Capítulo um
Fevereiro 1788, França
― Elle est morte! O mundo de Lenobia explodiu com o som de um grito e três pequenas palavras. ― Ela está morta? ― Jeanne, a assistente de cozinha que trabalhava ao lado dela, parou de sovar a massa fofa e cheirosa de pão. ― Oui1, que Nossa Senhora tenha piedade da alma de Cecile. Lenobia levantou os olhos e viu a sua mãe parada na porta de entrada incomum e ela segurando o velho rosário que sempre ficava em volta do seu pescoço. Lenobia balançou a cabeça incrédula. ― Mas há apenas alguns dias ela estava rindo e cantando. Eu a escutei. Eu a vi! ― Ela era bonita, mas nunca foi forte, pobre menina ― Jeanne disse, sacudindo a cabeça com tristeza. ― Sempre tão pálida. Metade do château pegou a mesma febre, inclusive minha irmã e o meu irmão. Eles se recuperaram facilmente. ― A morte ataca rápido e terrivelmente― a mãe Lenobia afirmou. ― Senhor ou servos, uma hora ela chega para cada um de nós. Depois daquele dia, o aroma de fermentação de pão fresco sempre iria fazer Lenobia se lembrar de morte e embrulhar o seu estômago. Jeanne estremeceu e fez o sinal da cruz com a mão branca de farinha, deixando uma mancha branca em forma de lua crescente no meio de sua testa. ― Que a Nossa Mãe Santíssima nos proteja. Automaticamente, Lenobia se ajoelhou e se levantou, sem deixar de olhar para o rosto de sua mãe. 1
Sim, em francês. (N.T.)
― Venha comigo, Lenobia. Preciso mais da sua ajuda mais do que Jeanne. Lenobia nunca iria esquecer o sentimento de pavor que tomou conta de si ao ouvir as palavras de sua mãe. ― M-mas vão c-chegar convidados... pessoa de luto... nós precisamos ter p-pão ― Lenobia gaguejou. Os olhos cinzentos de sua mãe, tão parecidos como os seus, transformaram-se em nuvens de tempestade. ― Isso não foi um pedido ― ela falou, passando a falar em inglês em vez de francês. ― Quando a sua mère2 fala nesse inglês rude, você sabe que ela deve ser obedecida ― Jeanne encolheu seus ombros corpulentos e voltou a sovar sua massa. Lenobia limpou as mãos em uma toalha de linho e se forçou a caminhar rapidamente até a sua mãe. Elizabeth Whitehall assentiu para a filha e então se virou, gesticulando para que Lenobia a seguisse. Elas caminharam apressadamente através dos amplos e elegantes corredores do do Château de Navarre. Havia nobres que tinham mais dinheiro do que o Barão de Bouillon ― ele não era um dos confidentes do Rei Louis, mais vinha de uma família cujas origens remontavam a centenas de anos e tinha uma propriedade no campo que era a inveja de muitos senhores mais ricos, porém tão bem-nascidos. Naquele dia, os corredores do château3 estavam quietos e as janelas arqueadas com pinázios, que normalmente deixavam a luz do sol se derramar em profusão sobre o piso de mármore imaculado, já estavam sendo cobertas com pesadas cortinas de veludo negro por uma legião de servas caladas. Lenobia pensou que a própria casa parecia amortecida de tristeza e choque. Então, Lenobia percebeu que elas estavam se afastando rapidamente da parte central da casa senhorial e indo em direção a uma das saídas dos fundos, que desembocava perto dos estábulos. Então percebeu que estavam seguindo para longe da parte central da mansão e indo em direção a uma das saídas traseiras que dava para perto dos estábulos. ― Maman, où allons-nous? ― Em inglês! Você sabe que eu detesto o som do francês ― a mãe a repreendeu.
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Mãe, em francês. (N.T.) Palácio, em francês. (N.T.)
Lenobia conteve um suspiro de irritação e falou na língua natal de sua mãe: ― Aonde você está indo? Sua mãe olhou em volta, segurou a mão de sua filha e então disse, com voz baixa e tensa: ― Você deve confiar em mim e fazer exatamente o que eu disser. ― É-é claro que eu confio em você, mãe ― Lenobia respondeu, assustada com a aparência perturbada dos olhos de sua mãe. A expressão de Elizabeth se suavizou e ela tocou a bochecha de sua filha. ― Você é uma boa menina. Sempre foi. A sua situação é culpa minha, é um pecado só meu. Lenobia começou a sacudir a cabeça. ― Não, não foi um pecado seu! O Barão Roma quem ele quer como amante. Você era bonita demais para não chamar a atenção dele. Não foi culpa sua. Elizabeth sorriu, o que trouxe à tona um pouco do seu encanto passado. ― Ah, mas eu não era bonita o bastante para manter a sua atenção, e como eu era apenas a filha de um agricultor inglês, o Barão me deixou de lado, embora eu suponho que eu deva ser eternamente grata por ele ter encontrado um lugar para mim e para você nos afazeres doméstico de sua casa. Lenobia sentiu a velha amargura arder dentro dela. ― Ele tirou você da Inglaterra... roubou você de sua família. E eu sou filha dele. Ele deveria encontrar um lugar para mim e para minha mãe. ― Você é sua filha bastarda dele ― Elizabeth a corrigiu. ― E apenas uma entre muitas, apesar de ser de longe a mais bonita. Inclusive tão bonita quanto a sua filha legítima, a pobre Cecile, que agora está morta. Lenobia desviou o olhar de sua mãe. Era uma verdade desconfortável o fato de ela e a sua meia-irmã realmente se parecerem muito, o bastante para despertar rumores e sussurros quando as duas garotas começaram a desabrochar em jvens mulheres. Nos últimos dois anos, Lenobia havia aprendido que era melhor evitar a sua irmã e o resto da família do Barão, pois todos pareciam destestar apenas botar os olhos nela. Ela achava mais fácil escapar para os estábulos, um lugar aonde Cecile, a Baronesa e os seus três irmãos raramente iam. Um pensamento cruzou sua mente. Sua vida seria muito mais fácil agora que a irmã, que parecia tanto com ela ― mas que não a reconhecia ―, estava morta. Ou os olhares sombrios e as palavras duras da Baronesa e dos seus garotos iriam ficar ainda piores?
― Lamento pela morte de Cecile ― Lenobia disse em voz alta, tentando buscar razão na confusão de seus pensamentos. ― Eu não desejava mal para a criança, mas se ela estava destinada a morrer, sou grata que aconteceu agora, neste momento ― Elizabeth pegou o queixo de sua filha e forçou-a a encontrar seu olhar. ― A morte de Cecile vai significar vida para você. ― Vida? Para mim? Mas eu já tenho uma vida. ― Sim, a vida de uma serva bastarda em uma família que despreza o fato de que seu senhor costuma espalhar a sua semente por aí e depois gosta de ostentar os frutos de suas transgressões, como se isso provasse sua masculinidade repetidamente. Essa não é a vida que eu desejo para a minha única filha. ― Mas eu não enten... ― Venha e você vai entender ― sua mãe interrompeu, pagando sua mão de novo e puxando-a pelo corredor, até chegarem a um pequeno aposento de uma das portas dos fundos do château . Elizabeth abriu a porta e guiou Lenobia para dentro do quarto mal iluminado. Ela caminhou decididamente até uma grande cesta, como aquelas usadas para carregar roupa de cama para lavar. De fato, havia um lençol dobrado em cima da cesta. A sua mãe o puxou de lado, deixando à mostra um vestido que refletiu tons de azul, marfim e cinza, mesmo a luz fraca do ambiente. Lenobia ficou observado enquanto sua mãe tirava da cesta o vestido e as caras roupas de baixo, sacudia-os, alisava os seus vincos, esfregava os delicados sapatos de veludo. Ela olhou para a filha. ― Você deve se apressar. Se quisermos ser bem-sucedidas, temos muito pouco tempo. ― Mãe? Eu... ― Você vai usar essas roupas, e com elas, também assumirá outra identidade. Hoje você se tornará Cecile Marson de La Tour d'Auvergne, a filha legítima do Barão de Bouillon. Lenobia se perguntou se a sua mãe tinha ficado completamente louca. ― Mãe, todo mundo sabe que Cecile está morta. ― Não, minha filha. Todo mundo no Château de Navarre sabe que ela está morta. Ninguém na carruagem que estará aqui em uma hora para transportar Cecile até o porto de Le Havre, nem no navio que a espera lá, sabe que ela está morta. Nem vão saber, porque Cecile vai entrar na carruagem e pegar o navio em direção ao Novo Mundo, ao novo marido e à nova vida que a aguarda em Nova Orleans, como a filha legítima de um Barão francês. ― Eu não posso!
Sua mãe soltou o vestido e agarrou as duas mãos da filha, apertando-as com tanta força que Lenobia teria se retraído se ela não estivesse tão chocada. ― Você tem que fazer isso! Sabe o que espera por você aqui? Está já tem quase dezesseis anos. É uma mulher completa faz dois verões. Você se esconde nos estábulos, na cozinha, mas não pode se esconder para sempre. Eu vi o modo como o marquês olhou para você no mês passado e depois novamente na semana passada ― a sua mãe balançou a cabeça, e Lenobia ficou chocada ao perceber que ela estava lutando para segurar as lágrimas enquanto continuava a falar. ― Nós duas não falamos sobre isso, mas você deve saber que a verdadeira razão de não termos comparecido à missa em Évreux nas últimas semanas não foi o fato de as minhas obrigações terem me deixado esgotada. ― Eu me perguntava... mas não queria saber! ― Lenobia mordeu os lábios trêmulos, com medo do que mais ela poderia dizer. ― Você deve encarar a verdade. Lenobia respirou fundo, mas, mesmo assim, um arrepio de medo percorreu o seu corpo. ― O Bispo de Évreux... eu quase posso sentir o calor dos seus olhos quando ele me encara. ― Eu já ouvi que ele faz muito mais além de encarar jovens garotas ― disse sua mãe. ― Há algo de profano com aquele homem... algo mais do que o pecado dos seus desejos físicos. Lenobia, filha, eu não posso te proteger dele nem de qualquer outro homem, porque o Barão não vai protegê-la. Tornar-se outra pessoa e escapar do castigo eterno que significa ser filha bastarda é sua única saída. Lenobia agarrou as mãos de sua mãe como se fosse um salva-vidas e encarou aqueles olhos que pareciam tanto com os seus. Minha mãe tem razão. Eu sei que ela está certa. ― Eu tenho que ser corajosa o bastante para fazer isso ― Lenobia pensou em voz alta. ― Você é corajosa o suficiente. Você tem o sangue dos bravos ingleses pulsando dentro de suas veias. Lembre-se disso, e isso vai fortalecê-la. ― Eu vou me lembrar. ― Muito bem, então ― sua mãe prosseguiu resolutamente. ― Tire esses trapos de serva e nós vamos vesti-la de outra maneira ― ela apertou as mãos de sua filha antes de soltá-la e de se virar para a pilha de tecido reluzente. Como as mãos de Lenobia estavam trêmulas, as mãos de sua mãe assumiram o comendo, prontamente a despindo de suas roupas simples, mas familiares. Elizabeth não deixou em Lenobia nem a roupa de baixo rústica feita em casa, e por um momento vertiginoso parecia que estava trocando a sua antiga
pele por outra. Ela não parou até que a sua filha estivesse totalmente nua. Então, em um completo silêncio, Elizabeth vestiu Lenobia, cuidadosamente, camada sobre camada: roupa de baixo, bolsos, anquinhas, anágua de baixo, anágua de cima, espartilho, corpete e o adorável vestido de seda à la polonaise. Apenas depois de ajudá-la a colocar os sapatos, ajeitar nervosamente o seu cabelo e então atirar em seus ombros um manto com capuz forrado de pele foi que ela finalmente deu um passo para trás, fez uma reverência profunda e disse: ― Bonjour, mademoiselle Cecile, votre carrosse attende4. ― Maman, não! Esse plano... eu entendo por que você precisa me mandar embora para longe, mas como consegue suportar isso? ― Lenobia colocou a mão sobre a boca, tentando silenciar o choro que estava se formando. Elizabeth Whitehall simplesmente se levantou, segurou os ombros de sua filha, e disse: ― Eu posso suportar isso por causa do grande amor que tenho por você. ― Devagar, ela fez Lenobia se virar para que pudesse ver o seu reflexo no grande espelho rachado que estava apoiado no chão atrás dela, esperando para ser substituído.― Veja, minha filha. Lenobia arfou e estendeu a mão na direção do espelho, chocada demais para fazer qualquer coisa além de encarar o próprio reflexo. ― Exceto pelos seus olhos e pela luminosidade do seu cabelo, você é a imagem dela. Sabia disso. Acredite nisso. Torne-se ela. Lenobia desviou os olhos do espelho e voltou-se para a sua mãe. ― Não! Eu não posso ser ela. Que Deus cuide de sua alma, mas Cecile não era uma boa garota. Mãe, você sabe que ela me amaldiçoava a cada vez que me via, apesar de nós termos o mesmo sangue. Por favor, maman, não me obrigue fazer isso. Não me faça com que eu me torne ela. Elizabeth tocou a face da filha. ― Minha querida e forte garota. Você nunca poderia se tornar como Cecile, e eu nunca pediria isso de você. Apenas assuma nome dela. Lá dentro, bem aqui ― a mão dela deixou o rosto Lenobia e parou no seu peito, embaixo do qual o seu coração batia nervosamente.― Aqui você sempre vai ser Lenobia Whitehall. Saiba disso. Acredite nisso. E ao fazê-lo, você vai se tornar mais do que ela. Lenobia engoliu a secura na sua garganta e a terrível pulsação do seu coração. ― Eu entendi. Acredito em você. Vou assumir o nome dela, mas não vou me tornar ela. 4
“Bom dia, senhorita Cecile, a sua carruagem a espera”, em francês. (N.T.)
― Ótimo. Então está feito ― sua mãe virou-se para pegar uma pequena mala em forma de caixa atrás da cesta de roupas. ― Aqui, pegue isto. O resto das malas dela foi enviado ao porto há alguns dias. ― La cassette de Cecile ― Lenobia a segurou com hesitação. ― Não use esse francês vulgar 5, não soa bem. É uma mala de viagem. Só isso. Significa o começo de uma nova vida, não o fim de uma. ― As joias de Cecile estão aí dentro. Eu escutei Nicole e Anne falando. ― Lenobia disse. As outras servas haviam fofocado incessantemente sobre como o Barão ignorara Cecile por dezesseis anos, mas, agora que ela seria enviada para longe, ele havia esbanjado em joias e atenção para ela, enquanto a Baronesa chorava por perder a sua única filha. ― Por que o Barão concordou em mandar Cecile para o Novo Mundo? Sua mãe bufou de desprezo. ― A última amante dele, a cantora de ópera, quase o levou à falência. O Rei generosamente para filhas virtuosas de nobres que queiram se casar com a nobreza de Nova Orleans. ― O Barão vendeu a sua filha? ― Sim. Os excessos dele compraram uma nova vida para você. Agora vamos, para que você possa obtê-la ― a sua mãe abriu uma festa na porta e espiou o corredor. Então ela se voltou para Lenobia: ― Não há ninguém por perto. Coloque o capuz sobre o seu cabelo. Siga-me. Rápido. ― Mas a carruagem vai ser parada pelos cocheitos de libra. Os condutores serão informados sobre Cecile. ― Sim, se a carruagem for autorizada a entrar na propriedade, eles serão informados. É por isso que nós temos que encontrá-la do lado de fora dos portões principais. Você vai embarcar lá. Não havia tempo para discutir com sua mãe. Já estava quase na metade da manhã, e normalmente deveria haver servos, comerciantes e visitantes chegando e partindo da propriedade movimentada. Mas naquele dia parecia que havia uma mortalha sobre tudo. Até o sol estava encoberto pela neblina e por nuvens baixas e sombrias que rodopiavam sobre o château. Lenobia tinha certeza de que elas seriam paradas e descobertas, mas, antes do que parecia possível, o enorme portão de ferro surgiu em meio à névoa. A sua mãe abriu a pequena saída para pedestres e elas se apressaram na direção da estrada.
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No original, a personagem afirma que a palavra em francês se parece com casket, que em inglês significa caixão, além de porta-joias. (N.T.).
― Você vai dizer para o condutor da carruagem que há uma febre no château, então o Barão enviou você para fora para que ninguém fosse contaminado. Lembre-se, você é uma filha da nobreza. Espere ser obedecida. ― Sim, mamãe. ― Ótimo. Você sempre pareceu ser mais velha do que é, e agora eu entendo o por quê. Você não pode mais ser uma criança, minha linda e corajosa filha. Você precisa se tornar uma mulher. ― Mas, maman, eu... ― Lenobia começou a falar, mas as palavras de sua mãe a silenciaram. ― Ouça-me, saiba que estou te dizendo a verdade. Eu acredito em você. Eu acredito na sua força, Lenobia. Também acredito na sua bondade. ― sua mãe fez uma pausa e depois, lentamente, tirou o antigo rosário de contas do pescoço e levantou-o, colocando-o sobre a cabeça da filha, e enfiando-o por baixo do espartilho de renda, de modo que as contas ficaram pressionadas contra a pele, invisível a todos. ― Leve-o. Lembre-se que eu acredito em você, e saiba que, apesar de nós termos que nos separar, sempre vou ser parte de você. Foi só então que o completo entendimento da situação atingiu Lenobia. Ela nunca mais iria ver sua mãe novamente. ― Não ― sua voz soou estranha, alta e rápida demais, e ela estava tendo dificuldade para recuperar o fôlego. ― Maman! Você tem que ir comigo! Elizabeth Whitehall tomou a filha em seus braços. ― Eu não posso. As fille du roi6 não têm permissão para levar servos. Há pouco espaço no navio ― ela abraçou fortemente Lenobia, falando rapidamente, enquanto ao longe o som de uma carruagem ecoou através da neblina. ― Eu sei que tenho sido com você, mas isso era apenas porque você tinha que crescer forte e corajosa. Eu sempre a amei, Lenobia. Você é a melhor coisa da minha vida, a mais preciosa. Eu vou pensar em você e sentir a sua falta todos os dias enquanto eu viver. ― Não, maman ― Lenobia soluçou. ― Eu não posso dizer adeus para você. Eu não posso fazer isso. ― Você vai fazer isso por mim. Vai viver a vida que eu não pude lhe dar. Seja corajosa, minha filha linda. Lembre-se de quem você é. ― Como vou me lembrar de quem eu sou se vou ter que fingir ser outra pessoa? ― Lenobia exclamou. Elizabeth deu um passo para trás e gentilmente enxugou com delicadeza a umidade das bochechas de sua filha.
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Filhas do rei, em francês; o termo se refere a jovens mulheres francesas que imigraram para a América do Norte a fim de ajudar a colonizá-la. (N.T.).
― Vai se lembrar aqui. ― mais uma vez, a sua mãe pressionou a palma da mão contra o peito de Lenobia, em cima do seu coração. ― Você deve permanecer fiel a mim e a si mesma aqui. No seu coração, sempre vai saber, sem vai se lembrar. Assim como no meu coração eu sempre vou saber, sempre vou me lembrar de você Então a carruagem irrompeu na estrada ao lado delas, fazendo com que mãe e filha cambaleassem para trás, abrindo caminho. . ― Whoa! ― O condutor da carruagem fez os cavalos pararem gritou para Lenobia e sua mãe. ― O que estão fazendo aí, mulheres? Querem morrer? ― Você não vai falar nesse tom com a Mademoiselle Cecile Marson de La Tour d'Auvergne! ― Sua mãe gritou para o cocheiro. Seu olhar deslizou para Lenobia, que roçou as lágrimas de seu rosto com as costas da mão, ergueu o queixo, e olhou para o cocheiro. ― Mademoiselle d'Auvergne? Mas por que está aqui fora? ― Há uma doença no château. Meu pai, o Barão, manteve-me isolada para que eu não sofresse o contágio e não transmitisse a doença. A mão de Lenobia foi para o peito e apertou o tecido rendado, assim o rosário de contas de sua mãe ficaria mais pressionado contra sua pele, livrando seu nervosismo, dando-lhe força. Mas ainda assim ela não pôde evitar estender o braço e agarrar a mão da mãe em busca de segurança. ― Você é louco, homem? Não vê que a mademoiselle já o esperou aqui por muito tempo? Ajude-a a entrar na carruagem e sair desta umidade horrível antes que ela fique doente ― a mãe ralhou para o servo. O condutor desceu imediatamente, abrindo a porta da carruagem e oferecendo a sua mão. Lenobia sentiu como se todo o ar houvesse saído de seu corpo. Ela olhou desesperada para mãe. Lágrimas estavam escorrendo pelo rosto da mãe, mas ela simplesmente fez uma reverência profunda e falou: ― Bom voyage para você, garota. Lenobia ignorou o cocheiro aparvalhado e fez com que a sua mãe se levantasse, abraçando-a com tanta força o rosário afundou dolorosamente na sua pele. ― Diga à minha mãe que eu a amo e que eu vou me lembrar dela e sentir a sua falta todos os dias da minha vida ― ela respondeu com voz trêmula. ― E eu rogo á Nossa Santa Mãe que ela deixe esse pecado ser atribuído a mim. Que o castigo caia sobre a minha cabeça, não sobre a sua ― Elizabeth sussurrou contra o rosto de sua filha.
Então ela se soltou do abraço de Lenobia, fez uma reverência novamente e virou-se, caminhando sem hesitação pelo caminho por onde elas tinham vindo. ― Mademoiselle d'Auvergne? ― O cocheiro chamou Lenobia, e ela olhou para ele. ― Posso pegar a sua cassette ? ― Não ― ela respondeu sem jeito, surpresa por a sua voz ainda funcionar. ― Vou manter a minha cassette comigo. Ele a olhou de um jeito estranho, mas estendeu a mão para ela. A garota viu a própria mão sendo colocada na dele, e as suas pernas a fizeram subir o degrau e entrar na carruagem. Ele se curvou rapidamente e então voltou para a sua posição de condutor. Quando a carruagem começou a balançar e a se mover para frente, Lenovia virou-se para olhar os portões do Château de Navarre e viu a mãe desabar no chão, chorando com as mãos sobre a boca para abafar os seus gritos de dor. Com as mãos contra o vidro caro da janela da carruagem, Lenobia chorou, observando a sua mãe e o seu mundo desaparecem na neblina e se transformarem em lembranças.
