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BEATRIZ BATARDA

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BRUNO NOGUEIRA

BRUNO NOGUEIRA

Quando, em 2011, fui convidada pela Aida Tavares para encenar um espectáculo a partir de textos do clown Karl Valentin, que contaria com a interpretação da Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigida pelo Maestro Cesário Costa, e do humorista e actor Bruno Nogueira no papel de Valentin, interessou-me particularmente a oportunidade de juntar à música o teatro físico e das palavras, para evidenciar uma crítica social e política. Intuía que esta crítica não se faria unicamente na constatação, antes através de uma interpretação da minha contemporaneidade capitalista debaixo do escrutínio da Troika. Durante o período de pesquisa, os nomes dos anti-capitalistas Erwin Piscactor, Bertolt Brecht e Kurt Weill assaltavam o meu imaginário, assim como as ilustrações satíricas de Georg Grosz e o teatro resultante do horror vivido nas trincheiras da Grande Guerra 1914-18. Desenharam-se jogos de luz e sombra de objectos metálicos e um “homem voador” ao som de música do séc. XIX; os figurinos das actrizes (Luísa Cruz e eu), remetiam para os anos convulsos da República de Weimar em que, depois de se ver o valor da vida reduzido a nada, o erotismo surgia como um antídoto para a morte. Nesse ambiente íntimo e misterioso, entre plumas azuis e meias altas de seda magenta, cantava-se e dançava-se ao sabor do estilo cabaret, como se de uma promessa de melhores dias se tratasse.

Hoje, contam-se cem anos desde que o Dadaísmo e o Surrealismo irrom- piam para questionar as fronteiras entre a sociedade normativa, aquela de que nos fala a narrativa oficial, e o mundo real, onde a desconformidade e o acaso determinam a sua lei. Entre essas fronteiras, na terra de ninguém, nascia o intervalo cómico explorado por Karl Valentin nos acidentes da linguagem, que davam a ver as sobras do mundo ocidental depois de atravessar uma crise económica, uma Grande Guerra, uma pandemia causada pelo influenzavírus A (H1N1), e em vésperas da ascensão do Nazismo. É no rescaldo de outra pandemia causada, desta vez, pelo coronavírus (Sars-Cov-2), inquietos com o anúncio do avanço da maior recessão global desde a Grande Depressão, que assistimos a estranhas movimentações do mundo que geram fluxos incertos. A nossa contemporaneidade impacienta-se na urgência de encontrar novas formas de abordar a vida no planeta, novas formas de organização social e económica, e exigem-se reajustes profundos que vão desde a revisão do uso das palavras à abolição da energia fóssil. É nos curtos intervalos de correntezas como estas, em que o medo e o ressentimento ganham protagonismo, que nos agarramos ao humor para ultrapassar o que nos assusta e reflectir, brincando, sobre a natureza do permanente desarranjo do mundo e das suas questionáveis divisões.

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Talvez seja esta última, a primeira das razões que fizeram com que quisesse revisitar A Bizarra Salada. Até porque, se desistir de afilar a crítica social e política sem condescendência, estarei a falhar naquilo que considero a primeira responsabilidade do artista, a de fazer uso da liberdade. Outra das razões, talvez a mais próxima, será a de ver em cada encenação a possibilidade de encontro com pessoas que admiro, cuja abordagem ao trabalho me devolve um sentido de pertença, e com quem gosto de pensar. Passados 12 anos da primeira versão deste espectáculo, volto a cruzar-me com Aida Tavares, Tiza Gonçalves, Hernâni Saúde, João Santos, Marta Pedroso, Ana Cristina Lucas, e restante equipa do São Luiz com quem trabalho desde 2007; e claro, com o Maestro Cesário Costa, João Pires, Artur Raimundo, e a Orquestra Metropolitana de Lisboa, da qual destaco os cúmplices Ana Pereira, Ana Claúdia Serrão, Inês Marques, Janete Santos, Joana Cipriano, Joana Dias, Jorge Camacho, João Moreira, Irma Skenderi e Sérgio Charrinho. Revê-se a cor das imagens com o Nuno Meira, com quem colaboro desde 2008. Ajusta-se com o Cesário Costa a escolha da música, mantém-se Lisboa será Sempre Viena, de Tiago Derriça, Contos de Hoffmann, de Jacques Offenbach, Poeta e Aldeões, de Franz von Suppé, The Merry Wives of Windsor, de Otto Nicolai, Valentin Canta e Ri, de Paulo Brandão, e junta-se Concerto para Flauta e Cordas, de Anne Victorino d’Almeida.

Neste encontro, reúnem-se todas as vontades para que este espectáculo –que parece mais fácil do que é – dê lugar ao rigor e à leveza – essenciais aos tempos na música e de comédia – e assente à medida nos seus talentosos intérpretes, Bruno Nogueira e Rita Cabaço.

Sabendo que é verdade que, dependendo das épocas, o humor e a sátira adoptaram diversas expressões, podendo ser tristes ou feéricos, solitários, poéticos, filosóficos, críticos, absurdos ou surrealistas, os nossos dias parecem-me ser dias de misturas porque, afinal de contas, nada é fixo ou constante. Partimos de um ensaio/concerto que é interrompido por palavras que pouco ou nada acrescentam, a não ser a frustração colectiva de não se conseguir andar para a frente. A orquestra, um corpo social complexo – também ele mais problemático do que possa parecer – assume aqui o lugar de protagonista, enquanto metáfora para a organização do mundo e das suas perplexidades. Escreve-se “com mãos em lágrimas” uma carta de amor não correspondido e assiste-se à dor provocada pelos desencontros, tão difíceis de compreender e, pior, de aceitar. Com a guerra espalha-se a inflação e normaliza-se a escassez, recorre-se à economia da troca por troca, perdem-se, entre outras coisas, as nuances dos sabores e as receitas mais se parecem com ajuntamentos de incomestíveis. Da fumaça e dos vapores, regressa uma promessa de salvação, para um animal de estimação e para o riso, e também para o eco das reivindicações do direito à festa. Na rua, passam as vidas que correm, “bicicletas, pessoas, gente, público, transeuntes, uma grande multidão” composta por pessoas de muitas cores e feitios, diferentes ou não, mas todas bizarras à sua maneira, iguais nos seus direitos e responsabilidades. No teatro, passa por nós um desfile de Carnaval que interrompe a música e as palavras, é mais uma vez Valentin a desconversar, a criar confusão como manobra de confronto com a opressão do quotidiano. Convoca-se para a festa uma orquestra em convulsão, uma maestrina em esforço, um músico especialista no boicote, mais “dois rolos de serpentinas a guarnecer as terrinas, vinha-d’alhos de oito dias com ensopado de enguias, tinta de óleo marinada, dois ratos de caldeirada, mexe-se bem com a colher, tudo isto que disse e mais se houver”. É a receita de Outra Bizarra Salada, coma-a toda e não deixe ficar nada.

Antes que se encerrem as contas, quero ainda agradecer às Causas Comuns o carinho com que abraçaram a Offkey Produções neste projecto, e ainda ao amigo José António Tenente, Glória Rosa, Marta Levezinho, Patrícia Dória, Teatro do Bairro, São Luiz Teatro Municipal e Orquestra Metropolitana de Lisboa. Agradeço em especial, a alegria dos “transeuntes” que entenderam que era o seu lugar dar resposta a esta convocação pelo direito à festa. Por fim, agradecemos a dedicação das instituições ACT- Escola de Actores, Companhia Maior, Associação para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo, Associação de Pais 21, Associação Salvador, Associação Semear, Casa da Estrela, Casa da Praia, Aldeia S.O.S..

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