DU SUBLIME AU RIDICULE IL N’Y A Q’UM PAS.*
Napoleão Bonaparte
Noutros tempos os Programas de Teatro eram objectos que o público acarinhava e coleccionava, hoje vejo-os tristemente amarrotados pelo chão no final das sessões, por isso serei breve:
Embora a sua vida tenha sido dedicada a abrir caminho para a expressão da liberdade individual e artística da mulher, Isadora Duncan é mais conhecida pelos trágicos eventos que marcaram a sua vida e a sua morte. O afogamento dos filhos, nas águas do rio Sena, a sua morte violenta e espectacular estrangulada por uma écharpe nas rodas de um descapotável. Quando se fala do seu nome são esses eventos que são imediatamente citados. Quando perguntamos “sim, mas sabes quem foi?” as respostas deixam de ser precisas: - Foi uma escritora? Foi pintora? Era Fotógrafa? Boémia? Era meia maluca, não era? Uma espontânea? Um bocado bêbeda, decadente?
Foi criadora, aventureira, revolucionária, defensora ardente do espírito poético, da liberdade e dos direitos da mulher; pensadora dotada de lucidez crítica, originalidade e ousadia, pedagoga apaixonada, foi a pioneira da dança contemporânea, performer experimentalista que reclamava o seu lugar de artista e renunciava ao título de Bailarina. Chamaram-lhe “Dançarina dos pés descalços”, procurava uma nova dança baseada na natureza e nos movimentos naturais e espontâneos do corpo e da alma humanas.
Da leitura dos textos que nos deixou salta aos olhos uma personagem complexa e paradoxal, teórica da dança que abriu caminho para o movimento contemporâneo, inimiga declarada das rígidas formas do ballet, pedagoga engajada e altruísta, revolucionária de espírito crítico activo, comunista, livre pensadora apaixonada e sempre uma libertária incansável nas lutas contra o puritanismo e pelo espaço de expressão da liberdade, liberdade que conquistou e viveu.
Seguindo o itinerário proposto no poema Jogo Sensual no Chão do Peito, que Graça Pires escreve inspirada por Duncan, Isadora, Fala! não pretende ser um relato biográfico, mas poético, no qual se fundem as palavras de Isadora Duncan com os versos de Graça Pires e caminhamos sem a prisão da cronologia pelos temas fundamentais que Isadora enuncia nos seus textos e cuja ressonância identificamos no discurso actual. São palavras com mais de 100 anos, escritas por uma mulher excepcional, mas que poderiam ainda hoje ser ditas por qualquer uma de nós.
O espectáculo quer-se um espaço de memória e um espaço de intervenção onde se estabelece o diálogo entre o discurso em defesa da liberdade de ontem, de hoje e de sempre.
* Do sublime ao ridículo só vai um passo.
As autoras escrevem segundo a antiga grafia
Eugénia Vasques
UMA BANDEIRA RUBRA
Talvez eu esteja a tornar-me uma bolchevique. Mas toda a minha vida quis ensinar crianças, ter escolas gratuitas e um teatro gratuito.
O espectáculo de Rita Lello, Isadora, Fala! é uma criação de vozes sobrepostas que reivindica o corpo de mulher como pauta e como “lugar de fala”, como se enuncia actualmente este argumento de autoridade. Fundado no poema auto-épico de Graça Pires Jogo Sensual no Chão do Peito (Labirinto, 2020), texto permanentemente “boicotado” pela intervenção de falas directas de Isadora Duncan (1877-1927) retiradas da sua obra escrita, este espectáculo, muito íntimo, propõe-nos um mergulho num teatro da palavra que é mediado pelo gesto e pelo movimento (coreógrafa Amélia Bentes) inscritos, num programa de sugestões e de impressões, no espaço cénico polivalente.
Inspirado em passos da biografia da artista norte-americana que simbolizou a utopia da libertação do corpo da Humanidade pela dança natural, sob o signo da Grécia Antiga e da Música, e que lutou pela libertação do corpo das mulheres das barbas de baleia e das normas antinaturais da sociedade, o trabalho de Rita Lello propõe, por sua vez, sob o manto aparentemente diáfano das cortinas e da luz, um manifesto subtil sobre a condição de artista, da mulher-artista, aqui, na nossa contemporaneidade amordaçada pelo capitalismo sangrento.