Capítulo dois Com um redemoinho de saias e risos guturais, Laetitia desapareceu em torno de uma parede de mármore esculpida com imagens de santos, deixando apenas o aroma de seu perfume e os restos de desejo insatisfeito em seu rastro. Charles amaldiçoou. ― Ah, ventrebleu! E ajustou suas vestes de veludo. ― Padre? ― O acólito repetiu, chamando pelo corredor interior que corria por trás da capela-mor da catedral. ― Você me ouviu? É o arcebispo! Ele está aqui e pergunta por você. ― Eu ouvi! Padre Charles olhou para o menino. Quando se aproximou, o padre ergueu a mão e fez um movimento brusco. Charles observou que a criança se encolheu como um potro arisco, o que fez o sacerdote sorrir. O sorriso de Charles não era uma coisa agradável de se ver, e o menino rapidamente se dirigiu aos degraus que o levaram até a capela-mor, colocando mais espaço entre os dois. ― Onde está Juigné? ― Charles perguntou. ― Não muito longe daqui, logo na entrada principal da catedral, padre. ― Eu confio que ele não está esperando há muito tempo? ― Não faz muito tempo, padre. Mas você estava, uh ― o menino parou, com o rosto cheio de consternação. ― Eu estava em profunda oração, e você não quis me perturbar ― Charles terminou para ele, olhando fixamente para o garoto. ― S-Sim, senhor. O menino era incapaz de olhar para longe dele. Ele tinha começado a suar, e seu rosto tinha virado um tom alarmante de rosa. Charles não poderia dizer se a criança ia chorar ou explodir. Um ou outro, foi divertido para o sacerdote. ― Ah, mas não temos tempo para diversão ― ele meditou em voz alta, quebrando o seu olhar com o garoto e passando rapidamente por ele. ― Nós temos um convidado inesperado.
Disfrutando do fato de que o menino se achatava contra a parede a fim de que suas vestes sacerdotais não roçassem sua pele, Charles sentiu seu estado de ânimo melhorar. Ele não devia permitir que coisas insignificantes o afetassem. Ele simplesmente chamaria Laetitia, logo que conseguisse se livrar do arcebispo, e a faria retomar de onde tinham parado... com ela curvada diante dele. Charles estava pensando no corpo nu e volumoso de Laetitia quando cumprimentou o velho sacerdote. ― É um grande prazer vê-lo, padre Antoine. Sinto-me honrado em recebê-lo na Catedral de Notre Dame d'Évreux ― Charles de Beaumont, bispo de Évreux, mentiu. ― Merci beaucoup, o Padre Charles. O arcebispo de Paris, Antoine le Clerc de Juigné, beijou-lhe castamente numa bochecha e depois na outra. Charles pensou nos lábios do velho tolo como secos e mortos. ― A que devemos, eu e minha catedral, o prazer da sua visita? ― Sua catedral, padre? Certamente é mais preciso dizer que esta é a Casa de Deus. A raiva de Charles começou a aumentar. Automaticamente, seus longos dedos começaram a acariciar sua enorme cruz vermelha que estava sempre pendurada por uma corrente grossa em torno da garganta. As chamas das velas acesas aos pés da estátua de Saint Denis vibravam. ― Dizer que esta é a minha catedral é simplesmente uma expressão de carinho, não de posse ― Charles respondeu. ― Vamos aos meus aposentos para compartilhar vinho e um pedaço de pão? ― Certamente, minha viagem foi longa e, embora em fevereiro eu devesse ser grato por ser chuva e não neve caindo do céu nublado, o clima úmido é cansativo. ― Traga vinho e uma refeição decente imediatamente ao meu escritório. Charles fez sinal com impaciência a um dos acólitos nas proximidades, que saltou nervosamente e saiu correndo para realizar a ordem. Quando olhar de Charles voltou para o antigo sacerdote, ele viu que de Juigné estava estudando o acólito recuando com uma expressão que era o seu primeiro aviso de que algo estava errado com esta visita não anunciada. ― Venha, Antoine, você tem o olhar cansado. Meus escritórios são agradáveis e acolhedores. Vai se sentir confortável ali. Charles levou o velho sacerdote pela da nave, através da catedral, pelo jardim pouco agradável e para os escritórios opulentos que se transformavam em seus espaçosos aposentos privados. Todo o tempo o arcebispo olhou ao seu redor, silencioso e contemplativo.
Não foi até que estavam sentados em frente à lareira de mármore de Charles, com uma taça de vinho tinto excelente na mão e uma refeição suntuosa colocada diante dele, que de Juigné se dignou a falar. ― O clima do mundo está mudando, padre Charles. Charles ergueu as sobrancelhas e se perguntou se o velho estava tão estúpido como parecia. Ele viajou por todo o caminho de Paris para falar do tempo? ― Na verdade, parece que este inverno está mais quente e mais úmido do que qualquer em minha memória ― Charles comentou, desejando que esta conversa inútil acabasse logo. Os olhos azuis de Antoine le Clerc de Juigné, que tinham parecido aguados e sem foco apenas alguns segundos antes, tornaram-se afiados. Seu olhar centrou-se em Charles. ― Idiota! Por que eu estaria falando do tempo? É o clima das pessoas que me preocupa. ― Ah, é claro ― no momento, Charles estava muito surpreso com a nitidez na voz do velho até para sentir raiva. ― O povo. ― Fala-se de uma revolução. ― Sempre se fala de uma revolução ― Charles replicou enquanto escolhia um suculento pedaço de carne de porco para comer com o queijo de cabra suave que ele tinha cortado para o seu pão. ― É mais do que falar simplesmente ― disse o velho sacerdote. ― Talvez ― Charles concordou de boca cheia. ― O mundo muda à nossa volta. Nos aproximamos de um novo século, apesar de que eu estarei na Graça de Deus antes que ele chegue. Aos homens mais jovens, homens como você, será deixada a liderança da igreja no meio do tumulto que se aproxima. Charles ardentemente desejou o velho sacerdote estivesse com a Graça de Deus antes que tivesse feito esta visita, mas ele escondeu seus sentimentos, mastigando, e balançou a cabeça sabiamente, dizendo apenas: ― Vou rezar para ser digno de uma responsabilidade tão imensa. ― Estou contente que você esteja de acordo sobre a necessidade de assumir a responsabilidade por suas ações ― disse de Juigné. Charles estreitou os olhos. ― Minhas ações? Estávamos falando das pessoas e a mudança dentro delas. ― Sim, e é por isso que suas ações têm chamado a atenção de Sua Santidade.
A boca de Charles de repente ficou seca e ele teve que beber vinho para engolir. Tentou falar, mas de Juigné continuou, não permitindo que ele respondesse. ― Em tempos de turbulência, especialmente quando a maré da atitude popular se balanceia com as crenças burguesas, torna-se cada vez mais importante que a igreja não se afogue como consequência da mudança. O arcebispo fez uma pausa para saborear delicadamente em seu vinho. ― Perdoe-me, padre. Estou meio confuso, não consigo entender. ― Oh, eu duvido muito disso. Você não poderia acreditar que seu comportamento poderia ser ignorado para sempre. Você enfraquece a igreja, o que não pode ser ignorado. ― O meu comportamento? Enfraquecer a igreja? ― Charles estava muito surpreendido para se irritar. Ele varreu uma mão bem cuidada em torno deles. ― A minha igreja parece enfraquecida para você? Eu sou amado pelos meus paroquianos. Eles mostram a sua devoção pelo dízimo com a generosidade que preenche esta mesa. ― Você é temido pelos seus paroquianos. Eles enchem sua mesa e seus cofres porque têm mais medo do fogo de sua raiva do que a queima de seus estômagos vazios. O próprio estômago Charles balançou. Como esse velho bastardo poderia saber? E se ele sabe, significa que o Papa também? Charles se forçou a manter a calma. Ele até mesmo conseguiu uma risada seca. ― Absurdo! Se é fogo que eles temem, é provocado pelo peso de seus próprios pecados e a possibilidade de condenação eterna. Então, elas dão generosamente para aliviar esses temores, e para que eu possa absolvê-los devidamente. O arcebispo continuou como se Charles nunca tinha falado. ― Você deveria ter mantido as putas. Ninguém percebe o que acontece com eles. Isabelle Varlot era filha de um marquês. O estômago de Charles continuou a revirar. ― Essa menina foi vítima de um terrível acidente. Ela passou perto demais de uma tocha. Uma faísca transformou o vestido em chamas. Ela queimou antes que alguém pudesse salvá-la. ― Ela queimou depois de desdenhar os seus avanços. ― Isso é ridículo! Eu não... ― Você também devia ter mantido a sua crueldade na linha ― o arcebispo interrompeu. ― Muitos dos noviços vêm de famílias nobres. Tem-se falado. ― Rumores! ― Charles exclamou.
― Rumores. Sim, apoiados pelas cicatrizes de queimaduras. Jean du Bellay retornou ao baronato de seu pai sem as vestes sacerdotais e em seu lugar agora carrega cicatrizes que o desfigurarão para o resto de sua vida. ― É uma lástima que a fé dele não foi tão grande quanto sua falta de jeito. Esteve a ponto de reduzir meus estábulos a cinzas. Não teve nada a ver comigo que após uma lesão de sua própria causa, ele renunciou ao seu cargo para o nosso sacerdócio e retirou-se de volta ao lar, para a riqueza de sua família. ― Jean contou uma história muito diferente. Disse que o confrontou sobre o seu tratamento cruel a seus companheiros noviços e sua raiva foi tão grande que você colocou ele e o estábulo em torno dele em chamas. Charles sentiu a raiva começar a queimar dentro dele, e enquanto falava, as chamas das velas dos suportes de prata ornamentados nas extremidades da mesa de jantar começaram a vibrar freneticamente, cada vez mais brilhantes a cada palavra. ― Você não vai entrar em minha igreja e fazer acusações contra mim. Os olhos do velho sacerdote se arregalaram enquanto olhava para as chamas crescentes. ― É verdade o que estão dizendo sobre você. Eu não acreditava nisso até agora. Mas ao invés de recuar ou de reagir com medo, como Charles tinha vindo a esperar, de Juigné alcançou suas vestes e tirou um pergaminho dobrado, segurando-o diante dele como o escudo de um guerreiro. Charles acariciou a cruz cor de rubi que estava quente e pesada em seu peito. Ele tinha realmente começado a mover sua mão em direção à chama da vela mais próxima, que se contorcia mais e mais brilhante, como se chamando seu toque, mas o selo de chumbo grosso no pergaminho enviava gelo em suas veias. ― Uma bula papal! ― Charles sentiu seu ar deixá-lo ao falar palavras, como se o selo tivesse, de fato, sido um escudo arremessado contra seu corpo. ― Sim, Sua Santidade me enviou. Sua Santidade sabe que estou aqui e, como você pode ler por si mesmo, se eu ou qualquer um no meu séquito sofrer um acidente infeliz com o fogo, a sua misericórdia se transformará rapidamente em seu castigo, e a vingança contra você será rápida. Se você não tivesse sido tão distraído em profanar o santuário, teria notado que a minha escolta não é formada por sacerdotes. O Papa enviou sua própria guarda pessoal comigo. Com as mãos que tremiam, Charles pegou o pergaminho e quebrou o selo. Enquanto lia, a voz do arcebispo encheu a câmara ao seu redor, como se narrasse a desgraça do sacerdote mais jovem.
― Você tem sido observado de perto por quase um ano. Relatos têm sido feitos a Sua Santidade, que chegou a decisão de que sua predileção pelo fogo não pode ser a manifestação da influência demoníaca, como muitos de nós acreditamos. Sua Santidade está disposta a dar-lhe uma oportunidade de usar sua afinidade incomum no serviço da igreja, protegendo aqueles que são mais vulneráveis. E em nenhum lugar a igreja é mais vulnerável do que em Nova França. Charles chegou ao final do touro e olhou para o arcebispo. ― O papa está me mandando para Nova Orleans. ― Correto. ― Eu não vou. Eu não vou deixar a minha catedral. ― Esta é uma decisão sua, padre Charles. Mas saiba que se você optar por não obedecer, Sua Santidade ordenou que você seja preso, excomungado, declarado culpado de feitiçaria, e depois vamos todos ver se o seu amor pelo fogo é tão grande quando você é obrigado a ter uma participação e incendiar-se. ― Então eu não tenho escolha. O arcebispo deu de ombros e, em seguida, levantou-se. ― É melhor que a escolha que eu te ofereci. ― Quando me mudo? ― Você deve sair daqui imediatamente. É um passeio de carruagem de dois dias até o Le Havre. Em três dias, o Minerva zarpará. Sua Santidade ordena que a sua proteção da Igreja Católica começa no momento em que pisar sobre o solo do Novo Mundo, onde vai ocupar o lugar de Bispo da Catedral de Saint Louis ― o sorriso Antoine era desdenhoso. ― Você não vai achar Nova Orleans tão generosa como Évreux, mas pode achar que os paroquianos no Novo Mundo são mais tolerantes com suas, digamos, excentricidades. O arcebispo começou a se virar em direção à porta, mas ele fez uma pausa e olhou de volta para Charles. ― Quem é você? Diga-me verdadeiramente e eu não direi nada a Sua Santidade. ― Sou um humilde servo da igreja. Qualquer outra coisa tem sido exagerada pelo ciúme e superstição dos outros. O arcebispo balançou a cabeça e não disse mais nada antes de sair da sala. Enquanto a porta se fechava, Charles cerrou suas mãos em punhos e as jogou contra a mesa, fazendo com que os talheres e pratos tremessem e as chamas das velas se contorcessem e derramassem cera líquida como se chorassem de dor.
*** Durante a viagem de dois dias a partir do Château de Navarra até o porto de Le Havre, a neblina e a chuva envolveram o transporte de Lenobia em um véu de cinza que era tão denso e impenetrável, que parecia a Lenobia que ela havia sido levada do mundo que conhecia e da mãe para um purgatório sem fim. Ela não falou com ninguém durante o dia. O cocheiro fez uma breve pausa apenas para ela atender as mais básicas das funções corporais, e depois eles continuaram até a noite. Em cada uma das duas noites, o condutor parou em belas pousadas de beira de estrada onde as donas dos estabelecimentos se encarregavam de Cecile Marson de La Tour d'Auvergne, comentando sobre ela ser tão jovem e estar viajando desacompanhada e, quase sem que ela ouvisse, fofocavam com as serventes sobre quão assustador e atroz deveria ser estar em seu caminho para se casar com um estranho sem rosto em outro mundo. ― Terrível... assustador... ― Lenobia repetia. Então ela agarrava as contas do rosário de sua mãe rosário e rezava: ― Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós, entre as mulheres... ― rezava uma e outra vez, assim como se lembrava de sua mãe fazendo , até que os sons de sussurros dos empregados foram abafadas pela memória da voz de sua mãe. Na terceira manhã, eles chegaram na cidade portuária de Le Havre e, por um instante, a chuva parou e a neblina se dissipou. O cheiro de peixe e de mar permeava tudo. Quando o condutor finalmente parou e Lenobia desceu da carruagem até o cais, uma brisa, fresca rápida afugentou a última das nuvens, e o sol sorriu como se estivesse dando as boas-vindas, iluminando uma fragata ricamente pintada que balançava sem parar, seguindo o movimento das ondas. Lenobia olhou para o navio com admiração. Toda a parte superior do casco foi pintada em azul, com intrincadas filigranas douradas que a lembraram de flores e heras. Ela pôde ver os tons amarelados, alaranjados e pretos que decoravam outras partes do casco, bem como o convés. E de frente para ela estava a figura de uma deusa, os braços estendidos, o vestido esvoaçante no vento. Ela estava de capacete, como se pronta para a guerra. Lenobia não tinha ideia do por que, mas a visão da deusa lhe tirou o ar e fez seu coração acelerar. ― Mademoiselle d'Auvergne? Mademoiselle? Excusez-moi, vous etes Cecile Marson de La Tour d'Auvergne? O hábito marrom da freira chamou a atenção Lenobia antes que suas palavras fossem verdadeiramente compreendidas. Sou Cecile? Com uma sacudida de cabeça, Lenobia percebeu que a irmã tinha chamado-a do outro lado da doca, e não obtendo resposta, a freira se separou do grupo de jovens vestidas
ricamente e aproximou-se dela, a preocupação clara em sua expressão, bem como a sua voz. ― É... é lindo! ― Lenobia deixou escapar o primeiro pensamento que estava totalmente formado em sua mente. A freira sorriu. ― É, de fato. E se você é Cecile Marson de La Tour d'Auvergne, terá o prazer de saber que é mais do que apenas bonito. É o meio pelo qual você vai embarcar em uma vida totalmente nova. Lenobia respirou fundo, apertou a mão ao peito para que ela pudesse sentir a pressão do rosário de sua mãe, e respondeu: ― Sim, eu sou Cecile Marson de La Tour d'Auvergne. ― Oh, estou tão feliz! Eu sou a irmã Marie Madeleine Hachard, e você é a última das damas. Agora que está aqui, podemos embarcar. Os olhos castanhos da freira foram gentis. ― Não é um belo presságio que você tenha trazido o sol com a sua chegada? ― Espero que sim, a irmã Marie Madeleine ― Lenobia disse, e então teve que andar depressa para acompanhar com a freira, que andava de volta na direção das meninas. ― Esta é Mademoiselle d'Auvergne, e agora estamos todos chegaram ― a freira fez um gesto imperioso para os carregadores que estavam lançando olhares curiosos para o grupo de meninas. ― Allons-y! Levem-nos para o Minerva, e sejam cuidadosos e rápidos com isso. Comandante Cornwallis está ansioso para navegar com a maré. Enquanto os homens se apressavam para fazer o que a irmã ordenou e traziam botes para transportá-las para o navio, a freira virou-se para as meninas. Com um movimento da mão, falou: ― Mademoiselles, vamos entrar no futuro! Lenobia se juntou ao grupo, rapidamente observando o rosto das meninas, segurando a respiração e esperando que nenhum deles fosse familiar a ela. Ela deu um suspiro longo e trêmulo de alívio quando tudo o que reconheceu foi a similaridade de suas expressões de medo. Mesmo assim, ela manteve-se propositadamente no fim do grupo, concentrando o seu olhar e atenção no navio e no barco a remo que iria levá-las a ele. ― Bonjour, Cecile ― uma menina que parecia não ter mais que treze anos falou para Lenobia com uma voz suave e tímida. ― Je m'appelle Simonette Lavigne. ― Bonjour ― Lenobia respondeu, tentando sorrir. A menina aproximou-se dela.
― Você está com muito, muito medo? Lenobia estudava. Ela certamente era bonita, com cabelo longo e escuro cortado na altura dos ombros, um rosto suave e de cor de creme, sua tez marcada apenas por duas brilhantes manchas cor-de-rosa em suas bochechas. Ela estava apavorada, Lenobia percebeu. Lenobia olhou para o resto das meninas no grupo, desta vez realmente vendo-as. Eram todas atraentes, bem vestidas, de idades próximas a sua. Elas também estavam com os olhos arregalados e tremendo. Algumas choravam baixinho. Uma das pequenas loiras sacudia a cabeça repetidamente e segurava um crucifixo incrustado de diamantes que pendia do pescoço em uma grossa corrente de ouro. Estão todas com medo, pensou Lenobia. Ela sorriu para Simonette, e desta vez realmente conseguiu mais do que um esgar. ― Não, não estou com medo ― Lenobia ouviu-se dizer em uma voz que soava muito mais forte do que ela se sentia. ― Acho que o navio é lindo. ― M-mas eu não sei nadar! ― gaguejou a loira tremendo pouco. Nadar? Eu estou preocupada em ser descoberta como uma impostora, nunca mais ver minha mãe novamente e enfrentar a vida em uma terra estranha e estrangeira. Como ela poderia estar preocupada com nadar? A gargalhada que escapou Lenobia chamou a atenção de todas as meninas, assim como a da irmã Maria Madeleine. ― Está rindo de mim, senhorita? ― a menina perguntou-lhe. Lenobia limpou a garganta. ― Não, claro que não. Eu só estava pensando o quão engraçado seria todas nós tentando chegar Novo Mundo nadando. Seríamos como flores flutuantes ― ela riu de novo, desta vez menos histericamente. ― Mas não é melhor que tenhamos esse magnífico navio para nos levar lá, em lugar disso? ― O que é essa conversa de natação? ― interrompeu a irmã Marie Madeleine. ― Nenhuma de nós precisa saber nadar. Mademoiselle Cecile estava com a razão de rir de tal pensamento. A freira foi até a beira do cais, onde os marinheiros estavam esperando impacientemente pelas meninas para começar o embarque. ― Agora, venham comigo. Precisamos nos instalar em nossos quartos para que oMinerva entre em curso. Sem um olhar para trás, a irmã Marie Madeleine tomou a mão do marinheiro mais próximo e entrou desajeitadamente, mas com entusiasmo, no barco balançando. Ela tomou um lugar e arrumou seu hábito marrom antes de notar que nenhuma das meninas a havia seguido.
Lenobia notou que várias das garotas tinham dado passos para trás, e as lágrimas pareciam estar se espalhando como uma peste pelo grupo. Isto não é tão terrível como deixar minha mãe, Lenobia disse a si mesma com firmeza.Nem é tão assustador como ser a filha bastarda de um barão indiferente. Sem mais dúvidas, Lenobia caminhou até a beira do cais. Ela estendeu a mão, como se estivesse acostumada a ter servos para ajudá-la, e antes que tivesse tempo de repensar sua ousadia, ela estava no pequeno barco, tomando um assento ao lado da irmã Marie Madeleine. A freira se aproximou e apertou a mão dela brevemente, mas com firmeza. ― Muito bem ― disse a irmã. Lenobia ergueu o queixo e encontrou o olhar do Simonette. ― Vamos, pequena flor! Você não tem nada a temer. ― Oui! ― Simonette concordou, levantando suas saias e correndo para a frente para pegar a mão que o marinheiro oferecia. ― Se você pode fazê-lo, eu posso também. E isso quebrou a resistência. Logo todas as meninas estavam sendo entregues dentro do barco. Lágrimas transformaram em sorrisos enquanto a confiança do grupo se construiu e seu terror evaporou, deixando suspiros aliviados e até mesmo risos alguns hesitantes. Lenobia não tinha certeza de quando seu próprio sorriso mudou de falso e forçado para algo genuíno, mas quando a última garota subiu a bordo, ela percebeu que o aperto no peito havia diminuído, como se a dor em seu coração pudesse realmente tornar-se suportável. Os marinheiros remaram quase todo o caminho até o navio, e Simonette falava em como já tinha quase dezesseis anos de idade e nunca tinha visto o mar, e talvez estivesse apenas um pouco animada, quando uma carruagem dourada chegou e um homem alto vestido de púrpura saiu. Ele caminhou até a beira do cais e olhou a partida do grupo de meninas para o navio. Tudo sobre ele, desde sua posição para o olhar sombrio no rosto, parecia irritado, agressivo e familiar. Terrivelmente familiar... Lenobia estava olhando para ele com um crescente sentimento de descrença e desânimo. Não, por favor, que não seja ele! ― Seu rosto me assusta ― Simonette falou baixinho. Ela também estava olhando para o homem no cais distante. Irmã Marie Madeleine afagou-lhe a mão e respondeu tranquilizando. ― Fui notificada apenas esta manhã que a encantadora Catedral de Saint Louis
vai estar ganhando um novo padre. Deve ser ele ― a freira sorriu gentilmente para Simonette. ― Não há nenhuma razão para você ficar assustada. É uma bênção ter o bom padre para viajar conosco para Nova Orleans. ― Você sabe de qual paróquia ele é? ― Lenobia perguntou, mesmo sabendo a resposta antes de a freira confirmar o seu temor. ― Sim, Cecile. Ele é Charles de Beaumont, o padre de Évreux. Mas você não o reconhece? Acredito Évreux seja bastante perto de sua casa, correto? Sentindo seu estômago revirar, Lenobia respondeu: ― Sim, irmã. É.
