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ORTON, AINDA?

por Jorge Silva Melo*

Um sofá no meio do palco, porta à esquerda e à direita, janelas. O teatro de Joe Orton baseia-se no cenário da comédia de salão, com as suas estatuetas, jarras de flores, escadas, andares de cima, bules de chá e portas de cozinha. As suas cenas estruturam-se a partir das entradas e saídas justificadas em cena: portas que se abrem, campainhas que tocam, automóveis que se aproximam e se afastam como no final de O Nosso Hóspede. Orton não dispensa nenhum dos adereços do cenário da comédia de boulevard que fez o negócio do West End e da Broadway. Até a lareira lá está - e os biombos para as actrizes mudarem de roupa em cena.

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O famoso episódio da prisão de Joe Orton por ter trocado as capas dos livros que ia solicitando às bibliotecas públicas é uma cena-mãe de todo este seu processo a que chamaremos pop para não chamarmos pós-moderno: Orton gosta das instituições, aceita-as, mas diverte-se, como qualquer miúdo, a pintar-lhes bigodes na cara, a pôr cornos na testa. Precisa da estrutura convencional da peça-bem-feita, três actos, exposição, crise, desenlace, precisa de personagens com características fortes com que possa desenhar o seu inferno sarcástico e escatológico.

Não é por acaso que Terence Rattigan, o mais famoso dos autores das peças bem feitas que, entre os anos 40 e 50, fizeram estremecer os corações do West End (O Profundo Mar Azul que ao

Portugal dos anos 60 trouxeram Tônia Carrero e Paulo Autran) saudou a qualidade teatral de O Nosso Hóspede. Não é por acaso que actores tão convencionais como Kenneth Williams, Leonard Rossiter ou o genial Ralph Richardson aceitaram entrar em peças de Orton, nelas brilharem e as defenderam mesmo quando fracassaram na bilheteira. É que o seu teatro é teatro tal como os outros, teatro-teatro de levantar o pano e ficar por ali. Também por cá foi estreado pela Laura Alves...

“A construção de Orton é admirável” dizia-me no outro dia Enda Walsh quando lamentávamos o progressivo esquecimento a que a sua obra se reduz sobretudo nos teatros anglo-saxónicos. “Não sei se poderá voltar” concluía John Tiffany.

É que aquilo que Orton fez à comédia de trocadilhos, meter veneno dentro dos bombons, insinuar desejo, fazer levantar-lhe o pirilau é agora o que a televisão, sobretudo britânica e pós Monthy Python vem fazendo nas suas séries de comédia.

Nada mais significativo do que o facto de Mark Ravenhill (o de Shopping and Fucking) ter sido recentemente convidado para adaptar para uma série de televisão (Clube de Cavalheiros) o argumento que Orton escreveu para os Beatles e que nunca chegou a ser filmado.

É na televisão que a desordem catastrófica de Orton encontrou lugar. E nos palcos do teatro há muito tempo que não víamos um sofá bem no centro e portas a abrir e fechar. O teatro de Joe Orton ainda é possível nos teatros? Alguém que queira a ordem da sala de estar ainda lhe aceita o infernal enxofre? E vice-versa: alguém que desistiu da visão do mundo da burguesia com os seus casamentos e rendas ainda aceita sentar-se diante de uma sala de estar?

Se na Alemanha assistimos a um renascimento das suas peças é também porque na convenção germânica, o explícito ganha terreno. Mas pode Orton ser explícito? Ou o seu jogo não é precisamente entre o não-dito e o excessivamente dito? Aguentam-se as suas personagens com os rabos à mostra que são a tendência unívoca do teatro alemão? Ou perdem assim a sua perfídia?

É que é de perfídia que se trata, uma perfídia deliciosamente pop. Corresponde a certos movimentos do seu tempo, aos avanços de Billy Wilder pela mais ordinária comédia (Beija-me Idiota), às latas de sopa Campbell, aos cartazes de cinema revisitados por Paladino, às tentativas de aceitar as imagens do mundo burguês com os seus esconderijos e mortais ratoeiras?

Foi essa a deriva inicial de Almodovar. Em filmes como À Beira de Um Ataque de Nervos, lá temos a sala de estar, as portas, os comportamentos excessivamente burgueses dentro de um código que é esquartejado e retalhado até ao riso final. Mas também Almodo- var se vem afastando deste meta-teatro à medida que Douglas Sirk ou Ingmar Bergman lhe dominam o pensamento. Falamos de corrosão, de veneno, de ácido, de tanta amargura em Joe Orton: é esquecer-lhe a ternura. A ternura com que olha para a envelhecida Kath, tão sozinha, tão presa, tão frustrada, tão sonhadora; e como o seu desejo atravessa o palco numa ingenuidade fresca, tão tocante. É com certeza um dos grandes papéis inventados para uma actriz madura, regido pelos tempos dos estereótipos, pelas obrigações do género (a que não falta a cena de sedução com o deshabillé), mas onde paira uma imensa melancolia, uma frustração como a das heroínas sedentas de Tennessee Williams. A melancolia das vidas esquecidas dentro deste também jardim zoológico que não será de cristal, mas de papel de parede comprado em saldos.

Ainda é possível este discurso de Orton? Ainda nos fala de hoje? Ou os seus pressupostos mataram-no? Agora que já não há a visão do mundo que todas as noites subia à cena no boulevard ainda conseguimos encontrar a perversão nesta caçada infernal?

Ou parece que não, que foi tudo tão longe, noutro século?

* Texto retirado da revista semestral Artistas Unidos, novembro de 2004, número 12, pág. 27 (redigido segundo a antiga grafia)

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