“As memórias são menos tangíveis do que os sonhos. Para mim é bem certo que muitos dos sonhos que sonhei me parecem mais vivos e reais do que as minhas recordações. A vida é um sonho, e é bom que assim seja pois de outro modo como poderíamos sobreviver?”
“Persegue-se um ideal, dedica-se-lhe a vida e pode enlouquecer-se nesse processo – e contudo, que mais existe? Nada, a não ser os ideais. Tudo o resto é como comer uma boa refeição, ficase satisfeito e pronto.”
“O mundo é educado com mentiras, somos nutridos de mentiras. Começam a mentir-nos quando nascemos e pelo menos metade da nossa vida é vivida na mentira. As pessoas, na sua maioria, desperdiçam 25 ou 30 anos das suas vidas até conseguirem libertar-se das mentiras e do convencionalismo que as cercou.”
“Muitos acreditam, aparentemente, que a vida não passa de um encadeamento de hábitos extremamente aborrecidos a que chamam virtudes. A vida não se pode acorrentar a cadeado. A vida é uma experiência, uma aventura.”
I.D.
Amélia Bentes
A REALIDADE É O GESTO VISÍVEL DAS MÃOS INVISÍVEIS DE DEUS.
Fernando PessoaPara Isadora, a dança do futuro expressaria os mais altos e belos ideais da humanidade. O gesto como uma reverência ao belo, ao divino e à liberdade. O renascimento da dança, um conceito de vida mais livre, mais harmonioso, mais natural. A dança da alma: os verdadeiros movimentos não são inventados, mas sim descobertos.
“A vocação de Isadora enchia toda a sua vida. A dança não supunha um entretenimento, nem uma diversão, mas uma religião, uma expressão da vida, entendendo a vida como raiz e a arte como flor”.
Ana Porteiro GómezProcurei complementar o discurso e introduzir camadas de diferentes dimensões poéticas, enriquecendo o território emocional e verbal da Rita Lello.
O movimento é um mapa emocional que liga todo o sentir da peça. Trabalhámos com os gestos e ao mesmo tempo com a sua destruição, para criar corporeidades divergentes.
Um processo que acontece no corpo da Rita, uma força interior a vir à superfície, estando implicado o corpo no seu todo, perfeito instrumento que expressa esta harmonia do fluir.
“Quer parecer-me que, se a cerimónia do casamento é necessária para assegurar a indispensável protecção e educação dos filhos, isso quererá dizer que a mulher se casou com um homem que suspeita vir a recusar, em determinadas circunstâncias, a responsabilidade e a obrigação de cuidar de todas as necessidades dos seus filhos. Essa mulher celebra, portanto, um contrato desprezível. Casa-se com um homem que já suspeita, desde o início, ser um miserável vilão.”
“É preciso fazer desaparecer esta coisa detestável a que chamamos “meiaidade”. As mulheres, se quiserem, podem ser a prova viva da vitória da mente sobre a matéria.”
“Odeio dançar, sou uma Expressioniste da Beleza. Uso o meu corpo como um meio, tal como um escritor usa as palavras. Não me chamem dançarina.”
I.D.
“Parecia-me que os directores de teatro eram incapazes de compreender a minha arte ou de entender de que modo as minhas ideias poderiam ser benéficas e vantajosas para as suas produções. É uma incompreensão muito estranha se atendermos ao número de más imitações das minhas danças que apareceram nas produções de Reinhardt, Gemier e de outros representantes da vanguarda do Teatro.”
“Se eu fosse apenas bailarina não falava, mas sou uma professora com uma missão.”
“O que mais me interessa no mundo é a educação das crianças. Todos os problemas podem ser resolvidos se começarmos pelas crianças.”
“Nunca ensinei passos aos meus alunos. nunca aprendi técnica nenhuma. Ensinei-lhes a comunicar com o seu Espírito, tal como eu fiz com o meu. A arte não é senão isso.”
“Os meus três anos passados na Rússia valeram todo o resto da minha vida. Lá atingi a mais alta realização do meu ser. Nada é impossível naquele grande e estranho país.”
“A América foi fundada por um punhado de bandidos, de aventureiros, de puritanos e pioneiros. Hoje quem tem a melhor mão são os bandidos.”
“O meu empresário diz-me que se continuo a fazer discursos mato esta digressão. Muito bem, está morta a digressão. Vou voltar para Moscovo onde há vodka, música, poesia e dança. Ah.... é verdade, e liberdade.”
