o outro e que está na base da criação do pária, do que é inferior, daquele que não tem quase nenhum direito de estar vivo porque está sendo visto com ódio de ser visto A deformação maldosa do homem e sua constituição social hierárquica problemática e perversa se associam às forças cruéis da organização obsessiva. As formas de dominação oftálmicas nos levam a crer que a perversão organizada sob a disciplina da racionalidade óptica é obsessiva e o sujeito vai ganhando um traço de caráter que leva a violência do controle ao seu ponto de excelência. Didática da vigilância. Eleva a morte ao clímax - e os escolhidos para morrer – e passa a usa-la como um critério de purificação e de ajuste seletivo. A neurose obsessiva nos constitui como um sistema de coerção verdadeiramente estúpido e sem pensamento. Na

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verdade nos constitui como um bando de veterinários buscando a melhor característica da raça, para torna-la monstruosamente perfeita. E também nos transforma em produtores de escória, produtores de seres lixo, seres que foram feitos apenas para serem expelidos. Escrevo em uma frase: a morte nos traz alívio! E a neurose obsessiva sabe como isto se organiza, basta que se encontre disponível o verdadeiro filho da puta, o líder canalha, o imoral e onipotente chefe de manada. Aquele que obedece ao deus que é ele mesmo, e, não tem dúvida, destrói o que o perturba. Cito um pequeno comentário que fiz sobre o trabalho fotográfico de Margarida Mamede Calligaris com pacientes do manicômio judiciário de São Paulo: “Se ‘ver’ é a função do olhar, o que se dirá quando a função do ver for odiar? Invejar é reduzir o olhar ao odiar. Se então a função do ver for invejar, ver deve ser odiar ao olhar. Portanto, invejar pode ser uma forma de não ver usando a função do olhar. Desta forma, IN-ver ao olhar é uma forma de matar ao olhar, é uma forma de in-vejar. Logo, a função do olhar é cegar.”

Yayoi Kusama1 “Foi em 1959 que me manifestei sobre [minha arte] obliterar a mim e aos outros com o vazio de uma rede tecida com uma acumulação astronômica de pontos.” - Yayoi Kusama. Repetição obsessiva: Obsessão infinita. A repetição leva a uma saturação que faz desaparecer a distinção das formas em questão no trabalho da artista. A obsessão de Kusama indica a obliteração do objeto pelo seu abuso. O abuso obsessivo do corpo nu e dos múltiplos tipos de apresentação do pênis e dos testículos, levam a imagem do pênis com os testículos diretamente à imagem das fezes, dos excrementos sólidos, das evacuações dos produtos de nossa digestão.

(Emir Tomazelli,10 de setembro de 2004)

http://culturabancodobrasil.com.br/portal/wp-content/ uploads/2013/12/CATALOGOKusama.pdf

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Penso que o ódio no olhar impede o poder admirar e o querer conhecer! E se a função aí morre, com ela morre também as chances de amor e de vínculo.

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obra de Melanie Klein nos oferece duas possibilidades para pensarmos nosso processo de crescimento e de possível humanização, entendida esta última como amadurecimento associado ao entristecimento, algo semelhante a um tipo de desilusão realista. Duas vias estão abertas para que cada um de nós se torne algo ou alguém: a) a via do narcisismo e b) a via da subjetividade. Defino o que suponho ser cada uma: a) A primeira via, a do narcisismo, vou defini-la como sendo a via da estupidez e do investimento no olhar do outro como mandante do eu. É nessa ilusão que vem do espelho óptico humano, ou do reflexo no olhar do outro, que o movimento de espatifamento esquizofrênico brota. Isto é: aquilo que deveria ser uma “multi-frenia”, ou seja, uma capacidade de multiplicação criativa, uma miríade de identidades e possibilidades, dá lugar a um estraçalhamento por identificação com o mundo de objetos, e isto se transforma em isolamento afetivo, e em uma religião de idolatria de si para o deus de dentro. O múltiplo e o multifacetado transformam-se no homem em cacos, onde os pedaços, as farpas, os estilhaços, e o espaço vazio em que esses cacos se deslocam, abundam quando não são contidos pelo olho que os vê. Daí a decorrente retirada do sujeito do mundo e a busca, a qualquer preço, da evitação da dor mental por um processo de encapsulamento narcísico e identificação com o objeto ideal. A defesa contra o desamparo é manejada através de um ardil: a busca desesperada do reflexo de si no olhar do outro, para se dar como aquilo que é perfeito ao olhar. Aquilo que em Freud funda o narcisismo e estrutura o ego, em minha observação redunda em um processo no qual o outro significativo se torna o mandante do eu. No narcisismo somos reféns do objeto e obedecemos ao seu poder psic-óptico e a sua voz. b) A segunda via, a da subjetividade e que também é a da tristeza, onde o significado de liberdade funde-se ao significado de responsabilidade (liberdade = máximo de responsabilidade), constitui a saída mais complexa e de maior envergadura simbólica para cada um de nós. A via da subjetividade, a mais difícil e mais trabalhosa, é uma segunda via que nos deve levar a um mundo onde o reflexo que nos constitui, e ensina quem somos, não vem do olhar sexualizado e cheio de libido dos pais que projetam sobre o bebê o que eles poderiam ter sido se fossem a criança amada pelos pais deles. Na subjetividade, o sujeito é um reflexo que não vem de ninguém, vem apenas da imagem devolvida pelo espelho d’água feito por nossas lágrimas em meio a nossas pernas, quando estamos com os cotovelos apoiados em nossos joelhos, sustentando nossa cabeça que chora olhando para o chão. É nesse espelho de lágrimas, onde nos miramos que podemos saber de nós. É chorando no chão que está logo abaixo de nós que compreendemos a jornada de solidão que nos espera e a força que precisaremos para construir nossa capacidade para sustentar a tristeza juntos. Algumas conclusões e reflexões: 1- Liberdade é o máximo de responsabilidade. Quem não responde por si mesmo não é livre. 2- Sem luto não há humanidade. Sem desilusão não há conhecimento, sem tristeza não delicadeza. Sem discriminação das qualidades emocionais, a alegria confunde-se com excitação eufórica, e conhecimento com desconfiança. 3- o modelo freudiano da realização alucinatória do desejo e o modelo da construção do gênero apontam para um tipo de aparelho em que o psíquico, conforme se agarra a alguma forma de prazer, despreza completamente o corpo como um dado.

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ESCrita e trauma

Ficção e trauma em Paul Auster A escrita de uma ausência * por Luís Henrique do Amaral e Silva

*O texto que vai publicado nesta edição é um capitulo da Tese de Luis do Amaral e Silva apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Psicologia. “Sacode-o ‘um impetuoso vento norte’, balança-o, a garganta tem espasmos, a marionete invoca uma última vez aquele que não existe, o pai.” Giorgio Manganelli – Pinóquio: um livro paralelo “... sempre se pede perdão quando se escreve.” Jacques Derrida – Circonfissão

Luís Henrique do Amaral e Silva é psicólogo, psicanalista e acompanhante terapêutico. Mestre em Psicologia (USP), com o trabalho intitulado “Dimensões e rumos da intersubjetividade: a resposta ética de Thomas Ogden”. Doutor em Psicologia (USP), investiga a dimensão do traumático na literatura e as modalidades de subjetivação contemporâneas em resposta a isso. Professor na Unianchieta (Jundiaí) onde ministra as disciplinas de Fenomenologia e de Ética para o curso de Psicologia. Professor do Instituto Tavola. Atende em consultório particular.

RESUMO SILVA, L. H. A. Ficção e trauma em Paul Auster. 2014. 131 p. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. O presente trabalho busca explorar como a dimensão do traumático incide na literatura contemporânea, mais especificamente, na literatura de um escritor nova-iorquino, Paul Auster. Supomos que as modalidades de subjetivação de determinado período histórico podem ser investigadas a partir de objetos estéticos culturais particulares, ou, pelo menos, que determinadas obras podem servir como uma espécie de testemunho e de historiografia dos sofrimentos de uma época. Esboçamos possíveis ressonâncias entre o plano geral da cultura e da história e o das qualidades específicas e expressivas de uma obra determinada, o que abre espaço para um diálogo entre esses domínios. Com isso, contudo, não se espera privilegiar o que é externo à obra em detrimento dela, e muito menos explicar a literatura pelo recurso a teorias e sistemas de compreensão prévios. Ao contrário, partimos de uma leitura próxima e imanente às obras para realizar ensaios a partir de três livros de Paul Auster: A invenção da solidão, O livro das ilusões e Noite do oráculo. Tais leituras seguiram uma espécie de ética da hospitalidade enquanto ética da leitura. Seguindo de perto as obras, e instalando-se nelas como num regime de habitação, fomos abrindo pontos de contato e comunicação entre as obras, bem como com outras dimensões da história, principalmente no que concerne a aspectos traumáticos e catastróficos. Os ensaios aventam a hipótese de que os livros de Paul Auster escolhidos demonstram, em seu aspecto mais formal, aspectos importantes do que veio a ser conhecido, na psicanálise, como compulsão à repetição. Além disso, a transmissão de aspectos indigestos e traumáticos transgeracionais, por via de criptas psíquicas, pode ser observada na própria autobiografia de Paul Auster, notadamente, A Invenção da solidão. As vicissitudes e destinos do trauma – em sua dimensão transgeracional e individual – são articuladas com o plano da cultura e com outros pensadores. Propomos, também, uma modalidade de leitura reparadora, em contraposição a uma leitura paranoica, para responder à complexidade e às ambiguidades das obras selecionadas.

Se fôssemos fazer uma espécie de pequeno (e incompleto) inventário de alguns temas que circulam e insistem na obra de Auster, na lista encontraríamos: o artista como pária, a incidência do traumático e dos eventos inesperados como modeladores da identidade, a relação entre ficção e realidade, o fracasso da linguagem para nomear e para religar palavras e coisas (a “queda” da linguagem), a ruína dos mitos fundadores da cultura americana, a solidão, o estar na multidão das grandes metrópoles, a escrita como forma de luto, o escritor e a tradição, a aleatoriedade dos eventos da vida, a tentativa de se abraçar o sem-sentido como modalidade existencial, o misticismo sem Deus e, para ficarmos apenas aí, o livro como (impossível) morada e exílio.

Palavras-chave: literatura; psicanálise; autores norte-americanos; trauma; ficção.

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A escrita de uma ausência Já faz quase um ano que ele tira fotografias de coisas abandonadas. No mínimo, tem duas tarefas a cumprir todos os dias, às vezes elas chegam a seis ou sete, e, toda vez que ele e seu séquito entram numa casa, confrontam-se com as coisas, as inumeráveis coisas rejeitadas, deixadas para trás pelas famílias que se foram. As pessoas ausentes partiram às pressas, todas elas, envergonhadas, confusas, e é certo que, onde quer que estejam morando agora (caso tenham encontrado um lugar para morar e não estejam acampadas no meio da rua), suas novas moradias são menores do que as casas que perderam. Cada casa é uma história de fracasso – de falência ou de inadimplência, de dívida e de execução de hipoteca – e ele assumiu a missão de documentar os últimos vestígios daquelas vidas desfeitas a fim de provar que as famílias desaparecidas estiveram ali algum dia, que os fantasmas de pessoas que ele nunca vai ver e jamais irá conhecer ainda estão presentes nas coisas descartadas, dispersas em suas casas vazias. (Auster, 2012, p. 7). Eis o primeiro parágrafo de um dos últimos livros lançado no Brasil de Paul Auster, Sunset Park, cuja trama se desenrola em plena crise americana das hipotecas, que, tal qual o Katrina, acabou por deixar, após enxurrada e vendaval, terras, casas e famílias devastadas. Essa referência à crise imobiliária norte-americana – ou aos rastros de sua passagem – denota que os “fatos” e acontecimentos da história comparecem, em alguma medida, como personagens nos livros de Paul Auster. Pode-se elencar uma série deles, que dão as caras abertamente, e muitos deles de ordem traumática ou catastrófica: num plano mais geral e coletivo (com todo o risco de generalização e imprecaução que se corre aqui), a perseguição e assassinato dos judeus na Shoah, a resistência e levante do Gueto de Varsóvia contra o exército alemão, o sofrimento da guerra no Camboja, o terrorismo e as ações virulentas dos EUA em resposta etc.; numa esfera mais individual, o sofrimento e sonhos de Anne Frank, o grito silencioso embutido nas pinturas do quarto de Van Gogh, a loucura e encarceramento de Hölderlin num quarto etc. Essa imagem de espaços vazios, com rastros de uma vida que já não está mais lá, de ruínas de subjetividades para sempre perdidas, poderia servir como uma entrada para quase todos os livros de Auster, o que poderia, aparentemente, e mais uma vez numa leitura apressada e preconceituosa, dar razão a James Wood quando este afirma que a obra de Auster é recheada de repetições, clichês e joguinhos pós-modernos superficiais. Esse famoso crítico literário norte-americano e professor de Harvard, assumidamente avesso e alérgico a quase todas as produções literárias que ele intitula de “pós-modernismo”, afirma, entre outros ataques contra Auster, que, neste, o vazio é sempre muito dizível. Tomaremos certa distância dessa crítica agressiva de Wood, que chega a ser mais condescendente e piedoso em relação a outros escritores contemporâneos a Auster, como Don DeLillo, por exemplo. Seja como for, de fato há uma ou várias obsessões e repetições a assombrar Auster. Os espaços vazios, o quarto onde o escritor, em sua solidão, percorre o mundo por intermédio da memória e da imaginação, a busca pelos desaparecidos, a aleatoriedade dos eventos da vida, a estranha “rima” que esses mesmos eventos adquirem quando colocados lado a lado, o livro como refúgio e/ou cárcere, a escrita como meio de lidar e elaborar o traumático etc. Essa insistência, que dá ensejo, é verdade, a sentirmos que estamos lendo novamente a mesma história1, mas com personagens diferentes, não nos parece o fracasso do escritor nova-iorquino em se reinventar. Antes, nos parece que há um atravessamento dessas imagens e temas na obra de Auster, muitas vezes numa modalidade que se assemelha aos mecanismos de compulsão à repetição com que as “cenas” traumáticas reaparecem em sonhos, ou mesmo em atuações. Reencenando e percorrendo essas imagens, numa espécie de paráfrase de sua própria obra, os personagens de Auster estão às voltas com a tarefa de terem de fazer o luto de diversas ausências e aspirações, bem como elaborar (ou perlaborar) cenas e situações traumáticas. O próprio Auster alude a essa imagem de que seus livros seriam o comentário insistente sobre uma mesma história ou evento. Porém, ao mencionar esse evento, a própria redação da segunda parte de A invenção da solidão, somos lançados numa paradoxal situação. Como veremos, esse segundo capítulo, intitulado “O livro da memória”, trata da meditação de uma multidão de temas e imagens, ainda que correlatas, além de poder ser lido como uma espécie de autobiografia intelectual. A questão crucial é que esse evento não tem o caráter de uma origem absoluta, já que, lá, somos remetidos e arremessados para diversas direções simultaneamente (a fatos da vida de Auster, à biografia de diversos autores etc.) o que, numa clara proximidade com o pensamento da desconstrução, problematiza a ideia de uma origem única e plenamente identificável de qualquer texto. Assim, se obras posteriores de Auster remetem e aludem a essa obra inaugural, quando para lá “voltamos” ficamos desnorteados ao sermos lançados para novas “origens”, novos comentários de comentários, numa cadeia aberta.

