3 minute read

DEPARAR COM A TRANSFORMAÇÃO NO PALCO – A ENCENAÇÃO MULTIMÉDIA DE KATIE MITCHELL

Transpor as fronteiras dos tempos, das épocas, das modas, dos continentes, das línguas, dos géneros, da ficção e da biografia, integrar a mudança incessante, tão importante no Orlando de Virginia Woolf, tudo isso constitui um enorme desafio para qualquer adaptação cénica. É claro que, num palco de teatro, nada é impossível: em 1989, Robert Wilson encenou o texto do romance como um monólogo da atriz Jutta Lampe com movimentos e imagens formalizados, fazendo com que os saltos temporais e de género tivessem lugar tão-só no texto e na mente do público. A encenadora britânica Katie Mitchell, que desde há muito vem colaborando com a Schaubühne, a companhia de teatro berlinense, adotou uma abordagem oposta juntamente com a sua equipa artística e o ensemble de atores.

Nesta produção, que se estreou no verão de 2019 e desde então tem integrado o repertório da Schaubühne, propusemo-nos dar visibilidade ao olhar que Orlando lança sobre as transformações que decorrem no mundo: mostrar o que se vai alterando na moda, na moral, na interação social e, sobretudo, a construção dos papéis do homem e da mulher também no palco. Às mudanças que têm lugar no texto do romance respondemos com uma encenação que segue a organização deste em capítulos, que narra a ação com recurso às técnicas do teatro e do cinema e, ao fazê-lo, está também ela própria a gerar constantemente uma mudança; cria ilusões e, ao mesmo tempo, revela-as como tal.

Advertisement

Para além dos atores e atrizes İlknur Bahadır, Philip Dechamps, Carolin Haupt, Isabelle Redfern, Alessa Schmitz e Konrad Singer – que interpretam, qualquer deles, qualquer das personagens do romance, sendo que homens interpretam homens ou mulheres e mulheres interpretam mulheres ou homens, e com quem Orlando, interpretado ou interpretada por Jenny König, contracena –, há no palco ainda vários operadores de câmara, bem como um operador de som que segura uma vara com o microfone. O cenário é o set de um filme, onde todas as noites decorrem ao vivo duas encenações: no palco assiste-se à presença tanto de atores e atrizes como daqueles que captam a imagem e o som. E, além destes últimos, vê-se ainda várias pessoas cuja função se vai tornando cada vez mais importante no teatro, ainda que costumem permanecer invisíveis: são elas que, em colaboração, constroem ao vivo, cena após cena, o filme. Os aderecistas movem uma cama de dossel para os aposentos do rei, montam um salão vitoriano com toalhas de mesa e serviço de chá, para logo após a filmagem voltarem a desmontá-lo; os técnicos de palco deslocam paredes, de modo a criar para a câmara a ilusão de novas salas, que logo de seguida farão desaparecer. Vários assistentes de guarda-roupa estão constantemente ocupados a ajudar atrizes e atores a vestir e despir as centenas de diferentes trajes históricos, sejam eles mantos, fraques ou crinolinas, enquanto maquilhadores arranjam os penteados, mudam as perucas e aplicam a maquilhagem correspondente ao vestuário.

Além disso, por vezes vários atores ou atrizes têm de interpretar outras personagens, por exemplo há alguém que para a câmara faz de duplo da mão de Orlando enquanto este muda de roupa para a sua próxima cena, num novo século, ou se apressa para o próximo plano. Uma coreografia repetida todas as noites, composta por milhares de pequenas ações individuais representadas diante da câmara, cria no ecrã de cinema acima do palco a ilusão perfeita de ação fílmica, essa mesma ação que é narrada pelo olhar de Orlando sobre a sociedade em mutação e os papéis de género que atribui. Técnicas digitais e analógicas surgem justapostas, são combinadas para criar a narrativa de vida de Orlando. Numa cabina de locução, à vista do público, Cathlen Gawlich empresta a sua voz à entidade que narra o romance. De vez em quando Orlando sai da personagem e a narradora trata de conduzi-la de volta ao seu lugar; depois assiste-se a fricções e desavenças, entusiasticamente disputadas entre a protagonista, Orlando, e a narradora, que imagina situações inaceitáveis para a sua heroína – como de resto ocorre entre Virginia Woolf e Vita Sackville-West. A transformação, mas também a noção das modas, dos conceitos morais e dos papéis de género como qualquer coisa criada pelo ser humano, qualquer desses aspetos percorre o romance como um motivo básico e encontra a sua tradução cénica numa produção teatral que combina a ilusão do filme digital com a produção analógica dos gestos em palco, tudo impregnado de muito humor britânico.

Nils Haarmann nasceu em 1983 em Essen. Na temporada 2009/10 foi assistente de dramaturgia na companhia berlinense Schaubühne am Lehniner Platz, onde desde a temporada 2010/11 é dramaturgo. Estudou Literatura, Teatro e Cinema em Mainz, Bochum, Nova Iorque e Paris. Foi bolseiro da Studienstiftung des Deutschen Volkes . Em 2008 foi visiting researcher na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e beneficiou de uma bolsa do Robert Wilson Summer Program. A par da sua atividade na Schaubühne, trabalha como tradutor e dramaturgo na França, na Bélgica e no Canadá.

This article is from: