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Três faces da sobrevivência
Existe vida, mesmo após contrair um vírus mortal. Experiências de dor, sofrimento, tristeza e angústia se transformaram em esperança e fé. A luta pela vida, contra um vírus letal, simboliza a força, garra e coragem de pessoas que ficaram à beira da morte. O novo coronavírus pode ter representado o fim e luto para algumas famílias, mas, para outras, simboliza a superação e renascimento. A forma de viver e enxergar o mundo tornou-se melhor que antes da doença. Pessoas que “nasceram de novo” e contam suas experiências de quase morte, agora vivem como se não houvesse amanhã.
Teresinha Gomes de Almeida Bairros, 63 anos, nasceu em 31 de agosto de 1959, aposentada, viúva, mãe de quatro filhos, avó de nove netos, paranaense e evangélica. “Dona Teresinha” – como gosta de ser chamada – é branca, tem cabelo castanho claro e olhos castanho-escuro, 1,48 metros de altura, nariz adunco, lábios finos e usa óculos.
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Arlete Arinos Catoci, 62 anos, nasceu em 28 de agosto de 1960, aposentada, casada há 42 anos com Antô-
nio Carlos Catoci, mãe de três filhos, avó de cinco netos e evangélica. É morena, tem olhos e cabelos castanho-escuro, tamanho curto, 1,63 metros de altura, nariz achatado e lábios médios. Edgar das Neves Pereira, 53 anos, nasceu em 25 de dezembro de 1968, é cinegrafista, casado com Deanie Valesca Arte Ortiz há 26 anos, pai de duas filhas, sul-mato-grossense e evangélico. É moreno, careca, barbudo grisalho, usa óculos, 1,87 metros de altura, tem olhos castanho-escuro, nariz achatado e lábios carnudos. Teresinha, Arlete e Edgar são pessoas diferentes, mas têm algo em comum: fazem parte dos 570.135 infectados pela Covid-19 em Mato Grosso do Sul, que adoeceram, foram intubados e hoje estão vivos para contar suas experiências de “quase morte”. A proximidade com a morte os fez enxergar a vida com outros olhos. Os olhos foram dilatados para o futuro e contraídos para o passado. O passado ficou para trás, junto com experiências desagradáveis de “quase morte”. Dali para frente, o que interessava é o futuro. Futuro de uma trajetória inteira pela frente, com novas oportunidades e chances de viver intensamente.
Teresinha Gomes de Almeida Barros, 63 anos, aposentada
Dona Teresinha renasceu pela terceira vez. Foi diagnosticada com câncer no retroperitônio – neoplasma localizado atrás da cavidade abdominal, entre o pâncreas, rins e intestino – em 2017. Em 19 de fevereiro de 2021 foi infectada pelo Covid-19 e foi diagnosticada com um tumor no timoma – neoplasia situado entre os dois pulmões. Ou seja, teve câncer e Covid ao mesmo tempo.
Durante o tratamento da Covid-19, ficou 33 dias no hospital, 17 deles intubada, e perdeu 14 quilos. No tratamento oncológico, enfrentou 60 sessões de radioterapia. Exemplo de luta e superação, não desistiu da vida em nenhum momento, pelo contrário, sempre teve muita vontade de viver. Ela é um “verdadeiro milagre”, como diz sua filha, Suzana de Almeida Ajala, maquiadora, 37 anos. Apesar dos avanços da medicina, o câncer ainda carrega o estigma de uma doença terminal e de difícil cura. Porém, para Teresinha, a crueldade do câncer não “chega
aos pés” da brutalidade da Covid-19. Sua reação é pelo fato de ter ficado muito tempo sozinha no hospital, sem ver a família e poder ir para a casa. Com sorriso de “orelha a orelha”, Teresinha é grata a Deus pela terceira chance de viver. Sua experiência de “quase morte” a fez refletir que não se deve deixar nada para depois, pois a vida muda do dia para a noite: em um belo dia estava bem, rindo, conversando, comendo, dirigindo. E na semana seguinte, intubada. “Então, porque deixar para amanhã o que se poder fazer hoje?”, indaga. Ela vive e aproveita o hoje. O amanhã a Deus pertence. Come o que tem vontade, faz o que quer fazer e visita quem não vê há anos, tudo em um só dia. Não deixa nada para amanhã. Após a doença, diz estar pronta para o que “der e vier” e não tem medo de mais nada, nem de um possível câncer que possa reaparecer, muito menos de morrer. – Aprendi que ninguém morre sem chegar o dia, ninguém morre na véspera. Porque a vida é de Deus, é ele quem deu a vida e é ele quem vai tirar. Viveu altos e baixos e não é “qualquer coisinha” que a abalará novamente, como disse. A doença lhe mostrou que sempre deve estar disposta a enfrentar os obstáculos de cabeça erguida, olhando para frente e com otimismo. E o mais importante: não desistir de viver, sonhar e realizar.
A fé é sua grande companheira para enfrentar os problemas. A pandemia fez com que sua conexão com Deus se tornasse ainda mais forte. Após a cura, frequenta mais a igreja, ouve louvores em casa, ora várias vezes ao dia, lê a bíblia e é devota à Ele. Outra lição foi a de se colocar em primeiro lugar. Teresinha precisou estar à beira da morte, por três vezes, para aprender a dizer “não” para as pessoas, quando necessário. Antes de adoecer de Covid-19, sempre fazia de tudo pelos outros, mesmo que contra sua vontade. Agora não se sente mais receosa em dizer “não”. Faz o que está ao seu alcance, se não estiver, pede desculpas e diz que não vai fazer. – Se eu posso fazer, eu falo “sim”, se eu não posso, eu não vou me esforçar. Eu jamais vou fazer alguma coisa para agradar alguém, primeiro eu, depois os outros. De acordo com ela, as lições deixadas pela Covid-19 melhoraram sua forma de viver em 100% e hoje é mais feliz, alegre, radiante, realizada e decidida.
Edgar das Neves Pereira, 53 anos, cinegrafista
Edgar renasceu duas vezes: foi vítima do fogo e da Covid-19. Há alguns anos, se envolveu em um incêndio e teve 20% do corpo queimado. Queimou o rosto, braço, peito e orelha após uma garrafa de álcool explodir em sua mão. Teve queimaduras de primeiro, segundo e terceiro graus. Por incrível que pareça, hoje não há uma sequer cicatriz deixada pelas chamas. As marcas e queimaduras não tiveram relevância perto do novo coronavírus.
O cinegrafista foi a primeira pessoa a ser intubada com a Covid-19 em Mato Grosso do Sul. Logo quando a doença chegou no estado, teve o desprazer de ser um dos primeiros a ser infectado. Era uma doença desconhecida, de países do outro lado do mundo e vista apenas na televisão. Ele pegou o vírus em um almoço entre amigos, pois um convidado, que também participou da confraternização, havia acabado de chegar dos Estados Unidos da América
(EUA), país em que a doença estava bem avançada. Mal poderia imaginar que, em breve, a doença estaria em seu corpo. Quando os primeiros sintomas surgiram, nem passava pela sua cabeça que poderia ser Covid-19. A suspeita era dengue. – Era começo de ano, março, chuvarada e aqui no bairro, tem muito caso de dengue. Então a gente pensou que era dengue mesmo. Em meados de março de 2020, a doença ainda desconhecida e ele serviu de cobaia para os profissionais da área da saúde. Os médicos não sabiam qual procedimento fazer e qual remédio dar. Os testes de Covid-19 realizados em Mato Grosso do Sul eram limitados e tinham que ser enviados para São Paulo para análise. Com isso, o resultado demorava mais de dez dias para ficar pronto. – Fui um experimento nas mãos dos médicos. Acabei sendo meio que uma cobaia, porque ninguém sabia ao certo o que usar. Ninguém sabia o que era aquela doença ao certo, que tipo de medicação tinha que aplicar, qual eficácia no organismo. Apesar da gravidade, o calor do fogo e o medo da “doença desconhecida” não foram motivo para que se entregasse à morte. A esposa e as filhas foram a força para mantêlo vivo. Sabia que ainda não poderia “partir dessa para outra melhor”, pois a esposa e a filha precisavam dele e estavam
esperando por ele. Não foi apenas Edgar que tirou lições da doença. Ela deixou aprendizados para a família toda. Ele precisou dar de cara com a morte duas vezes para perceber que o que realmente importa não está no trabalho, no banco ou estacionado na garagem. – Ver minha esposa e filhas todos os dias, jantar e almoçar com elas, vê-las andando pela casa parece ser algo tão simples, mas na verdade é o que de mais valioso temos na vida. Após ter o marido de volta, Deanie Valesca passou a enxergar a vida em um tom diferente. Briga menos com as filhas, implica menos com Edgar e diz mais “eu te amo”. Faz menos serviços de casa, passa mais tempo com a família, ri mais e se estressa menos. Come o que tem vontade e acima de tudo: não deixa nada para amanhã. – Estar ao lado de quem a gente ama é algo tão comum e simples e ao mesmo tempo tão valioso. Não tem dinheiro que pague isso. O que seria de mim e das minhas filhas se o Edgar não estivesse aqui hoje? A casa iria perder a graça, o sabor da janta não seria o mesmo e a vida perderia totalmente o sentido.
“Eu ia morrer, mas eu voltei pelos meus netos”
Arlete Arinos Catoci, 62 anos, aposentada
Arlete possui uma das comorbidades mais letais e perigosas para quem é diagnosticado com Covid-19: Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC). A DPOC é um grupo de doenças pulmonares (bronquite e enfisema) que bloqueiam o fluxo de ar e dificultam a respiração. A falta de ar é constante na vida de quem possui DPOC, se manifestando até mesmo quando o doente está em repouso. Cigarro, exposição à poeira, poluentes do ar e vapores químicos contribuem para o surgimento da doença. Para agravar ainda mais seu quadro clínico, Arlete possui diabetes e neuropatia diabética. Não é à toa que seu marido se refere a ela como “guerreira”, pois não é para qualquer um ficar 49 dias no hospital, sendo 27 intubada, 10 com a traqueostomia, e 40 dias seguidos sem tomar banho, além de perder 18,5kg.
As comorbidades resultaram em uma intubação complicada e cheia de sustos para a família, mas Arlete não se deixou abalar. Os netos eram a principal fonte de inspiração para que fosse forte e lutasse com unhas e dentes contra a doença. É avó de Fernando, 6 anos; Alan, 8; Benício, 8; Nicolas, 13 e Leonardo Vitor, 19. Somente homens. Neles, encontra forças para viver, seguir em frente e não olhar para trás. Graças aos meninos, é uma pessoa melhor e uma mulher realizada. E, por causa deles, está viva. Ela também dá a vitória e parabeniza os médicos, enfermeiros e fisioterapeutas por estar viva, mas, os cinco meninos foram pessoas-chave para o sucesso e sua recuperação. – Eu sou apaixonada pelos meus netos e vivo por eles. Mimo todos eles. Eles vêm me visitar e eu faço tudo o que eles me pedem. Eu não poderia morrer. Se eu morresse, como eles iriam ficar sem mim? Eu voltei por eles. A Covid-19 foi uma “escola” para Arlete. Ela aprendeu algumas coisas e reaprendeu outras. A lista de aprendizados traz itens importantes, como: se arriscar, não ter medo de viver, ajudar o próximo, ter mais empatia, ouvir mais e falar menos, abraçar mais e dizer “eu te amo”. Antes de ser infectada, sempre teve vontade e planos de viajar. Agora, se arriscou e finalmente tirou as viagens do papel. Foi visitar parte da família em Rondônia. O espírito de solidariedade surgiu e passou a ter o hábito de ajudar quem
mais precisa: pessoas em situação de vulnerabilidade social. – Passei a colaborar, em forma de alimentos, com quem mais precisa. Quando vejo uma família passando fome, dou arroz, leite, pão, macarrão e sal. É doído ver alguém passando necessidade, e, se não quero isso para mim, também não posso deixar que isso aconteça com os outros. A pandemia forçou o isolamento social e as pessoas foram obrigadas a evitar beijos, abraços, apertos de mão e contato pessoal próximo. Arlete ficou sentida que não pôde mais “amassar” seus netos de beijos e abraços. – Quando eu sai do hospital e cheguei em casa, fui recebida com muito carinho pela minha família. Fiquei emocionada quando vi meus netos após tantos dias desacordada. Foi abraço atrás de abraço e beijo atrás de beijo. Nunca mais quero ficar longe deles.
O susto que Arlete deu no marido, filhos e netos fez com que cuidassem ainda mais da saúde da idosa. De acordo com Antônio, visitas regulares ao médico passaram a fazer parte de sua rotina. Ela mudou seus hábitos de higiene e o álcool gel passou a ser o item mais importante de sua bolsa. – Nós já cuidávamos muito bem dela, e, agora, mais do que nunca, vamos vigiar pela saúde dela mais ainda. Doença aqui em casa não tem poder mais.
Sinais da Covid-19
Os sintomas que os três pacientes tiveram foram semelhantes, intensos e avassaladores. Teresinha teve tosse, desânimo parecido com depressão, falta de apetite, cansaço, dor nas pernas e dor no corpo. O mais preocupante para ela foi a febre de 42ºC, que a fez delirar e ir imediatamente para o hospital. Quando chegou, estava com 70% do pulmão comprometido e 70% de saturação. Os primeiros sinais de Edgar foram diarreia, febre e dor no corpo. De início, achou que fosse dengue, pois já teve a doença três vezes e os sintomas eram semelhantes. Teresinha chegou no hospital com 35% do pulmão comprometido e 65% de saturação. Em uma bela noite, Arlete foi ao culto louvar a Deus. Na volta para casa, trouxe a Covid-19. Os sintomas começaram em 18 de novembro de 2020. Decidiu procurar atendimento médico na noite seguinte e fez um teste, o qual positivou. Horas antes de testar positivo, dividiu o jantar com o marido na mesma colher. Ele fez o teste, mas não foi diagnosticado com a doença. Sem melhora, Arlete foi internada no dia 24. Os médicos alertaram à família de que ela precisava ficar no hospital mais alguns dias, pois seu caso era grave. Priscila Arinos
Catoci, 34 anos, filha de Arlete, passou dias de angústia e desespero quando soube que, mesmo com todos os cuidados hospitalares, a mãe não estava bem. No dia 28, foi intubada no Hospital do Coração – Clínica Campo Grande e o chão de Antônio e Priscila desabou com a notícia. Durante o coma induzido, pegou infecção bacteriana, precisou receber sangue, pois sua imunidade estava baixa, e fez hemodiálise devido às complicações no rim. Teve escaras no bumbum e ficou de bruços para aliviar o pulmão. Em um certo momento, foi extubada, mas foi intubada novamente pois não reagiu bem. Enquanto esteve intubada, tinha pesadelos com um homem de capa preta e vermelha, velas pretas e vermelhas e um pêndulo. Aflita e assustada, Arlete revelou que ficou 72 horas lutando contra aquele inimigo. Conta que o pêndulo prata marcava o tempo e ficava descendo e subindo. Toda vez que o objeto descia, Arlete quase se entregava à morte. Além disso, o “diabo” queria que ela dormisse e quando pegasse no sono tinha a impressão que iria falecer. Foi uma guerra espiritual, cujos vencedores foram Arlete e Jesus Cristo. O diabo, perdedor, define a ex-paciente. – O diabo perguntava para mim aonde está o meu Deus e queria que eu o negasse por toda lei. Quando o pêndulo chegava lá embaixo, eu quase me entregava, mas ele subia e eu resistia.
Diferentemente dos outros hospitais, Arlete, mesmo intubada, não ficou isolada e sua família ia visitá-la todos os dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A visita era feita mediante medidas de biossegurança, como uso de capote hospitalar, bota, máscara, luva, touca e faceshild. Antônio ficava triste em ver a amada naquela situação, mas ao mesmo tempo aliviado em poder vê-la e tocá-la, pois muitas famílias não tiveram essa oportunidade. Com lágrimas nos olhos, o marido relembra como foi a cena agoniante na UTI. – Eu tocava nela. Eu chegava perto dela e ficava do lado dela, mas ela estava desacordada e cheia de aparelhos. Ficava muito em prantos lá e chorava muito. A gente querendo falar com ela e ela desacordada. A família de Edgar e Teresinha não tiveram o mesmo “privilégio” da visita. A filha de Teresinha, Suzana, ficou 33 dias seguidos sem ver a mãe, e Deanie Valesca ficou 38 dias sem ver o marido. A saudade não cabia no peito de ambas. Teresinha também pegou Covid-19 na igreja, assim como Arlete. Ela começou a sentir os sintomas em 26 de fevereiro de 2021, foi internada em 2 de março e intubada no dia 6 no Hospital Santa Casa de Campo Grande, na área pública. Foi extubada no dia 21 e saiu do hospital em 4 de abril, domingo de Páscoa.