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Retornando ao parágrafo que lançamos no início, ele pode ser, então, descontextualizado e recontextualizado ad infinitum. Ora, então recuemos de sua suposta historicidade no momento – no caso em questão, a crise socioeconômica que se abateu nos EUA –, embora sem abandoná-la por todo, para podermos usar, provisoriamente, essa imagem como moldura para outras cenas de Paul Auster. Ou então aceitemos a ideia de que, talvez, não saibamos a que Auster se refere. Aceitemos esse fragmento disperso e arremessado no nosso texto e brinquemos com ele. O que nos sugere essa moldura?... Aqui, ela nos serve de antessala para adentrarmos em outra câmara. Em Auster, há sempre uma busca de pessoas e histórias desaparecidas. Um dos primeiros personagens desaparecidos de Auster, um personagem estranhamente bem real e irreal ao mesmo tempo, foi seu pai. A invenção da solidão foi escrito logo após a morte de seu pai, em plena crise conjugal e financeira de Auster, e num momento de transição de sua produção artística, quando começava a se sentir mais livre e autorizado para escrever em prosa. Tão inesperado quanto os acontecimentos traumáticos que irrompem em suas estórias, a morte do pai o lançou num tortuoso processo de luto, levado a cabo (ou assim se presume) com o auxílio da escrita. Já o título dessa primeira parte do livro, “Retrato de um homem invisível”, nos anuncia o tema e os impasses que Auster enfrentaria. Estamos no campo do visível invisível. O relato da busca e tentativa de reconstituição da história de seu pai – ou, como veremos, daquilo que era avesso à reconstituição – é marcado por uma voz narrativa em primeira pessoa, numa espécie de relato (auto) biográfico. Auster conta a história de seu pai e vai, durante a confecção do texto, afundando em camadas e mais camadas de mistérios e passagens da vida de ambos. A ideia de escrever sobre ele lhe surgiu num relance, quase como uma necessidade ou um comando imperioso: “Pensei: meu pai se foi. Se eu não agir depressa, sua vida inteira vai desaparecer junto com ele.” (Auster, 1982, p. 12). Ao contrário de suas expectativas, a morte em si do pai, pelo menos no princípio, não lhe gerou o entorpecimento que ele previa teoricamente quando se pensa a morte de um ente familiar tão próximo. De início sem lágrimas, sem tristeza, o que lhe afligia era o fato de que seu pai não deixaria vestígios. Não tinha mais esposa, sem amigos, sem alguém que dependesse dele, ninguém teria sua vida alterada com sua ausência (o que, veremos, não seria bem assim). Mas não só isso... Marcado por uma ausência em vida, como se já tivesse ido embora há muito tempo antes, antes mesmo de sua morte “real”, Auster descreve seu pai como alguém...


Destituído de paixão por uma coisa, por uma pessoa ou por uma ideia, incapaz ou sem ânimo de se revelar em nenhuma circunstância, ele conseguiu se manter longe da vida, evitar a imersão no âmago das coisas. Comia, ia para o trabalho, tinha amigos, jogava tênis e no entanto, em tudo isso, não estava presente. No sentido mais profundo, mais inalterável, meu pai era um homem invisível. Invisível para os outros e, muito provavelmente, invisível para si mesmo. Se, enquanto estava vivo, eu andava sempre em busca dele, sempre tentando encontrar o pai que não estava presente, agora que ele está morto, ainda tenho a sensação de que devo continuar à sua procura. A morte não mudou nada. A única diferença é que meu tempo se esgotou. (Auster, 1982, p. 13). Sam Auster, em sua invisibilidade em vida, quase como um fantasma, atravessava as paredes e não se detinha nos detalhes que o cercavam. Dono de hábitos rotineiros, Sam Auster sempre voltava do trabalho à noite e tirava um cochilo antes do jantar. Quando se mudaram para a nova casa (esta em que ele veio a falecer), Sam Auster cometeu, nos dizeres de Paul Auster, um “engano interessante”: ao invés de voltar para a casa nova após o trabalho, dirigiu-se para a antiga, lá entrou e foi se deitar na cama que já não era mais a dele. Apenas se deu conta quando a nova moradora do lugar gritou de pavor. Essa desatenção, que beirava uma ignorância metódica até, claramente também era dirigida aos membros da família. Entre as inúmeras passagens de indiferença e frieza que Auster descreve, podemos citar a reação do pai dirigida à esposa quanto ao iminente nascimento do filho: “Ridículo, disse ele, essa criança só deve nascer daqui três semanas – e saiu logo para o trabalho, deixando minha mãe sem o carro” (Auster, 1982, p. 26). Tendo passado o dia inteiro no hospital e dado à luz o futuro escritor, a mãe de Auster vê o marido chegar e fazer uma breve visita, acompanhado pela própria mãe, a avó de Paul Auster. Tão logo chegou, tão logo partiu. Trinta anos depois, após o nascimento do primeiro filho de Auster, Daniel, o avô dá uma rápida olhada para o neto, sobre o carrinho, e comenta com a esposa de Auster: “Um bebê lindo. Boa sorte com ele”. (Auster, 1982, p 27) Essa pouca disponibilidade para algo mais do que comentários estereotipados e evasivos e sua incapacidade ou impossibilidade de enxergar o outro parecem ter impactado mais dolorosamente ainda a irmã de Paul Auster. Diante dos recorrentes e cada vez mais debilitantes “surtos nervosos” (como Auster denomina) da irmã, Sam Auster negava que ela pudesse precisar de terapia, conforme um psiquiatra tinha recomendado. Não que ele não a amparasse. Apenas achava que seus surtos eram uma forma de “subterfúgio da personalidade”, que bastaria “colocar a cabeça no lugar”, “arrumar um emprego”, “começar a viver no mundo real”, “superar sua timidez” etc. Em relação à cegueira ou, antes, à falta de imaginação do pai em relação ao sofrimento da filha, Paul Auster comenta: Em que momento uma casa deixa de ser uma casa? Quando o telhado é removido? Quando as janelas são retiradas? Quando as paredes são postas abaixo? Em que momento a casa se transforma em um monte de escombros? Ela é só diferente, dizia meu pai, não há nada de errado com ela. E então, um dia, as paredes da casa um dia desmoronam. Se a porta ainda permanece de pé, no entanto, tudo o que a gente tem a fazer é atravessá-la, e já está de novo do lado de dentro. É agradável dormir ao ar livre sob as estrelas. Não importa que chova. Não pode durar muito tempo. (Auster, 1982., p. 34). Apesar disso, simultaneamente, Sam Auster também havia construído uma fortaleza extremamente vigiada e imune a invasões de estrangeiros. Um dos seus recursos e artifícios era criar personagens de si mesmo, muitas vezes muito caricatos, jocosos ou mesmo irresponsáveis. A capacidade de evasão do meu pai era quase ilimitada. Uma vez que a esfera do outro era irreal para ele, suas incursões nessa esfera eram feitas com uma parte dele mesmo que considerava igualmente irreal, uma outra pessoa que ele treinara como um ator para representá-lo na comédia vazia do mundo em geral. Essa pessoa substituta era essencialmente um gozador, uma criança hiperativa, um fabricante de conversa fiada. Não conseguia levar nada a sério. Como nada tinha importância, ele dava a si mesmo a liberdade para fazer o que bem entendesse (entrar de penetra em clube de tênis, fingir que era crítico de restaurantes para comer de graça), e a sedução que exercia para levar a cabo suas proezas era exatamente o que retirava todo o valor dessas proezas. (Auster, 1982., p. 23). Esse tom ressentido em relação às jocosidades do pai, contudo, contém uma grande dose de verdade quando se pensa o quão difícil seria conviver com alguém que nunca conseguisse estar plenamente presente a um encontro humano, a não ser se representado por um dos seus personagens ou comentários hilários ou evasivos. Como claro mecanismo de proteção, essa

ficcionalização doentia de si mesmo2 anunciava um fronteira invisível que nunca deveria ser atravessada por ninguém, ou que, se ameaçada de invasão, outros subterfúgios de evasão seriam acionados. Auster escava no amontoado de objetos-detritos de seu pai espalhados pela casa após sua morte (escova de dentes, bisnaga de tintura de cabelo, roupas à espera de alguém que nunca mais as usará, preservativos nas gavetas etc.), nas camadas rapidamente em processo de fossilização, buscando resgatar do olvido cacos e fragmentos de sua passagem pela vida, mas sabendo, de antemão, do fracasso de sua busca. O desespero de se deparar com objetos cujas histórias vão se apagando no sepultamento corrosivo de um buraco negro que os engole. Ao mesmo tempo em que tais objetos remetem a uma solidão que já não está mais aí, mas que ainda assim assombra na forma de um espectro, Auster também pressente que mesmo essa camada mais superficial (e, com a morte do pai, cada vez mais evanescente) do self, composta de objetos e utensílios domésticos, de registros de um cotidiano banal, precisaria ser perfurada por sua escavadeira literária e sua memória. Como se Auster precisasse aprofundar e abrir terreno para um mergulho (uma queda?) num buraco mais fundo, rumo a uma dimensão mais mineralizada, talvez anterior a qualquer fóssil, a qualquer vestígio encobridor que sinalizasse uma pseudo-vida. No meio do caminho, entre a superfície e as primeiras camadas subterrâneas, Auster se lembra de como gostava da maneira que seu pai assinava seu próprio nome. Ele não conseguia simplesmente pôr a caneta no papel e escrever. Como se adiasse de forma inconsciente a hora da verdade, ele sempre fazia um breve floreio preliminar, um movimento circular a quatro ou cinco centímetros da página, como um inseto zumbindo no ar e ajustando a mira no seu alvo, antes de poder baixar e pôr a mãos à obra. (Auster, 1982., p.38) Nessa camada no limiar do subterrâneo, Auster parece identificar uma indecisão e uma hesitação mais antigas, talvez a mesma dificuldade de habitar o presente que ele identificara em seu pai, em outras situações. Nesses microabalos sísmicos, nessa oscilação e tremor do existir que a oscilação da mão segurando a caneta desenha, e que quase passa despercebida por todos, Auster não deixa de intuir fraturas geológicas muito mais profundas e amplas. Ainda nesse caminho de perfuração, uma lembrança, agora positiva, quase como um relicário da memória perdido no meio dos escombros. 2 Ora, mas não poderíamos também aí encontrar, mesmo que a contragosto de Paul Auster, um certo fascínio que essa dramaturgia de si mesmo poderia ter exercido sobre ele?

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Auster se lembra de como seu pai lhe contava histórias de sua vida antes do casamento. Sam Auster contava do tempo que trabalhou em prospecção mineral na América do Sul e outras aventuras insólitas. O que encantava o filho era a maneira “elegante” e “rebuscada” com o que pai as contava. Uma das primeiras apreciações estéticas, narrativas e, talvez, literárias de Paul Auster. Nesse livro, Auster está às voltas com uma aparente tentativa de reconstituição de seu pai, mas, também, e simultaneamente, de reconstituição de si mesmo. Anterior a qualquer tentativa de reparação (embora isso não esteja excluído), na linha de pensamento da psicanalista Melanie Klein, parece-nos que Auster enfrenta os impasses da escrita como tentativa de um (auto) retrato. Um certo caráter de (res)subjetivação está implicado aí, numa esperança imperiosa de se salvaguardar alguma pele narcísica. Estaria aí a escrita atrelada a essa função de consolo, ou mesmo de cuidados narcísicos? Mas se assim o for, qual o custo (sacrifício) disso?. Mas voltemos aos aposentos do senhor Sam Auster antes que sejamos oferecidos num altar qualquer... No quarto do pai, numa gaveta, Auster encontra centenas de fotografias esparramadas e, junto, o álbum, muito volumoso e com o título na capa em letras douradas “ESTA É A SUA VIDA: OS AUSTER”. Ainda que uma espécie de registro pré-histórico do pai, tais fotos, contudo, contavam a vida de um fantasma. O interessante era que as fotos não estavam coladas no álbum, mas jogadas e dispersas na gaveta, como se tal álbum e seu título representassem uma promessa nunca cumprida. Ao abrir o álbum, de fato Auster encontra páginas em branco. Uma brancura que, aos moldes dos paradoxos e dos devaneios de Bachelard, parece revestir, no entanto, um negrume muito intenso. A narrativa não é assim linear. Auster interrompe as memórias, desvia-se, passa páginas e páginas remontando-se a outras histórias, como se precisasse contornar alguns círculos antes de chegar a um suposto centro. Umas das intrigantes fotos que ele encontra é uma montagem, feita nos anos 40, com várias imagens superpostas de seu pai. A princípio, num primeiro lance do olhar, poderia parecer se tratar de diferentes homens, mas prontamente desmentido pelo segundo olhar.

Figura 1 – Foto da capa da edição americana de A invenção da solidão.

Porém, o que a princípio parecia ser apenas uma brincadeira irônica, um breve comentário – sob a forma de imagem – de si mesmo, Auster (e nós também) apreende mais coisas... Em virtude das trevas que os envolvem e da completa imobilidade de suas poses, parece que se reuniram ali para promover uma sessão espírita. E então, quando examinamos melhor a fotografia, começamos a notar que todos aqueles homens são o mesmo homem. A sessão espírita se torna uma realidade e tem-se a impressão de que ele foi até lá só para invocar a si mesmo, trazer a si mesmo de volta do mundo dos mortos, como se, ao multiplicar-se ele inadvertidamente tivesse feito desaparecer a si mesmo. Há cinco imagens dele ali e no entanto a natureza do truque fotográfico rejeita a possibilidade de contato visual entre as diferentes personificações. Cada uma está condenada a olhar fixamente para o vazio, como que por baixo do olhar dos outros, mas sem ver nada, sempre incapaz de enxergar o que quer que seja. É um retrato da morte, o retrato de um homem invisível (Auster, 1982, p. 40). Aqui, uma queda, ou um espatifar em cópias de si mesmo, não sem uma certa vertigem. Essa pulverização de personagens, de selves, ou mesmo de espectros parece ser já um anúncio, a primeira aparição dessa estrutura mise en abyme, um tropos retórico que percorrerá incessantemente toda a obra de Auster.

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O morto parece brincar com os vivos. Esconde-se, recusa-se a se mostrar, mas também convida a uma aventura traiçoeira. Na ida ao encalço desse fantasma está todo o risco que Paul Auster corre, talvez um risco de se cair num buraco mais fundo junto com ele, abraçado a ele, um buraco chamado melancolia. O risco da melancolia não só espreita a todo momento A Invenção da solidão, como também a própria redação do texto tem ares melancólicos. A escrita, então, como um espaço e um tempo de elaboração, de promessa de cura ou mesmo redenção, mas que também comporta perigos e faz reavivar a dor e o medo por constantemente também invocar tais fantasmas. A mão hesitante do pai que segura a caneta, a dor na mão de Auster ao manter viva a memória de seu pai... Posteriormente, na outra parte do livro, a mão de Collodi segurando a pena que mergulha no tinteiro, que reenvia a Pinóquio – esse pedaço de pau falante – mergulhando na escuridão da barriga do tubarão, e que lá encontrará Gepeto... A escrita não dá garantias definitivas de cura, e sua travessia é cercada de riscos, entre eles, o risco de se cair, de ser engolido numa escura imensidão... Mesmo depois de morto, o morto ainda carrega uma vida que continua a prosseguir, e que talvez não saiba que já estava morta: unhas e cabelos que continuam a crescer podem remeter a essa paradoxal condição de um copo morto ainda pulsante. Em Espectros de Marx, Derrida (1993) nos lembra dessa condição intermediária e híbrida do espectro: nem totalmente morto nem plena presença viva. Retomando o que havíamos dito no início, não somente pequenas passagens e parágrafos introdutórios podem servir de entrada para os demais livros, como também todos os livros podem servir como o comentário infinito um do outro. Aqui, a suposta abertura do livro a recorrentes “comentários” também desenha uma clausura.3, que também não deixa de ser o risco de clausura, confinamento e limite da escrita, ou mesmo da clausura na melancolia, ou na loucura. O mise en abyme também estrutura as camadas interconectadas de ausências. Uma primeira ausência (a morte do pai que já não mais está aí) que cai para dentro de si mesma (um pai ausente em vida e que nunca esteve aí) que, por sua vez, despenca numa outra ausência ainda mais funda (o fundo sem fundo de uma alteridade para sempre inapreensível, uma condição universal de toda alteridade radical). A confecção do livro parece seguir, segundo Auster dá a entender, pelo menos nessa primeira parte, uma abertura para acontecimentos, para descobertas. Outra foto. Outra coincidência. Antes mesmo do que apenas uma imagem, a sensação mesma de clausura ao lermos seguidamente os livros de Auster poderia ser um dos indícios de que não só algumas figuras do traumático percorrem sua obra e seus personagens, como também esse traumático produziria, em alguma medida, tais sensações de estreitamento, aprisionamento etc.

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Auster nunca soubera, de fato, como o seu avô paterno tinha morrido. As histórias que Sam Auster contava, assim como o próprio, eram múltiplas, a cada página virada um novo motivo e um novo conto para dizer o que não se podia dizer: Na minha própria infância, ele me contou três histórias distintas sobre a morte do seu pai. Em uma versão, tinha morrido em um acidente de caça. Em outra, caíra de uma escada. Na terceira, levara um tiro na Primeira Guerra Mundial. Eu sabia que essas contradições não faziam sentido nenhum, mas supus que isso significava que nem mesmo meu pai tinha conhecimento dos fatos. Como era muito pequeno quando aconteceu – só sete anos –, imaginei que nunca lhe tivessem contado a história exata. Só que isso também não fazia sentido. Um dos irmãos sem dúvida teriam contado a verdade para ele. (Auster, 1982, p. 42). Contudo, também os primos tinham ouvido as mesmas diferentes histórias dos pais. Eis que Auster encontra outra foto de seus antepassados nos primeiros tempos de sua vida na cidade de Kenosha, em Wisconsin. Na foto, o pai de Auster, com não mais do que um ano, no colo de sua mãe, e os outros quatro irmãos ao lado dela. Ao fundo, a casa onde moravam e, ao redor, a grama alta e parte do tronco de uma árvore, mas um tronco aparentemente partido. A foto, claramente, tinha sido recolada e cada pedaço justaposto aos demais para re-formar a imagem. No entanto, num olhar mais detido, algo que Auster nem se deu conta no começo, nota-se que um dos irmãos se apoia em algo ou alguém que não está ali. Havia uma ausência ali, uma parte desligada e rasgada. Um tronco familiar que parece rompido... Vi as pontas dos dedos de um homem segurando o torso de um dos meus tios; vi, de forma bem nítida, que outro de meus tios não estava apoiando a mão nas costas do irmão, como eu pensara a princípio, mas em uma cadeira que não estava ali. E depois me dei conta do que era esquisito na fotografia: meu avô fora suprimido. A imagem estava distorcida porque parte dela fora eliminada. Meu avô estivera sentado em uma cadeira ao lado da esposa com um dos filhos de pé entre seus joelhos – e ele não estava ali. Só as pontas dos dedos permaneceram: como se ele tentasse voltar sorrateiramente para a fotografia, vindo de algum profundo buraco no tempo, como se estivesse sido exilado para uma outra dimensão. A coisa toda me fez tremer. (Auster, 1982, p. 43).

para os primeiros registros fósseis e os primeiros desenhos nas paredes. Um sofrimento talvez impensável esse o testemunhado pelo então pequeno Sam. Nunca falou disso com ninguém. Sabe-se que, com a absolvição da avó no julgamento (o advogado havia conquistado a sensibilidade do júri para mostrar que havia sido um crime de ciúmes passional), a família se reunira novamente, e Sam continuou a viver com a mãe, completamente devoto a ela. A matriarca, além de mãe judia e boa de mira, era de uma assertividade ímpar e também não tinha nenhum pudor em, por exemplo, invadir o quarto de Sam, quebrar e espatifar seu pequeno cofre e pegar o dinheiro que ali tinha, com a alegação que era para pagar as contas da casa. Sam Auster, então, passara a vida num reino do “imprevisível”, como diria Auster: Para um menino, significava que o céu poderia desabar por cima dele a qualquer momento, que nunca poderia estar seguro de nada. Portanto, aprendeu a nunca confiar em ninguém. Nem em si mesmo. (Auster, 1982, p. 61). As cenas de desabamento vão, de fato, comparecer literalmente (ou literariamente?) em vários outros livros. Entre uma dessas inúmeras cenas, por exemplo, o desabamento de uma galeria em que estava ocorrendo um concurso de dança, numa das cenas de A noite do oráculo, ou então, ainda no mesmo livro, a cabeça de gárgula que se desloca da fachada de um prédio e despenca em cima de Nick Bowen, personagem de uma história dentro de outra história (no mise en abyme, as quedas são para dentro de histórias também, uma caindo e escorregando para dentro da outra). Porém, se nessa primeira parte de A invenção da solidão Auster está em busca de seu pai para sempre desaparecido, na segunda, intitulada “O livro da memória”, parece que Auster sai em busca de si mesmo, tomando suas memórias como pistas e vestígios. Aqui, vale citar a epígrafe escolhida por Auster, retirada da história de Pinóquio.

Figura 2 – Frontispício de A invenção da solidão. O pai de Sam Auster havia sido assassinado (literal, simbólica e fotograficamente) pela mulher. A avó de Auster, num dos seus episódios enlouquecidos de ciúme (a bem da verdade, o avô aprontava lá das suas), atirara no marido, em plena cozinha, tendo como uma das testemunhas Sam Auster, ainda garoto, com sete anos. Também ela havia rasgado e remontado a foto. Paul Auster reuniu as matérias que encontrou sobre o evento, que, à época, foi amplamente noticiado na cidade, como um caso que comprovava a loucura dos judeus: “Li as matérias como se fossem história. Mas também como desenho feito nas cavernas, descoberto nas paredes internas de meu próprio crânio”. (Ibid., p.46). Das cavernas pré-históricas mineralizadas, passamos

‘Quando os mortos choram, é porque estão começando a se recuperar’, disse o Corvo em tom solene. ‘Lamento ter de refutar meu amigo e colega ilustre’, disse a coruja, ‘mas, no que me diz respeito, creio que quando os mortos choram, significa que não querem morrer’. (Auster, 1982, p. 85). A assombração do pai, ou então o pai como enigma, invadirá os aposentos mais recônditos de Auster. Nessa segunda parte, Auster distancia-se de si mesmo e cria um intervalo e uma lacuna, também ele ficcionalizando-se num personagem (em entrevista, ele havia dito que

