ENCENAÇÃO KATIE MITCHELL
VERSÃO ALICE BIRCH
6 - 7 ABR
© Stephen Cummiskey
DE VIRGINIA WOOLF
Nils Haarmann
– A TRANSFORMAÇÃO COMO TEMA DE BASE
DO ROMANCE ORLANDO:
UMA BIOGRAFIA, DE VIRGINIA WOOLF
Uma heroína que nasce como herói ou um herói que se torna heroína. E será isso sequer relevante? Orlando percorre quatro séculos da história britânica e europeia da humanidade, vive na corte de Isabel I, apaixona-se desditosamente por uma princesa russa no decurso de uma festa dada por Jaime I sobre o Tamisa gelado. Tenta a sua sorte como escritor, torna-se embaixador de Carlos II em Constantinopla, regressa à Grã-Bretanha como mulher, escreve, promove festas ao longo do esclarecido século XVIII, tem relações amorosas com homens e mulheres, dediquem-se à prostituição ou sejam nobres, e na retraída era vitoriana casa-se com um homem. Homem, mulher – mas terá Orlando sequer de optar por um ou outra? Orlando é testemunha do processo de contínua mudança das pessoas, da natureza, dos sistemas e regimes políticos; presencia a constante alteração de usos e costumes, do que se espera de um homem ou de uma mulher, das noções do que é certo e do que é errado, dos temas a que um artista deverá dedicar-se, dos pensamentos que uma mulher poderá ter. Orlando vivencia o modo como o clima se vai transformando, tanto o meteorológico quanto o político, como o desejo e os papéis de género evoluem, Orlando observa as pessoas que consideram ser natural aquilo que, na verdade, foi feito pelo ser humano.
Mediante a sua biografia de Orlando, publicada em 1928, Virginia Woolf descreveu uma vida que, com ligeireza e liberdade artística, se esquiva a todas as categorias rígidas, que sempre se vai recarregando de significado ou se apresenta como fluida. Entretece, como que num jogo, a vida e a arte, a realidade e a ficção, de que resulta uma obra visionária. Cria um dos mais ambíguos heróis (ou heroínas) da história da literatura, cuja profusão de identidades explode qualquer atribuição de papéis mais acanhada, qualquer
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«THE CHANGE IS INCESSANT»
categorização mais inflexível. Em Orlando tudo é ficção, a biografia de Orlando é pura narração, invenção; contudo, o material a partir do qual Woolf tece o seu romance é a sua própria vida: o modelo para a fantástica personagem do romance foi Vita Sackville-West, aristocrata amiga e amante de Woolf, mas outras amigas e amigos, companheiros de jornada ou pessoas notáveis que realmente existiram, podem também ser reconhecidos numa ou noutra das figuras que povoam este romance. O pai de Woolf, Sir Leslie Stephen, era um intelectual famoso, editor do Dictionary of National Biography, pelo que o romance da filha – que capítulo após capítulo salta por cima dos séculos, das governações, dos continentes e das barreiras de género – adota o formato da biografia mas simultaneamente também o explora ad absurdum, constituindo assim uma análise da vida e do trabalho do próprio pai.
«The change is incessant» diz Orlando a dada altura. A mudança que não cessa, a transformação para lá de todas as fronteiras rígidas – também as que separam a arte e a vida –, eis os grandes temas do romance: tudo se altera de modo ininterrupto, só em Orlando mal se nota o avanço da idade. A personagem experimenta assim o que diferentes sociedades, em diferentes períodos da história, sem sequer o questionar, vivenciaram como natural – os usos e costumes, a gentileza, o amor, a sexualidade, o discurso sobre a arte; os papéis, os deveres e as proibições a que em diferentes épocas homens e mulheres estão sujeitos – e apercebe-se de que tudo isso é produto do ser humano. Até mesmo a natureza e o clima se encontram em constante mutação. Enquanto homem e enquanto mulher, Orlando pode em diferentes séculos adotar diferentes perspetivas sobre os privilégios e obrigações associados a cada uma dessas condições: tem pena de, sendo mulher, não poder já usar a espada, sente o aperto das crinolinas vitorianas como um tormento, não se vê levada a sério como anfitriã de salões e chás a que comparecem artistas e intelectuais masculinos famosos. Orlando chega à conclusão – inacreditavelmente visionária para a época em que se insere – de que todas as pessoas albergam em si aspetos masculinos e femininos, ora tendem mais para um género ora para outro, e no final do romance dá na sua vida expressão a ambos esses aspetos, de um modo completamente autodeterminado.