Na tarde de 26 de fevereiro, Suzana notou que sua mãe estava mal e imediatamente a levou para o hospital. O atendimento foi imediato, pois Teresinha fez acompanhamento no setor de oncologia. Com aparência de desespero, a filha contou que assim que Teresinha chegou no hospital, já foi internada, pois o caso era grave. Após demonstrar preocupação, Suzana abriu um sorriso de gratidão ao dizer que a mãe foi muito bem atendida pelos profissionais da saúde. De acordo com ela, até parecia que estavam pagando e que a mãe estava na ala particular do hospital. – São todos excelentes. Bons médicos, enfermeira, psicóloga, assistente social, são muito atenciosos. Não tenho do que reclamar. O histórico de câncer e o tumor próximo ao pulmão contribuíram para que o quadro clínico da paciente se tornasse delicado. Sem melhora, Teresinha foi intubada em 6 de março. Inquieta ao saber que a mãe estava em perigo, a moça pensava nela o tempo todo, enquanto atendia clientes em seu salão de beleza. Não via a hora de ir embora do salão para acompanhar o boletim médico que saia diariamente às 15 horas. Sabia que caso fosse divulgado algo grave, iria passar mal na frente dos clientes. Ao longo da intubação, Teresinha pegou três bactérias, todas no pulmão. Teve febre, convulsão, pressão e saturação baixas, bradicardia e sobrecarga no rim. A maioria dos
boletins médicos informava que o estado dela era gravíssimo e que corria risco de morte. O seu pior dia no hospital foi 17 de março, quando os médicos disseram que talvez não resistiria àquela noite. Descontraída e de cabeça baixa, Suzana revelou que a situação era tão delicada, que chegou a ficar de bruços, na posição de prona, todos os dias, pois o tumor de Teresinha era próximo ao pulmão. – Aplicavam noradrenalina nela para o coração não parar de bater, era uma dose muito alta. Depois que intubou, só foi piorando. Só vinha “risco de morte” e “paciente sem melhora”, no boletim. Antes ou depois da pandemia, a maquiadora sempre foi muito delicada e cuidadosa com a mãe. Quando Teresinha chegou em casa, era monitorada 24 horas pela filha. Ela dormia ao seu lado, no mesmo quarto, para garantir que estivesse respirando bem e sem febre. Transportava sua mãe em cadeira de rodas pela casa, fazia comida e a alimentava de uma em uma hora, com torradas, frutas e mingau. Dona Teresinha havia emagrecido 14 kg e, graças ao empenho da filha, conseguiu repor o peso. – O médico falou para mim que era para cuidar porque a maioria dos pacientes estava morrendo depois da alta, e a família não via. Dava parada cardíaca, parada respiratória e não viam. Eu não dormia, cuidava da nossa mãe 24 horas. Ela dormia já com o oxímetro na ponta do dedo. Eu
fazia mingau de fubá, comprava torradinha, cortava e descascava pitaya, porque ela perdeu muita massa muscular. O quadro clínico de Edgar piorou da noite para o dia, assim como Teresinha e Arlete. Ele começou a sentir os sintomas em 18 de março de 2020. Ficou 38 longos dias no hospital, 22 intubado e 12 com a traqueostomia; perdeu 25 quilos. Tem hipertensão e diabetes, comorbidades de risco grave para o paciente.
A família do cinegrafista decidiu levá-lo à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Vila Almeida no dia seguinte, onde os médicos e enfermeiros não deram muita atenção para o caso, pois ele não estava com falta de ar, sintomachave da Covid-19. Então, receitaram paracetamol e aconselharam a voltar para casa. Em casa, só piorou. O quadro evoluiu para falta de ar e ele retornou para a UPA no dia 23, com dificuldade para andar e muitas dores. Aflita e gaguejando, a esposa relembra detalhes do momento em que Edgar estava no pronto-socorro. – Meu marido estava com muita falta de ar e de repente roxeou inteiro, a boca dele roxeou e ele caiu duro no chão, inconsciente. Foi um desespero. Edgar teve que ser encaminhado de ambulância para o Hospital Regional (HRMS). Dentro do veículo, pedia orações para famílias e amigos através do WhatsApp. Neste momento, as filhas Esther Ortiz Pereira, 23 anos, e Giova-
na Ortiz Pereira, 24 anos, estavam em prantos, preocupadas com o pai. Giovana passou mal ao vê-lo naquele estado e também precisou de atendimento médico. No hospital, Edgar passou por uma série de exames. Disse, de maneira aterrorizada, como a gasometria arterial é um exame extremamente doloroso e perguntava para si mesmo se era melhor ter morrido, pois nenhum ser humano merece passar por tanta dor. – Eles faziam duas vezes por dia um exame que era para acompanhar a oxigenação do sangue, que é um exame que é um inferno. É um que enfia uma agulha pela veia, para tirar sangue da artéria. Meu Deus do céu, era de chorar. Era apavorante porque aquela agulha pegava no nervo.