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já não conseguia escrever em primeira pessoa para falar dessas memórias que surgiam em resposta à morte do pai). Adota a terceira pessoa do singular como voz narrativa. Nomeia-se de A. e continua a se chamar assim por todo o texto. É um livro composto de outros treze livros, chamados livros da memória, que vão tecendo e disseminando associações e imagens, ainda que sempre de maneira elíptica, como que numa órbita aberta. O ano da redação é 1979, em pleno período de crise do casamento, após a morte do pai, além da do avô materno. Nesse livro, Auster, antes de se identificar com o pai, nessa espécie de luto arriscado, sempre nas bordas da melancolia, parece incorporá-lo, ou, pelo menos, incorporá-lo como ausência, como que para circunscrevê-la. Poderíamos arriscar dizer que Auster encripta o pai. Ao contrário do fantasma-bebê do livro Amada, de Toni Morrison (1987)4, cujo sofrimento e rancor é bastante violento e audível nos movimentos das cadeiras, das gavetas e dos armários, nos aposentos de Auster o fantasma caminha silenciosamente. Ou antes, ele marca sua ausência na austeridade do aposento. Auster, afastado da esposa e do filho, passava a semana num quarto, um prédio comercial da rua Varick, que antes fora o local de trabalho de um eletricista. Não era, portanto, um quarto para se habitar. Sua decoração era feita de canos e demais estruturas à vista na parede, com os poucos objetos e utensílios necessários a uma vida ascética (“um punhado de livros, um colchão no soalho, uma mesa, três cadeiras, um fogareiro elétrico e uma pia de água fria toda carcomida.”)... Uma peculiar história do quarto é traçada no “Livro da memória”. Quartos como os de Van Gogh, Anne Frank, Hölderlin, Descartes, mas que se estendem a muitos outros quartos e modalidades de reclusão, cárcere, hospitalização, recolhimento, retraimento etc. O quarto de Auster na rua Varick é inóspito, esvaziado, impossível como morada. No entanto, além da comunicação silenciosa com o centro imaginário e inalcançável do pai, o quarto de Auster também serve como uma moldura aberta para a imaginação poder povoá-lo, embora, a cada saída de Auster da casa e seu posterior retorno, Auster enfrentaria a dolorosa reincorporação e conquista desse espaço. A cada volta, o recomeço de um instante, a hesitação (a mesma do pai?) de se assumir uma existência, onde a lassidão expressaria essa recusa ou o cansaço do existente em enfrentar sua existência. Habitar um buraco negro, algo que a astrofísica parece não aconselhar aos viajantes intergalácticos (o despedaçamento é um risco a ser pensado), é possível, no entanto, nesses estados de extremo desespero, solidão, ou então no estado da alma em busca poética. No entanto, também nesse devaneio uma força gravitacional parece atrair os corpos uns para os outros. A atração e queda quando um corpo menor entra no campo gravitacional de outro maior é o que Newton advertiria aos incautos aqui. Notemos que, ainda na primeira parte desse livro, Auster chegou a descrever seu pai como um “titereiro que controlava seu alter ego, a partir de um local escuro e solitário, atrás das cortinas” (Ibid., p. 23). No teatro dos bonecos controlados por fios invisíveis a graciosidade ocorre pela leveza dos movimentos, pela maneira atraente e leve com que o boneco vence a força da gravidade, dando a ilusão de ser capaz de, em sua dança fluida e solta, subir e descer ao seu bel-prazer (na verdade, segundo os desígnios de um Outro, aquele que o controla)5. Porém, em Auster, os bonecos já se espatifaram, ou os fios invisíveis se soltaram. Eles estão sempre em queda ou em situações pós-queda (que se aproximam de situações pós-traumáticas). Não por acaso, temos a recorrência de imagens de corpos que caem (mesmo o fracasso do corpo em lutar contra a gravidade e a força do tempo, no envelhecimento), quedas de objetos, dificuldades de se ficar em pé em decorrência de problemas nas pernas, ou então, ao contrário, uma queda para cima, como no personagem fantástico de Mr. Vertigo que era capaz de levitar. E eis que escutamos o primeiro choro de Auster, mas um choro deslocado, fora de lugar, mas que traz profundas ressonâncias e condensações de sentido. Auster se lembra de sua viagem a Amsterdã. Lá, “por acaso”, perdera-se nas ruas circulares (como os infernais círculos da memória). Resolve, como que do nada, visitar o quarto – tornado museu – de Anne Frank. De repente, olhando para as fotos desbotadas de estrelas de Hollywood que ela colecionara, ele se viu chorando: “Não soluçava, como pode ocorrer em reação a uma profunda dor interior, mas chorava sem fazer barulho, as lágrimas corriam pelas faces, como que em uma pura reação ao mundo.” (Auster, 1982, p. 95) Auster não chora por seu pai (será?), mas pelo confinamento e sofrimento de uma alma, vida e sonhos brutalmente interrompidos. O terror desse quarto, o que a espreitava lá fora, e que se avolumava e se aproximava em ondas de pesadelo, em marcha. A menção à Segunda Guerra Mundial e à morte dos judeus, representados e condensados no quarto de Anne Frank, insere o sofrimento da menina numa cadeia de Nesse livro, a mãe de Amada mata sua filha, ainda bebê, para que a mesma não fosse recapturada e tivesse seu destino novamente devolvido à escravatura. O que aterroriza nesse bebê é a desproporção de sua força e sofrimento – expressos nos ruídos, nos móveis que se atiram sem nenhuma causa aparente etc. – diante de pequenez de seu corpo. 5 Cf. Caruth, “The falling body and the impact of reference”, in Unclaimed Experience: Trauma, Narrative, and History, 1996. 4

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desamparo e violência cuja origem e fim não sabemos muito bem onde começa e termina. No transcorrer do livro, aparecem sucessivas séries de crianças em desamparo, da guerra no Camboja até crianças não nascidas. Algumas crianças são particularmente lembradas, crianças que não conseguiram ser salvas por seus pais: Anatole (filho de Mallarmé), Titus (filho de Rembrandt), Mur (filho da poetisa Marina Tzvetáieva)... As lembranças dessas são intercaladas com as de seu filho, Daniel. Cada vez mais, Auster vê em Daniel a si mesmo. Porém, vê também seu pai no filho Daniel, seu pai olhando para ele, Auster, a partir de sua infância em Kenosha. Presente, passado e futuro são paredes transpostas, de uma só vez, pela imaginação-memória que religa as gerações. Sam Auster também foi aquele que não conseguiu ser salvo (Auster não diz, mas poderíamos assim entender). A meditação no quarto leva Auster a percorrer imagens de salvação e redenção em outras figuras literárias. Pinóquio encontra Gepeto na barriga do tubarão, onde já a esperança tinha começando a se apagar, da mesma forma que a última vela acesa que ainda sobrara dos mantimentos do navio. Com o pai em suas costas, Pinóquio nada para fugir do ventre do tubarão (que é uma baleia, na versão em desenho da Disney). Uma fantasia (talvez um delírio) de um filho salvando e mesmo permitindo o (re) nascimento do pai. Nessa imbricação de gerações, de história e dramas coletivos e pessoais, de figuras literárias, bíblicas e fantasmáticas, Auster se reúne numa encruzilhada ao lado de muitos personagens e companheiros de viagem... e chora. Ele quer salvar também seu pai, salvar o pai que o filho, Daniel, faz lembrar, e também ser salvo por ele. Reinserindo essa dimensão traumática, de perdas e mutilações muito concretas, numa narrativa simultaneamente literária e histórica (autobiográfica), Auster permite que uma temporalização possa ocorrer, numa espécie de descongelamento e reabertura da história, em seu devir6. Nesse caso, a Aqui, é interessante mencionar a diferenciação que LaCapra (2001) faz entre ausência e perda, e os riscos de se confundir uma com outra. A ausência, para LaCapra, situa-se num nível trans-histórico e constitucional do existir, não podendo ser contornado ou ultrapassado, mas apenas enfrentado. Elenca-se, aí, entre outros signos dela, a ausência de fundamentos absolutos do existir (de origens plenas, de destinos teleológicos etc.). As perdas, por sua vez, são sempre historicamente localizáveis como eventos, mas são acontecimentos que abrem a possibilidade de serem retomados, relativamente recuperados, relativamente reparados etc. Todavia, quando a ausência é identificada como perda, então emergem todos os processos de mitologização, de tentativas de se recuperar um passado pleno e puro etc. Ao contrário, quando uma perda é convertida em ausência, perde-se de vista o caráter único, singular, desse evento, o qual passa ser inserido 6


perda do pai – um evento histórico identificável – deixa de ser confundida com uma ausência constitutiva do existir. Aqui, está em jogo uma possível passagem e trânsito de uma melancolia infinita a um luto possível. Em Auster, os giros que a memória perfaz, a cada volta do carretel, puxam e enlaçam diversas dimensões da existência, e arrastam consigo os personagens ao redor. O choro é de Paul Auster... mas também é de seu pai, Sam Auster, é de Mallarmé, é de Anne Frank, é de Anatole, é de Van Gogh... é nosso. As diversas figuras dos quartos, embora possam dar margem e também comportem as imagens da cela, do claustro, do aprisionamento, da mônada leibniziana, também abrem espaços para outras modalidades do recolhimento (o lugar do repouso, do sono, do sonho, da escrita, da hospitalidade, do castelo da alma, como em Teresa D´Ávila etc.). Assim, o extremo vazio do quarto da rua Varick se transforma em condição de possibilidade e abertura de um sonhar não preso às dimensões físicas, um sonhar sensível e imaginativo o suficiente para ser tocado por outros “quartos”. A fina sensibilidade de Auster aos gritos silenciosos, impedidos de serem vocalizados, pode ser notada assim, por exemplo, em sua apreensão de um dos quadros de Van Gogh (um da série “o quarto de dormir”), que merece ser citada na íntegra. A primeira impressão de A. foi de fato uma sensação de calma, de “repouso”, como o artista a descreve. Mas aos poucos, à medida que tentou habitar o quarto apresentado na tela, começou a experimentá-lo como uma prisão, um espaço impossível, uma imagem não tanto de um lugar para morar, mas sim da mente que foi forçada a viver ali. Observe com cuidado. A cama bloqueia uma porta, a cadeira bloqueia a outra porta, a janela está fechada: não se pode entrar e, uma vez lá dentro, não se pode sair. Sufocados no meio dos móveis e dos objetos do dia-a-dia no quarto, começamos a ouvir um grito de sofrimento nessa pintura e, uma vez que o ouvimos, ele não para mais. ‘Gritei por causa de minha angústia [...].’ Mas não há resposta para esse grito. O homem nessa pintura (e é um auto-retrato, em nada diferente do retrato do rosto de um homem, com olhos, nariz, lábios e queixo) ficou tempo demais sozinho, debateu-se tempo demais nos abismos da solidão. O mundo termina na porta bloqueada. Pois o quarto não é uma representação da solidão, é a própria substância da solidão. E é uma coisa tão pesada, tão irrespirável, que não pode de modo algum ser mostrada em outros termos senão naquilo que é. ‘ E isso é tudo – não há nada nesse quarto com a janela fechada [...]’. (Auster,1982, p.160).

Ainda em Amsterdã, Auster, da janela do quarto de Anne Frank, vê os fundos de outra casa, onde há um quintal, com brinquedos para crianças. É o fundo de uma casa onde Descartes chegou a morar. À sombra de dois quartos – um como signo do sofrimento sem sentido, outro como emblema da racionalidade ocidental –, um playground. Nesse intervalo entre dois quartos, duas janelas, Auster medita como seria para uma criança crescer sob a sombra do quarto de Anne Frank7. Como crescer sob a herança de um sofrimento insustentável? Do outro lado, a cumplicidade de outro olhar, o olhar da Razão tornada método. No intervalo, o lugar do brincar (da literatura?), entre a “seriedade” e o sofrimento. No choro de Auster em “seu” quarto (de quem é o quarto?), reúnem-se muitos outros quartos, muitos outros choros. Precisaríamos aceitar que o quarto poderia ser melhor descrito como uma casa com múltiplos aposentos. Na casa do Pai, há muitas moradas.

É interessante mencionar que, num outro contexto, Didier Anzieu, famoso psicanalista, também notara e apreendera a profunda dor e o vazio ilustrados pelas pinturas do quarto de dormir de Van Gogh. Para Anzieu (1985), a série de quadros do quarto de dormir, embora ainda uma espécie de autorretrato em negativo, como que já prenunciariam uma ausência final, a morte decorrente dos ferimentos na suposta tentativa de suicídio. O quadro do quarto de dormir é um auto-retrato, não mais o retrato do pintor presente a si mesmo, mas o retrato do pintor que se ausenta de sua obra e logo mais de sua vida. É a representação de uma alucinação negativa: a pintura absorve e faz desaparecer o pintor no nada [néant]’ (1985, apud Figueiredo, 2014, p.93). Numa sucessão de equivalências, os quartos arrastam diversos gritos dentro si (inclusive o seu), e ao mesmo tempo um só, o de seu pai. Conforme a obra de Auster avança, os gritos e os fantasmas vão se avolumando na forma de personagens, pois também estes se transformam em espectros a assombrar o autor. Em Viagens no scriptorium, o personagem principal, em seu quarto – que não se sabe até o final do livro se é uma cela, um quarto de hospital, um sanatório ou o uma alucinação –, é visitado por fantasmas que são claramente as vozes e imagens de personagens de Paul Auster, enviados, livro após livro, para diferentes missões, em busca de outros desaparecidos, e reaparecem como personagens em busca de um autor, para parafrasear a peça de Pirandello (1921). Mas também podem ser a marcha de outros refugiados, de outros povos, caminhando para não se sabe aonde, vindos de lugar nenhum. A instabilidade e a indecisão quanto à origem e ao destinatário do texto, caráter por excelência da literatura, comparece aí com toda força e expressividade. O quarto como equivalente do livro, ou como o local onde o livro se escreve, ou como claustro, ou como útero para o renascimento, ou como esconderijo, ou... numa zona indiferenciada de ausências que fariam supostamente parte do humano, num nível trans-histórico. Como um exemplo, o Holocausto perderia sua singularidade e seria mitologizado como um episódio a mais da já conhecida decadência e violência do homem.