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DEPARAR COM A TRANSFORMAÇÃO NO PALCO – A ENCENAÇÃO MULTIMÉDIA DE KATIE MITCHELL
Transpor as fronteiras dos tempos, das épocas, das modas, dos continentes, das línguas, dos géneros, da ficção e da biografia, integrar a mudança incessante, tão importante no Orlando de Virginia Woolf, tudo isso constitui um enorme desafio para qualquer adaptação cénica. É claro que, num palco de teatro, nada é impossível: em 1989, Robert Wilson encenou o texto do romance como um monólogo da atriz Jutta Lampe com movimentos e imagens formalizados, fazendo com que os saltos temporais e de género tivessem lugar tão-só no texto e na mente do público. A encenadora britânica Katie Mitchell, que desde há muito vem colaborando com a Schaubühne, a companhia de teatro berlinense, adotou uma abordagem oposta juntamente com a sua equipa artística e o ensemble de atores.
Nesta produção, que se estreou no verão de 2019 e desde então tem integrado o repertório da Schaubühne, propusemo-nos dar visibilidade ao olhar que Orlando lança sobre as transformações que decorrem no mundo: mostrar o que se vai alterando na moda, na moral, na interação social e, sobretudo, a construção dos papéis do homem e da mulher também no palco. Às mudanças que têm lugar no texto do romance respondemos com uma encenação que segue a organização deste em capítulos, que narra a ação com recurso às técnicas do teatro e do cinema e, ao fazê-lo, está também ela própria a gerar constantemente uma mudança; cria ilusões e, ao mesmo tempo, revela-as como tal.
Para além dos atores e atrizes İlknur Bahadır, Philip Dechamps, Carolin Haupt, Isabelle Redfern, Alessa Schmitz e Konrad Singer – que interpretam, qualquer deles, qualquer das personagens do romance, sendo que homens interpretam homens ou mulheres e mulheres interpretam mulheres ou homens, e com quem Orlando, interpretado ou interpretada por Jenny König, contracena –, há no palco ainda vários operadores de câmara, bem como um
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© Stephen Cummiskey
operador de som que segura uma vara com o microfone. O cenário é o set de um filme, onde todas as noites decorrem ao vivo duas encenações: no palco assiste-se à presença tanto de atores e atrizes como daqueles que captam a imagem e o som. E, além destes últimos, vê-se ainda várias pessoas cuja função se vai tornando cada vez mais importante no teatro, ainda que costumem permanecer invisíveis: são elas que, em colaboração, constroem ao vivo, cena após cena, o filme. Os aderecistas movem uma cama de dossel para os aposentos do rei, montam um salão vitoriano com toalhas de mesa e serviço de chá, para logo após a filmagem voltarem a desmontá-lo; os técnicos de palco deslocam paredes, de modo a criar para a câmara a ilusão de novas salas, que logo de seguida farão desaparecer. Vários assistentes de guarda-roupa estão constantemente ocupados a ajudar atrizes e atores a vestir e despir as centenas de diferentes trajes históricos, sejam eles mantos, fraques ou crinolinas, enquanto maquilhadores arranjam os penteados, mudam as perucas e aplicam a maquilhagem correspondente ao vestuário.