Capítulo três Assim que Lenobia embarcou no Minerva, ela puxou a capa grossa de seu manto forrado de pele sobre a cabeça. Obrigando-se a ignorar as distrações a sua volta, as roupas das outras garotas, a energia vibrante de tudo, desde caixas de farinha e sacos de sal a barris de carne salgada e cavalos sendo carregados. Lenobia abaixou a cabeça e tentou desaparecer. Cavalos! Há cavalos que vêm conosco, também? Ela queria olhar ao seu redor e absorver tudo, mas o barco já havia começado sua viagem de volta para as docas, onde recolheria o seu companheiro de viagem, o Bispo de Évreux. Devo ficar abaixada. Eu não devo deixar o bispo me ver. Acima de tudo, devo ser corajosa... ser corajosa ... ser corajosa... ― Cecile? Você está bem? ― Simonette estava olhando para o seu rosto encapuzado, soando tão preocupada que chamou a atenção da irmã Marie Madeleine. ― Mademoiselle Cecile, está... ― Estou me sentindo um pouco mal, irmã ― Lenobia interrompeu, tentando falar baixinho e não chamar mais atenção para si. ― Ah! Algumas pessoas se sentam mal no momento em que põem os pés no convés. ― O homem que caminhava na direção delas tinha uma voz potente, um enorme peito em formato de barril e um rosto corado que contrastava radicalmente com o casaco azul escuro e dragonas douradas. ― Lamento dizê-lo, mas sua reação é um mau presságio sobre como você se sairá durante a viagem, mademoiselle. Eu posso lhe dizer que, embora eu tenha perdido os passageiros para o mar, nunca perdi um para enjoo. ― E-eu acho que será melhor se eu puder ficar abaixo ― disse Lenobia rapidamente, consciente que a cada momento o padre estava ficando cada vez mais perto do embarque. ― Oh, pobre Cecile ― irmã Marie Madeleine murmurou. Em seguida, acrescentou: ― Meninas, este é o nosso capitão, William Cornwallis. Ele é um grande patriota e irá manter-nos bastante segura durante nossa longa jornada. ― É muito gentil de sua parte dizer, boa irmã ― o capitão fez sinal a um jovem mulato vestido de forma simples que estava perto. ― Martin, mostre às senhoras seus quartos.
― Merci beaucoup, capitão ― disse a Irmã Marie Madeleine. ― Espero ver todas vocês no jantar esta noite ― o grande homem deu uma piscadela para Lenobia pouco. ― Pelo menos aquelas de vocês com o estômago para assistir! Com licença, senhoras. Ele afastou-se, gritando com um grupo de tripulantes que estava lutando desajeitadamente com uma grande caixa. ― Mademoiselles, madame, queiram me seguir ― Martin falou. Lenobia foi a primeira a entrar na fila por trás da forma de ombros largos de Martin. Ele agilmente levava-as através de uma porta na parte traseira da plataforma e para baixo, por escadas traiçoeiramente estreitas que davam em um corredor quase igualmente estreito, que se dividia para a esquerda e direita. Martin apontou o queixo para a esquerda e Lenobia teve um vislumbre de seu perfil, jovem e forte. ― Esse caminho leva aos alojamentos da tripulação. Enquanto ele falava, um som alto de colisão e um relincho agudo veio da direção em que seu queixo tinha apontado. ― Tripulação? ― Lenobia não pôde deixar de perguntar sem elevar as sobrancelhas, o som familiar de um cavalo irritado momentaneamente fazendo-a esquecer de ser muda e invisível. Martin olhou para ela. Um sorriso surgiu nos cantos de seus lábios e seus olhos, que brilhavam com uma incomum luz verde oliva, brilharam. Lenobia não poderia dizer se o brilho foi mau-humor ou sarcasmo. Ele disse: ― No convés abaixo dos quartos da tripulação estão as cargas, e lá há um par de cinzasque Vincent Rillieux comprou para sua carruagem. ― Cinzas? ― Simonette indagou, mas ela não estava espiando o longo corredor, estava olhando com curiosidade aberta para Martin. ― Cavalos ― Lenobia explicou. ― Percherões, um par de cavalos castrados ― Martin corrigiu. ― Brutos gigantes. Não apto para damas. A escuridão e a umidade predominam no porão de carga. Não é lugar adequado para senhoras ou senhores ― disse ele, encontrando o olhar Lenobia com uma franqueza que a surpreendeu. Ele se virou para a direita e continuou a falar enquanto andava. ― Deste lado estão seus aposentos. Há quatro cabines para dividires. O capitão e os passageiros do sexo masculino estão acima de você. Simonette entrelaçou seu braço com o de Lenobia e sussurrou rapidamente: ― Eu nunca vi um mulato antes. Eu me pergunto se todos são tão bonitos como este!
― Sssh! ― Lenobia calou-a enquanto Martin parava antes do primeiro quarto. ― Isso é tudo. Obrigado, Martin ― irmã Marie Madeleine tinha alcançado-os e lançou a Simonette um olhar duro. ― Sim, irmã ― ele inclinou-se para a freira e voltou pelo corredor. ― Excuse moi, Martin. Onde e quando é que vamos jantar com o capitão? ― a irmã Marie Madeleine perguntou. Martin fez uma pausa em sua saída para responder. ― A mesa do capitão é onde vocês tem o jantar, às sete horas da noite. Em ponto, madame. O capitão insiste em vestimentas formais. As outras refeições serão trazidas a vocês. Embora o tom de Martin tivesse se tornado rude, quando seu olhar foi para Lenobia ela pensou que sua expressão era mais cheia de curiosidade tímida do que mesquinharia. ― Será que vamos ser as únicas convidadas a jantar com o capitão? ― Lenobia perguntou. ― Certamente ele irá incluir o padre em seu convite ― a irmã Marie Madeleine respondeu rapidamente. ― Oh, oui, o padre vai participar. Ele também realizará a missa. O capitão é um católico devoto, assim como a tripulação, madame ― Martin assegurou-lhe antes de desaparecer de vista para o corredor. Desta vez, Lenobia não teve que fingir que se sentia doente. *** ― Não, não, sério. Por favor, vá sem mim. Um pouco de pão, queijo e vinho regado é tudo que eu preciso ― garantiu Lenobia à irmã Marie Madeleine. ― Mademoiselle Cecile, a companhia do capitão e do padre não tirarão sua mente do mal-estar do estômago? ― a freira franziu a testa enquanto hesitava na porta com as outras meninas, todas vestidas e ansiosas para o seu primeiro jantar na mesa do capitão. ― Não! ― Pensando sobre o que aconteceria se o religioso a reconhecesse, o rosto de Lenobia empalidecera. Ela engasgou um pouco e apertou a mão à boca como se estivesse segurando o vômito. ― Eu não posso sequer suportar pensar em comida. Eu certamente me envergonharia se tentasse. Irmã Marie Madeleine suspirou pesadamente. ― Muito bem. Descanse por esta noite. Eu vou te trazer de volta um pouco de pão e queijo. ― Obrigada, irmã.
― Estou certa que você vai melhorar até amanhã ― Simonette falou antes que a irmã Marie Madeleine fechasse a porta suavemente atrás dela. Lenobia soltou um longo suspiro e jogou para trás o capuz de seu manto, juntamente com seu cabelo louro-prateado. Sem perder nada de seu precioso tempo sozinha, ela arrastou o grande baú que tinha gravado na parte de cima, em ouro, CÉCILE MARSON DE LA TOUR D'AUVERGNE para o lado mais distante do quarto, perto da cama que ela tinha escolhido para si. Lenobia colocou o baú debaixo de uma das claraboias e então subiu em cima dele, puxou o gancho de bronze que segurava o vidro fechado e respirou profundamente o ar frio e úmido. O grosso baú era apenas alto o suficiente para se ver para fora da janela. Em reverência, Lenobia olhou para a imensidão de água. O crepúsculo já havia passado, mas ainda havia luz suficiente no enorme céu para as ondas serem iluminadas. Lenobia não achou que ela já tivesse visto algo tão fascinante como o oceano à noite. Seu corpo balançava graciosamente com o movimento do navio. Doente? Absolutamente não! ― Mas eu fingirei estar ― ela sussurrou em voz alta para o oceano e para a noite. ― Mesmo se eu tiver que manter a mentira durante as oito semanas de viagem. Oito semanas! O pensamento era terrível. Ela ofegou em choque quando a sempre tagarela Simonette tinha comentado o quanto era difícil de acreditar que estariam neste navio durante oito semanas inteiras. A irmã Marie Madeleine tinha dado-lhe um olhar estranho, e Lenobia tinha suprimido rapidamente seu suspiro com um gemido, e agarrou seu estômago. ― Eu devo ter mais cuidado ― disse a si mesma. ― Claro que a Cecile real saberia que a viagem levaria oito semanas. Devo ser mais inteligente e corajosa e, acima de tudo, devo evitar o padre. Relutantemente, ela fechou a pequena janela, desceu e abriu a mala. Enquanto buscava através das sedas caras e laços por uma roupa adequada para dormir, ela encontrou um pedaço de papel dobrado deitado em cima de um montinho brilhante. O nome Cecile estava escrito com a letra distintamente marcada de sua mãe. As mãos de Lenobia tremiam um pouco quando ela abriu a carta e leu: Minha filha, Você está noiva do filho mais novo do Duqe de Silegne, Thinton de Silegne. Ele é o dono de uma grande plantação a um dia de carruagem ao norte de Nova Orleans. Eu não sei se ele é bom ou bonito, só que ele é jovem, rico e vem de uma boa família. Orarei a cada nascer do sol para que você encontre a
felicidade e que seus filhos saibam da sorte que é ter uma mulher tão valente como sua mãe. Sua mãe. Lenobia fechou os olhos, enxugou as lágrimas de suas bochechas e agarrou carta de sua mãe. Era um sinal de que tudo ficaria bem! Ela ia se casar com um homem que vivia ao norte de um dia de passeio de onde o bispo estaria. Certamente uma fazenda grande e rica teria a sua própria capela. Se não tivesse, Lenobia se asseguraria que fosse construída. Tudo o que ela tinha a fazer era evitar a descoberta até que saísse de Nova Orleans. Não deve ser tão difícil, disse a si mesma. Nos últimos dois anos tenho estado evitando os olhares curiosos dos homens. Em comparação, oito semanas a mais não é muito... *** Muito mais tarde, quando Lenobia permitiu-se lembrar da desafortunada viagem, ela considerou a estranheza do tempo, e como oito semanas poderiam passar em velocidades tão diferentes. Os dois primeiros dias pareceram intermináveis. Irmã Marie Madeleine pairava a sua volta, tentando fazê-la comer, o que era uma tortura porque Lenobia estava absolutamente faminta e queria afundar seus dentes nos biscoitos e na carne de porco fatiada que a boa freira manteve oferecendo-lhe. Em vez disso, ela mordiscou um pedaço de pão duro e bebeu vinho regado até as bochechas ficarem rosadas e sua cabeça estar girando. Logo após o amanhecer do terceiro dia, o oceano, que tinha sido tranquilo, mudou completamente e tornou-se uma entidade com raiva cinza que jogou o Minerva de lá para cá como se fosse um galho. O capitão fez um grande show ao chegar a seus quartos e assegurando-lhes que a tempestade era relativamente leve e, na realidade, conveniente, pois estava empurrando-os em direção a Nova Orleans em um ritmo muito mais rápido do que era típico para esta época do ano. Lenobia estava contente com isso, mas pensou que era ainda mais que conveniente, uma vez que os mares revoltos causaram enjoo em mais da metade de seus companheiros – incluindo o pobre padre infeliz – forçando-os a se trancarem em seus quartos. Lenobia se sentiu mal por estar aliviada diante de tanta doença, mas certamente fez os próximos dez dias mais fáceis para ela. E pelo tempo que o mar se tornou calmo novamente, o padrão de Lenobia de preferir estar sozinha
havia sido bem estabelecido. Com exceção de ocasionais explosões de fala incontida de Simonette, as outras meninas deixavam Lenobia em paz. No início, ela pensou que estaria sozinha. Lenobia mal perdeu sua mãe, mas foi uma surpresa o quanto ela gostava da solidão, o tempo a sós com seus pensamentos. Mas essa foi apenas a primeira de suas surpresas. A verdade era que, até que seu segredo foi descoberto, Lenobia tinha encontrado a felicidade, e foi devido a três coisas: o nascer do sol, os cavalos e o jovem que conheceu por causa das duas primeiras. Ela encontrou o caminho para os percherões da mesma maneira que tinha descoberto quão pacífico e privado eram as primeiras horas antes e durante o nascer do sol – procurando os lugares menos frequentados pelas pessoas a bordo. Nenhuma das outras meninas deixava suas camas antes que o sol estivesse bem no alto do céu da manhã. Irmã Marie Madeleine era sempre a primeira das mulheres a acordar. Ela se levantava quando a luz do amanhecer mudava de rosa para amarelo, e ia imediatamente para o pequeno santuário que tinha criado para a Virgem Maria, acendia uma vela, e começava a rezar. A freira também ia ao altar no meio da manhã e antes de ir para a cama, para recitar o Pequeno Ofício da Virgem, instruindo as meninas a rezar com ela. Na verdade, todas as manhãs a irmã devota orava tão fervorosamente com os olhos fechados, contando as contas do rosário que era uma coisa simples deslizar para dentro ou para fora do cômodo sem perturbá-la. Desse modo, Lenobia começou a acordar antes de todos os outros e caminhar silenciosamente pelo navio, encontrando mais bolsões de solidão e beleza do que poderia ter imaginado. Ela estava ficando louca presa em um quarto, escondendo-se do padre e fingindo estar doente. Certa madrugada, quando todas as meninas, até mesmo irmã Marie Madeleine, estavam dormindo profundamente, ela tinha tomado a oportunidade e caminhado na ponta dos pés até o corredor. O mar estava agitado – a tormenta realmente instalada – mas Lenobia não teve problemas para manter-se de pé. Ela gostava do som do motor do Minerva. Também disfrutava do fato de que o mau tempo mantinha até mesmo muitos dos tripulantes em seus aposentos. Ouvindo tanto quanto podia, Lenobia se mudava de sombra para sombra, fazendo seu caminho até um canto escuro do convés. Ela se encontrou perto da grade e tomou profundas respirações de ar fresco enquanto olhava para a água, o céu e a imensidão do vazio. Ela não estava pensando em nada – apenas sentindo a liberdade. E então algo assombroso aconteceu.
O céu mudou do negro e cinza para vermelho amarelado. As águas cristalinas tornavam todas aquelas cores mais magníficas, e Lenobia tinha sido cativada pela majestade dela. Sim, claro, muitas vezes ela tinha sido acordada de madrugada no castelo, mas sempre tinha estado ocupada. Ela nunca tinha tido tempo para sentar e assistir a iluminação do céu, a magia do nascer do sol. A partir desse dia, tornou-se parte de seu próprio ritual religioso, e Lenobia era, à sua maneira, tão devota quanto a irmã Marie Madeleine. Em cada amanhecer ela se dirigiria ao convés, encontraria um local de sombra e solidão, e veria o céu dar as boas-vindas ao sol. E assim, Lenobia deu graças pela beleza que ela tinha sido autorizado a assistir. Segurando o rosário de contas de sua mãe, orou fervorosamente para que lhe fosse permitido ver outro amanhecer em segurança, sem o seu segredo ser descoberto. Ela ficaria no convés pelo tempo que pudesse, até que os barulhos da tripulação desperta a levasse de volta abaixo, onde caía em seu quarto compartilhado e voltava para a farsa de ser um solitário, doente. Foi só depois que ela assistiu o seu terceiro amanhecer e estava refazendo o que havia se tornado o caminho familiar para seu quarto dela foi que Lenobia encontrou os cavalos, e depois ele. Ela tinha ouvido os homens vindo de baixo quando estava prestes a entrar no corredor estreito, e tinha quase certeza que tinha reconhecido uma voz – a mais seca de todas – pertencia ao padre. Sua reação foi imediata. Lenobia levantou as saias e correu tão rápida e silenciosamente quanto possível na direção oposta. Ela passou rapidamente de sombra para sombra, sempre afastando-se das vozes. Ela não parou quando encontrou a porta arqueada que levava às íngremes, estreitas escadas que desciam e desciam. Ela simplesmente desceu até que chegou ao fundo. Lenobia os cheirou antes de vê-los. Os aromas de cavalo, feno e estrume eram tão familiares que chegaram a ser reconfortantes. Ela provavelmente devia ter parado apenas um momento – tinha certeza que as outras meninas não teriam dado muita atenção para os cavalos. Mas Lenobia não era como as outras garotas. Ela sempre amou todos os tipos de animais, especialmente cavalos. Seus sons e aromas atraíram-na como a lua atrai a maré. Havia uma quantidade surpreendente de luz que penetravam a partir de grandes aberturas retangulares no convés superior, e foi fácil para Lenobia fazer seu caminho em torno de caixas e sacos, baús e barris, até que ela estava de pé diante de um posto improvisado. Duas enormes cabeças cinzas pairavam sobre a parede improvisada, orelhas eretas de atenção em sua direção. ― Ooooh! Olhe para vocês dois! São maravilhosos! Lenobia foi até eles, movendo-se com cuidado, tentando não fazer qualquer bobagem ou movimentos bruscos que poderiam assustá-los. Mas ela
não precisou se preocupar. O par de percherões parecia tão curioso em relação a ela quanto ela em relação a eles. Ela levantou as mãos para eles e ambos começaram a soprar contra suas palmas. Esfregou suas testas largas e beijou seus focinhos úmidos, rindo femininamente quando eles lamberam seus cabelos. O riso foi o que fez Lenobia perceber a verdade – ela estava realmente borbulhando de felicidade. E isso era algo que não tinha acreditado que poderia sentir novamente de verdade. Oh, ela certamente sentiria a satisfação e a segurança que a vida de uma filha legítima de um barão traria. Esperava que pudesse sentir alegria, senão amor por Thinton de Silegne, o homem pela qual estava destinada a casar-se em lugar de Cecile. Mas a felicidade? Lenobia não esperava sentir a felicidade. Ela sorriu enquanto um dos cavalos mastigava o laço na manga de seu vestido. ― Cavalos e felicidade, eles vão juntos ― disse ao cavalo. Foi quando ela estava em pé entre os dois percherões, sentindo a bolha inesperada de felicidade, que um enorme gato preto e branco pulou de cima do caixote mais próximo e caiu com um baque monstruoso perto de seus pés. Lenobia e os percherões se assustaram. Os cavalos arquearam seus pescoços e enviaram olhares desconfiados para o felino. ― Eu sei ― Lenobia disse-lhes. ― Concordo com vocês. Esse é o maior gato que eu já vi. Como num sinal, o gato deitou e girou sobre suas costas, virou sua cabeça ao redor e piscou os olhos verdes inocentes para Lenobia enquanto ronronava um estranhorrrrrow. Lenobia olhou para os cavalos. Eles olharam para ela. Ela encolheu os ombros e disse: ― Oui, parece que ele quer carinho na barriga. Ela sorriu e estendeu a mão. ― Eu não faria isso, se fosse você. Lenobia puxou a mão para trás e congelou. O coração batendo forte, sentia-se presa e culpada quando o homem pisou para fora das sombras. Reconhecendo Martin, o mulato que lhes mostrou seus quartos poucos dias antes, ela deu um pequeno suspiro de alívio e tentou parecer menos culpada e mais como uma senhorita. ― Ela parece querer a barriga coçada ― disse Lenobia. ― Ele ― Martin corrigiu com um sorriso irônico. ― Ulisses está usando sua artimanha favorita em você, mademoiselle. Ele arrancou um pedaço longo de feno de um dos fardos nas proximidades e fez cócegas no estômago gordo do gato. Ulisses imediatamente
fechou as garras sobre o feno, capturando-o e mordendo-o completamente antes de desaparecer entre a carga. ― É o jogo dele. Ele parece inofensivo para te seduzir, e então ataca. ― Ele é realmente mau? Martin deu de ombros. ― Acho que não, apenas travesso. Mas o que eu sei, não sou um cavalheiro ou uma grande dama. Lenobia quase respondeu automaticamente: “Nem eu!” Felizmente, Martin continuou. ― Mademoiselle, este não é lugar para uma senhora. Vai sujar a sua roupa e bagunçar seu cabelo. Ela pensou que, apesar de Martin estar falando de uma maneira respeitosa, adequada havia algo em sua aparência – em seu tom – que era condescendente. E isso a incomodava. Não porque ela deveria estar acima de sua classe. Lenobia se importava porque ela não era uma dessas ricas, mimada e esnobes moças que subestimavam os outros e não sabia nada sobre trabalho duro. Ela não era Cecile Marson de La Tour d'Auvergne. Lenobia estreitou os olhos para ele. ― Eu gosto de cavalos. Para fazer seu ponto, ela aproximou-se dos dois cinzentos e deu um tapinha no pescoço grosso. ― Eu também gosto de gatos, até mesmo os travessos. E eu não me importo de ter a minha roupa suja ou meu cabelo despenteado. Lenobia viu surpresa em seus expressivos olhos verdes, mas antes que ele pudesse responder, o som das vozes dos homens surgiram de cima. ― Eu devo voltar. Não posso ser pega ― Lenobia conteve-se antes que pudesse deixar escapar “pelo padre” e em vez terminou às pressas ― vagando pelo navio. Eu deveria estar em meus aposentos. E-eu não estou bem. ― Eu me lembro ― Martin falou. ― Você parecia doente logo que veio a bordo. Não parece tão ruim agora, mesmo que o mar esteja agitado hoje. ― Andar por aí me faz sentir melhor, mas a irmã Marie Madeleine não acha adequado. Na verdade, a boa irmã não tinha pronunciado aquela frase exata. Ela não tinha que pronunciá-la. Todas as meninas pareciam contentes em sentar e bordar, fofocar ou tocar um dos dois preciosos cravos a bordo. Nenhuma delas mostrou qualquer interesse em explorar o grande navio. ― A irmã, ela é uma mulher forte. Acho que até o capitão tem um pouco de medo dela ― ele comentou. ― Eu sei, eu sei, mas, bem, eu só... Eu gosto de ver o resto do navio.