7 Auster, embora não assuma diretamente a sua condição de judeu, ainda assim herda a sombra dessa tradição e o que está vinculado a ela.

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Fotografia e Arte

Cemitério, guardião de artes e ossos por Giorgi Denner

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palavra “cemitério” vem do latim tardio coemeterium, derivado do grego κοιμητήριον [kimitírion], a partir do verbo κοιμάω [kimáo] “pôr a jazer” ou “fazer deitar”. O corpo sem vida do ser humano, para muitos grupos já serviu de alimento; algo selvagem, mas algo de necessidade também, sobrevivência. Cemitério bem poderia ser algo de “sementeiro”, algo onde se planta para fazer renascer da semente, mas não, esta semente não vinga e o enterro sempre foi algo higiênico e depois até mesmo enfeitado como algo sagrado, algo de civilizado num espaço quase comum entre todos os povos modernos. Os túmulos chegaram a um ponto em que pirâmides eram construídas para proteger o corpo e a alma. Foram as maiores construções por 4.000 anos e nenhuma cultura rivalizou com os egípcios na construção de monumentos até o século XIX. Os cemitérios tiveram arte digna dos melhores escultores, muito trabalho e um retorno não muito compensador se visto pelos olhos do nosso tempo, onde quase tudo são enfeites de moldes que se multiplicam. Os monumentos em túmulos e os próprios túmulos foram por longos períodos, obras invejáveis, obras aos mortos, a suas memórias, mas refletindo muito mais aos olhos de seu mentor, uma poesia gélida e rígida em vigília eterna homenageando o seu ente que partiu, esposa, mãe, pai, filho... A morte é o final, um dos únicos momentos e acontecimentos que podemos dizer definitivo. Cada país, cada grupo tribal, traz em suas simbologias quanto a seus mortos, seus próprios sentimentos. E neste momento, nós, homens “civilizados”, somos econômicos em nossa memória, onde os especialistas de “adornos” sepulcrais, estão em falta ou inacessíveis financeiramente, ficando muito mais no campo arquitetônico do que artesanal, muito mais no mármore e concreto do que no símbolo. Temos no Brasil o poeta da morte e da melancolia, Augusto dos Anjos. Aqui, no incrível poema “Versos Íntimos”, ele diz: Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão - esta pantera Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija!

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A morte, na verdade, continua sendo um comércio valorizado, sendo usada como referência a quase todas as religiões, seitas, e outras, mas o que a grande maioria das pessoas vê são ossos, e muita mística ao redor.

Giorgi Denner é produtor de Cinema, fotógrafo e poeta. Faz documentários nas áreas histórica, indígena, e vários curtas-metragens ficcionais. Livros: “Labyrinthos” e “Orquídea”. Como fotógrafo, fez várias exposições fotográficas: sobre indígenas e sobre o Peru Histórico. Observações sobre o “estado de terror” “Enquanto a questão de poder velar e enterrar os corpos não for tratada de forma digna, a gente vai continuar repetindo e sem mexer nas vísceras naquilo que foi o estado de terror. A questão dos cemitérios é muito interessante, pois toda luta sindical nasce em como enterrar os mortos. A questão do cemitério acompanha toda uma batalha pela dignidade humana.” – Miriam Chnaiderman


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por Eduardo Pánik

cinema

JAMES BOND NA MONTANHA CELESTIAL

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exibição no ano 2013 do filme Skyfall, da série sobre o famoso agente 007, e sua posterior análise resultam instigantes em diversos sentidos; Aqui, em modo particular, no que tange a diversos assuntos psicológicos e, mais especificamente ainda a elementos da psicanálise e da psicologia analítica, incluindo a presença de símbolos míticos.

I - A montanha como local sagrado Grande quantidade de textos de Antropologia e História das religiões fazem menção à montanha como local especial, que as culturas primitivas identificavam como residência dos deuses, ou como vínculo privilegiado para aproximar-se do divino. Pode-se lembrar, em tal sentido que, no Antigo Testamento judaico, Moisés se encontrava com Deus – que precisamente no Monte Sinai lhe entregou as tábuas com os dez mandamentos, segundo o relato do livro Êxodo. Também na Grécia clássica o Monte Olimpo era considerado como especial: lá estava a morada dos deuses. Entre esses diversos autores que já têm apontado essa relação e prevalência da montanha como lugar sagrado, podemos citar, por exemplo, Mircea Eliade, em seus prestigiados e principais trabalhos “O mito do eterno retorno”, “História das Religiões”, e outros. Ainda hoje, os seres humanos têm a tendência a olhar para cima, quando querem referir-se à divindade ou elevar algumas preces a ela. Só imaginação que ignora aquilo que a ciência longamente demonstrou: estamos em um planeta aproximadamente redondo, em meio do espaço sideral, no qual não há acima ou abaixo. Porém, olhar para cima procurando vincular-se com um ser superior continua a ser atitude arraigada e muito comum, ao menos no Ocidente. Lembremos, também, que entre outras variantes, Deus é chamado de “O Altíssimo”.

*Eduardo Pánik é natural da Argentina. É professor em Humanidades, especialidade em Filosofia e Pedagogia. Foi crítico de cinema em rádio, jornalista, docente de cinema e integrante do organismo oficial que classifica filmes por faixa etária, antes de sua exibição pública, na Argentina. Autor do livro “A classificação cinematográfica” (1990) – La Calificación Cinematográfica – análisis y estadística 1984-1987.Palestrante de mini-cursos sobre cinema e jornalismo no Chile e Uruguai. No Brasil, se tornou Mestre em Comunicação Social (1994), Doutor em Ciências da Religião (1999) e Psicanalista Clínico (2013). Participou do Júri no Festival de Cinema de Berlim (1999) e Cannes (2001). Professor de diversas disciplinas em universidade privada – Universidade Metodista de São Paulo. Disciplinas: Filosofia, Ética e Cidadania, Cinema: alienação ou criação (1999 – 2006) – e em forma autônoma. Hoje, também desempenha um trabalho como Psicanalista clínico.

II - Cinema e mentalidade mítica 1 - As artes em geral e o cinema em particular se vinculam com aspectos conscientes e inconscientes, tanto dos criadores (diretores, roteiristas e demais envolvidos) quanto do público. O cinema, também entendido como meio de comunicação de massas, se exprime em imagens criadas muitas vezes para atingir os espectadores não apenas em modo racional mas também em modo emocional. E em inúmeras oportunidades a mentalidade que prevalece nas imagens, nas suas entrelinhas e assim mesmo na captação que tem o público é de índole mítica. Embora criado como espetáculo público, comercial, em dezembro de 1895 – ou seja no final do século XIX –, isto é, em etapa histórica distante da pré-história onde prevaleciam as lendas, contos e outros relatos e crenças de condição primitiva, o cinema mantém características especialmente vinculadas com um modo de entender e sentir que se aproxima com aquela remota época. O fato de estabelecer-se por meio de imagens facilita tal nexo. E os filmes são criados e curtidos, desfrutados preferentemente por meio de sensações, impressões e emoções. Muito mais que por categorias racionais. Por isso, não estranha que os relatos cinematográficos apresentem histórias fantásticas e que seus protagonistas sejam heróis que superam abordagens de lógica racional.

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Conforme ao descrito brevemente até aqui, basta dar uma olhada à relação dos títulos mais assistidos da história do cinema (ver, por exemplo, o site www.imdb.com). Quase todos esses filmes têm um herói como protagonista. E tais personagens principais conservam as condições dos anteriores heróis míticos. A tal ponto que nos podem fazer lembrar alguns dos lutadores da Ilíada e da Odisseia. 2 - James Bond, um herói do cinema de massas Invenção do autor literário Ian Fleming, o produtor Albert Broccoli, levou às telas do cinema este sucesso de público a partir do ano 1962 e ao longo de, até hoje, 23 títulos. Uns 20 milhões de pessoas assistiram nas salas de cinema às aventuras desta série durante 6 décadas, deixando uns US$ 14.000.000.000. Trata-se de produções inglesas (a maioria), e estadunidenses, de elevado custo e com atores e atrizes em geral famosos, com charme e até bons atores (caso de Sean Connery). Tamanho investimento e, em especial, semelhante recepção internacional ao longo de tanto tempo, é merecedora de análise e, obviamente, já foi abordada das mais diversas maneiras. Quais os elementos presentes nesta série em particular que conseguem captar a atenção de grandes massas? O que leva tantas pessoas a destinar duas de suas horas, pagando ingresso? Uma trama intensa, com ação permanente, perigos, carros, armas e máquinas mortíferas modernas, mulheres muito sensuais, perversas ou nobres, inimigos letais, sem piedade; poder, charme, luxo, sociedades e culturas próximas ou exóticas, e um protagonista só leal a si mesmo e à Rainha da Inglaterra. Cinematograficamente os filmes da série têm todos um mesmo esquema: previsíveis, já que o herói está sempre diante de enormes problemas, mas sempre os supera, ainda que pagando algum preço. São dinâmicos e divertidos, por momentos intensos e com ideologia definidamente clássica: mundo livre contra elementos nocivos, destruidores em alto grau. Tudo acontece em modo absolutamente espetacular. Em determinadas passagens, são relatos sérios e em outras, superficiais e até ridículos. São filmes profundos na sua superficialidade... O protagonista é um inglês. Como tal, é educado, cordial, culto, irônico, sedutor, cruel, arrumado, pulcro; Autorizado a matar, sutilmente enganoso, mentiroso, sofisticado e treinado para lidar com todo tipo de pessoas, situações, lugares, culturas, idiomas, códigos. Aventureiro e, muitas vezes, incluso com a sorte a favor. Extremamente rápido, audaz, sem temor à morte, decidido, polido, treinado a nível máximo para dominar técnicas e invenções exclusivas, que estão ao seu dispor para cumprir com missões secretas de índole complexa e alto risco. Isto é: sem medos nem remorsos. Apresenta-se como defensor de um mundo livre e em paz, com inimigos da liberdade que não são bobos mas alienados absolutamente perturbados: casos patológicos avançados, sádicos brutais, indivíduos carentes da mais mínima ética. Porém, Bond vence-os de modo também implacável, cruel, frio, impiedoso. Características todas que definem este personagem como um indivíduo com formas avançadas de inteligência e com elementos psicopáticos. Um herói admirável, invejável e, ao mesmo tempo, com características detestáveis. Em termos junguianos: a Sombra deste personagem é enorme (embora a de seus inimigos resulte pior ainda). Embora tudo aconteça na ficção, resulta interessante ver que justamente tal condição ambígua, com traços interessantes e atraentes, mas com outros patológicos e com um fundo perverso, é central na identificação que se produz entre tal figura e um público diverso em tempo e lugares. 3 - O último 007: Skyfall. Símbolos em máxima proporção Ao assistir a este último título da série, com a direção de Sam Mendes, se percebe uma realização melhor elaborada que nos títulos anteriores, especialmente ao ser comparado com o anterior, o truculento Quantum of Solace. Além do mencionado no caso de Skyfall, já na abertura o espectador se defronta com imagens totalmente míticas. Na primeira cena Bond luta desesperadamente, porém, se dá mal: cai em uma água profunda que ameaça seriamente em acabar com sua vida. Como Jung e outros autores apontam, a água é um elemento que desde a mentalidade primitiva está associada ao Inconsciente. Também se vincula com o materno, com o líquido uterino em que está submerso o feto. O protagonista do filme vai morrer inevitavelmente nesse meio. Porém, uma mão providencial vai resgatá-lo. Depois vamos ficar sabendo, deduzindo, que se trata de uma mão feminina. Uma mão “do bem”. Nem precisamos dizer que, considerando o charme de ambos os personagens, logo a seguir eles terão um vínculo bem mais próximo...