I.D.
ELES E ELAS
OUTRAS PERSONAGENS DO DRAMA
(por ordem de entrada em cena)
Mary Isadora Gray (1849 - 1922) Professora de piano e costureira norte-americana.
John Augustin Daly (1838 - 1899) Crítico, encenador, dramaturgo e adaptador norte-americano. Director e fundador dos Daly’s Theatre de Nova Iorque e de Londres.
Ellen Terry (1847 - 1928) Actriz inglesa.
Ethelberth Nevin (1862 - 1901) Músico e compositor norte-americano.
Victorien Sardou (1871 - 1908) Dramaturgo francês.
Matilda Felixovna Kschessinska – (1872 - 1971) Polaca. Prima Ballerina do Teatro Imperial de S. Petersburgo.
Edward Gordon Craig (1872 - 1966) Actor, Cenógrafo e Encenador Inglês.
Deirdre Beatrice Duncan Craig (1906 - 1913)
Patrick Augustus Duncan Singer (1910 - 1913)
James Henry “Henner” Skene (1877 - 1916) Pianista inglês.
Paris Singer (L. ou Lohengrin) (1867 - 1932) Milionário herdeiro do império Singer.
Eleonora Duse (1858 - 1924) Actriz italiana.
Sergei Yessenin (1895 - 1925) Poeta russo.
Anna (Denzler) Duncan (1894 - 1980) Isadorable. Bailarina Suíça.
Maria-Theresa (Kruger) Duncan (1895 - 1987) Isadorable. Bailarina alemã.
Irma (Erich-Grimme) Duncan (1897 - 1977) - Isadorable. Bailarina alemã.
Elizabeth “Lisa” (Milker) Duncan (1898 - 1976) – Isadorable. Bailarina alemã.
Margot “Gretel” (Jehl) Duncan (1900 - 1925) – Isadorable. Bailarina alemã.
Erica “Erika” (Lohmann) Duncan (1901 - 1984) - Isadorable. Bailarina alemã.
Bibliografia:
Os excertos de textos de Isadora Duncan que integram esta folha de sala foram recolhidos e traduzidos das seguintes obras:
DUNCAN, Isadora
Isadora Speaks, org. pref. Franklin Rosemont, 1983, S. Francisco, EUA, City Lights Boooks, 2ª edição.
DUNCAN, Isadora
A Minha Vida, trad. José Domingos Morais, 2018, Lisboa, Portugal, Sistema Solar.
31 maio a 9 junho 2023 teatro / estreia
ISADORA, FALA!
RITA LELLO
Sala Mário Viegas
Quarta a sábado, 19h30; domingo, 16h Duração: 1h (aprox.); M/12 €12 (com descontos)
4 junho, domingo às 16h e 9 junho, sexta, às 19h30
Criação e Interpretação: Rita Lello; Assistente de Encenação: Rute Miranda e Vitória Nogueira da Silva; Texto: Rita Lello (a partir de Jogo Sensual no Chão do Peito de Graça Pires e de palavras de Isadora Duncan);
Dramaturgia: Rita Lello com Eugénia Vasques; Movimento: Amélia Bentes; Sonoplastia: Indigo Estúdios, Manuel Faria; Figurino: Dino Alves; Costureira: Francisca Oliveira; Desenho de Luz: Vasco Letria; Tradução dos poemas para LGP: Sandra Faria; Vídeo: David Medeiros; Fotografia: Ricardo Rodrigues; Carpintaria: Madeiras Ascenso; Mestra Costureira: Elza Ferreira; Apoio à Produção: Rute Miranda e Teresa MelloSampayo; Comunicação: Raquel Guimarães; Apoios: Fundo Cultural SPAutores, CAM (Centro de Artes de Marvila), Trajetória Primordial - Associação Cultural e Teatro Meridional.
Coprodução: Rita Lello e São Luiz Teatro Municipal
Agradecimentos: Nélia Pinheiro, Natália Luiza, Susana Monteiro, Rita Salema, Grupo de Acção Teatral A Barraca.
Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Mediação de Públicos Téo Pitella Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Catarina Ferreira, João Romãozinho, Marta Azenha Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Cláudio Marto, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Rui Lopes Operação Vídeo Filipe Silva Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Camareira Rita Talina Bilheteira Diana Bento, João Reis, Pedro Xavier