Lenobia se esforçou para encontrar as palavras certas, que não poderiam trair demais. Martin assentiu. ― As outras mademoiselles raramente deixam seus quartos. Alguns de nós, pensamos que poderia ser fille à la casquette, as meninas do caixão. Ele disse a frase em francês e, em seguida, inglês, estranhamente ecoando comentário de sua mãe para ela no dia que ela deixou o palácio. Ele levantou a cabeça e estudou-a, esfregando o queixo na concentração exagerada. ― Olha, você não parece muito com uma menina do caixão. ― Exactement! Isso é o que estou tentando lhe dizer. Eu não sou como as outras meninas. Enquanto as vozes masculinas se aproximaram mais e mais, Lenobia acariciou cada um dos cavalos em despedida, depois engoliu o medo e se virou para o rapaz. ― Por favor, Martin, você vai me mostrar como voltar sem passar por lá ― ela apontou para a escada por onde desceu ― e ter que atravessar a plataforma inteira? ― Oui ― disse ele, com apenas uma ligeira hesitação. ― E você promete não contar a ninguém que eu estive aqui? Por favor? ― Oui ― repetiu ele. ― Vamos. Martin a levou rapidamente em um caminho tortuoso através das montanhas de carga por toda a extensão do baixo-ventre do navio até que chegaram a uma entrada maior, mais acessível. ― Por aqui ― explicou Martin. ― Continue indo para cima. Vai levar você para o corredor de seus aposentos. ― Passa pelos alojamentos da tripulação, também, não é? ― Sim. Se você vir os homens, levante o queixo, assim ― Martin ergueu o queixo. ― Então você dá a eles o olhar que deu para mim quando me disse que gosta de cavalos e gatos. Eles não vão incomodá-la. ― Obrigada, Martin! Muito obrigada ― Lenobia agradeceu. ― Sabe por que te ajudei? A questão de Martin lhe fez olhar para ele interrogativamente. ― Acho que é porque você deve ser um homem de bom coração. Martin balançou a cabeça. ― Não, é porque você foi corajosa o suficiente para me pedir. A risada que escapou da boca Lenobia foi meio histérica. ― Corajosa? Não, eu tenho medo de tudo! Ele sorriu. ― Exceto cavalos e gatos.
Ela devolveu o sorriso, sentindo seu rosto ficar quente e seu estômago tremer um pouco, porque seu sorriso o deixou ainda mais bonito. ― Sim ― Lenobia tentou fingir que não estava sem fôlego. ― Exceto cavalos e gatos. Obrigada mais uma vez, Martin. Ela estava quase na porta quando ele acrescentou: ― Eu alimento os cavalos. Toda manhã, logo após o amanhecer. Bochechas ainda quentes, Lenobia olhou para ele. ― Talvez eu vá te ver novamente. Seus olhos verdes brilhavam e ele tirou um chapéu imaginário para ela. ― Talvez, chérie, talvez.
Capítulo quatro
Durante as próximas quatro semanas, Lenobia vivia em um estado estranho entre a paz e a felicidade, ansiedade e desespero. O tempo jogava com ela. As horas que ficava sentada em seus aposentos esperando o entardecer, a noite e, em seguida, o crepúsculo da madrugada, parecia levar uma eternidade para passar. Mas logo que o navio dormia e ela era capaz de escapar dos limites de sua prisão auto-imposta, as próximas horas passavam correndo, deixando-a sem fôlego e ansiando por mais. Ela espreitava pelo navio, imersa em liberdade com o ar salgado, vendo o sol irromper gloriosamente do horizonte aquoso, e então escorregaria até a alegria que a esperava no convés inferior. Por algum tempo ela se convenceu de que era apenas os cinzas que a fizeram tão feliz, tão ansiosa para correr para o porão de carga e tão triste quando o tempo passava rápido demais, quando o navio começava a acordar, e ela tinha que voltar para seus aposentos. Não poderia ter nada a ver com os ombros largos de Martin, seu sorriso ou o brilho dos seus olhos cor de azeitona, a maneira como ele brincava com ela e a fazia rir. ― Aqueles cinzas não comem o pão que você traz. Ninguém come essas coisas ― ele disse, rindo na primeira manhã que ela tinha retornado. Ela franziu a testa. ― Eles vão comê-lo porque é salgado. Os cavalos gostam de coisas salgadas. Ela segurou o pão duro para fora, um pedaço em cada mão, e ofereceu aos percherões. Eles cheiraram e depois, com uma delicadeza surpreendente para esses animais de grande porte, tomaram o pão e mastigaram com várias sacudidas de cabeça e expressões de surpresa que fizeram Lenobia e Martin rirem juntos. ― Você estava certa, chérie! ― Martin disse. ― Como você sabe sobre o que os cavalos gostam de comer, uma senhora como você? ― Meu pai tem muitos cavalos. Eu disse que gosto deles. Então passei um tempo nos estábulos ― ela respondeu evasivamente.
― E seu pai, ele não se importa que sua filha esteja nas estrebarias? ― Meu pai não prestava atenção onde eu estava ― ela respondeu, pensando que, pelo menos, era a verdade. ― E você? Onde você aprendeu sobre cavalos? Lenobia mudou o foco da conversa. ― A plantação de Rillieux perto de Nova Orleans. ― Sim, esse era o nome do homem que você disse que estava encomendando os cinzas. Então Monsieur Rillieux deve confiar bastante em você se enviou-lhe para viajar por todo o caminho de Nova Orleans à França com os seus cavalos. ― Ele deveria. Monsieur Rillieux é meu pai. ― Seu pai? Mas, eu pensei... ― suas palavras sumiram e Lenobia sentiu seu rosto ficando quente. ― Você pensou que por minha pele ser negra meu pai não poderia ser branco? Lenobia pensou que ele parecia mais divertido do que ofendido, então ela teve uma chance e disse que estava em sua mente. ― Não, eu sei que um de seus pais é branco. O capitão chamou-o de mulato, e sua pele não é realmente negra. É mais leve do que isso. É mais como chocolate com um pouco de creme misturado. Para si, Lenobia pensou, Sua pele é mais bonita do que o branco puro jamais seria, e sentiu seu rosto chama novamente. ― Quarteirão, chérie Quadroon disse Martin, sorrindo em seus olhos. ― Quarteirão? ― Oui, é que sou. Minha mãe, ela foi a primeira placage de Rillieux. Ela era mulata. ― Placage? Eu não entendo. ― Homens brancos ricos levam as mulheres de cor em marriages de la main gauche. ― Csamentos de mão esquerda? ― Significa que não é real por lei, mas real para Nova Orleans. Essa foi a minha mãe, só que ela morreu pouco tempo depois de meu nascimento. Rillieux me manteve e seus escravos me educaram. ― Você é um escravo? ― Não. Eu sou crioulo. Homem livre de cor. Eu trabalho para Rillieux. Quando Lenobia apenas olhou para ele, tentando pensar em tudo o que estava aprendendo, ele sorriu e disse: ― Uma vez que está aqui, quer me ajudar a limpar os cavalos, ou você fugir de volta para o seu quarto como uma boa senhora?
Lenobia ergueu o queixo. ― Já que estou aqui, eu fico. E eu vou te ajudar. A hora seguinte foi acelerada rapidamente. Os percherões eram grandes para escovar, e Lenobia tinha estado ocupada, trabalhando com Martin e falando sobre nada mais pessoal do que cavalos e discutindo os prós e contras do corte da cauda, apesar de que todo o tempo ela não conseguia parar de pensar em placage marriages de la main gauche. Foi só quando Lenobia começou a sair ela juntou coragem de fazer a Martin a pergunta que estava circulando em sua mente. ― No placage – as mulheres podem escolher, ou elas tem que estar com quem as queria? ― Existem muitos tipos de pessoas, chérie, e muitos tipos de arranjos, mas pelo o que eu vejo é mais uma questão de escolha e amor. ― Bom ― Lenobia disse. ― Estou feliz por eles. ― Você não tinha escolha, tinha, chérie? ― Martin perguntou, encontrando seu olhar. ― Fiz o que minha mãe me disse para fazer ― ela respondeu com sinceridade, e então saiu do porão de carga e levou o cheiro dos cavalos e a memória dos olhos de azeitona com ela durante todo o longo e tedioso dia. *** O que começou como acidente tornou-se hábito, e se converteu em algo que só se comparava em ver os cavalos. Lenobia não podia esperar para ver Martin – ouvir o que ele iria dizer em seguida, seus sonhos e até mesmo seus medos. Ela não quis confiar nele, gostar dele – temer por ele – mas ela o fez. Como não? Martin era engraçado, inteligente e bonito, muito bonito. ― Está ficando mais magra ― ele disse a ela no quinto dia. ― O que está falando? Eu sempre fui pequena ― Lenobia fez uma pausa enquanto escovava a juba emaranhada de um dos cinzas e espiou Martin. ― Eu não sou magra ― disse com firmeza. ― Magra, chérie. Isso que você é. Ele passou por baixo do pescoço do cavalo castrado e de repente estava ali, ao lado dela, íntimo, caloroso e sólido. Ele pegou o pulso dela delicadamente na mão e envolveu-o facilmente com o dedo indicador e o polegar. ― Vê? Você todo osso. Seu toque a chocou. Ele era alto e musculoso, mas gentil. Seus movimentos eram lentos, constantes, quase hipnóticos. Era como se cada movimento fosse feito deliberadamente, para não assustá-la. Inesperadamente,
ele lembrou-a de um percherão. Seu polegar acariciou o interior de seu punho, sobre o ponto de pulsação. ― Eu tenho que fingir que não quero comer ― ouviu-se admitir. ― Por que, chérie? ― É melhor para mim se eu ficar longe de todos, e estar enjoada dá-me uma razão ficar sozinha. ― Todo mundo? Por que não fica longe de mim? ― ele perguntou com ousadia. Mesmo que seu coração sentiu como se fosse bater de seu peito, ela puxou o pulso de seu aperto suave e deu-lhe um olhar severo. ― Eu vim para os cavalos, não para você. ― Ah, les chevaux. Claro. Ele acariciou o pescoço do cavalo castrado, mas ele não sorriu como ela esperava, nem brincou de volta. Ao contrário, apenas olhou-a, como se pudesse ver através de sua fachada resistente a suavidade de seu coração. Ele não disse mais nada, e em vez disso entregou-lhe uma das escovas grossas de um balde por perto. ― Ele gosta mais dessa. ― Obrigada ― ela falou, e começou a trabalhar seu caminho através do corpo amplo do cavalo castrado com a escova. Houve apenas um pequeno silêncio desconfortável e, em seguida, a voz de Martin surgiu do outro lado do cavalo. ― Então, chérie, que história te conto hoje? A de como qualquer coisa que você planta na terra preta da Nova França cresce mais alto do que estes petite chevaux, ou sobre as pérolas nos tignons do belo placage e como as mulheres que passeiam pela praça? ― Conte-me sobre as mulheres – sobre o placage ― Lenobia disse, e então ela ouviu avidamente o modo como Martin pintava em sua imaginação as lindas mulheres que eram livres para escolher de quem gostavam, mas não livres o suficiente para fazer com que suas uniões fossem legais. Então na manhã seguinte, quando ela correu para o porão, encontrou-o já preparando os cavalos. Um pedaço de queijo e carne de porco quente perfumada entre duas fatias grossas de pão fresco estavam sobre um pano limpo perto dos barris de aveia. Sem olhar para ela, Martin disse: ― Coma, chérie. Você não tem que fingir para mim. Talvez essa foi a manhã em que Lenobia mudou seu pensamento. Ela começou a pensar em ver Martin de madrugada ao invés de visitar os cavalos de madrugada. Ou, mais precisamente, talvez, foi quando ela começou a admitir a mudança para si mesma.
E, uma vez que mudou para ela, Lenobia começou a procurar por sinais de Martin que ela era mais do que apenas sua amiga, mais do que ma chérie, a menina a quem levava e pedia por histórias de Nova França. Mas tudo o que ela encontrou em seu olhar foi a bondade era familiar. Tudo o que ouviu em sua voz era paciência e humor. Uma ou duas vezes ela pensou captar um vislumbre de mais, especialmente quando eles riram juntos e o verde oliva de seus olhos parecia brilhar com manchas de marrom dourado, mas ele sempre se virava quando Lenobia o olhava por muito tempo, e sempre havia uma história engraçada onde o silêncio entre eles tornava-se demasiado grande. Pouco antes que o mundo de paz e felicidade que ela tinha encontrado se quebrasse e explodisse, Lenobia finalmente encontrou a coragem de fazer a pergunta que não permitira que ela fosse dormir. Estava sacudindo as saias e sussurrando para um cavalo, mas de repente respirou fundo e falou: ― Martin, eu preciso lhe fazer uma pergunta. ― O que é, chérie? ― ele respondeu distraidamente, enquanto recolhia as escovas e panos de linho que haviam usado para limpar os castrados ― Você me contra histórias de mulheres como sua mãe, mulheres de cor que se tornam placage e vivem como esposas de homens brancos. Mas o que há de homens de cor com mulheres brancas? O que há de placage masculino? De fora do compartimento, o seu olhar encontrou o dela e ela viu a sua surpresa e depois diversão, e soube que ele iria humilhá-la, rindo. Então, ele realmente olhou em seus olhos, e sua resposta afiada se apagou. Ele balançou a cabeça lentamente de um lado para o outro. Sua voz soou cansada e seus ombros largos pareceram afundar. ― Não, chérie. Não há placage do sexo masculino. A única forma de um homem de cor poder estar com uma mulher branca é se ele deixar a Nova França e passar em branco. ― Passar em branco? ― Lenobia sentiu falta de ar diante sua audácia. ― Você quer dizer fingir que é branco? ― Oui, mas não eu, chérie ― Martin estendeu o braço. Era longo e musculoso e, à luz filtrada do convés superior, parecia mais como bronze do que marrom. ― Esta pele é escura demais para passar, e eu acho que não sou nem mais claro nem mais escuro do que sou. Nah, chérie. Eu sou feliz em minha própria pele. Seus olhares se firmaram e Lenobia tentou dizer-lhe com um olhar tudo o que estava começando a desejar, tudo que ela estava começando a querer. ― Eu vejo uma tempestade em seus olhos cinzentos, chérie. Deixe assim. Você é fort. Mas não é forte o suficiente para mudar a maneira como o mundo pensa, a maneira como o mundo acredita.
Lenobia não respondeu até que abriu a porta do pequeno compartimento dos percherões. Ela foi para Martin, alisou a saia, e depois olhou para os olhos dele. ― Mesmo no Novo Mundo? ― Sua voz era pouco mais que um sussurro. ― Chérie, não falamos disso, mas eu sei que você é uma das fille à la casquette. Está prometida a um grande homem. Isso não é verdade, chérie? ― É verdade. Seu nome é Thinton de Silegne. Ele é um nome sem rosto, sem coração, sem corpo. ― Ele tem um nome com terra, porém, chérie. Conheço seu nome e sua terra. Sua fazenda, os Houmas, é como o paraíso. ― Não é o paraíso que eu quero, Martin. É apenas v... ― Não! ― ele a deteve, pressionando o dedo contra seus lábios. ― Você não pode falar. Meu coração, ele é forte, mas não forte o suficiente para lutar contra as suas palavras. Lenobia pegou a mão de seus lábios e segurou-a na dela. Sentiu-a quente e áspera, como se não houvesse nada que não pudesse derrotar ou defender com essa mão. ― Eu só peço que o seu coração escute. ― Oh, chérie. Meu coração, ele já ouviu suas palavras. Seu coração, ele fala para mim. Mas é só até aí que podem chgar... essa conversa silenciosa entre nós. ― Mas... eu quero mais ― ela falou. ― Oui, mon chou petite, eu quero mais, também. Mas não pode ser. Cecile, não podemos ser. Essa foi a primeira vez que ele a chamou por esse nome desde que tinha vindo com ele de madrugada, e ao som ela levou um susto, tanto que deixou cair a mão e se afastou dele. Ele acha que eu sou Cecile, a filha legítima de um barão. Digo a ele? Será que isso importa? ― E-eu deveria ir ― ela tropeçava nas palavras, completamente dominada pelas camadas conflitantes de sua vida. Lenobia começou a ir para a grande saída de carga do convés. Atrás dela, Martin falou. ― Não volte aqui outra vez, chérie. Lenobia olhou por cima do ombro. ― Você está dizendo que não quer que eu volte? ― Eu não poderia dizer essa mentira para você. Lenobia deu um suspiro longo e trêmulo de alívio antes de dizer:
― Então, se você me perguntar, a minha resposta é sim. Vou voltar aqui novamente. Amanhã. Ao amanhecer. Nada mudou. Ela continuou andando, e ouviu o eco de sua voz segui-la, dizendo: ― Tudo mudou, minha querida... Os pensamentos de Lenobia estavam em tumulto. Tinha tudo mudado entre eles? Sim. Martin disse que seu coração ouviu minhas palavras. Mas o que isso significa? Ela subiu a escadaria estreita e entrou no corredor que ia da entrada do porão, passava pelo alojamento da tripulação, dava acesso ao convés e terminava nos quartos dos passageiros do sexo feminino. Ela correu ao passar pela tripulação. Foi depois que ela voltou normalmente, ouviu quase todos os sons dos membros da tripulação sobre farfalhando dentro, prontos para começar o dia. Ela deveria ter sabido à época que ela precisava ser mais cuidadosa. Deveria ter parado e escutado, mas tudo o que Lenobia podia ouvir era o som de seus pensamentos respondendo sua própria pergunta: O que significa Martin dizer que que seu coração ouviu as minhas palavras? Isso significa que ele sabe que eu o amo. Eu o amo. Eu amo Martin. Foi quando ela admitiu a si mesma que o padre, vestes roxas que rodando em torno dele, apareceu no corredor a menos de dois passos atrás dela. ― Bonjour, mademoiselle ― cumprimentou-a. Se Lenobia não estivesse tão distraída, teria imediatamente abaixado a cabeça, feito uma reverência e corrido de volta para a segurança de seus aposentos. Em vez disso, ela cometeu um erro terrível. Lenobia olhou para ele. Seus olhares se encontraram. ― Ah, é a senhorita que tem passado tão mal toda a viagem. Ele parou e viu a confusão em seus olhos escuros. Inclinou a cabeça e franziu o cenho enquanto a estudava. ― Mas eu pensei que você fosse a filha de... ― sua voz sumiu enquanto seus olhos se arregalaram em compreensão, reconhecimento. ― Bonjour, padre. Ela falou rapidamente, abaixou a cabeça, fez uma reverência e tentou recuar. Mas já era tarde demais. A mão do padre serpenteava para fora e agarrou seu braço. ― Eu conheço o seu rosto bonito, e não é o de Cecile Marson de La Tour d'Auvergne, filha do Barão d'Auvergne. ― Não, por favor. Deixe-me ir, padre. Lenobia tentou se afastar dele, mas o aperto quente era mais forte do que ferro.
― Eu conheço o seu lindo, lindo rosto ― repetiu ele. Sua surpresa transformou-se num sorriso cruel. ― Você é uma filha do Barão, mas você é a sua filha bastarda. Todos próximos do castelo de Navarra sabem da pequena fruta suculenta que caiu do lado errado da árvore do Barão. Sua filha bastarda... pequena fruta suculenta... lado errado... As palavras a golpearam, enchendo-a de pavor. Lenobia balançou a cabeça para trás e para frente, para trás e para frente. ― Não, eu devo voltar aos meus aposentos. Irmã Marie Madeleine vai notar minha ausência. ― Como, aliás eu notei. O bispo e Lenobia foram surpreendidos pela voz de comando da irmã Marie Madeleine o suficiente para que Lenobia fosse capaz de puxar seu braço e tropeçar pelo corredor até a freira. ― O que é isso, padre? ― Irmã Marie Madeleine perguntou. Mas antes que o padre pudesse responder a ela, a freira tocou a face Lenobia e disse: ― Cecile, por que está tremendo tanto? Você já esteve doente de novo? ― Você a chama de Cecile? Faz parte dessa pecaminosa farsa? O padre parecia encher o corredor enquanto ele pairava sobre as duas mulheres. Claramente, não intimidada, irmã Marie Madeleine se adiantou, colocando-se entre Lenobia e o sacerdote. ― Eu não tenho ideia do que está falando, padre, mas está assustando a criança. ― Esta criança é uma impostora bastarda! ― o padre rugiu. ― Padre! O senhor ficou louco? ― disse a freira, recuando, como se ele a tivesse golpeado. ― Você sabe? É por isso que tem a mantido escondida durante toda a viagem? ― o padre continuou com raiva. Lenobia podia ouvir os sons de portas abrindo por trás dela e ela sabia que as outras meninas estavam vindo para o corredor. Ela não podia olhar para elas, ela não iria olhar para elas. ― Isso é uma farsa! Vou excomunga-la. O próprio Santo Padre vai ouvir isso! Lenobia podia ver os olhares curiosos que os tripulantes foram dandolhes enquanto o discurso do padre chamava mais e mais a atenção. E então, no corredor, muito atrás do padre, Lenobia avistou o rosto assustado de Martin e viu que ele estava vindo em sua direção.