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Com o decorrer da trama cinematográfica, vai aparecer um outro elemento psicologicamente fundamental: o chefe do herói resulta ser uma mulher, o que se sabia desde relatos anteriores. Mas neste caso, fica definida claramente a preeminência de tal figura maternal. Embora com traços duros e até rígidos, é uma protetora que chega a preocupar-se e acompanhar de perto o subordinado agente. Mais ainda: pela primeira vez na série, a identificação dela se dá por meio da letra ‘M’. Óbvia alusão a mother, em inglês – “Mãe” em português, e equivalente em outros idiomas. Voltando à sequência inicial e já com a apresentação dos créditos, a sucessão de imagens é vertiginosa: em apenas 4 minutos, há linhas, cores e figuras sugestivas e de todo tipo, em meio de uma câmera que se desloca em modo permanente e planos que se sucedem ininterruptamente. A sucessão de imagens pode ser resumida, mas as palavras resultam insuficientes para tanta riqueza visual e sonora: À medida que o protagonista vai caindo na água para afundar em um buraco profundo, a situação vai ficando mais tensa. Nesse momento é que aparece a mão decidida, firme porém inconfundivelmente feminina que o agarra. Sangue, armas, espadas, sepulturas, cruzes, árvores, ramas, máscaras se sucedem. Até que a câmera se aproxima ao olho esquerdo do rosto do protagonista e ingressa em sua pupila. A música e a voz da cantora Adele acompanham as imagens, que são apresentadas com travellings horizontais e verticais. As cores, azul, cinza, vermelho também se sucedem. A seguir portas, sombras, disparos e intensos passeios por imagens em vermelho com fundo esverdeado-azulado que evocam o interior dos tecidos sanguíneos do corpo humano. Logo figuras sombrias que acabam transformando-se em uma caveira que depois vai dar lugar a um rosto de mulher que aponta com uma pistola direcionada à câmera até invadir todo o enquadre. Daí, vem tochas em grande número, com planos que mudam, até, depois, dar lugar a dragões que cospem fogo. Simetrias com cabeças e cabelos desordenados, e duas ou quatro figuras; caveiras, sombras, armas, etc. O protagonista caminha por uma areia ondulada, com sombras; depois aparece reproduzido em espelhos que pretendem enganá-lo quando ele procura algum inimigo oculto, ao qual lhe dispara em modo consecutivo e alternado, rotativo. De novo se vê o resgate, já definitivo. A câmera volta a ingressar na pupila esquerda de Bond, mostrando-se agora o nome do diretor do filme. Acaba a apresentação dos créditos. Esta sequência de imagens em especial e em modo nítido apontam para o Inconsciente. Em primeiro lugar, para o próprio Inconsciente dos criadores: aqueles que as desenharam, incluindo o diretor do filme. Em um segundo momento para os espectadores que em modo surpreso haverão de assisti-las.


Mas também podemos supor, como eventualmente faria Jung, que há um vínculo com o Inconsciente coletivo. Acontece que, sem dúvidas, o cinema é elemento fundamental do Inconsciente coletivo deste período histórico, o que fica mais evidente quando assistido em sala de exibição pública. Finalmente, voltando ao filme, a situação decisiva se produz em uma duríssima batalha que põe em cheque o protagonista e figuras próximas a ele e, até, “queríveis” pelos espectadores. O local é, nitidamente, especial. No meio da muito bonita paisagem da Escócia, uma montanha vai ser o território onde a maldade do exército de inimigos da liberdade, os perversos, vão dirimir com o herói o destino deste mundo. Eis o título do filme: Skyfall. A montanha do céu. O lugar faz jus a seu nome e a esse título: lá o bem, encarnado por Bond, e o mal, encarnado pelo psicopata de turno, lutarão a morte. Tamanha luta, decisiva na ficção das luzes cinematográficas e simbólica para os espectadores que moram na terra sempre ameaçada pelas forças malignas, merecia, exigia, uma localização especial, perto do céu. Por isto último e por todo o percurso do filme, neste último Bond se percebe uma ênfase crescente nos elementos míticos. Pouco ou nada é casualidade mas fruto de elaboração por parte dos criadores: roteirista, diretor, produtor, cuidaram destes detalhes significativos. Aliás, até se poderia chegar a supor que os criadores desta realização não apenas deixaram

aflorar livremente sua veia mística ou inconsciente mas poderiam ter conhecimentos dos conceitos junguianos. Para concluir esta breve aproximação ao tema da montanha sagrada, e de como ainda hoje continua a aparecer em nossos dias em meio de sofisticadas elaborações ficcionais, para públicos de massa muitas vezes de enormes metrópoles contemporâneas ou de distantes localidades do interior de diversos países: Acontece assim não só com este elemento mas com muitíssimos outros, de origem remota, pré-histórica, que continuam a acompanhar-nos ainda em nossos dias, que supomos estar tão distantes daquelas épocas. Porém, sobrevivem e nos acompanham profundamente, no denominado Inconsciente coletivo, como Jung e outros autores já evidenciaram.

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teatro

A LEGITIMIDADE DO AQUI/AGORA Uma reflexão sobre o fazer teatral e autonomia por Don Correa

“Como saber se estamos no caminho certo?” pergunta o ator. “Nós sentimos”, responde o diretor.

“se o corpo não estiver em contato com aquele tempo e aquele espaço, diretamente e sem intermédios, não há a possibilidade de criação autônoma ou singularidade”

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sala de ensaio é certamente a melhor professora de qualquer ator ou diretor. É dentro desse espaço que a prática se revela a grande detentora da verdade. Daí a dúvida se aquilo que é feito no isolamento e solidão da sala de ensaios realmente representa algo de novo, ou ainda mais importante, algo verdadeiro e relevante: uma criação autônoma e singular. A dúvida abre a porta através da qual o seguinte intruso pode adentrar a sala de ensaio: o conceito desprovido das condições de tempo, espaço e subjetividade que estavam em jogo durante aquele ensaio específico, naquele aqui/agora singular. Não são raros os processos de criação teatral que perseguem algum pensamento pré-estabelecido. Todos serão julgados pelo seu resultado e/ou efeitos que exercem no aparato sensível do público presente. Sabemos pois que não são questões metódicas que julgam a efetividade de um evento estético, mas a sua apresentação ou performance. Portanto, não procuraremos nos deter em juízos de valor sobre os processos criativos que se preocupam com tais questões metódicas, e doravante nos contentaremos em descrever aqueles que têm a prática como fiel da balança contrapostos àqueles que não. Pensemos no seguinte processo de montagem de um espetáculo teatral. No primeiro dia de ensaio o diretor diz: “coloque seus pés no lugar desejado, e certifique-se a todo momento que seus pés obedecem tal comando”. A instrução é seguida de diversas caminhadas durante as quais os atores praticam determinar um lugar específico para pousar a planta dos pés. Na sequência o diretor diz: “estabeleça um ritmo na sua respiração”, e o mesmo procedimento é repetido. Por fim, ele explica que “se os pés, sendo naquele momento o contato com a terra, e a respiração, naquele momento o contato com a vida, não estiverem sob controle, nada mais estará”.

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Don Correa é dramaturgo e diretor teatral formado pela Tshwane University de Pretória (África do Sul) e Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná.

Sendo mais diretos, diríamos que se o corpo não estiver em contato com aquele tempo e aquele espaço, diretamente e sem intermédios, não há a possibilidade de criação autônoma ou singularidade. Do segundo dia em diante, os atores trabalham com o texto e na elaboração de cada som e cada gesto. O mesmo procedimento é repetido em todos os ensaios, sem medo do erro e sem se esquivar de fazer escolhas necessárias para a elaboração do espetáculo. Certamente os atores estão sempre repletos de dúvidas quanto ao método que estaria sendo utilizado, por um lado tão óbvio e simples, por outro parecendo demasiado banal. A angústia do ator é a de dar um passo em falso, de cometer equívocos. Porém, quando isso se transforma em medo paralisante, a montagem é prejudicada, e trazemos nossos lugares de conforto ao nosso resgate. O medo está sempre presente, mas o medo que beneficia a montagem não é do erro, mas sim o que nos permite frequentar uma zona de risco onde estamos alheios a nós mesmos, permitindo a possibilidade do tão temido ´fracasso´. Fracasso perante as ideias, vitória da verdade construída através daquela situação na qual a intuição foi nossa mestra. Os dias passam e desta forma cumpre-se todo o processo de montagem, sempre apoiado na intuição daqueles ali presentes, e os sistemas de encenação desenhados pelo diretor, sempre postos naquele aqui/agora e percebendo se exercem plena potência na sua sensibilidade. Após os aplausos da estreia bem sucedida, os atores criam cada um à sua maneira uma fábula individual ou coletiva que dê conta da “falta de método” daquele diretor, mas exaltam a sabedoria do mesmo por ter sido tão atento a cada detalhe do espetáculo. Eles se recordam das perguntas que dirigiam ao diretor, por exemplo: “que emoção devo ter naquele mo-


mento?”, recebendo a resposta: “o que você elaborou através de sua sensibilidade é, e sempre será, legítimo.” O processo criativo descrito é então aquele de aceitar a singularidade de cada artista presente naquela sala de ensaio, e a confiança de que o fruto de suas escolhas autônomas e intransferíveis terão recepção no aparato sensível de cada individuo que assistirá ao espetáculo. É certamente uma hipótese, mas uma que privilegia a intuição e legitima seus juízos. Todavia, percebemos que nem tudo que é apresentado é da ordem do singular e autônomo, tornando o diretor um guardião da sala de ensaio contra todos os intrusos que ameaçam o trabalho dos atores, especialmente aqueles que eles mesmo trazem em seus corpos e mentes, que não são fruto daquela obra com aqueles artistas naquele aqui/agora. O intruso mais perigoso na sala de ensaios seria a busca de uma ideia pré-estabelecida, uma concepção a priori, do que o espetáculo deve “dizer” ou “fazer”, e que, portanto, reduz o mesmo a uma série de discursos que utilizarão o fenômeno estético como seu veículo. Poderíamos supor um espetáculo que já fora montado em diversas ocasiões, e que já fora objeto de inúmeras críticas e ensaios. Neste caso devemos ter todo o cuidado para que nossas ideias pré-estabelecidas do que aquele espetáculo deveria ser já não determine o que ele será. Pois, se já sabemos o que um espetáculo será, qual seria a razão de fazê-lo? Não seria melhor deixarmos aquilo para a história da arte descrever? Por que repetir aquilo que já foi feito? Pareceria que há um certo conforto em ser legitimado por um suposto bem fazer, ou ainda mais por uma posição política. Talvez a recepção do público seria mais fácil, pois teriam que simplesmente ligar aquilo que percebem a um modelo já existente, às referências, ou aos discursos tão familiares. Mas seria isso de fato uma criação autônoma? Teria o público qualquer oportunidade de exercer sua própria autonomia perante esta obra? Por mais que a hipótese de repetir um discurso encontraria fácil legitimação perante a crítica, o público, e principalmente os órgãos detentores do poder, este procedimento não parece convincente, pois submete qualquer evento aqui/agora elaborado pelos artistas aos diversos saberes ou discursos. O papel do artista seria então reduzido ao de simplesmente compreender o modelo pré-existente, elaborado por outrem, e pela sua mímese. Não haveria em tal procedimento lugar algum para singularidade, autonomia ou sequer criação. A única resposta parece ser a de expelir os discursos e saberes da sala de ensaio, e proceder tal qual nosso diretor nos instruiu: “colocando nossos pés no chão e exercendo controle da nossa respiração.” Dali em diante, a criação dar-se-á naquele tempo/espaço com aqueles sujeitos, tendo a intuição como guia, e os saberes e técnicas empregadas suas servas. Desta forma, não

haverá nenhum risco de nosso espetáculo ser “didático”, “panfletário” ou de qualquer outra forma corrompido. É a oportunidade de rejeitarmos a imobilidade que questões metódicas ou saberes podem exercer na sala de ensaio, e deixarmos tais questões para antes ou depois, permitindo aquele aqui/agora ser legitimado por si mesmo.

Não sou um teórico. Não sou um comentador confiável nem uma autoridade para falar da cena dramática, da cena social ou de qualquer cena. Escrevo peças, quando consigo, e isto é tudo. [...] O que eu escrevo não tem obrigação diante de nada, a não ser diante de si mesmo. Minha responsabilidade não é com o público, críticos, produtores, diretores, atores ou meus colegas em geral, senão para com a peça nas mãos, simplesmente. (HAROLD PINTER, 2009)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: PINTER, HAROLD. The Cambridge Companion to Harold Pinter, 2nd Edition. Edição de Peter Raby. Tradução por Don Correa. CUP: Cambridge, 2009. _________________________ Don Correa Diretor Teatral FALA Companhia de Teatro www.falateatro.blogspot.com falateatro@gmail.com

Caio Garrido Psicanalista

Rua: Visconde de Abaeté, 210 - Sumaré Ribeirão Preto/SP Tels: (16) 99153-9136 / 36235786 Atende também em São Paulo Vila Madalena Tel: (11) 99439 0622

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literatura

Aline Bei De formação, é atriz pelo Célia Helena desde os 19. De comportamento, atua desde o berço e escreve desde os 9 quando bolou extravagante salvar seu pai do buraco com um livro de poesias. O pior é que, hoje em dia, continua a mesma menina. Ainda acredita nos sonhos e no trabalho livre. É do amor. Das Letras fez a Pontifícia e da vida fez os versos, além de bons amigos que carrega consigo ladeira a dentro. * Em breve estará lançando seu livro de estreia, intitulado “Ninguém te espera pro jantar”