Na tarde do dia 25, por volta das 18 horas e 30 minutos, os médicos informaram Edgar que o estado dele era grave, devido a febre e quadro de pneumonia. A Covid-19 já havia afetado 75% do pulmão e a saturação estava muito baixa. Um enfermeiro pediu para que arrumasse suas coisas pois iria levá-lo para outra ala. No corredor do hospital, a caminho do outro setor, observou que as pessoas arregalaram os olhos direcionados para ele, com olhar de medo, e cochichavam: “é aquele ali”, como se fosse um “bicho de zoológico”. Todos sabiam que ele estava infectado com a Covid-19. Logo depois, os enfermeiros avisaram que iriam intubá-lo e ele ficou desesperado.
– Eu sabia o que era intubação. Fiquei apavorado, mas a equipe tentou me acalmar dizendo que era o melhor para mim. Veio a anestesista, contei até três e não vi mais nada. Os sentimentos da esposa eram de medo e incerteza, pois nunca tinha ouvido falar sobre intubação. De cabeça baixa e com olhos cheio de lágrimas, ela afirmou que em certo dia via essa situação em outro país e de um dia pro outro, teve que viver isso dentro de sua própria família. Os primeiros dias de intubação foram de piora sucessiva e no sétimo dia o estado foi de grave para gravíssimo. O rim também foi afetado, mas Edgar não precisou fazer hemodiálise. Durante a intubação, teve escaras no cóccix, cotovelo, dedo e cabeça. Sem sucesso, os médicos diziam que o estado dele era grave e que fizeram tudo o que podiam. Desacreditados, os profissionais alertaram à família que se ela crê em milagres, a única opção que restava era pedir por um.
Sustentáculo divino
Desesperadas e sem ter mais o que fazer, as três famílias encontraram suporte em Deus para implorar pelo impossível. As famílias de Egdar, Teresinha e Arlete são evangélicas, portanto, orações, jejum e promessas foram as
formas de clamar aos céus por um milagre. Os dias em que Arlete esteve intubada foram agoniantes para a família. Era choro atrás de choro. Desespero atrás de desespero. As notícias de mortes veiculadas na mídia entristeciam Priscila mais ainda. A jovem repreendia pelo “sangue poderoso de Jesus Cristo” todo e qualquer tipo de fatalidade que viesse a ocorrer com sua mãe. Aliás, vigias de oração em prol da vida e cura da idosa é o que não faltaram no dia-a-dia da família Catoci. O quadro clínico de dona Teresinha também não era muito diferente do de Arlete. Mas, em nenhum momento Suzana perdeu a esperança. Mesmo com todos os boletins trazendo risco de morte, a filha acordava três horas da madrugada, todos os dias, para orar pela mãe. Além disso, ela passava o dia orando: limpava casa orando, lavava louça orando, varria a casa orando, trabalhada orando e fazia comida orando. Angustiada, ela fala para Deus, na noite de 20 de março, que não queria sua mãe fosse para o céu. Então, diz que Deus a respondeu com as seguintes palavras: “hoje eu estou mandando o meu exército de anjos para tirar aquele espírito de morte que está rondando a sua mãe”. A partir daquele momento, com um sorriso estampado no rosto, a filha diz que não teve dúvidas de que sua mãe seria curada. – Eu orei no gramado e pedi para Deus me mandar
uma resposta sobre a minha mãe. Quando eu abri o olho, tinha um beija-flor na minha frente. Aí eu tive certeza que ela não ia morrer. O beija-flor foi uma resposta de Deus. A oração de Suzana foi atendida mesmo! No dia 21, Dona Teresinha começou a morder o tubo, foi extubada imediatamente pelos médicos, saiu da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e foi deslocada para a enfermaria. Em apenas um dia, Deus realizou dois milagres. Teresinha recebeu alta em 4 de abril, domingo de Páscoa. Este dia histórico para a família Almeida foi de muitas comemorações, tanto no hospital quanto, em casa. A família levou cartazes no hospital e também colou no vidro do carro frases como “Eu venci a Covid-19”. Quem passava por eles, batia palma e buzinava. Além disso, o domingo de Páscoa teve almoço em comemoração à vida de Teresinha e ao renascimento de Jesus Cristo.
Edgar das Neves Pereira, 53 anos, cinegrafista
Deanie Valesca entregou a vida do marido nas mãos de Deus, e, apesar da situação delicada, não perdeu a fé em nenhum momento. Estava crente que Edgar iria sobreviver e seria curado, pois tinha uma paz enorme em seu coração. Nem ela sabia o porquê estava tão tranquila em uma situação em que o marido estava à beira da morte. Estava tão forte e firme que tinha pessoas que que tinha consolar, ao invés do contrário. – Eu não via no meu coração nenhum desespero dele morrer. Era uma possibilidade, mas não era algo que eu ficava me prendendo. Só sabia que ele não ia morrer porque ainda não era o tempo de ele morrer.