Era terrível o suficiente que a irmã Marie Madeleine estivesse lá, protegendo e acreditando nela. Ela não poderia suportar que Martin fosse de alguma forma puxado para a bagunça que havia feito de sua vida também. ― Não! ― Lenobia chorou, movendo-se para irmã Marie Madeleine. ― Eu fiz isso sozinha. Ninguém sabia, ninguém! Especialmente a irmã. ― O que é que a criança fez? ― o capitão perguntou quando entrou no corredor, franzindo a testa do padre para Lenobia. O padre abriu a boca para gritar o seu pecado, mas antes que pudesse falar, Lenobia confessou. ― Eu não sou Cecile Marson de La Tour d'Auvergne. Cecile morreu pela manhã, e a carruagem veio para levá-la ao Le Havre. Sou outra filha do Barão d'Auvergne – sua filha bastarda. Eu tornei-me Cecile, sem que ninguém no château soubesse porque eu queria uma vida melhor para mim. Lenobia encontrou o olhar da freira fixamente. ― Estou arrependida. Eu menti para você, irmã. Por favor, me perdoe.
Capítulo cinco ― Não, senhores, insisto em deixar a menina comigo. Ela é uma fille à la casquette, e como tal está sob a proteção das freiras Ursulinas. Irmã Marie Madeleine se posicionou na porta de seu quarto, segurando a porta meio fechada à sua frente. Ela tinha dito para Lenobia ir imediatamente para sua cama e depois se posicionou de modo a enfrentar o padre e o capitão, que pairavam no corredor. O padre ainda estava furioso e com o rosto vermelho. O capitão não parecia saber como olhar, ele parecia oscilar entre a raiva e o humor. Quando a freira falou, o comandante deu de ombros e disse: ― Sim, bem, ela está a seu cargo, irmã. ― Ela é uma bastarda e impostora! ― gritou o bispo. ― Bastard sim, impostora não mais ― a freira corrigiu com firmeza. ― Ela admitiu o seu pecado e pediu perdão. Não é agora o nosso trabalho como bons católicos perdoar e ajudar a criança a encontrar seu verdadeiro caminho na vida? ― A senhora não pode acreditar que eu vou permitir que case aquela bastarda com um nobre! ― o padre exclamou. ― E você não pode acreditar que eu iria me envolver numa fraude e quebrar meu voto de honestidade ― a freira replicou. Lenobia pensou que podia sentir o calor da ira do bispo do outro lado da sala. ― Então o que vai fazer com ela? ― perguntou ele. ― Vou terminar o meu trabalho e ter a certeza de que ela chegará a Nova Orleans segura e casta. A partir daí, caberá ao Conselho das Ursulinas e, é claro, à criança, decidir o seu futuro. ― Isso parece razoável ― concordou o capitão. ― Venha, Charles, vamos deixar as mulheres com seus problemas de mulheres. Eu tenho um excelente porto que ainda não abri. Vamos prova-lo e ter certeza de que sobreviveu à viagem até agora. Dando a irmã um aceno desdenhoso, ele bateu no ombro do padre antes de ir embora.
O homem de túnica roxa não seguiu imediatamente o capitão. Ao contrário, ele olhou para além da irmã Marie Madeleine, na direção onde Lenobia estava sentada abraçando a si mesma. ― O fogo santo de Deus queima mentirosos ― disse ele. ― Eu acho que o fogo santo de Deus não queima as crianças, no entanto. Bom dia para você, padre ― a Irmã Marie Madeleine falou, e então fechou a porta na cara do padre. O quarto ficou tão tranquilo Lenobia podia ouvir as pequenas respirações excitadas de Simonette. Lenobia encontrou o olhar da irmã Marie Madeleine. ― Sinto muito. A freira levantou a mão. ― Primeiro, vamos começar com o seu nome. Seu nome real. ― Lenobia Whitehall ― por um momento, a onda de alívio de ser capaz de recuperar seu nome ofuscou o medo e a vergonha, e ela foi capaz de dar uma respiração profunda e se fortificar. ― Esse é meu nome real. ― Como você pôde fazer isso? Fingir ser uma pobre menina morta? ― Simonette perguntou. Ela estava olhando para Lenobia com olhos enormes, como se ela fosse uma espécie incomum, uma assustadora criatura recém-descoberta. Lenobia olhou para a freira. A irmã concordou, dizendo: ― Todos querem saber. Responda agora e acabe com isso. ― Eu não pretendia ser Cecile por muito temoi, eu simplesmente me mantive calada. Lenobia olhou para Simonette, vestida com suas sedas adornadas, pérolas e granadas brilhantes em volta do pescoço fino e branco. ― Você não sabe o que é não ter nada – sem proteção ou futuro. Eu não queria ser Cecile. Eu só queria ser feliz e em segurança. ― Mas você é uma bastarda ― disse Aveline de Lafayette, a bonita loira, filha mais nova do Marquês de Lafayette. ― Você não merece a vida de uma filha legítima. ― Como você pode acreditar tal absurdo? ― Lenobia perguntou. ― Por que um acidente de nascimento decide o valor de uma pessoa? ― Deus decide o nosso valor ― interrompeu a Irmã Marie Madeleine. ― E da última vez que chequei, você não era Deus, mademoiselle ― Lenobia disse a jovem Lafayette. Aveline engasgou. ― Esta filha de uma puta não vai falar assim comigo!
― Minha mãe não é uma prostituta! Ela é uma mulher muito bonita e confiante! ― Claro que você diria isso, mas já sabemos que você é uma mentirosa ― Aveline de Lafayette pegou suas saias e começou a ir na direção de Lenobia, dizendo: ― Irmã, eu não vou dividir um quarto com uma fille de bas. ― Basta! ― o tom da voz da freira fez a arrogante Lafayette fazer uma pausa. ― Aveline, no convento das Ursulinas nós educamos as mulheres. Não fazemos distinção entre classe ou raça em fazê-lo. O importante é tratar a todos com honestidade e respeito. Lenobia nos deu honestidade. Retornaremos com respeito ― a freira passou a olhar para Lenobia. ― Eu posso ouvir a confissão de seu pecado, mas não posso absolvê-lo. Para isso você precisa de um sacerdote. Lenobia estremeceu. ― Eu não vou confessar ao padre. A expressão de Marie Madeleine suavizou-se. ― Comece por confessar a Deus, filha. Então, o nosso bom padre Pierre vai ouvir sua confissão quando chegamos ao convento. ― Seu olhar mudou de Lenobia para cada uma das outras meninas na sala. ― Padre Pierre escutaria a confissão de qualquer uma de vocês, porque todos são imperfeitos e tem necessidade de absolvição ― ela virou-se para Lenobia novamente. ― Criança, junte-se a mim no convés, por favor? Lenobia acenou com a cabeça em silêncio e seguiu a irmã. Elas andaram o curto caminho até a parte traseira do navio e ficaram ao lado da grade preta e das figuras angelicais que decoravam a parte traseira do Minerva. Ficaram sem falar por alguns momentos, olhando para o mar e mantendo seus próprios pensamentos. Lenobia sabia que ser descoberta como uma impostora mudaria sua vida, provavelmente para pior, mas ela não podia deixar de sentir uma pequena emoção por se libertar da mentira. ― Eu odiava a mentira ― ouviu-se falar em voz alta. ― Estou contente de ouvir isso. Você não parece uma menina mentirosa para mim ― Marie Madeleine mudou o seu olhar para Lenobia. ― Diga-me, de verdade, ninguém mais sabe de seu ardil? Lenobia não esperava a pergunta e desviou o olhar, incapaz de dizer a verdade e não disposta a contar outra mentira. ― Ah, eu vejo. Sua mãe, ela sabia ― Marie Madeleine falou, não maldosa. ― Não importa, o que está feito não pode ser desfeito. Eu não vou perguntar-lhe sobre isso novamente. ― Obrigada, irmã ― Lenobia respondeu calmamente. A freira fez uma pausa, e então com um tom mais duro continuou.
― Você deveria ter vindo a mim quando viu o padre pela primeira vez em vez de se fingir de doente. ― Eu não sei o que você faria ― Lenobia falou honestamente. ― Eu não estou completamente certa, mas sei que eu teria feito tudo em meu poder para evitar um confronto feio com o padre como o que tivemos hoje ― o olhar da freira era afiado e inquisidor. ― O que há entre vocês dois? ― Nada da minha parte! ― Lenobia respondeu rapidamente, então suspirou e acrescentou: ― Algum tempo atrás, minha mãe, que é devota, disse que deixaria de ir à missa, e manteve-me em casa. Isso não impediu o padre de chegar ao château – não impediu seus olhos de procurar-me. ― O padre tomou sua virgindade? ― Não! Ele não tocou em mim. Eu ainda sou uma moça. Marie Madeleine benzeu-se. ― Graças a Santíssima Virgem por isso ― a freira exalou um longo suspiro. ― O bispo é uma preocupação para mim. Ele não é o tipo de homem que eu gostaria em Saint Louis. Mas os caminhos de Deus são por vezes difíceis demais para entendermos. A viagem vai terminar em poucas semanas, e uma vez que estivermos em Nova Orleans, o padre terá muitos deveres para mantê-lo ocupado e não pensar em você. Então, só por algumas semanas, teremos que mantê-la fora das vistas dele. ― Nós? As sobrancelhas de Marie Madeleine se levantaram. ― As freiras Ursulinas são servas da Santa Mãe de todos nós, e ela não iria querer que eu ficar de braços cruzados enquanto uma de suas filhas é abusada, nem mesmo por um padre ― ela afastou os agradecimentos de Lenobia. ― Você será esperada no jantar, agora que foi descoberta. Isso não pode ser evitado, senão causará mais desdém e desprezo. ― O desdém e o desprezo são menos ofensivos do que a atenção do padre ― Lenobia disse. ― Não. Eles fazem você mais vulnerável a ele. Você vai jantar com a gente. Basta não chamar atenção para si. Ele não pode fazer nada na frente da multidão. Apesar disso, estou certa de que você está cansada de fingir a doença e permanecer em seu quarto, mas deve ficar fora de vista. Lenobia pigarreou, levantou o queixo e decidiu falar. ― Irmã, por várias semanas eu estive deixando o quarto antes do amanhecer e retornava antes que a maior parte do navio despertasse. A freira sorriu. ― Sim, filha. Eu sei. ― Oh. Eu pensei que você estava rezando.
― Lenobia, acredito que você vai descobrir que muitas das minhas boas irmãs e eu somos capazes de pensar e rezar ao mesmo tempo. Eu aprecio sua honestidade. Onde é que você vai? ― Aqui em cima. Bem, na verdade, ali ― Lenobia apontou para uma parte obscura da plataforma onde os botes salva-vidas ficavam armazenados. ― Eu vejo o nascer do sol e passeio um pouco. E então vou até o porão de carga. Marie Madeleine piscou, surpresa. ― O porão? Para quê? ― Cavalos ― Lenobia explicou. Eu estou dizendo a verdade, ela pensou. Os cavalos que me atraíram até ali. ― Um par castrados de percherões. Eu gosto muito de cavalos, e sou boa com eles. Posso continuar visitando-os? ― Você sempre vê o padre em suas saídas da madrugada? ― Não, esta foi a primeira vez, e só porque eu fiquei mais tempo depois do amanhecer. A freira deu de ombros. ― Contanto que você seja cuidadosa, não vejo motivo para prendê-la em seus aposentos mais do que o absolutamente necessário. Mas cuidado, filha. ― Sim, merci beaucoup, irmã. Impulsivamente, Lenobia jogou os braços ao redor da freira e a abraçou. Depois de apenas um momento, braços maternais a rodearam em troca e a freira lhe deu um tapinha no ombro. ― Não se preocupe, criança ― irmã Marie Madeleine murmurou consoladoramente. ― Há uma grande falta de boas mulheres católicas em Nova Orleans. Vamos lhe encontrar um marido, não tema. Tentando não pensar em Martin, Lenobia sussurrou: ― Eu preferiria que você encontrasse uma maneira de ganhar a vida. A freira ainda estava rindo enquanto ambas faziam seu caminho de volta para os aposentos das mulheres. *** Na cabine particular do capitão, diretamente abaixo de onde Lenobia e Marie Madeleine tinham falado tão pouco, o padre Charles de Beaumont estava sentado perto da janela aberta, silencioso como a morte, imóvel como uma estátua. Quando o capitão voltou da cozinha com duas garrafas empoeiradas de porto em seus braços musculosos, Charles fez um show de estar interessado no ano e safra. Ele fingiu ter gostado do vinho rico quando bebeu profundamente, sem saboreá-lo, apenas com a necessidade de extinguir a chama da raiva que
queimava tão brilhantemente dentro dele enquanto os pedaços da conversa que ouviu ferviam por sua mente: O que há entre vocês dois? O padre tomou a sua virgindade? O desdém e o desprezo são menos ofensivos do que a atenção do padre. Mas cuidado, filha... O capitão exclamava e falava sobre as marés, as estratégias de combate e outros assuntos tão banais enquanto a raiva de Charles, umedecida pelo vinho, cozida lentamente e com cuidado, cozinhava completamente os jogos de ódio, luxúria e fogo – sempre fogo. *** A refeição da noite teria sido um desastre se não fosse pela irmã Marie Madeleine. Simonette era a única menina que falava com Lenobia, e ela o fez com inícios bobos e engraçados, como se aos quinze anos tivesse se esquecido de que não deveria gostar mais de Lenobia. Lenobia concentrou-se em sua comida. Ela pensou que ia ser como o céu ser capaz de comer uma refeição completa, mas o olhar quente do bispo a fazia sentir-se tão doente e com medo que ela acabou empurrando a maior parte do robalo delicioso e batatas amanteigadas em torno de seu prato. Irmã Marie Madeleine fez com que tudo funcionasse, no entanto. Ela manteve o capitão envolvido em uma discussão sobre a ética da guerra, que incluía o padre e as suas opiniões eclesiásticas. Ele não podia ignorar a freira, não quando ela estava mostrando interesse tão evidente em sua opinião. E em muito menos tempo do que Lenobia teria imaginado, a irmã estava pedindo para ser dispensada. ― Já, madame? ― o capitão piscou olhos turvos para ela, rosto vermelho da bebida. ― Eu estava gostando tanto da nossa conversa! ― Perdoe-me, bom capitão, mas eu gostaria de ir enquanto ainda há alguma luz no céu noturno. As mademoiselles e eu gostaríamos muito de dar algumas voltas no convés. As mademoiselles, obviamente chocadas com a proposta da freira, olharam para ela em diferentes graus de surpresa e horror. ― Caminhas? Pelo convés? E por que você iria querer fazer isso, irmã? ― perguntou o padre com uma voz forte. A freira sorriu placidamente. ― Oui, eu acho que ficamos muito tempo enfiadas em nossos quartos ― então, ela mudou sua atenção para o capitão. ― Você não explicou muitas vezes sobre os benefícios saudáveis do ar do mar? E olhe para você, senhor, um homem grande e forte. Faríamos bem em imitar seus hábitos.
― Ah, verdade, verdade. O capitão inchou ainda mais o seu peito largo. ― Excelente! Então, com sua permissão, vou recomendar que as meninas e eu façamos caminhadas frequentes pelo navio em diferentes momentos do dia. Todos devemos estar conscientes da nossa saúde, e agora que o último dos enjoos se dissolveu, não há nada para manter-nos em nossos aposentos ― Marie Madeleine falou dando um rápido olhar para Lenobia, seguido por um olhar de desculpas para o capitão, como se incluísse-o em seu desgosto com o comportamento da menina. Lenobia pensou que irmã Marie Madeleine foi absolutamente brilhante. ― Muito bem, madame. Ótima ideia, realmente ótima. Não acha, Charles? ― Acho que a boa irmã é uma mulher muito sábia ― veio a resposta astuta do religioso. ― É uma bondade dizê-lo, padre ― Marie Madeleine disse. ― E não vamos assustá-lo, porque a partir de agora ninguém saberá onde qualquer uma de nós estará! ― Eu me lembrarei. Eu me lembrarei. ― De repente, expressão severa do bispo mudou e ele piscou como se em surpresa. ― Irmã, agora tenho um pensamento de que estou absolutamente seguro, por causa de seu anuncio ambicioso sobre assumir o controle do barco. ― Mas, padre, eu não quis dizer... O padre ignorou seus protestos. ― Oh, eu sei que não quis dizer nada de mal, irmã. Como eu estava dizendo, meu pensamento era de que seria muito bom se você mudasse o seu santuário para a Santa Mãe para o convés, talvez um pouco acima de nós, onde estaria muito bem protegido. Talvez a tripulação gostasse de participar de suas devoções diárias ― ele fez uma reverência para o capitão, e acrescentou ― no horário que suas funções permitirem, evidentemente. ― Claro, claro ― o capitão confirmou. ― Bem, certamente eu poderia fazer isso. Enquanto o tempo permanecer claro ― disse Marie Madeleine. ― Obrigado, irmã. Considere isso como um favor pessoal para mim. ― Muito bem, então. Sinto que temos muito realizado esta noite ― a freira falou com entusiasmo. ― Au revoir, monsieurs. Vamos, senhoritas ― concluiu ela, e depois conduziu seu grupo para fora da sala. Lenobia sentiu o olhar do bispo até mesmo com a porta fechada, bloqueando a sua visão dela. ― Bem, então, vamos caminhar um pouco?
Sem esperar por uma resposta, Marie Madeleine caminhou propositadamente para a escada curta que levava para o convés, onde ela respirou fundo e incentivou as meninas a "”andarem e esticarem suas pernas jovens”. Quando Lenobia passou pela freira, ela perguntou baixinho: ― O que ele poderia querer com a Santa Mãe? ― Eu não tenho ideia. Mas certamente a Santíssima Virgem dar uma volta no convés não a ferirá ― ela fez uma pausa, sorriu para Lenobia, e acrescentou: ― Assim como não vai machucar o resto de nós. ― Pelo o que fez esta noite, irmã, merci beaucoup. ― De nada, Lenobia. *** O padre fez suas desculpas e deixou o capitão com seu vinho. Ele se retirou para sua pequena cabine, sentou no balcão único e acendeu um longo e fino castiçal. Enquanto seus dedos acariciavam a chama, pensou na menina bastarda. No começo, ele tinha ficado furioso e chocado com a sua decepção. Mas então quando olhou para ela, sua raiva e surpresa se uniram para formar uma emoção muito mais profunda. Charles tinha esquecido a beleza da moça, embora as muitas semanas de celibato forçado a bordo deste navio maldito poderia ter algo a ver com seu efeito sobre ele. ― Não ― ele falou para a chama. ― É mais do que a minha falta de um companheiro de cama que a faz desejável. Ela era ainda mais bonita do que ele se lembrava, mas tinha perdido peso. Era uma lástima, mas facilmente remediada. Ele gostava dela mais macia, mais cheia e suculenta. Ele iria ter certeza de que ela comeria, quer queria quer não. ― Não ― repetiu ele. ― Há mais do que isso. Foram aqueles olhos. O cabelo. Os olhos ardiam como fogo lento. Ele podia ver que ela sentia a sua atração, que estava tentando negar sua força. O cabelo era de prata, como o metal que tinham sido testado e endurecido pelo fogo, e, em seguida, se transformado em algo mais do que tinha sido um dia. ― E ela não é uma verdadeira fille à la casquette. Ela nunca mais será a noiva de um cavalheiro francês. Ela tem, na verdade, sorte de ter me chamado a atenção. Ser minha amante é mais, muito mais do que ela esperaria de seu futuro.
O desdém e o desprezo são menos ofensivos do que a atenção do padre. A memória de suas palavras veio a ele, mas ele não se permitiu ficar com raiva. ― Ela será convencida. Não importa. Gosto muito mais se elas têm algum espírito. Seus dedos passaram pela a chama, mais e mais perto, absorvendo o calor, mas não queimando. Seria bom tornar a menina sua amante antes de chegarem a Nova Orleans. Então aquelas Ursulinas pomposas não teriam nada sobre o que reclamar. Uma menina virgem lhes poderia importar – uma bastarda deflorada que havia se tornado amante de um padre estaria fora de seus cuidados e fora do seu alcance. Mas primeiro ele teria que fazê-la sua, e para isso ele precisava silenciar aquela madre condenada. Sua mão livre enrolou-se ao redor da cruz de rubi que estava pendurada no meio de seu peito e a chama começou a tremular descontroladamente. Era somente a proteção da freira que estava mantendo a bastarda longe de ser seu brinquedo durante o resto da viagem e além disso, só freira poderia atrair a ira da Igreja sobre ele. As outras garotas eram inconsequentes. Elas não se levantariam contra ele, muito menos falariam contra ele a qualquer autoridade. Ao capitão não importava nada, exceto uma viagem suave e seu vinho. Enquanto Charles não estuprasse-a na frente do homem, ele provavelmente iria mostrar apenas um leve interesse, embora, possivelmente, pudesse querer usar a menina também. A mão do padre, aquela que estava acariciando a chama, fechou-se em um punho. Ele não compartilharia suas posses. ― Sim, eu vou ter que me livrar da freira ― Charles sorriu e relaxou a mão, permitindo que a chama aumentasse novamente. ― E já tomaram medidas para acelerar o seu fim prematuro. É uma vergonha que o hábito que ela usa é tão volumoso e tão altamente inflamável. Eu posso sentir que um terrível acidente poderia acontecer a ela...
Capítulo seis O amanhecer não podia demorar mais para Lenobia. Finalmente, quando o céu através de sua janela começou a clarear, Lenobia não podia mais esperar. Ela quase correu para a porta, parando apenas porque a voz de Marie Madeleine advertiu: ― Tome cuidado, criança. Não permaneça muito tempo com os cavalos. Ficar fora da vista do padre significa que ficar fora de sua mente também. ― Eu vou ter cuidado, irmã ― Lenobia assegurou-lhe antes de desaparecer no corredor. Ela olhou para o nascer do sol, embora seus pensamentos já estivessem no porão, e antes que a bola laranja estivesse totalmente livre do horizonte do mar, Lenobia estava correndo silenciosamente, mas rapidamente as escadas. Martin já estava lá, sentado em um fardo de feno, virado na direção de onde ela surgiu normalmente no porão de carga. Os cavalos relincharam para ela, o que a fez sorrir, e então ela olhou para Martin e seu sorriso desapareceu. A primeira coisa que notou foi que ele não lhe trouxe um sanduíche de queijo e bacon. A próxima coisa que notou foi a ausência de expressão em seu rosto. Até os seus olhos pareciam mais escuros e suaves. De repente, ele era um estranho. ― Como devo te chamar? ― sua voz era tão sem emoção quanto seu rosto. Ela ignorou a sua estranheza e o sentimento terrível que lhe apareceu na boca do estômago, e falou com ele como se estivesse perguntando-lhe que escova usar nos cavalos, como se nada estivesse errado. ― Lenobia é o meu nome, mas eu gosto quando você me chama de chérie. ― Você mentiu para mim. Seu tom parou pretensão e ela sentiu o frio da primeira rejeição através de seu corpo. ― Não de propósito. Eu não menti para você de propósito. Seus olhos pediram-lhe para entender. ― Uma mentira ainda é uma mentira ― ele falou ― Tudo bem. Você quer saber a verdade? ― Você pode fazer isso?