RUA

o menino preto bateu na janela do carro branco pra pedir, os pais fumavam na calçada vestidos com blusas de algum vereador. ninguém no carro abriu a janela. o menino só de shorts lembrava muito 1 ameaça daquelas que vemos todos os dias nos telejornais. Se eu abrir pra dar um trocado, será que ele não puxa a minha carteira?, pensou o homem que dirigia o carro. o menino tinha um ioiô em 1 das mãos, usou a outra pra bater no vidro, seus dedos eram muito crianças, pra alcançar a janela ele precisava ficar na ponta do pé. Bateu no vidro umas 5 vezes, forte pro tamanho que tinha. Logo Viu que não ia conseguir nada e desistiu, virou de costas pro carro branco sem resquícios de qualquer desilusão. Começou a brincar com o ioiô. Sorriu pra irmã mostrando os truques, mais ou menos da mesma idade os 2, ela séria nem aí olhando a Rua, o ioiô subia e descia numa velocidade impressionante, parecia que não tinha corda, parecia uma bola voadora. o menino era muito Bom nisso, mas ele era muito bom Sozinho, ninguém parecia se importar. E de tanto Ninguém se importar, nasceria o dia em que o ioiô lhe traria a grande solidão de quem nunca foi visto, o duro desamparo dos fantasmas vivos e então o Ioiô morrerá abandonado justamente pelos braços do menino-abandono. tem muita gente no mundo, mas tem mais Mundo do que gente, fora os outros planetas. ainda assim, não cabe na Terra os sonhos de todas as pessoas que moram nela, o homem do carro branco Depois que abriu o farol, enfiou o pé no acelerador e não era medo, Ele disse pra família que era medo, mas na verdade, aquilo era pressa pra nunca mais pensar no menino preto que, por hora, seguia em paz a sua vida, deu pra ver pela última vez do retrovisor

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Na t ureza Levantar o vestido pra correr dá pra ver calcinha, vestido é pra passear calminha no cinema, nada de grama, corda, bola com Vestido ou saia, Bumbum Existe pra ficar sozinho, Na Praia tudo bem que tá todo mundo pelado, na cidade bumbum de calcinha chama muita atenção, esse corpo Crescido aos 8 Logo logo tá maduro, essa pele os homens olham as Mulheres olham Chama a atenção. A polpinha da bunda aparece quando você corre assim, Abaixa essa saia, mais, tá curta ainda, meu deus, essas meninas de hoje não parecem em nada comigo, no meu tempo a gente usava saiote, shortão, sapato no pé, não Tinha esse pensamento de mulher, hoje em dia a gente precisa ficar de olho, volta aqui garota,

e o vento teimoso, na saia da Maria.

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contos Renato Essenfelder é professor da graduação e do mestrado em Jornalismo da ESPM-SP, colunista do Portal Estadão e editor de publicações do Sesc-SP. É formado em Jornalismo pela UFPR, mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP e doutor em Ciências da Comunicação pela USP. Foi repórter e editor da Folha de S.Paulo por 8 anos, editor-chefe do Jornal Metro e professor das faculdades Cásper Líbero e Mackenzie. É autor do romance Febre (ed. Patuá) e do livro de contos As Moiras (ed. ComArte). Os contos presentes nesta edição fazem parte de seu livro “As Moiras” (ed. ComArte).

perpétuos ¶ os pés na noite. recosta-se à pedra, na grama molhada. estica os braços, estende, estala todos os dedos das mãos zelosamente, espocando faíscas translúcidas no ar parado. ¶ céu fagulhado, noite de apocalipse: alguma coisa sobre nós, o menino pensa. alguma coisa adiante e além, em algum lugar distante um deus esporra estrelas, cravando as patas em brasa sobre o dorso de outro deus. a vida come a vida. ¶ a um dá-se o nome de Sonho; a outro, o porvir. dançam e não sabem mais qual está sobre qual [pálpebras amolecem antes da imaginação]. ¶ sem aviso, adormece numa profundeza de resquícios. o menino, na dimensão de mito, está esperando que ¶ caia ¶ uma estrela ¶ na palma de sua mão.

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Renato Essenfelderr Eduardo Pánik

x

e ílio de uma cidade ¶ Eu andava e saía da cidade, mas estava sempre em Curitiba, preso a uma espiral de despedidas. Então cuido de flores mortas nas horas vagas — as secas, as murchas, as vazias de qualquer formosura, as que encontro pisoteadas na rua. Dou a elas a vida que me poupei, trato suas chagas sem as mágoas que me dei. ¶ Mas outras vezes eu apenas despetalo suas hastes sedosas e sujas, lanço-as de volta à rua com os restos (ranços, rujas) da noite. Mal me quer. Acho graça, amargurado, no destino-desgraça que posso, com os dedos finos de menino, controlar. ¶ Para mim guardo somente as mais finas plantas, eterizadas em frascos proibidos nas prateleiras dos meus sonhos empoeirados. ¶ Sou solteiro de tudo. Os amigos que tive, matei, impaciente. Restaram-me poucas coisas: flores abandonadas, a visão de homens que atiçam seus olhos com putas, a visão dos suicidas sobre os terraços das galerias. ¶ Sobraram flores que me saúdam com espinhos afiados, incapazes de qualquer amor. Ramos que me ferem. Verdes ramos que quando voltam ao viço surrupiam-se para fora do meu castelo, onde, então, afloram suas virtudes apagadas, têm as velhas pétalas renovadas e enamoradas de outros risonhos jardineiros. ¶ Flores que fogem do gênio ruim que me comanda o pensamento; uma pândega vontade de mandar o mundo para fora de mim, para fora de suas doutrinas. Desejo rompente de trocar o som das horas, de rolar enfim no relento, sem roupas, sem freios a me dar assento. Desejo ancestral de voar, sugar a maçã de Adão, a semente e a raiz, arar o chão com as unhas encardidas, voltar à seiva e ao pó, queimar a selva sem dó. Existir. ¶ Mas não, diatribes! Desde sexta estou desempregado de um sentido qualquer. A grande hora da mudança me atropelou como um violentador de tudo, desgraçado de tudo. Eu não estava preparado, mas quem estará quando a dona chegar empunhando suas malas, carregando bebês nos braços, ela, com um longo guarda-chuva preto dependurado no antebraço? ¶ Estranho, pisava nas pupilas da cidade. Abandonado, não me sabia. Perseguia flores, despetalado de qualquer sentido, desenraizado de humana razão. Só. Como uma ave que migra atrasada, como um jardineiro de plantas semimortas. Um delírio, uma solidão. ¶ Deito cálices brancos aos pés dos altares da


memória, revelo e me revelo em velhas fotografias. Tenho pensado em me matar na porta do meu prédio, martirizar-me nas lanças do portão. Tenho pensado em sair desta lavoura, em me enterrar sob as raízes do jardim. Tenho girado ao redor do mesmo tema, minha pequena. Preso aos arredores de mim, tangencio alvos escusos. Tenho pensado mil coisas, sim, assemelhadas. Mas é um cansaço, é uma solidão desgraçada, é uma rotina desvalida. ¶ Eu ando e saio da cidade, mas estou sempre em Curitiba.

rastros, saudades ¶ Tudo o que lhe escrevi foi uma falsidade. ¶ Caminho porque o caminho permite, não porque o criei nem porque me chamou. ¶ Encontramo-nos, e é isso. Como você talvez goste, casualmente. ¶ Na rua, apontam e dizem: é aquele. Mas não sabem como se enganam: sou outro. ¶ Não suporto mais conviver comigo, esse ser imprevisível, facetado, fadado a dobrar uma esquina e esquecer tudo; a trocar de nome, a trocar o seu nome pelo dela, sem nem mesmo saber quem fui ou sou; ou mesmo quem ela foi, ou é, ou qual de nós amou de verdade. ¶ Agora, porém, não me importa mais nada. Sou outro e não sei dizer mais se quero doce ou salgado, azedo ou amargo, bem ou malpassado. ¶ Vim, renovado, em minha própria substituição. Vim bater cartão, sem que me houvessem apontado um defeito incorrigível, uma falha insanável, um artigo incontornável. Vim sem dia e data, sem aviso, sem papel para assinar, sem melhorias, sem tecnologias para tornar obsoleto ou impressionar. Sem botões. Sem etiqueta de preço. Sem ter sido encomendado. Sem poder ser devolvido, apenas substituído por outros eus, tão inúteis quanto eu. ¶ Dei-me a uma mulher. Não há escassez de mim, nem busca, nem fila. Não há demanda. Sou antieconômico. Como o ar sobre a fábrica, inundo o mercado, mas não sou utilitário. Repulsivo, até. Intratável. Contamino. ¶ Dei-me como um velho palhaço dá uma lufada de vento a uma criança, e só. Como o mar dá o peixe ao pescador. Como a areia dá ao castelo a sua carne. Sem preço, custo-benefício, hora, cabimento ou necessidade. ¶ Não sofro, ai de mim. Cometo, porém, os mesmos erros de outros eus, os eus de outros dias e de outras mulheres. Erros que de tão repetidos não me assustam mais nem me fazem chorar. ¶ Tudo o que lhe escrevi foi uma falsidade. Eu mudei. Quer dizer, naquele tempo poderia até ser verdade. Hoje não tenho lápis, caneta, ortografia, pontuação. Nem Bíblia nem manual. Não sou, somos. Acostumo. Adaptome. Aprendo a usar garfos e a pagar contas. Imiscuído no cotidiano, piso as uvas e rego as flores, cozinho e passo, encolho e morro sem que saibam — notarão um robô, uma formiga no binóculo embaçado da vida? ¶ Formiga mecânica, exército de um homem só. Imbatível, imortal. Afiando armas em tempos de paz, deixo rastros, não deixo saudades.

RESENHA

As moiras - Uma leitura por Caio Garrido

Ensaboado de pedras. Puxado por mil arames em farpas desfiando-se pelo ritmo aparentemente inocente de um nascimento, cujas vísceras nunca mais serão as mesmas. Marcas ficaram. Mas mais do que marcas, partes dessas vísceras nunca mais poderão sentir, e se ressentirão por isso sem saber. Todo parto é uma benção aparente. Que é dessas coisas que mal sabemos e não nos lembramos as que mais nos influenciam. Poderíamos dizer que, com esse tom nasce a obra “As moiras”, segundo livro do jornalista e escritor Renato Essenfelder. Ou será escritor e jornalista? Prefiro a segunda opção. Pra ser um grande jornalista (da verve dos escribas), há de passar pelo crivo da boa escrita. E Renato atravessa por entre as frestas dessas passagens estreitas com o “Parto”, narrativa que abre o livro, iniciando de forma poética o ambicioso projeto de narrar a vida cotidiana a partir de um terceiro olho vindo dos invisíveis fios da mitologia que articulam a vida humana como conhecemos (e que de certa forma preferimos desconhecer). À medida que o livro nasce e cresce, vai abarcando o mundo, através das escalas mais ínfimas ou do olhar mais amplo vindo das Moiras, as irmãs que fabricam, tecem, e desatam os fios da vida a seu bel prazer. O mundo visto do ponto de vista infantil ainda pode ser belo, o da mulher desamparada pode ser árido ou possivelmente fértil, o do homem, sempre febril, com seu verdadeiro amor e mulher para sempre perdidos. O homem ainda se descobre nômade, mas muitas vezes perdido em sua própria casa, cidade ou sonho. Os contos de Renato, vistos de frente são uma articulação do passado, de memórias que impedem o porvir. De trás, nos mostram a direção para um futuro sombrio, inescapável, frio como os dias que passam e perfilam melancólicos. Quando vislumbrados em perfil, seus contos se mostram num tom poético como até então não vistos em tais proporções em suas crônicas ou em seu romance. Cinzentos, os dias após dias – repetições das mesmas certezas descoloridas – (retratados nos subsequentes temas de seus contos-poemas), antecipam o fracasso do final (pois o passado nunca volta, só o brutal corte desse passado que é dolorosamente atualizado e relembrado), e escondem-se sob as vestes moldadas pelos mitos (que controlam os “clep-cleps” de nossas sandálias gastas ao chão, como bem falam os contos de Renato), que também escondidos sob as vestes de contos, não deixam de exalar o odor de sua verdadeira natureza: A poesia. Ela, a poesia, também acostumada em revelar o cavafundo orgânico de nossa imagem pseudo-moderna.