Em conversa íntima de mãe e filhas, Esther, com muitas lágrimas nos olhos, indagou a mãe sobre como seria se o pai dela morresse. Firme e forte, sua mãe disse: “o seu pai não vai morrer, minha filha. O seu pai é de Deus. Deus é o dono da vida dele e Deus é quem vai determinar se ele
vai morrer ou não. Eu acredito que ele não vai morrer. Mas se o Criador falar que sim, não tem nada que a gente possa fazer. É uma decisão de Deus e a gente vai tem que aceitar”. Com lágrimas e soluços, mãe e as duas filhas iniciaram uma oração em prol da vida de Edgar. As três se ajoelharam para que a oração tocasse o céu. Pessoas do Estados Unidos, Itália, Japão, Argentina e Israel acordavam às duas horas da madrugada, cada um na sua casa, para orar por Edgar. O nome dele chegou até a lista de oração do Papa Francisco. Não foram apenas Deanie, Esther, Giovana e outras pessoas ao redor do mundo que conversaram com Deus durante a intubação do cinegrafista. Edgar também diz ter falado com Deus durante todo o tempo que esteve intubado. Seu corpo e mente foram para outra dimensão: estava sonhando quando se viu diante de uma porta dourada, grossa, grande e alta, de 30 metros. – Eu só via a porta, mas não via dos lados. E a porta se abriu e não dava para ver do outro lado porque era muito claro. Eu fui entrando. Tinha muita paz. Mas fui entrando para o outro lado e tudo sumiu e senti que uma mão me puxou para trás. Daí acordei e comecei a escutar vozes. Abri o olho e não estava entendendo o que estava acontecendo porque eu estava amarrado, cheio de aparelhos e tubos em mim.
Prestes a ser extubado e horas antes de sair do coma induzido, o cinegrafista desconfiou que ia morrer, mas viu que ainda não era a sua hora. Edgar acordou “do nada”, abriu o olho e viu a movimentação da equipe médica ao seu redor.
Mais uma vez, a oração teve poder! Felizmente, Edgar foi extubado em 16 de abril de 2020 e foi direto para a traqueostomia. A sensação da família foi de outro mundo, algo difícil de explicar. Era uma mistura de sentimentos: vitória, gratidão a Deus, felicidade e esperança. Edgar ainda não entendia muito bem o que estava acontecendo, pois estava sob efeito de remédios fortíssimos, mas, ficou muito feliz quando ouviu a voz da mulher e das filhas. Sob melhora e boa perspectiva dos médicos, foi remanejado para a enfermaria em 28 de abril, onde ficou três dias. Após reencontrar as filhas e a mulher e ainda ter o privilégio de receber banho da esposa – após 40 dias sem tomar banho –, a evolução do quadro clínico disparou de estável para bom. A partir de então, recebeu alta, deixou o hospital no dia 30 e foi direto para casa, onde foi recebido por uma mini comemoração das filhas. A festa caseira tinha enfeites, cartazes e balões. Emocionado e com os olhos cheios de lágrimas, revelou que os médicos disseram que ele sairia do hospital “no saco preto”, ou seja, morto. Mas, por um milagre e após
correntes de oração pelo mundo, saiu vivo e “pronto para outra”, disse em tom de brincadeira. Teresinha foi privilegiada, pois não teve sequelas da Covid. Edgar não teve a mesma sorte. Saiu do hospital como uma criança: não andava, não comia, não falava e usava fralda. Desaprendeu a comer, andar, falar e dependia da do auxílio da família para fazer as necessidades fisiológicas. Cansaço excessivo, perda dos movimentos nas pernas, perda de visão, dor no estômago e ânsia de vômito constante completavam o quadro. Por ficar muito tempo deitado em uma maca, perdeu os movimentos das pernas. O tubo orotraqueal não afetou as cordas vocais e nem a voz, mas danificou três dentes dele.
Tratou as sequelas em casa, com fisioterapeuta e fonoaudiólogo. Para recuperar o movimento das pernas, foram necessárias três sessões de fisioterapia por semana, por três meses seguidos. Para reaprender a comer, fez tratamento com fonoaudiólogo uma vez na semana por um mês. Além de fazer curativo nas escaras duas vezes por dia em casa, também frequentava o setor de feridas do HRMS uma vez por semana, durante quatro meses, para fazer curativo na pele. Se esforçou e deu seu melhor no tratamento. Foi “puxado”, mas a vontade de viver e de voltar à ativa era maior.