Ela sentiu como se tivesse esbofeteada. ― Eu pensei que você me conhecia. ― Eu também. E pensei que você confiasse em mim. Talvez eu estivesse duplamente errada. ― Eu confio em você. A razão de eu não dizer que eu estava fingindo ser Cecile foi porque quando eu estava com você, eu era eu mesma. Não houve mentiras entre nós. Era só você, eu e os cavalos ― ela piscou as lágrimas e deu alguns passos em direção a ele. ― Eu não iria mentir para você, Martin. Ontem foi a primeira vez que você me chamou pelo nome, me chamou de Cecile. Lembra-se a rapidez com que saí? Ele balançou a cabeça. ― Foi porque eu não sabia o que fazer. Foi então que me lembrei que eu estava fingindo ser outra pessoa, mesmo com você. Houve um longo silêncio, e então ele perguntou: ― Será que você nunca me contou? Lenobia não hesitou. Ela falou com o coração dele. ― Sim. Eu teria dito a você o meu segredo quando eu disse a você que te amava. Seu rosto se reanimou e ele fechou os poucos metros que os separavam. ― Não, chérie. Você não pode me amar. ― Não posso? Eu já amo. ― É impossível ― Martin estendeu o braço, pegou sua mão e levantou-a suavemente. Em seguida, ele levantou seu braço até que os dois estavam lado a lado a carne, a carne. ― Você vê a diferença? ― Não ― ela falou suavemente, olhando para seus braços e seus corpos. ― Tudo o que eu vejo é você. ― Olhe com os olhos e não o seu coração. Veja o que os outros vão ver! ― Outros? Por que nos importamos que eles vão ver? ― O mundo importa muito, talvez mais do que você entende, chérie. Ela reconheceu seu olhar. ― Então, você se importa mais com o que os outros pensam do que com o que sentimos, eu e você? ― Você não entende. ― Eu entendo o suficiente! Eu entendo como me sinto quando estamos juntos. O que mais há para entender? ― Muito, muito mais ― ele largou a mão dela e se virou, caminhando rapidamente para a baia improvisada e ficou ao lado de um dos percherões assistindo. Ela falou:
― Eu disse que não iria mentir para você. Você pode dizer o mesmo para mim? ― Eu não vou mentir para você ― ele repetiu, sem se virar para olhar para ela. ― Você me ama? Diga a verdade, Martin, por favor. ― A verdade? Que diferença faz a verdade em um mundo como este? ― Faz toda a diferença para mim. Ele se virou e viu que suas bochechas estavam molhados de lágrimas silenciosas. ― Eu amo você, chérie. Parece que ele vai me matar, mas eu te amo. Seu coração se sentiu como se estivesse flutuando quando ela se mudou para o lado dele e juntou sua mão na dele. ― Eu não sou mais noiva de Thinton de Silegne ― ela falou, limpando as lágrimas de seu rosto. Ele colocou sua mão sobre a dela e apertou-a contra seu rosto. ― Mas eles vão encontrar alguém novo para você. Alguém que se preocupa mais com a sua beleza do que o seu nome ― enquanto ele falava, ele fez uma careta, como se as palavras machucassem. ― Você! Por que não pode ser você? Eu sou uma bastarda, certamente uma bastarda pode se casar com um crioulo. Martin riu ironicamente. ― Oui, chérie. Uma bastarda pode casar com um crioulo, se a bastarda for negra. Se ela for branca, eles não podem se casar. ― Então eu não me importo com casamento! Eu só me importo em estar com você. ― Você é tão jovem ― ele disse suavemente. ― Você também. Não deve ter 20 ainda. ― Faço 21 nos próximos meses, chérie. Mas por dentro eu sou velho, e sei que o amor não pode mudar o tempo do mundo, pelo menos não na para nós. ― Pode. Eu vou fazer isso. ― Sabe o que farão com você, este mundo que você acha que o amor pode mudar? Eles descobrirão que você me ama, que se entregou para mim, te enforcarão, ou algo pior. Eles te violarão e depois enforcarão. ― Eu vou lutar contra eles. Para estar com você eu vou ficar contra o mundo. ― Eu não quero isso para você! Chérie, eu não vou ser a causa do mal que se abaterá sobre você! Lenobia deu um passo para trás, longe do seu toque.
― A minha mãe me disse que eu devia ser forte. Eu devia ser uma menina que estava morta para que pudesse viver uma vida sem medo. Então fiz essa coisa terrível que eu não queria fazer, menti e tentei assumir o nome, a vida de alguém ― enquanto ela falava, era como se uma mãe sábia estivesse sussurrando-lhe, guiando seus pensamentos e suas palavras. ― Eu estava com medo, tanto medo, Martin. Mas eu sabia que tinha que ser corajosa para ela, e então de alguma forma isso mudou e eu fiquei corajosa por mim. Agora eu quero ser corajosa para você, para nós. ― Isso não é coragem, chérie ― ele disse, seus olhos cor de azeitona tristes, ombros caídos ― é só juventude. Você e eu, nosso amor pertence a um tempo diferente, um lugar diferente. ― Então você nega a gente? ― Meu coração não pode, mas a minha mente diz para mantê-la segura, não deixar o mundo destruí-la. Ele deu um passo em direção a ela, mas Lenobia envolveu seus braços ao redor de si mesma e se afastou dele. Ele balançou a cabeça tristemente. ― Você deve ter os bebês, chérie. Bebês que não tenham que fingir serem brancos. Acho que você sabe um pouco sobre fingir, não é? ― Aqui está o que eu sei, que eu preferiria fingir mil vezes do que negar o meu amor por você. Sim, eu sou jovem, mas sou velha o suficiente para saber que o amor de um lado só nunca dá certo. Quando ele não disse nada, ela levantou a mão com raiva, varreu as lágrimas de seu rosto e continuou: ― Eu deveria sair e passar o resto da viagem em qualquer lugar, menos aqui embaixo. ― Oui, chérie. Você deveria. ― É isso o que você quer? ― Não. Não é o que eu quero. ― Bem, então, nós dois somos tolos ― ela passou por ele e pegou uma das escovas do balde. ― Vou escovar os cavalos e alimentá-los. E depois vou voltar aos meus aposentos e esperar até o amanhecer. Então eu vou fazer a mesma coisa tudo de novo. Ela se mudou para perto dos cavalos e começou a escovar o mais próximo cinza. Ainda fora da “baia”, ele a observava com os olhos de azeitona que ela pensou pareciam tristes e muito, muito velhos. ― Você é corajosa, Lenobia. E forte. E boa. Quando for uma mulher adulta, vai ficar contra a escuridão do mundo. Eu sei isso quando olho em seus olhos tempestuosos. Mas, ma belle, escolha as batalhas que você pode ganhar sem perder seu coração e sua alma.
― Martin, deixei de ser uma menina quando coloquei os sapatos de Cecile. Eu sou uma mulher crescida. Eu queria que você entendesse isso. Ele suspirou e balançou a cabeça. ― Tem razão. Eu sei que você é uma mulher, mas eu não sou o único que sabe disso.Chérie, hoje ouvi uma conversa dos servos do capitão. Que o padre não tirava os olhos de você durante o jantar. ― A irmã Marie Madeleine e eu já estamos cuidando disso. Eu vou ficar fora de sua vista tanto quanto possível ― ela reconheceu seu olhar. ― Você não precisa se preocupar comigo. Tenho evitado o padre e os homens como ele nos últimos dois anos. ― Pelo o que vejo, não há muitos homens como o padre. Eu sinto que algo ruim o segue. Seus Bakas, acho que se voltaram contra ele. ― Bakas? O que é isso? ― Lenobia pausou na preparação do cavalo e inclinou-se contra a lateral do cavalo grande, enquanto Martin explicou. ― Pense em um Bakas como um apanhador de alma, e há dois tipos de almas: alto e baixo. O equilíbrio é melhor para um Bakas. Todos nós temos o bom e o mau em nós,chérie. Mas se a pessoa está fora de equilíbrio, se faz o mal, então os Bakas se voltam contra ele e a escuridão se libera, terrível de se ver. ― Como você sabe tudo isso? ― Minha mãe, ela veio do Haiti, juntamente com muitos dos escravos de meu pai. É a velha religião que eles seguem. Eles me criaram. Eu a segui ― ele deu de ombros e sorriu para sua expressão de olhos arregalados. ― Acho que todos nós viemos do mesmo lugar, e todos vamos voltar lá algum dia, também. Apenas existem muitos nomes diferentes para aquele lugar, porque existem tantos tipos diferentes de pessoas. ― Mas o padre é católico. Como ele poderia saber sobre uma antiga religião do Haiti? ― Chérie, não precisam te contar uma coisa para você saber, para reconhecê-la. Bakas são reais, e às vezes encontrar um objeto. Aquele rubi que ele usa no pescoço, é um Bakas. ― O rubi é uma cruz, Martin. ― E é também um Bakas, e um que se transformou em ruim, chérie. Lenobia estremeceu. ― Ele me assusta, Martin. Sempre me assustou. Martin caminhou até ela e puxou algo sob sua camisa, arrancando um longo pedaço de couro fino amarrado a uma pequena bolsa de couro que tinha sido tingido de um belo azul safira. Ele tirou do seu pescoço e colocou em torno do dela. ― Este gris-gris te protegerá, chérie.
Lenobia olhou para a pequena bolsa. ― O que há dentro? ― Eu usei-o durante toda a minha vida, mas não sei ao certo. Sei que há treze pequenas coisas nele. Antes de morrer, minha mãe fez isso para mim, para me proteger. Funcionou bem ― Martin pegou o saquinho de seus dedos. Olhando profundamente em seus olhos, ele levantou-o aos lábios e beijou-o. ― Agora trabalhará para você. Então, lentamente, deliberadamente, enganchou um dedo sobre o tecido na parte da frente do corpete e puxou com cuidado para que o tecido se distanciasse de sua pele. Ele largou o saquinho dentro, onde estava contra seu peito, logo acima do rosário de sua mãe. ― Use-o perto de seu coração, chérie, e o poder da gente da minha mãe nunca estará longe de você. Sua proximidade tornou difícil para ela respirar e quando ele soltou a pequena bolsa, Lenobia imaginou sentir o calor do seu beijo através do objeto. ― Se você me deu a proteção de sua mãe, então eu tenho que substituí-la com a da minha mãe. Ela pegou o rosário de contas em torno do pescoço e estendeu-os para ele. Ele sorriu e inclinou-se para que ela pudesse colocá-lo em seu pescoço. Ele levantou o cordão, estudando. ― Rosas entalhadas na madeira. Você sabe o que o povo da minha mãe faz com óleo de rosas, chérie? ― Não. Ela ainda se sentia falta de ar em sua proximidade e na intensidade do seu olhar. ― O óleo de rosa faz poderosos feitiços de amor ― ele explicou, e os cantos de seus lábios se elevaram. ― Está tentando me enfeitiçar, chérie? ― Talvez ― Lenobia respondeu, e os seus olhares se cruzaram e fixaram. Em seguida, o cavalo castrado relinchou e bateu os cascos no chão, impaciente que seu cuidado não tinha sido concluído. A risada de Martin quebrou a tensão que vinha crescendo entre eles. ― Eu acho que tem competição pelos seus favores. Os percherões não querem te dividir. ― Menino ciumento ― Lenobia murmurou, virando-se para abraçar o pescoço largo do castrado e recuperar a escova da serragem no chão. Ainda sorrindo, Martin foi buscar o pente largo de madeira e começou a trabalhar na crina e na cauda do outro cavalo.
― Que história você quer para hoje, chérie? ― Conte-me sobre os cavalos na fazenda de seu pai. Você começou a alguns dias atrás e nunca terminou. Enquanto Martin falava sobre a especialidade Rillieux, uma nova raça de cavalo que poderia correr um quarto de quilômetro com tal velocidade que eles estavam sendo comparados com alado Pégaso, Lenobia deixe sua mente vagar. Temos mais duas semanas deixadas de viagem. Ele me ama. Ela apertou a mão contra o peito, sentindo o calor do gris-gris da mãe dele. Se estamos juntos, vamos ser corajosos o suficientemente para enfrentar o mundo. *** Lenobia se sentia esperançosa e cheia de vida enquanto subia as escadas do porão de carga para o corredor que levava a seus aposentos. Martin tinha enchido sua cabeça com histórias incríveis sobre os cavalos de seu pai, e em algum lugar no meio de seus contos, ela teve uma ideia maravilhosa: talvez ela e Martin pudessem ficar em Nova Orleans somente o tempo de ganhar dinheiro para comprar um jovem garanhão de Rillieux. Em seguida, eles poderiam pegar seu Pegasus sem asas e ir para o oeste, encontrar um lugar onde não seriam julgados pela cor de sua pele, onde poderiam se estabelecer e produzir belos e velozes cavalos. E crianças, sua mente sussurrou para ela, lindas crianças de pele escura como Martin. Ela se perguntava se Marie Madeleine a ajudaria a encontrar um emprego, talvez algo ainda na cozinha das freiras Ursulinas. Todos precisavam de uma copeira que pudesse fazer um delicioso pão, e Lenobia tinha aprendido essa habilidade com o chef francês do Barão. ― Seu sorriso te deixa ainda mais bonita, Lenobia. Ela não o tinha ouvido entrar no corredor, mas ele de repente estava lá, bloqueando seu caminho. A mão Lenobia subiu para tocar a tira de couro escondida sob a camisa. Ela pensou em Martin e no poder de proteção de sua mãe, ergueu o queixo e encontrou o olhar do padre. ― Excusez moi, padre ― ela disse friamente. ― Devo voltar à irmã Marie Madeleine. Ela estará em suas orações matinais, e eu gostaria muito de me juntar a ela. ― Certamente você não está com raiva de mim por ontem. Você deve perceber que foi um choque descobrir a sua farsa ― enquanto o padre falava, ele acariciava a cruz de rubi. Lenobia observou-o com cuidado, pensando em como o objeto era estranho, parecia piscar e brilhar mesmo na penumbra do corredor.
― Eu não ousaria ficar com raiva de você, padre. Eu só quero voltar para a nossa boa irmã. Ele aproximou-se dela. ― Tenho uma proposta para você, e quando a ouvir, saberá que com a grande honra que eu pago, poderá ultrapassar os limites da raiva. ― Eu sinto muito, padre. Não sei o que quer dizer ― ela falou, tentando contorná-lo. ― Você não sabe, ma petite de bas? Eu olho em seus olhos e vejo muitas coisas. A ira que Lenobia sentiu pelo modo como ele a chamou cancelou seu medo. ― Meu nome é Lenobia Whitehall. Eu não sua bastarda! ― ela atirou as palavras para ele. Seu sorriso era terrível. De repente, seus braços serpentearam para fora, uma mão de cada lado de Lenobia, prendendo-a contra a parede. As mangas de seu manto púrpura eram como cortinas, ocultando-a do mundo real. Ele era tão alto que o crucifixo de rubi ficou pendurado na frente de seus olhos, e por um momento, ela pensou ter visto chamas dentro de suas profundidades cintilantes. Então ele falou, e seu mundo ficou reduzido ao mau cheiro da sua respiração e o calor do seu corpo. ― Quando eu terminar contigo, você será qualquer coisa que eu desejar que seja – bastarda, prostituta, amante, filha. Qualquer coisa. Mas não ceda muito facilmente, ma petite de bas. Eu gosto de uma boa luta. ― Padre, aí está você! Que sorte encontrá-lo tão perto de nossos aposentos. Você poderia me ajudar, por favor? Eu pensei que seria fácil mover a Santa Mãe, mas subestimei seu peso ou superestimei a minha força. O padre deu um passo atrás, liberando Lenobia. Ela correu pelo corredor até a freira, que não estava olhando propriamente para eles. Em vez disso, ela estava lutando para arrastar uma grande estátua de pedra pintada de Maria da porta de seu quarto para o corredor. Quando Lenobia a viu, a freira olhou para cima e disse: ― Lenobia, que bom. Por favor, pegue a vela do altar e o braseiro do incenso. Nós estaremos dizendo que a ladainhas Marianas, bem como o Pequeno Ofício da Virgem, no convés hoje e pelos os próximos poucos dias até chegar ao porto, em Nova Orleans. ― Poucos dias? Está enganada, irmã ― o padre disse condescendente. ― Temos pelo menos mais duas semanas restantes em nossa viagem.
Marie Madeleine se endireitou com a estátua e esfregou sua lombar enquanto dava ao padre um olhar frio que contrastava completamente com seu jeito improvisado e a coincidência de interromper seu abuso de Lenobia. ― Dias ― disse ela com firmeza. ― Acabei de falar com o capitão. A tempestade nos colocou à frente do cronograma. Nós vamos estar em Nova Orleans em três ou quatro dias. Vai ser ótimo para todos nós estar em terra novamente, não? Ficarei muito feliz em lhe apresentar a nossa Madre Superiora e lhe contar a viagem segura e agradável que todas tivemos graças a sua proteção. Você sabe quão respeitada ela é na cidade, padre de Beaumont? Houve um longo silêncio e, em seguida, o homem respondeu: ― Oh, sim, irmã. Sei isso e muito, muito mais. Então o sacerdote inclinou-se e levantou a estátua pesada como se fosse feita de penas, em vez de pedra, e levou-a acima do convés. ― Se machucou? ― Marie Madeleine sussurrou rapidamente, logo que ele estava fora de vista. ― Não ― disse Lenobia trêmula. ― Mas ele quer. A freira concordou com seriedade. ― Pegue a vela e o incenso. Acorde as outras meninas e diga-lhes que subam para orar. Em seguida, fique perto de mim. Você terá que abrir mão de suas viagens solitárias madrugada. Simplesmente não é seguro. Felizmente, temos apenas poucos dias. Então você vai estar no convento e fora do seu alcance. A freira apertou a mão de Lenobia antes de seguir o padre para o andar superior, deixando Lenobia sozinha e absolutamente de coração partido.
Capítulo sete Mais tarde, quando seu mundo tinha ficado escuro, doloroso e cheio de desespero, Lenobia lembrou-se da manhã, da beleza do céu e do mar – e como tudo mudou tão de repente e completamente em menos de dez batidas do seu coração. Recordou-se, e prometeu que pelo resto de sua vida, não levaria nada tão bonito e especial. Era cedo, e as meninas estavam lentas e rabugentas, não querendo subir. Não queriam ir para o convés orar. Aveline de Lafayette estava especialmente aborrecida, embora a emoção de Simonette em fazer algo novo mais do que compensou o temperamento azedo da menina mais velha. ― Eu queria tanto explorar o navio ― Simonette confidenciou para Lenobia enquanto faziam o seu caminho para a área de passeio na popa do Minerva. ― É um navio muito bonito ― Lenobia murmurou de volta, e depois sorriu quando os cachos de Simonette saltavam enquanto ela balançava a cabeça em resposta. A estátua de mármore de Maria tinha sido colocada perto da grade preta que emoldurava a popa do navio – ficava exatamente acima do quarto do capitão. A irmã Marie Madeleine estava agitada perto da estátua, dando voltas ao redor e colocando-a um pouco para a direita, até que viu Lenobia, e então fez um gesto para que a menina se aproximasse. ― Filha, eu ficarei a vela e o incenso. Lenobia deu-lhe o braseiro prateado do incenso, que já estava cheio com a mistura preciosa de incenso e mirra que a freira usava quando estava em oração, assim como a vela, que repousava em seu castiçal de estanho puro. Ela voltou para a estátua e colocou a vela e o queimador de incenso aos pés de Maria. ― Meninas ― a freira se dirigiu à multidão, e depois com um leve sorriso, balançou a cabeça em reconhecimento aos membros da tripulação que estavam começando a se reunir com curiosidade em relação a eles. ― E bons cavalheiros. Vamos começar esta manhã encantadora com as orações Marianas como um agradecimento pela notícia de que estamos a meros dias do nosso destino de Nova Orleans. Ela fez sinal para que a tripulação chegasse mais perto.
Quando se aproximaram, Lenobia procurou por Martin no grupo, mas ficou desapontada quando não viu o rosto familiar. ― Oh, Deus! Precisamos de fogo para acender a vela de Maria. Lenobia, criança, você poderia por favor... ― Não se preocupe, irmã. Vou acender o fogo de Maria. As meninas se separaram como nuvens com a chegada da luz do sol e o padre atravessou com um longo pedaço de madeira em sua mão, e no fim dele tremulava uma chama. Ele ofereceu à freira, e ela aceitou com um sorriso forçado. ― Obrigado, padre. Gostaria de puxar as orações Marianas esta manhã? ― Não, irmã. Eu acredito que as orações de Maria são mais plenamente apreciadas quando conduzidas por uma mulher. Com uma inclinação de cabeça, o bispo retirou-se para o outro lado da popa, onde os membros da tripulação estavam se reunindo. Ele ficou na frente deles. Lenobia pensou que sua escolha de posição dava uma impressão incômoda, como se ele estivesse prestes a levar o grupo de homens contra elas. Perplexa, a irmã Marie Madeleine acendeu a vela e o incenso. Então ajoelhou-se. Lenobia e o resto das meninas seguiu seu exemplo. Lenobia se posicionou a esquerda da freira, de frente para a estátua, mas também se virou para ver o padre, e viu sua arrogância hesitar, o que fez com que o seu ato de ajoelhar parecesse condescendente ao invés de obediente. Os homens em torno dele seguiram o exemplo. Marie Madeleine baixou a cabeça e apertou as mãos juntas em oração. Com os olhos fechados, ela começou a oração em voz clara e forte: ― Santa Maria, rogai por nós. ― Rogai por nós ― as meninas repetiram obedientemente. ― Santa Mãe de Deus ― Marie Madeleine entoou. ― Rogai por nós ― desta vez os membros da tripulação acrescentaram suas vozes para a oração. ― Santa Virgem das virgens. ― Rogai por nós ― a multidão repetiu. ― Mãe de Cristo ― a freira continuou. ― Rogai por nós... Lenobia repetia a frase, mas não foi capaz de acalmar seu espírito para fechar os olhos e inclinar a cabeça, assim como as outras meninas. Em vez disso, o seu olhar e sua mente divagava. ― Rogai por nós...