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joão e maria ¶ João comparou Maria a um sábado de sol, a outras ficções e a outras facções durante um sábado de sol perdido no porão. Um homem tão apaixonado, mas, certamente, sem amores no coração. Um homem estranho. ¶ Imaginou que vida era aquela, apressando os preparativos para o que não sabia. ¶ Reviveu os anos dourados durante a sempre adiada faxina. Cartas, fotografias, carimbos, bilhetes, anotações, meias-anotações, projetos de anotações, propostas de propostas de amor, inúmeros estudos de juras de amor, exercícios de métrica. Rabiscos de uma vida que projetou, mas não chegou a viver. Caixinha de música. Do papel à imaginação, deslizou tão facilmente. Cortou o dedo num rascunho de Shakespeare: Youth’s a stuff will not endure. Amassou e desamassou a hóstia roxa do papel de carta infantil. Espirrou. Aquilo tudo, agora, atacava a sua alergia. ¶ De repente, ouviu um acorde de música — como um doente que, dado por morto, num espasmo se embebeda de ar. Não lembrava o nome nem a banda, mas repetiu seus versos com facilidade, sem saber. It ain’t no sunshine when she’s gone. Como uma criança diante da temível bruxa, amava e temia o dia da faxina, os pequenos objetos opacos que lhe cairiam inesperadamente à mão, resplandecendo. ¶ À orquestra se juntou o cheiro vago e sutil de uma essência delicada presa a um cartão-postal de Paris. Outros tempos. Nem esse nem aquele nem o tempo mítico de um João e uma Maria de mãos dadas fazendo filhos e caminhos com seus pedacinhos de pão na longa floresta escura. ¶ Foi-se deixando envolver novamente durante a limpeza, as costas coladas ao tapete empoeirado da memória. Tão fácil. Percorreu o corpo na volúpia de anos impossíveis. Assaltou-lhe então que Maria era como um sábado de sol, alisando os cabelos dourados na memória, o nariz empinado e os pés que nunca tocavam completamente a grama — bandeirante urbana, caçadora das vitrines e ritmos da cidade. Era como um sábado de sol, que não se pode encerrar no cinema, nem no teatro; nem nos livros, nem nas apostilas; nem nos carros, nem nos escritórios. Um dia de sol para gozar, de grama para tocar; de água para afogar as últimas bolhas do nariz. ¶ Que pobres retratos do que ela realmente foi, aquelas anotações; cheiros, sons. ¶ Atiçou a fagulha das ficções que vivera com Maria. Os filhos que não tiveram, as noites em que não enlouqueceram, os trabalhos que não fizeram nem desfizeram nem perderam. As promessas que não… ¶ Mas promessas fizeram. João fez cem promessas. ¶ Depois de ver quebrada a primeira, a única que lhe importasse àquela altura (e até hoje, no rancor, na amargura), foram quebradas todas as outras, como num contrato que perde o efeito à cisão de cláusula pétrea. Era o que pensava (aos 17 anos, a maioria das gentes pensaria assim). ¶ João fez cem promessas, manteve-se fiel a 99 delas. Mas Maria, pobre Maria, que nem sabia que aparecia em cartas, estudos de juras, projetos de propostas de amor… essa Maria, tranquila, moça de família, casou-se com Ricardo Alapião, com quem teve três filhos, um cachorro, dois carros e uma doméstica bem treinada para a função. ¶ Essa Maria, coitada, a felizarda nunca ouvira falar de um João.

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A vida existe como tragédia ou como fortuna? Um Destino de privação? Ou privação de sentidos? Provação? Iniciação? Privação do poético da vida, que só a alguns, escolhidos, é permitida a visão? Pois se destacam essas visões e questões a nos pairar ao final da leitura. A vida faz uma pergunta ao nascermos, já disse o psicanalista Erich Fromm. E espera uma resposta de nós. Ao homem, “cumpre-lhe viver sua vida”, e não ser vivido por ela. As moiras, amalucadas e ainda moças moiras, não anunciam, mas secretamente esperam respostas. É a vida que se rebela contra nós, ou nós que em vão nos rebelamos contra ela? O que você quer escolher? A sorte está lançada.


por Caio Garrido

Se chuva quente ou fria, fruía sempre verões que brasas não me acendiam não posso me acalmar diante de suas tensões noturnas, que copulam comigo e tantas outras, madre teresas, em Calcutá, Bogotá, Chile, posso ficar nua se quiser, tirar meu xale, enrolar-te em formas sinuosas de estrada perigosa desde que fomos cantar à beira mar e o peixe pulou em minhas costas e latejava latejava que dava prazer pela primeira vez sentia alguma coisa, ele não era páreo pra você, vira lata come sujo todas fontes de cheiros indesejáveis como quando te peguei na cama fazendo arfar com aquela, com aquela cigarra, gritos estridentes os dela, beirando meu colapso.

Contos

CeNAS

Caio Garrido é editor geral da Tavola Magazine. É psicanalista, e coordenador do Depto. de Literatura do Instituto Tavola. Coordena também a Formação em Psicanálise do Inst. Tavola | Espaço São Paulo. Tem três livros publicados; Um romance: “Pena que foi Ontem” (2010); e dois de poemas: “Poemas auto-escritos em estado de Sonambulovisão” (2011) e “parapeito” (2013, Ed. Patuá).

Máxima culpa apertada a sua de enfeixar então minhas coxas num membro só, que de tantas apunhaladas ainda sobrevive sem nexo em suas dobras, estendidas por sobre seu rosto, querendo-te fazer meu, fazendo de contas que virando e mexe um suor só seria o suficiente pra me fazer em estupor de prazer infinível. O tempo termina assim... que sai e você da rua acena insuportável pra janela de mim fora de mim insípida estou então tão terrena, jogando fora suas roupas, seus credos, assim como opções estúpidas digo que sou tola mesmo assim, não podia me aparar cortando os cabelos, touca pobre de obstar filhos, insuportáveis que são, berrando do outro lado da parede gasta com roncos seus que me faziam acordar então só e furtada de meu sono breve sem sonhos que era estar vigiando aquela trupe de circo que faria todos nós felizes, porque não? uma tropa de moleques e nanas nenês quentes durante a noite, trocando suas fraldas seu velho babaca que só quer subir de bondinho sem risco algum que criança não trocaria por nada aquele friozinho de barriga cheio de energia pra dar, entrega de quando em quando uma ou duas pizzas que sumidas pelo vinho branco me azeita até chegar à superfície o líquido branco que então me faz lembrar de sua tia e suas tetas apostadoras, intuição para fins de acordo específico entre eu você. Não, não há acordo, desde que eu me enxergue inteira inefável um dia inteiro sem sequer sair do berço fui então amparada ao cair, caí como quem veste uma roupa de supetão como a vez sem direção arrancou os botões de minha calça jeans que inflava ao receber-te assim tão inteiro, tenha dó de mim, por favor não se vá, não, me deixe tonta mais uma vez, sobe depressa em minhas costas, Jerusalém em dois passos, maomé deitado em minha cama faço dele um campeão, já faz tempo que cruzei com você no avião, olhando jeitoso pros meus lábios que não sabiam sorrir, uma intenção dourada crescia veloz, ah meu deus, aquele dia fiquei com medo da morte, não era o avião, ah, delícia suspensa daquele jeito em seus braços, interrompida pelo toque de cartas se soubesse a profecia. Desde então o balanço me persegue. Nada como aquele dia. Não me encontre deitada. Não se esqueça de mim. Não faça de conta que sempre estará aí, pronto a me pegar no colo e embalar-me enfim.

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Crônica

A bondade está de férias por Carlos Ferriani

A

bondade é um estado de espírito e tem a ver com treinamento para praticá-la. Ser bondoso é um princípio de qualquer religião e um exercício de cidadania. Proporciona prazer e, acima de tudo, caracteriza o servir como regra de vida. Além disso, torna muito mais fácil o relacionamento. É melhor atender bem do que justiçar a má-vontade. Acontece que, infelizmente, a bondade anda de férias. Algumas pessoas, por motivos diversos, injustificáveis, no entanto, ainda não se conscientizaram disso. Quem não viveu situações para comprovar isso? Alguns motoristas não dão a vez, tornando o trânsito mais irritante e caótico. Outros, funcionários de lojas ou prestadores de serviço, não mostram bondade ao serem solicitados para ajudar, ou mesmo para cumprir as suas funções com carinho e dedicação. Mesmo que esteja prestando um serviço por necessidade e não por satisfação, deveria fazê-lo com alegria. Afinal, o que solicita, o cliente, não tem obrigação de aguentar grosserias ou mesmo o indiferentismo daquele que serve. Que, a rigor, deveria encontrar-se disponível para isso. Também é bondade ceder o lugar para um ancião num coletivo ou sorrir quando solicitado a ajudar, ou não sair aos berros pelas ruas como vândalos, destruindo tudo, ou preocupar-se com o alarme disparado de seu carro, ou... Afinal, bondade e educação são irmãs e deveriam permanecer de mãos dadas. Quando o trabalho é encarado com responsabilidade e seriedade, torna-se motivo de divertimento e prazer em servir. Afinal, qualquer atividade é digna, basta executá-la direito, portanto, com bondade. A correria do dia a dia não pode ser o agente transformador da falta de respeito ao outro. Muito menos a falta de formação que impede conquistar uma melhor posição e, assim, trabalhar mais satisfeito. Cada um tem o trabalho que conquistou, faça-o bem e com bondade ou busque um outro que o deixará fazer amigos. No entanto, a tolerância, de quem busca ajuda ou de quem a proporciona, deveria ser a mesma. O tratar bem o semelhante cabe em quaisquer situações. A bondade não pode continuar de férias em nosso país. Cabe-nos, como seres civilizados, cultivá-la através do exemplo, pelas nossas atitudes. “Ser responsável é fazer-se digno de respeito”.

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Carlos Roberto Ferriani- Cirurgião Plástico, Membro da ARL, Academia Ribeirãopretana de Letras, Membro da SOBRAMES, Membro da APPERJ.


Poemas

BELLÉ JR. por Eduardo Pánik

Ela nele Trato de Irreverência Ele disse: O amor é. A grande irreverência humana. Contra. A simplificação da vida. Da existência. E do próprio-amor. Eu discordo: O amor é jardim selvagem. Jardineiros são as flores. Amantes são as aves.

Ela nos olhos dele III

Bellé Jr. Autor do livro Trato de Levante (Ed. Patuá, ), Bellé Jr. nasceu em Francisco Beltrão, sudoeste do Paraná. Viveu em Curitiba, graduou-se em Jornalismo na UEPG e há quase seis anos habita São Paulo. Vive de escrever histórias e estórias. Trato de Levante é sua segunda obra poética.

Ele nos olhos dela IV - A paisagem [Adormeci. Lembrando dele. Sonhei que o conheci. Numa velha vila. Na Andaluzia. Vestia um uniforme. Portava uma bereta. E se despedia.

[...] [ela tinha neruda nas mãos e o segurava próximo aos olhos beijando-lhe os versos com as pálpebras como uma jovem garota apaixonada [...] sei que a beleza é a prova definitiva da natural desigualdade do mundo, mas eu poderia jurar que há muitas décadas os ascendentes desta garota foram arrastados de alguma tribo ou miríade entranhada numa áfrica indomável e de lá trouxeram no sangue essa herança autoritária capaz de tornar um simples enrolar de cachos negros volteados por uma caneta vermelha em espirais lentas a experiência mais sedutora da manhã de um homem

Acordei. Seus braços. Me raiando. A cortina aberta. Seus raios. Me apertando. O galo cacarejando. Voam as colchas. Dobram-se as cobertas. Cantei um samba triste. Batuquei um afrobeat da Nigéria. Nem assim. Ele foi embora. De mim. No café falei de um homem. “Vi ele ontem, na praça”. Camisa de flanela. Escrevendo coisas. O tempo todo. “É o poeta”, disse Senhora Emília. “Eu sou poeta”, disse pra ela. Mas agora queria ser uma poesia dele. Disse. Pra mim mesma. [...] Aqui. Neblina. Se é de noite. Sereno. “Não sai na rua que vai pegar sereno, mocinha”. Toda noite fria. Senhora Emilia. Aconselha. Ficar em casa. Ao redor do forno a lenha. “Sapecando pinhão e contando causo”. Diz ela. Eu digo que gosto. E gosto. Mesmo. Mas também gosto do sereno. De sair na noite fria. Lembro dos montes lá na Itália. Não sei porquê.

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Ou talvez saiba. Lembro de Pietro. Ah, Pietro. Por ele quase fiquei. Pra sempre. Em Livorno. Mas o uivo. O uivo. O uivo agora é abandono. É abandono.

Antes Quando o coração. Vem e vai. Ressaqueado por tempestades. E temporais. Fica uma maré doída demais. Do que está lá. Atrás. Distante. E um mar de amor de antes.

Ela

Meu mar de amor de antes.

[...]

Carta ao Uivo

Ele entre elas e eles

Queria: A poesia mais bonita. Para rasgá-la. Diante de ti. Enquanto confesso que te amo. Queria: Tua mirada. De calvário. Elevando-se acima. Da minha. Queria aquela. Que você sempre repetia. Antes do sorriso despreocupado. Que vinha logo. Em seguida. Queria: que fosse tão fácil. Quanto querer. Quando ainda. Te queria.

a vida é uma mocinha nada confiável daquelas pra curtir não pra casar

Ele sem Ela

II - Acho que sou pólen

[...] Só saberia. A hora de parar. E pararia. Quando o uivo não mais gritasse. E o futuro calasse. Quando: Silêncio. Mudez debaixo do meu seio: Esquerdo. Quando minha vontade. Calada. Os libertasse. Quando o uivo se tornasse: Murmúrio de rio pequeno. Ou de riacho imenso. E o murmúrio de rio pequeno. Me navegasse.

te deixo porque apenas minha ausência será capaz de fazer sua utopia, uma utopia verdadeira

Ele e Ela Pra uns a gente é estrela. Pra outros. É cometa.

Formação em Psicanálise pelo Núcleo Tavola agora também em São Paulo + Informações: www.nucleotavola.com.br/sp 40 |


tavolasp@institutotavola.com.br

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