Além disso, por vezes vários atores ou atrizes têm de interpretar outras personagens, por exemplo há alguém que para a câmara faz de duplo da mão de Orlando enquanto este muda de roupa para a sua próxima cena, num novo século, ou se apressa para o próximo plano. Uma coreografia repetida todas as noites, composta por milhares de pequenas ações individuais representadas diante da câmara, cria no ecrã de cinema acima do palco a ilusão perfeita de ação fílmica, essa mesma ação que é narrada pelo olhar de Orlando sobre a sociedade em mutação e os papéis de género que atribui. Técnicas digitais e analógicas surgem justapostas, são combinadas para criar a narrativa de vida de Orlando. Numa cabina de locução, à vista do público, Cathlen Gawlich empresta a sua voz à entidade que narra o romance. De vez em quando Orlando sai da personagem e a narradora trata de conduzi-la de volta ao seu lugar; depois assiste-se a fricções e desavenças, entusiasticamente disputadas entre a protagonista, Orlando, e a narradora, que imagina situações inaceitáveis para a sua heroína – como de resto ocorre entre Virginia Woolf e Vita Sackville-West. A transformação, mas também a noção das modas, dos conceitos morais e dos papéis de género como qualquer coisa criada pelo ser humano, qualquer desses aspetos percorre o romance como um motivo básico e encontra a sua tradução cénica numa produção teatral que combina a ilusão do filme digital com a produção analógica dos gestos em palco, tudo impregnado de muito humor britânico.
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Nils Haarmann nasceu em 1983 em Essen. Na temporada 2009/10 foi assistente de dramaturgia na companhia berlinense Schaubühne am Lehniner Platz, onde desde a temporada 2010/11 é dramaturgo. Estudou Literatura, Teatro e Cinema em Mainz, Bochum, Nova Iorque e Paris. Foi bolseiro da Studienstiftung des Deutschen Volkes . Em 2008 foi visiting researcher na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e beneficiou de uma bolsa do Robert Wilson Summer Program. A par da sua atividade na Schaubühne, trabalha como tradutor e dramaturgo na França, na Bélgica e no Canadá.
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© Stephen Cummiskey
DE VIRGINIA WOOLF ENCENAÇÃO KATIE MITCHELL VERSÃO
ALICE BIRCH
Sala Luis Miguel Cintra Quinta e sexta, 20h
Duração: 1h40; M/16; €12 a €15 (com descontos)
Em alemão, com legendagem em português
Encenação: Katie Mitchell; Cocriação: Lily McLeish; Interpretação: İlknur Bahadır, Philip Dechamps, Cathlen Gawlich, Carolin Haupt, Jenny König, Isabelle Redfern, Alessa Schmitz, Konrad Singer; Cenografia: Alex Eales; Figurinos: Sussie Juhlin-Wallen; Diretor de vídeo: Grant Gee; Vídeo: Ingi Bekk; Colaboração vídeo: Ellie Thompson; Música e Design de som: Melanie Wilson; Dramaturgia: Nils Haarmann; Desenho de luz: Anthony Doran; Traduzido do inglês por Brigitte Walitzek; Câmeras: Andreas Hartmann, Nadja Krüger, Sebastian Pircher, Christin Wilke; Perchista: Stefan Kessissoglou; Apoio: Friends of Schaubühne Berlin; Em cooperação com a rede europeia de teatros PROSPERO e com o apoio do Goethe-Institut
Coprodução: Schaubühne Berlin com Odéon – Théâtre de l’Europe, Teatros del Canal, Göteborgs Stadsteater/Backa Teater e São Luiz Teatro Municipal
Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Mediação de Públicos Téo Pitella Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Catarina Ferreira, João Romãozinho, Marta Azenha Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Cláudio Marto, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Rui Lopes Operação Vídeo Filipe Silva Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Camareira Rita Talina Bilheteira Diana Bento, João Reis, Pedro Xavier
6 e 7 abril 2023 teatro ORLANDO
teatrosaoluiz.pt
© Stephen Cummiskey