Três dias restantes de viagem, e a irmã Marie Madeleine diz que não posso ir para o porão novamente. ― Mãe da divina graça. ― Rogai por nós... Martin! Como é que vou falar com ele? Preciso vê-lo novamente, mesmo que isso signifique outro encontro com o padre. ― Mãe Puríssima. ― Rogai por nós... O olhar de Lenobia esvoaçou pelo grupo dos homens e do homem com vestes roxas que se ajoelhava diante deles. Seus olhos se arregalaram em choque. Ele não tinha a cabeça baixa e olhos fechados. Ele estava olhando para a estátua, em frente da qual a freira estava de joelhos em oração. Suas mãos não estavam unidas. Em vez disso, uma mão estava acariciando o brilhante crucifixo cor de rubi que pendia no meio de seu peito. A outra estava fazendo um ligeiro movimento, mas estranho, apenas uma flutuação de seus dedos, quase como se estivesse acenando para algo diante dele. ― Mãe castíssima. ― Rogai por nós... Confusa, Lenobia seguiu o olhar do padre e percebeu que ele não estava olhando para a estátua, mas para a única vela acesa aos pés de Maria, em frente à freira. Foi nesse momento que a chama se intensificou, brilhando com uma intensidade tão forte que parecia a cera parecia chorar. Em seguida, cera e chama chiaram e soltaram faíscas, e o fogo explodiu em cascata sobre hábito de linho de Marie Madeleine. ― Irmã! O fogo! ― Lenobia falou, ficando de pé para correr na direção a Marie Madeleine. Mas o estranho fogo já havia se tornado um incêndio terrível. A freira gritou e tentou se levantar, mas ela estava obviamente desorientada pelas chamas que a estavam consumindo. Em vez de se afastar da vela queimando descontroladamente, Marie Madeleine caiu para a frente, diretamente sobre a piscina de cera derretida. As meninas ao redor de Lenobia estavam gritando e segurando-a, impedindo-a de chegar até freira. ― Para trás! Vou salvá-la! ― o padre gritou enquanto corria para a frente, púrpura esvoaçante como uma chama atrás dele, com um balde nas mãos. ― Não! ― Lenobia gritou, lembrando as lições que tinha aprendido na cozinha sobre cera, gordura e água. ― Um cobertor, e não água! Abafe-o!
O padre jogou o balde de água sobre a freira queimando e o fogo explodiu, flamejando cera quente no meio da multidão de meninas e criando pânico e histeria. O mundo tornou-se fogo e calor. Ainda assim, Lenobia tentou chegar a Marie Madeleine, mas mãos fortes seguraram sua cintura e a puxaram para trás. ― Não! ― ela gritou, lutando para fugir. ― Chérie! Você não pode ajudá-la! A voz Martin era um oásis de calma no caos, e o corpo de Lenobia ficou mole. Ela deixou-se ser puxada de volta para longe da popa, fora do alcance da queima. Mas no meio das chamas Lenobia viu Marie Madeleine parar de lutar. Completamente envolvida em chamas, a freira foi até a grade, virou-se e por um instante seu olhar encontrou o de Lenobia. Lenobia nunca iria esquecer aquele momento. O que ela viu nos olhos de Marie Madeleine não era dor, terror ou medo. Ela viu a paz. E dentro de sua mente ecoava a voz da freira, misturada com outra que era mais forte, mais clara, e mais bela. Siga o seu coração, criança. A mãe sempre a protegerá... Então a freira passou por cima da grade e pulou para os frescos braços acolhedores do mar. A próxima coisa que Lenobia se lembrou foi de Martin arrancando sua camisa e usando-a para vencer as chamas que estavam lambendo sua saia. ― Você fica aqui! ― ele gritou para ela quando o fogo havia acabado. ― Não se mova! Lenobia assentiu inexpressivamente e, em seguida, Martin juntou-se aos outros membros da tripulação enquanto eles usavam roupas, partes de velas e cordame para abater o fogo. O capitão Cornwallis estava lá, gritando ordens e usando sua jaqueta azul para extinguir os bolsões de fogo, que agora pareciam desaparecer com uma facilidade natural. ― Eu estava tentando ajudar! Eu não sabia! O olhar Lenobia foi atraído pelos gritos do padre. Ele estava de pé no parapeito, olhando para o mar. ― Charles! Você está queimado? Você está ferido? ― Lenobia assistiu o capitão se apressar até ele enquanto o sacerdote se balançou e quase caiu ao mar. O capitão pegou-o a tempo. ― Venha para longe da grade, homem! ― Não, não ― o padre livrou-se dele. ― Eu preciso fazer isso. Devo. Ele ergueu o braço, fez o sinal da cruz, e depois Lenobia ouviu começar a oração ritos passado. ― Domine Sancte...
Lenobia nunca tinha odiado ninguém tanto em sua vida. Simonette balançou em seus braços, rosada, chamuscada e soluçando. ― O que fazemos agora? O que fazemos agora? Lenobia agarrou-se a Simonette, mas ela não pôde atender a menina. ― Mademoiselles! Alguma de vocês está ferida? ― a voz do capitão explodiu quando ele atravessou o grupo de garotas chorando, tirando aquelas que tinham estado mais próximas das chamas e dirigindo-as ao médico do navio. ― As que estiverem sem ferimentos, vão abaixo. Limpem-se. Mudem suas roupas. Depois, mademoiselles, descansem. O fogo acabou. O navio será reparado. Vocês estão seguras. Martin se paerceu na fumaça e confusão, e Lenobia não teve escolha senão ir abaixo com Simonette ainda segurando firmemente a mão dela. ― Ouviu-a também? ― Lenobia sussurrou enquanto elas faziam seu caminho, tremendo e chorando, pelo corredor estreito. ― Eu ouvi o grito da irmã. Foi terrível ― Simonette soluçou. ― Nada mais? Você não ouviu o que ela disse? ― Lenobia persistiu. ― Ela não disse nada. Ela só gritava ― Simonette olhou para ela, os olhos arregalados e cheios de lágrimas. ― Você ficou louca, Lenobia? ― Não, não ― Lenobia disse rapidamente, colocando um braço reconfortante em torno de seus ombros. ― Eu quase desejo estar louca, assim eu não teria de lembrar o que aconteceu. Simonette soluçou de novo. ― Oui, oui, eu não vou sair do quarto até chegarmos a terra. Nem mesmo para ir jantar. Eles não podem me obrigar! Lenobia a abraçou com força e não falou mais nada. *** Lenobia não deixou seus aposentos durante os próximos dois dias. Simonette não precisou ter medo de ser forçada a ir até a habitação do comandante para as refeições da noite. O alimento foi trazido para elas em seu lugar. A morte da irmã Marie Madeleine tinha lançado um feitiço sobre todos, e a rotina normal da vida a bordo mudou. As músicas barulhentas e às vezes obscenas que a tripulação costumava cantar por semanas não eram mais as mesmas. Não havia riso. Sem gritos. O navio em si parecia estar em silêncio. Horas depois da morte da freira, um vento feroz veio de trás deles, encheu as velas e impeliu-os para a frente, como se o sopro de Deus estivesse mandando-os para longe do local da violência.
Em seus quartos, as meninas estavam em estado de choque. Simonette e algumas outras ainda choravam e não deixavam de chorar. A maioria delas se amontoava em suas camas, falava em voz baixa ou orava. Os empregados da embarcação que lhes traziam comida lhes asseguravam de que tudo estava bem e que iriam aportar em breve. O pronunciamento evocou nada mais que olhares sombrios e as lágrimas silenciosas. Todo o tempo Lenobia esteve pensando e lembrando. Lembrou-se da bondade de Marie Madeleine. Lembrou-se da fé e da força da freira. Lembrou-se da paz que ela viu em seus olhos moribundos e as palavras que ecoaram magicamente em sua mente. Siga o seu coração, criança. A mãe sempre a protegerá. Lenobia lembrou da irmã Marie Madeleine, mas ela pensou em Martin. Ela também pensou no futuro. Foi pouco antes do amanhecer do terceiro dia que Lenobia tomou sua decisão, e rastejou silenciosamente da cabine que havia se tornado como um mausoléu. Ela não viu o amanhecer. Ela foi direto para o porão de carga. Ulisses, o gigante gato preto e branco, estava se esfregando contra as pernas dela quando chegou perto da baia improvisada. Os cavalos a viram primeiro, e ambos os percherões relincharam, o que fez Martin girar, fechando o espaço entre eles em três passos largos, e puxando-a em seus braços, abraçando-a forte. Ela podia sentir seu corpo tremendo enquanto ele falava. ― Você veio, chérie! Não achei que você viria. Achei que nunca ia te ver novamente. Lenobia descansou a cabeça contra o peito e respirou o seu perfume: cavalos, feno e o suor honesto de um homem que trabalhou duro a cada dia. ― Eu tinha que pensar antes de vir vê-lo, Martin. Eu tinha que decidir. ― O que é que você decidir, chérie? Ela levantou a cabeça e olhou para ele, amando a luz azeitonada de seus olhos e as manchas marrons que cintilavam como âmbar dentro deles. ― Primeiro, tenho de lhe perguntar algo... você viu ela saltando para o oceano? Martin assentiu solenemente. ― Sim, chérie. Foi uma coisa terrível. ― Você ouviu alguma coisa? ― Só os gritos dela. Lenobia respirou fundo. ― Pouco antes de ela pular no mar, ela olhou para mim, Martin. Seus olhos estavam cheios de paz, sem medo ou dor. E eu não ouvi os gritos dela. Em
vez disso, ouvi a sua voz dela, misturado com outra, dizendo-me a seguir o meu coração, que a Mãe deve sempre proteger-me. ― A freira era uma mulher de muita fé e bondade. Seu espírito era forte. Poderia ter falado com você. Talvez a sua Maria que ela tanto ama falou com você, também. Lenobia sentiu-se fraco com alívio. ― Então você acredita em mim! ― Oui, chérie. Eu sei que há mais no mundo do que aquilo que podemos ver e tocar. ― Eu acredito também. Ela respirou fundo e endireitou os ombros e, com uma voz que surpreendeu até a si mesma pelo tom maduro, ela declarou: ― Pelo menos agora eu sei. Então o que eu quero dizer para você é isto: Eu te amo, Martin, e eu quero ficar com você. Sempre. Eu não me importo como. Eu não me importo onde. Mas, ver Marie Madeleine morrer me mudou. Se o pior que pode acontecer a mim por escolher viver ao seu lado é morrer, então eu escolho toda a felicidade que podemos encontrar neste mundo. ― Chérie, eu... ― Não. Não me responda agora. Espere dois dias depois que chegarmos às docas, assim como eu levei dois dias. Você deve ter certeza dos dois caminhos, Martin. Se disser não, então eu não quero te ver nunca mais. Se você escolher sim, eu viverei ao seu lado e terei os seus filhos. Eu vou te amar até o dia em que eu morrer – só você, Martin. Sempre você, eu prometo. Então, antes que ela pudesse enfraquecer, implorar a ele, abraçá-lo e chorar, ela se afastou e pegou a familiar escova e entrou na baia improvisada dos percherões, acariciando os cavalos grandes e murmurando carinhos em saudação. Martin seguiu lentamente. Não falou ou olhou para ela, apenas se mudou para o segundo dos dois cavalos e começou a trabalhar seu caminho através do emaranhado de crina do cavalo. Assim, ele estava escondido da vista do padre quando o sacerdote entrou no porão de carga. ― Escovar bestas não é um trabalho para uma senhora. Mas então, você não é uma senhora, é, ma petite de bas? Lenobia sentiu seu estômago revirar, mas ela se virou para o padre a quem pensou em como mais monstro que o homem. ― Eu lhe disse para não me chamar assim ― Lenobia falou, orgulhosa de que sua voz não tremeu. ― E eu disse a você que eu gosto de uma luta ― seu sorriso era divertido ― mas com luta ou sem, quando eu tiver terminado com você, você
será qualquer coisa que eu desejar – bastarda, prostituta, amante, filha. Qualquer coisa. Ele se mudou para a frente, a luz da cruz vermelho-rubi brilhando no peito como se fosse uma coisa viva. ― Quem vai protegê-la agora que a freira que te blindava foi consumida? ― ele chegou à beira da baia e Lenobia encolheu-se, pressionandose contra o castrado. ― O tempo é curto, ma petite de bas. Te reclamarei como minha hoje, antes de chegar a Nova Orleans, e depois não haverá razão para você manter esta farsa de virgem e se esconder com as Ursulinas em seu convento. O padre pôs a mão na porta baixa da baia para abri-la. Martin saiu da sombra dos cavalos para ficar entre Lenobia e o padre. Ele falou calmamente, mas estava brandindo uma picareta em sua mão. ― Acho que você não reivindicará essa senhora. Ela não quer você, Loa. Vá agora, e deixe estar. Os olhos do bispo se estreitaram perigosamente e seus dedos começaram a acariciar as pedras de rubi de seu crucifixo. ― Você ousa falar comigo, rapaz? Deve entender quem eu sou. Eu não sou este Loa com que você me confundiu. Eu sou um padre, um homem de Deus. Me deixe agora e eu vou esquecer que tentou questionar-me. ― Loa é um espírito. Eu vejo você. Eu sei que você. Os Bakas o converteram, homem. Você é mal. É escuro. E não é querido aqui. ― Você ousa ficar contra mim! ― rugiu o padre. Quando sua raiva cresceu, as chamas das lanternas ao redor do porão também tremeram. ― Martin! As chamas! ― Lenobia sussurrou freneticamente para ele. O padre começou a se mover para a frente, como se fosse atacar Martin com as próprias mãos, e duas coisas aconteceram muito rapidamente. Em primeiro lugar, Martin levantou a picareta, mas ele não atacou o padre. Ao contrário, ele lançava-a contra si mesmo. Lenobia ofegou quando Martin cortou a palma da própria mão e, em seguida, quando o padre estava quase em cima dele, ele atirou um punhado de sangue para ele, atingindo-o no meio do peito, cobrindo o crucifixo vermelho com vida escarlate. E com uma voz que era profunda e cheio de energia, Martin entoou: “Ela pertence a mim e dela eu sou De lealdade e verdade, Este sangue é a minha autenticidade! Tudo o que fez foi em vão. Que volte a você com dez vezes a dor!”
O padre cambaleou para o lado, como se o sangue tivesse sido um golpe, e os cavalos achataram suas orelhas contra a cabeça enorme e, com gritos de raiva, golpearam-no com seus grandes dentes quadrados. Charles de Beaumont pulou para trás, tropeçando para fora da baia, apertando o peito. Ele se inclinou e olhou para Martin. Martin levantou a mão sangrenta e segurou-a, com a palma para fora, como um escudo. ― Você perguntou quem protegerá essa garota? Respondo-lhe: eu. A magia está conjurada. Eu a selei com meu sangue. Você não têm nenhum poder aqui. Os olhos do padre estavam cheios de ódio, sua voz mal-intencionada. ― O feitiço de sangue pode emprestar-lhe poder aqui, mas você não terá poder para onde estamos indo. Lá você é apenas um homem negro tentando se levantar contra um homem branco. Eu vou vencer... Eu vou vencer... Eu vou vencer... O padre murmurou as palavras mais e mais enquanto deixava o porão de carga, ainda segurando o peito. Tão logo ele se foi, Martin puxou Lenobia em seus braços e segurou-a enquanto ela tremia. Acariciou seus cabelos e murmurou sons baixos, sem palavras para acalmá-la. Quando o medo foi embora, Lenobia mudou-se de seus braços e rasgou uma tira de algodão de sua camisa para enfaixar a mão de Martin. Ela não falou enquanto fazia o curativo. Só quando terminou, ela lhe apertou a mão ferida e olhou nos olhos dele perguntando: ― Aquela coisa que você disse... o feitiço que conjurou... é verdade? Será que realmente funciona? ― Oh, funciona, chérie. Funciona o suficiente para mantê-lo longe de você neste navio. Mas este homem, ele cheio de um grande mal. Você sabe que ele causou o incêndio que matou a mulher santa? Lenobia assentiu. ― Sim, eu sei. ― Seus Bakas são fortes, malvados. Eu tornei a dor dez vezes pior, mas chegará um momento, talvez, quando ele pensará que vale a pena. E ele está certo. No mundo em vamos ele tem o poder, não eu. ― Mas você o parou! Martin assentiu. ― Eu posso enfrentá-lo com magia da minha mãe, mas não luto com homens brancos, suas leis podem se voltar contra mim.
― Então você tem que sair de Nova Orleans. Vá para longe, onde ele não pode te ferir. Martin sorriu. ― Oui, chérie, avec tu. ― Comigo? ― Lenobia fitou-o por um momento, sua preocupação para com ele acima de tudo em sua mente. Então ela percebeu o que ele tinha dito e se sentiu como se a aurora houvesse subido dentro dela. ― Comigo! Nós estaremos juntos. Martin puxou-a em seus braços novamente e abraçou-a. ― É o que fez a minha magia tão forte, chérie, este amor que tenho por você. Ela preenche o meu sangue e faz meu coração bater. Agora você tem meu voto em troca. Eu sempre vou te amar, só você, Lenobia. Lenobia apertou o rosto contra o peito e desta vez, quando ela chorou, as lágrimas eram de felicidade.
Capítulo oito Foi naquela tarde, 21 de março de 1788, quando o sol era um globo laranja afundando na água, que o Minerva navegou para o porto de Nova Orleans. Foi também nessa tarde que Lenobia começou a tossir. Ela começou a se sentir mal logo após voltar aos seus aposentos. No início, pensou que fosse porque ela odiava deixar Martin, e que a sala que parecia um santuário quando a irmã Marie Madeleine estava lá agora se parecia mais como uma prisão. Lenobia não poderia fazer-se comer o pequeno almoço. Até mesmo quando o grito animado de “Terra! Eu vejo a terra!” vibrava em todo o navio e as meninas foram hesitantes emergindo de seus quartos para se amontoarem no convés, olhando para a crescente massa de terra diante deles, Lenobia estava se sentindo mal e teve de abafar sua tosse em sua manga. ― Mademoiselles, eu normalmente não deixaria vocês desembarcarem na escuridão, mas por causa da recente tragédia com a irmã Marie Madeleine, acredito que o melhor é que estejam em terra e em segurança dentro do convento das Ursulinas tão logo seja possível ― o capitão fez o pronunciamento para as meninas no convés. ― Sei quem é a abadessa. Eu irei a ela imediatamente e lhe contarei sobre a perda da irmã, e avisarei que vocês estarão chegando em terra nesta noite. Por favor, levem apenas suas pequenas casquettes com vocês. O resto de suas coisas será levado ao convento. Ele inclinou-se e dirigiu-se ao lado do convés de onde o bote seria rebaixado. Em seu estado febril, parecia que a voz de sua mãe voltou para Lenobia, advertindo-lhe para não chamá-la de uma palavra que soava muito como caixão. Lenobia se movia lentamente com o resto das meninas, sentindo-se estranha, como se a voz do passado fosse um presságio para o futuro. Não! Ela sacudiu a melancolia que estava sentindo. Só tenho uma pequena febre. Vou pensar em Martin. Ele está fazendo planos para deixarmos Nova Orleans e ir para o oeste, onde nós estaremos juntos para sempre. Foi esse pensamento que a levou para a frente e assim ela se estabeleceu, com calafrios e tosse, no pequeno barco com as outras meninas. Uma que vez ela estava sentada entre Simonette e Colette, uma jovem com cabelos longos e escuros, Lenobia olhou ao redor sem ânimo, tentando chamar a energia para
completar sua jornada. Seu olhar passou ao longo dos remadores e os olhos verde oliva se prenderam nos dela, enviando força e amor. Ela deve ter feito um som de surpresa feliz, porque Simonette perguntou: ― O que é isso, Lenobia? Sentindo-se renovada, Lenobia sorriu para a menina. ― Estou feliz que a nossa longa viagem terminou, e ansiosa para começar o próximo capítulo da minha vida. ― Você parece tão certa de que será bom ― Simonette comentou. ― Eu estou. Acredito que a próxima parte de minha vida será a melhor ― Lenobia respondeu, alto o suficiente para a sua voz para levar para Martin. O barco balançava como o último passageiro se juntou a eles, dizendo: ― Estou bastante certo de que será. A força que ela tinha encontrado na presença de Martin se transformou em medo e ódio quando o padre resolveu tomar um lugar tão perto dela que suas vestes roxas, soprando no ar quente e úmido, quase tocou suas saias. Ele sentouse ali, em silêncio e olhando fixamente. Lenobia puxou seu manto mais perto e desviou o olhar, fixando seu olhar em Martin enquanto ignorava o padre. Ela respirou fundo o aroma enlameado terreno do porto, onde o rio encontrava mar, esperando que o ar quente e úmido e o cheiro de terra aliviasse sua tosse. Isso não aconteceu. A abadessa, irmã Marie Therese, era uma mulher alta e magra que Lenobia imaginou como muito semelhante a um corvo, estava parada na doca com o hábito escuro soprando ao seu redor. Enquanto o capitão ajudava o padre a sair do barco, a abadessa e duas freiras que pareciam ter chorado ajudaram os tripulantes a descer as meninas do barco para o cais, dizendo: ― Venham, mademoiselles. Precisa de descanso e tranquilidade, após o horror do que aconteceu com a nossa boa irmã. Ambos esperam por vocês em nosso convento. Quando chegou sua vez de subir para o cais, sentiu a força das mãos familiares sobre a dela, e ele sussurrou: ― Seja corajosa, ma chérie. Eu irei para você. As mãos de Lenobia ficaram nas de Martin pelo tempo que ela se atreveu, e então ela pegou a mão da freira. Ela não olhou para trás, para Martin, mas em vez disso tentou abafar a tosse e caminhou para o grupo de meninas. Quando todos estavam em terra, a abadessa inclinou a cabeça ligeiramente para o padre e o capitão e disse:
― Merci beaucoup por entregar as garotas para mim. Vou levá-las a partir daqui e em breve colocarei-as em segurança nas mãos de seus maridos. ― Nem todas elas ― a voz do padre era como um chicote, mas a abadessa mal levantou uma sobrancelha para ele quando ela respondeu. ― Sim, todas elas. O capitão já me explicou o erro infeliz na identidade de uma das meninas. Isso não faz dela menos como minha encarregada, simplesmente muda a escolha do marido para ela. Lenobia não poderia silenciar a tosse úmida que a acertou. O padre olhou atentamente para ela, mas quando falou, sua voz tinha tomado um tom suave e encantador. Sua expressão não estava zangada ou ameaçadora, apenas preocupada. ― Temo que a menina errante tornou-se infectada com algo diferente do que os pecados de sua mãe. Você realmente quer que ela contagie seu convento? A abadessa mudou-se para ficar ao lado Lenobia. Ela tocou o rosto dela, levantando o queixo e olhando em seus olhos. Lenobia tentou sorrir para ela, mas ela simplesmente se sentia muito doente, muito sobrecarregada. E estava tentando desesperadamente e sem sucesso não tossir. A freira alisou o cabelo de prata de Lenobia para trás e murmurou: ― Tem sido uma jornada difícil para você, não tem filha? ― Então ela virou-se para o padre. ― E o que queres que eu faça, padre? Não mostrar-lhe a caridade cristã em tudo e deixá-la no cais? Lenobia viu seus olhos piscarem com raiva, mas passada a sua raiva, ele respondeu: ― Claro que não, irmã. Claro que não. Eu estou simplesmente preocupado com o bem maior do convento. ― É muito atencioso de sua parte, padre. Como o capitão deve retornar ao seu navio, talvez você pudesse nos mostrar a consideração por escoltar nosso pequeno grupo para o convento. Eu gostaria de dizer que estamos perfeitamente seguras nas ruas da nossa bela cidade, mas não estaria sendo inteiramente honesta. O bispo inclinou a cabeça e sorriu. ― Seria uma grande honra para mim acompanhá-la. ― Merci beaucoup, padre ― disse a abadessa. Ela então fez um sinal para as meninas seguirem-na, dizendo: ― Venham, crianças. Lenobia afastou-se com o grupo, tentando ficar no meio do grupo das meninas, embora sentisse os olhos do padre seguindo-a, cobiçando-a. Queria olhar para Martin, mas estava com medo de chamar a atenção para ele. Enquanto caminhavam para longe do cais, ela ouviu o som de remos do barco sobre a água e sabia que ele devia estar voltando para o Minerva.