Arlete, recebeu o melhor presente que poderia no Natal: foi extubada, em 25 de dezembro de 2020. Passou o Natal no hospital, onde sentiu o cheiro de pernil e peru assados, arroz à grega e melancia. Ficou com vontade de comer pratos típicos natalinos, mas infelizmente não podia. Em nenhum momento perdeu o olfato e paladar. Viu fogos da janela e agradeceu a Deus por estar acordada na data comemorativa. O presente de Natal de Priscila e Antônio foi ver a idosa consciente. Uma mistura de emoções passou pela cabeça de Priscila quando relembra o dia em que a mãe foi extubada. “Que felicidade foi ver minha mãe fora daquele tubo. Foi o dia mais especial da minha vida, nunca vou esquecer”, afirmou com lágrimas de alegria e emoção. Mas, parte da felicidade de Priscila se transformou em susto quando a mãe acordou e achou que estava em um asilo. E o pior: Arlete achava que Priscila a tinha colocado em um asilo.
– Não sabia que eu estava no hospital, não me lembrava de muita coisa. Pensei que minha filha tinha me colocado no asilo. Toda vez que ela ia lá eu não gostava, ficava de cara feia e ela ficava muito triste. Era um olhar fulminante de raiva, de quem queria matá-la, quando a filha ia visitá-la no hospital. Então, em poucos minutos, a felicidade de Priscila se transformou em chateação, pois a mãe achava
que a filha a tinha deixado em um asilo. Os dias na enfermaria também não foram fáceis para Arlete. No dia 29 de dezembro, deu um susto para a equipe hospitalar e familiares. Ela ficou frente a frente com a morte após uma rolha de secreção entupir a traqueostomia. No incidente, ficou alguns minutos sem respirar e precisou ser ambusada. Após momentos de desespero, a fisioterapeuta do hospital conseguiu aspirar a rolha e a idosa voltou a respirar. Em 5 de janeiro de 2021, Arlete foi liberada da traqueostomia e, para a felicidade, conseguiu respirar espontaneamente. Priscila é grata a Deus pela cura da mãe e pelo milagre que foi feito na vida da matriarca. Emocionada e “pulando de alegria”, a filha relembra o momento em que ouviu a voz da mãe. – Pensa na alegria de ouvir a voz linda da minha mãe, porque com a traqueostomia, ela não conseguia falar. Foi um dos momentos mais especiais e únicos da minha vida. O dia da vitória para Arlete, do renascimento para Priscila e de gratidão para seu amor, Antônio, ocorreu em 12 de janeiro de 2021, quando a paciente recebeu alta do hospital. A idosa foi recebida com festança, gritos e aplausos do corredor da enfermaria até o estacionamento do hospital. Em casa, ela estava livre da Covid-19, mas não das sequelas e remédios. Fez sessões de fisioterapia por seis meses para reaprender a andar e sessões de fonoaudiologia por
quatro meses para reaprender a comer e a falar. Quando a vacina chegou em Mato Grosso do Sul, Dona Arlete não via a hora de tomar a “dose da esperança”. Tomou, nada mais, nada menos que quatro doses, três de Coronavac e uma de Pfizer. Recebeu a primeira em 15 de março, a segunda em 16 de abril, a terceira em 28 de setembro e a quarta em 19 de junho de 2022. Mesmo após a terceira dose, foi diagnosticada com Covid-19 pela segunda vez, em 10 de fevereiro de 2022, mas agora com sintomas leves, como dor de garganta e coriza.
Apesar de ter ficado entre a vida e a morte, Edgar não queria se vacinar, mas tomou duas doses da marca AstraZeneca. Ele não acredita na eficácia da vacina. – Eu não acredito nessa vacina. Não acredito que em tão pouco tempo alguém possa desenvolver uma vacina que realmente vá fazer efeito. Minha esposa tinha saúde boa antes de tomar a vacina e hoje em dia vive gripada. Eu tomei por causa dos meus pais, pois ficaram preocupados porque eu quase morri.
O cinegrafista pegou Covid-19 duas vezes. A segunda vez foi em março de 2022 e teve garganta inflamada e rouquidão. Desacreditado do imunizante, mais uma vez questionou “se a vacina fosse boa, a gente nem pegava outra vez. Quantas pessoas morreram com três doses?”.
Teresinha não seguiu a mesma linha de raciocínio de Edgar e se vacinou. Ela pegou Covid-19 pela segunda vez em 2022, e, graças a vacina, teve sintomas leves.
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