Por favor, venha para mim em breve, Martin! Por favor! Lenobia enviou um apelo silencioso pela noite. E então sua concentração focou-se em colocar um pé diante do outro e tentar respirar entre acessos de tosse. A caminhada até o convento teve uma qualidade de pesadelo que estranhamente havia espelhado a saída de Lenobia do castelo até Le Havre. Não havia neblina, mas havia escuridão e cheiros e sons que eram estranhamente familiar – vozes franceses, belas casas adornadas por cortinas flutuantes pelos quais candelabros de cristal brilhavam-misturados com o som estranho do inglês falado em uma cadência que lembrou de sotaque musical de Martin. Os aromas de especiarias e terra estrangeira foram tingidas com o aroma doce e amanteigado de bolinhos fritos. A cada passo, Lenobia sentia-se cada vez mais fraca. ― Lenobia, vamos, fique com a gente! Lenobia piscou através do suor que havia escorrido de sua testa e viu que Simonette parara no fim do grupo para chamá-la. Como que eu fiquei tão para trás? Lenobia tentou se apressar. Tentou alcançá-los, mas havia algo na frente dela, algo pequeno e peludo em que ela tropeçou, quase caindo para a rua empedrada. Um toque, forte e frio tomou seu cotovelo, imobilizando-a, e Lenobia olhou nos olhos azuis como um céu de primavera e um rosto tão bonito que ela achava ser de outro mundo, especialmente porque estava decorado com um padrão intrincado de tatuagens que pareciam plumas. ― Meu pedido de desculpas, filha ― disse a mulher, sorrindo um pedido de desculpas. ― Meu gato, muitas vezes vai para onde quer. Ele fez muitas pessoas mais fortes e saudáveis do que você tropeçarem. ― Eu sou mais forte do que pareço ― Lenobia ouviu-se dizer. ― Agrada-me ouvir você dizer isso ― a mulher respondeu antes de soltar o cotovelo de Lenobia e ir embora com um grande gato cinzento malhado a segui-la, o rabo se contorcendo como se em irritação. Quando ela passou pelo grupo de meninas, olhou para a freira principal e baixou a cabeça respeitosamente, dizendo: ― Bonsoir, abadessa. ― Bonsoir, Sacerdotisa ― a freira respondeu suavemente. ― Essa criatura é um vampiro! ― o padre exclamou quando a bela mulher puxou o capuz de seu manto de veludo preto e desapareceu nas sombras. ― Oui, na verdade ela é ― a abadessa concordou. Mesmo através de sua doença Lenobia sentiu um sobressalto de surpresa.
Ela tinha ouvido falar de vampiros, é claro, e sabia que havia um reduto deles não muito longe de Paris, mas a aldeia de Auvergne não tinha nenhum deles, e o Châteaude Navarra nunca recebeu um grupo deles, como alguns dos mais ousados, mais ricos nobres ocasionalmente fizeram. Lenobia queria ter dado um olhar mais longo para a vampira. Então a voz do padre se intrometeu em seus desejos. ― Suporta que caminhem entre vocês? O olhar sereno da abadessa não mudou. ― Há muitos tipos diferentes de pessoas que vêm e vão por Nova Orleans, padre. É um ponto de entrada para um novo mundo. Você vai se acostumar com os nossos caminhos em seu devido tempo. Quanto aos vampiros, ouvi dizer que eles estão considerando estabelecer uma House of Night aqui. ― Certamente, a cidade não permitiria tal coisa ― disse o homem. ― É sabido que onde existe uma House of Night, há também beleza e civilização. Isso é algo que os pais desta cidade gostariam de receber. ― Você soa como se você aprovasse. ― Eu aprovo a educação. Cada House of Night, em sua essência, é uma escola. ― Como você sabe tanto sobre vampiros, Abadessa? ― perguntou Simonette. ― Então, ela olhou surpresa com sua própria pergunta e acrescentou: ― eu não quero desrespeitosa perguntando uma coisa dessas. ― Uma coisa é a curiosidade normal ― a abadessa respondeu com um sorriso amável. ― Minha irmã mais velha foi Marcada e virou vampira quando eu era apenas uma criança. Ela ainda visita casa de meus pais, perto de Paris. ― Blasfêmia ― o padre murmurou sombriamente. ― Alguns dizem assim, alguns dizem que sim ― a abadessa falou, encolhendo os ombros com desdém. A tosse de Lenobia próxima puxou a atenção da freira. ― Filha, eu não acredito que você esteja bem o suficiente para andar o resto do caminho para o convento. ― Lamento, irmã. Vou estar melhor se eu descansar por um momento. Inesperadamente, naquele momento as pernas de Lenobia se tornaram como a água e ela caiu no meio da rua. ― Padre! Traga-a aqui, rapidamente ― a freira ordenou. Lenobia encolheu-se ao toque do padre, mas ele apenas sorriu e com um movimento forte, inclinou-se e levantou-a nos braços como se ela fosse uma criança. Em seguida, ele seguiu a freira pelos longos e estreitos estábulos que ligavam duas casas pintadas vividamente, ambas com fachadas elaboradas que se estendiam até o segundo andar.
― Aqui, padre. Ela pode descansar confortavelmente sobre esses fardos de feno. Lenobia sentiu a hesitação do padre, como se ele não quisesse deixá-la ir, mas a abadessa repetiu: ― Padre, aqui. Você pode colocá-la aqui. Ela foi finalmente libertada da gaiola dos seus braços, e se encolheu ainda mais, puxando seu manto com ela para que nada tocasse o sacerdote, que permanecia perto demais. Lenobia respirou fundo e, como que por magia, o som e o cheiro dos cavalos a encheu e acalmou, aliviando apenas uma pequena quantidade da queima em seu peito. ― Criança ― a abadessa falou, curvando-se sobre ela e escovando o cabelo de sua testa novamente. ― Eu estou indo para o convento. Uma vez lá, vou enviar nossa carruagem do hospital para você. Não tenha medo, não demorará muito ― ela endireitou-se e disse ao padre: ― padre, eu consideraria isso uma gentileza, se ficasse com a criança. ― Não! ― Lenobia gritou ao mesmo momento o bispo disse: ― Oui, é claro. A abadessa tocou a testa de novo Lenobia e tranquilizou-a. ― Filha, eu vou voltar em breve. O padre vai cuidar de você até então. ― Não, irmã. Por favor. Eu me sinto muito melhor agora. Eu posso cami... Os protestos de Lenobia foram afogadas em um outro ataque de tosse. A abadessa assentiu com tristeza. ― Sim, é melhor se eu enviar o carro. Voltarei em breve. Ela se virou e correu de volta para a rua, onde as meninas estavam à espera, deixando Lenobia sozinho com o padre.
Último capítulo ― Não há necessidade de você parecer tão aterrorizada. Uma garota que luta me parece emocionante, não uma doente. Ele olhou para os estábulos enquanto falava com ela, embora ele não caminhasse pelo corredor que dividia as duas fileiras de barracas. ― Os cavalos novamente. Está se tornando um tema recorrente para você. Talvez depois de se tornar minha amante, se você for muito boa, comprarei um para você. Ele virou-se para o interior escuro do prédio, para os sons abafados de cavalos sonolentos e caminhou até uma das duas tochas que estavam acesas ao lado da entrada do edifício. Suas chamas queimavam de forma constante, embora liberassem uma grande quantidade de fumaça cinza espessa. Lenobia o viu se aproximar uma das tochas. Ele olhou fixamente para a chama com um olhar que era abertamente amoroso. Levantou sua mãe e seus dedos se moviam através da chama carinhosamente, fazendo com que a fumaça se agitasse vagamente ao seu redor. ― Isso foi o que primeiro me atraiu para você, a fumaça de seus olhos ― ele se virou para olhar para ela, a chama marcando-o. ― Mas você já sabia disso. As mulheres gostam de atrair os homens de propósito, assim como chama atrai as mariposas. Você me atraiu do mesmo modo que a aquele escravo no navio. ― Eu não o atraí ― Lenobia falou, se recusando a falar com ele de Martin. ― Ah, mas é óbvio que você o fez, porque aqui estou ― ele abriu os braços. ― E há algo que eu devo deixar claro para você. Eu não compartilho o que é meu. Você é minha. Eu não vou compartilhar você. Então, pequena chama, não atraia outras mariposas para você, ou eu posso ter que mata-las, ou a você. Lenobia balançou a cabeça e disse que a única coisa que ela poderia pensar: ― Você está absolutamente louco. Eu não sou sua. Eu nunca vou ser sua. O padre franziu a testa. ― Bem, então, eu te prometo que você não pertence a ninguém, não nesta vida.
Ele deu um passo ameaçador na direção dela, mas uma forma negra girou em torno dele e pereceu que uma figura materializou-se da fumaça, da sombra ou da noite. O capuz do manto caiu para trás, e Lenobia ofegou quando o rosto da bonita vampira apareceu. Ela sorriu, levantou a mão, apontou um dedo longo para Lenobia, e disse: ― Lenobia Whitehall! A Noite escolheu a ti, tua morte será teu nascimento. A Noite a chama; ouve a Sua voz doce. Seu destino espera por você na House of Night. A dor explodiu na testa de Lenobia e ela apertou as duas mãos ao rosto. Ela queria deitar ali e acreditar que toda a noite tinha sido um sonho, um longo e interminável pesadelo, mas as próximas palavras da vampira a fizeram levantar a cabeça e piscar os pontos brilhantes livres de sua visão. ― Deixe-a, padre. Você não tem nenhum controle sobre essa filha da Noite. Ela agora pertence à Mãe de todos nós, a Deusa Nyx. O rosto do padre estava vermelho como chamas, a pesada cruz balançando em torno de seu pescoço. ― Você arruinou tudo ― gritou, soprando saliva na vampira. ― Vá, Escuridão! ― a vampira não levantou a voz, mas ela estava cheia com o poder de seu comando. ― Eu reconheço você. Não pense que pode se esconder de quem vê você com mais do que os olhos humanos. Vá! Quando ela repetiu o comando, as chamas das tochas oscilaram e quase extinguiram completamente. O rosto vermelho do padre empalideceu e com um último e longo olhar em direção a Lenobia, ele desistiu dos estábulos e fugiu para a noite. Lenobia soltou o fôlego que ela estava segurando em um suspiro. ― Será que ele se foi? De verdade? A vampira sorriu para ela. ― De verdade. Nem ele, nem qualquer ser humano, tem autoridade sobre você agora que você Nyx marcou como ela própria. A mão de Lenobia ser ergueu para o centro de sua testa, que sentiu dores e machucados. ― Eu sou uma vampira? A rastreadora riu. ― Ainda não, filha. Hoje você é uma caloura. Esperemos que um dia, em breve, você seja uma vampira. Houve som de passos nos corredores, e ambos giraram defensivamente, mas ao invés do padre, foi Martin quem entrou no corredor. ― Chérie! Eu segui as meninas, mas fiquei para trás para que não me vissem. Não sabia que você as deixou. Você está doente? Você...
Ele parou quando o que estava vendo pereceu registrar-se em sua mente. Ele olhou de Lenobia para a vampira, e então rapidamente de volta para Lenobia, o seu olhar dirigido para o esboço do crescente recém-formado no meio da testa. ― Sacre bleu! Vampira! Por um momento, Lenobia sentiu como se seu coração fosse se quebrar, e ela esperou que Martin a rejeitasse. Ele respirou fundo e deixou o ar sair com evidente alívio. Seu sorriso começou quando ele se virou para a vampira e se inclinou com um floreio, dizendo: ― Eu sou Martin. Se o que acredito é verdade, eu sou o companheiro de Lenobia. As sobrancelhas da vampira se arquearam e seus lábios cheios inclinaram-se para cima na insinuação de um sorriso. Ela colocou sua mão direita sobre o coração e disse: ― Eu sou Medusa, rastreadora da House of Night de Savannah. E apesar de ver que suas intenções são honestas, você não pode ser oficialmente o companheiro dela até que ela seja uma vampira totalmente mudado. Martin curvou a cabeça em reconhecimento. ― Então, eu espero. Quando ele virou o rosto para Lenobia, o brilho de seu sorriso era a chave para a compreensão, e a verdade dentro dela foi libertada. ― Martin e eu podemos ficar juntos! Nós podemos casar? ― Lenobia olhou para Medusa. A vampira sorriu. ― Na House of Night, é um direito da mulher de escolher companheiro ou companheira, negro ou branco, o que importa é a escolha ― a vampira incluiu Martin em seu sorriso. ― E vejo que você já a fez. Embora, talvez, como não há uma House of Night, em Nova Orleans, seria melhor que Martin acompanhasse-a a Savannah. ― É possível? Sério? ― Lenobia perguntou, esticando as mãos para alcançar Martin enquanto ele se mudava para o lado dela. ― É ― Medusa assegurou-lhe. ― E agora que eu vejo que você tem um protetor de verdade, vou dar-lhes um tempo sozinhos. Mas não demorem muito tempo. Retornem rapidamente para a doca e encontrem o navio com o dragão como mastro. Eu espero por você lá, e nós navegaremos com a maré. A vampira deve tê-los deixado, mas Lenobia viu apenas Martin e sentiu apenas a sua presença. Ele levou as mãos nas suas. ― O que se passa com você e os cavalos, chérie? Te encontro com eles novamente.
Ela não conseguia parar de sorrir. ― Pelo menos você sempre saberá onde procurar para mim. ― É bom saber, chérie ― ele respondeu. Ela deslizou as mãos pelo seu peito musculoso até que repousava sobre os ombros largos. ― Tente não me perder ― ela falou, imitando o seu sotaque. ― Nunca ― prometeu. Então Martin se curvou e beijou-a, e seu mundo inteiro se reduziu a apenas ele. Seu gosto estava impresso em seus sentidos, misturado de forma indelével com seu cheiro e a sensação maravilhosa de que ele era completamente masculino, e exclusivamente Martin. Ele fez um som pequeno, satisfeito no fundo de sua garganta enquanto seus braços se apertaram em torno dele. Ele aprofundou o beijo, e Lenobia perdeu-se nele, mal sabendo onde terminou a sua felicidade e sua começou. ― Putain! A alegria de Lenobia foi interrompida pelo som de uma maldição. Martin reagiu instantaneamente. Ele girou, empurrando-a para trás. O padre tinha retornado. Ele estava de pé na entrada dos estábulos entre as duas tochas. Seus braços estavam abertos e a cruz cor de rubi em seu peito estava piscando. Aas chamas cresciam mais e mais alto a cada instante. ― Vá agora! ― Martin disse. ― Essa menina ela não escolheu você. Ela está sob minha proteção – jurado por voto e selado com sangue. ― Não, você não vê. Seus olhos a fazem minha. Seu cabelo faz com que ela seja minha. Mas acima de tudo, o poder faz com que ela seja minha! O padre levou suas mãos para ambas as tochas. As chamas saltaram enquanto a fumaça subia, engrossando até que lambeu suas mãos. Então, rindo horrores, ele segurou o fogo e jogou-o nos fardos soltos e secos ao redor deles. Com um whoosh! o fogo pegou, se alimentando, consumido. Lenobia teve um momento terrível de calor e dor. Ela cheirou a queima do próprio cabelo. Ela abriu a boca para gritar, mas o calor e a fumaça encheram seus pulmões. Então ela sentiu braços em volta dela enquanto Martin a protegia das chamas com o seu próprio corpo. Ele levantou-a e levou-a com firmeza através do incêndio. O ar quente e úmido da rua era frio contra a pele queimada de Lenobia quando Martin cambaleou e perdeu o controle, e ela caiu para a rua. Ela olhou para ele. Seu corpo foi queimado tanto que tudo o que era reconhecível de eram os seus olhos oliva e âmbar. ― Oh, não! Martin! Não!
― Tarde demais, chérie. Este mundo terminou para nós. Eu te verei de novo, no entanto. Meu amor por você não acaba 'aqui. Meu amor por você, nunca termina. Ela tentou se levantar para chegar a ele, mas seu corpo estava estranhamente fraco, e o movimento enviou uma pontada pelas suas costas. ― Morra agora, e deixe ma petite de bas! Por trás de Martin, a silhueta do padre, começou a se mover em direção a eles. O olhar de Martin encontrou o dela. ― Eu não ficarei aqui agora, embora eu gostaria. Eu não irei perdê-la, também. Encontrarei você novamente, chérie. Eu juro. ―Por favor, Martin. Eu não quero viver sem você ― ela soluçava. ― Você deve. Encontrarei você, novamente, chérie ― ele repetiu. ― Antes de eu ir, uma coisa eu posso corrigir nesse tempo, no entanto. A bientôt, cher. Eu vou te amar sempre. Martin virou-se para atender o padre, que zombava dele. ― Ainda está vivo? ! Não por muito tempo. Martin se manteve cambaleando em direção ao sacerdote, falando devagar e com clareza: “Ela pertence a mim e dela eu sou De lealdade e verdade, Este sangue é a minha autenticidade! Tudo o que fez foi em vão. Que volte a você com dez vezes a dor!” Quando chegou até o padre, os seus movimentos se alteraram. Por apenas um instante ele era rápido e forte como antes, mas um instante era tudo o que Martin precisava. Seus braços se travaram em torno de Charles de Beaumont e, estranhamente espelhando o abraço que tinha salvo a vida Lenobia, Martin levantou o padre gritando, lutando e levou-o para o inferno de fogo, que havia sido os estábulos. ― Martin! O grito de agonia que foi arrancado de Lenobia foi abafado pelos sons terríveis de pânico, cavalos assustados e as pessoas correndo de casas vizinhas, gritando por água, por ajuda. Através de todos os sons e loucuras, Lenobia ficou encolhida no meio da rua, soluçando. Com a propagação das chamas e o mundo ao seu redor queimando, ela baixou a cabeça e esperou o fim.
― Lenobia! Lenobia Whitehall! Ela não levantou a cabeça ao som de seu nome. Era apenas o som dos cascos de um cavalo nervoso sobre os paralelepípedos nas proximidades que a fizeram reagir. Medusa deslizou para fora da égua e se ajoelhou ao lado dela. ― Você pode montar? Temos pouco tempo. A cidade está em chamas. ― Deixe-me. Eu quero queimar com ele. Eu quero queimar com ele. Os olhos de Medusa se encheram de lágrimas. ― Martin está morto? ― E assim eu estou ― disse Lenobia. ― Sua morte me matou também. Enquanto ela falava, Lenobia sentiu a profundidade da perda de Martin através dela. Foi demais, a dor era demais para conter dentro de seu corpo, e com um soluço que era choro de uma viúva, ela caiu para a frente. O tecido ao longo da costura de trás do seu vestido estourou e a dor dividiu sua pele queimada. ― Filha! ― Medusa se ajoelhou ao seu lado, estendendo a mão para ela, tentando consolá-la. Suas costas, devo leva-la ao navio. ― Deixe-me aqui ― Lenobia falou novamente. ― Eu jurei nunca amar outro homem, e eu não vou. ― Mantenha o seu voto, a filha, mas viva. Viva a vida que ele não poderá. Lenobia começou a recusar, mas depois o focinho macio da égua abaixou até ela, tocou seu cabelo chamuscado e esfregou seu rosto. E através de sua dor e desespero, Lenobia sentiu a preocupação da égua, bem como o medo de que o fogo se espalhasse. ― Eu posso sentir o que ela sente ― Lenobia levantou uma mão fraca, trêmula até o cavalo para acaricia-lo ― ela está preocupada e com medo. ― É o seu dom, a sua afinidade. Raramente se manifestam tão rápido. Ouça-me, Lenobia. Nossa Deusa, Nyx, lhe deu este grande presente. Não rejeiteo, se console, talvez, a felicidade possa chegar para você. Cavalos e felicidade... O segundo piso da casa ao lado dos estábulos entrou em colapso, e as faíscas caíram em cascata ao redor delas, ateando fogo às cortinas de seda na casa do outro lado da rua. O medo da égua disparou e foi o terror do animal que tomou a decisão por Lenobia. ― Eu posso andar ― ela falou, permitindo que Medusa a ajudasse ficar de pé e então levantasse-a para a sela. Medusa ficou boquiaberta.
― Suas costas! Está ruim. Isso vai ser doloroso, mas uma vez que estejamos a bordo do navio, eu posso ajudá-la a se curar, porém você vai ter sempre as cicatrizes desta noite. A vampira montou a égua, apontou-a para as docas, e incitou-a. À medida que galopava para a segurança e o mistério de uma nova vida, Lenobia fechou os olhos e repetiu para si mesma: Eu vou te amar até o dia em que eu morrer – só você, Martin. Sempre você, eu prometo.