REVISTINHA PULP #3 - ALIENS

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Associação Cultural Teatro de Apartamento Gisele Guedes Presidente Imagem de Capa: Designed by Freepik Revisão de Originais Flávio Ramos Moreira Saulo A. Sisnando Revisão Ortográfica: Ábia Costa O Teatro de Apartamento é uma Associação Cultural sem fins lucrativos sediada em Belém do Pará e voltada para a divulgação da arte brasileira e regional.

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Todos os direitos autorais das obras reservados aos autores, que apenas autorizaram a publicação nesta coletânea.

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SUMÁRIO Rebobine antes de devolver

Saulo A. Sisnando ................................................................................................ 5 Escamas Andrei Simões .................................................................................................... 18 O arranha-céu Flávio Ramos Moreira ....................................................................................... 24 O início do fim Fábio de Andrade ............................................................................................... 35 A cabra na estrada Lenmarck .......................................................................................................... 40 Em busca de um significado Giuliana Murakami ............................................................................................ 47 Plutão ainda é planeta Breno Torres ..................................................................................................... 54 Corpo Estranho Clara Gianni ...................................................................................................... 63 SOBRE OS AUTORES: ...............................................................................................70

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Saulo A. Sisnando Já começo esta narrativa afirmando que – embora os fatos descrevam a mais profunda verdade – será difícil de acreditar. A televisão, o rádio e até as redes sociais já negaram veemente os acontecimentos a seguir descritos. Mas peço que acreditem, pois eu estava lá, e afirmo, sem medo de errar, que o verdadeiro início do fim ocorreu em meados de 1994, quando Lili – uma jovem e agitada garota de 13 anos – deslizou a porta de vidro para a direita e entrou naquela videolocadora. À sua frente, uma verdadeira visão do paraíso. Dezenas de pôsteres de filmes americanos enchendo as paredes, centenas de fitas VHS organizadas lado a lado em prateleiras perfeitamente simétricas e, bem ao fundo, descansando no topo da alta prateleira de vidro atrás do balcão, estava a peça mais importante daquele universo: a cópia de “O Parque dos Dinossauros”. Como era míope e quebrara os óculos uma semana antes enquanto jogava futebol, Lili espremeu as pálpebras para aprumar a vista e conseguir ler o que dizia um papel grudado à fita. “REZERVADO”. Sim! Estava escrito com Z, porque muitas vezes as pessoas que gostam de filmes não gostam de livros. Seu coração tremeu. – Chegou a minha vez! – O sangue pulsou quando o pensamento correu pelo cérebro. A menina apressou o passo e, nervosa, parou em frente ao balcão, procurando alguém para atendê-la. Mas ninguém estava lá.

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O coração estava a mil por hora. Nem acreditava que, finalmente, depois de enfrentar uma fila de quase duas dezenas de nomes, conseguiria levar para casa e assistir quantas vezes quisesse “O Parque dos Dinossauros”. Era felicidade demais para uma existência só. Uma fila que, por sinal, durou quase um mês, já que a Dona Gilca – aquela velhota gorda cheia de gatos – atrasou uma semana para devolver o VHS e, quando devolveu, ainda disse – conforme as palavras do Thiago, aquele atendente fã de Van Damme – que achou o filme simplesinho demais e preferira os efeitos especiais dos filmes do Simbad. Se a Lili estivesse perto de Dona Gilca quando falou essa aberração, daria sem arrependimentos um chute certeiro na canela. Mas que atrevimento comparar a maior bilheteria da história do cinema, com um filmezinho de quinta categoria com efeitos em stop-motion. Devia ter uma lei proibindo anciãos locarem filmes do Spielberg. Lili deu um salto e debruçou-se sobre o balcão, tentando alcançar sem sucesso o sino de mesa. Como era muito pequena, ficou com os pezinhos – calçados nos tênis brancos do colégio – balançando sobre o chão e gritou um sonoro “ei!” em direção a uma porta que ficava ao fundo. Poucos segundos depois, a porta abriu-se e ela gelou ao ver que não era o Seu Moacir – o dono da locadora – quem chegava, mas o Fox... Aquele bonitão que fazia bico como atendente e estudava na mesma escola dela, mas já estava 8.a série. Claro que o nome dele não era Fox – quem, em Belém do Pará, teria um nome desses nos anos 90? –, porém todo mundo no colégio o chamava assim, porque, apesar da idade, ele dizia ter uma raposa tatuada no braço esquerdo. Todos sabiam que aquela história era mentira, pois corria a boca miúda que a raposa tinha sido feita ali na Nove de Janeiro, num estúdio especializado em tatuagens de Henna. Mas, como ele era o galã do colégio, todos fingiam acreditar na lorota, mesmo após ele tirar a camisa naquele clássico jogo de espiribol e a turma inteira perceber que a raposa tinha mudado de braço. A Roberta – fofoqueira mais temida da 8.a série – disse para Lili que a raposa foi relocada por causa da vacina de pistola que ele precisou tomar. Parado em frente à menina, ele começou: – Em que posso ajudar?

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Num movimento rápido, Lili desceu do balcão, engoliu o chiclete e quis parecer mais madura, ajeitando os cabelos curtos atrás das orelhas. Ele, no entanto, nunca a perceberia, não por ser feia... ela não o era. Mas por ser deveras “esquisita”. Usava uns shorts largos, umas camisas quadriculadas, andava de skate e ouvia músicas do Kurt Cobain. – Me ligaram ainda há pouco, dizendo que minha reserva tinha chegado. – Quem ligou? Neste momento, Lili percebeu a voz de Fox um pouco estranha. Ele falava com um ritmo monótono e letárgico, bem diferente daqueles gritos viscerais e másculos que ele dava cada vez que vencia no espiribol. – Não sei. Acho que foi o Thiago. De uma maneira robótica e muito estranha, Fox começou a remexer em um caderno de anotações que ficava ao lado do computador. – Como é seu nome mesmo? O coração de Lili despedaçou-se. Tudo bem que rapazes da 8.a série não davam bola para meninas da 7.a, mas não saber o seu nome já era demais. Lembrava-se muito bem de quando ela saiu do banheiro das meninas e ele estava no bebedouro e, sem segundas intenções, esbarrou nele e ouviu um: “desculpa, Lili”. Sim... Lili! Ele falou o nome dela! Por que agora não se lembrava de nada? – Meu nome é Marta, mas todo mundo me chama de Lili. Ele remexeu no caderninho, sem parecer se importar com coisa alguma. – Não tem nenhuma anotação aqui nem para Marta nem para Lili. A menina continuou achando a situação bastante insólita. Seu nome era sempre um tiro certo para puxar conversa, todo mundo se espantava ao saber que Lili na verdade se chamava Marta. Mas, daquela vez, Fox não esboçou qualquer reação. Permaneceu robótico, com um sorriso tolo no rosto, remexendo no livrinho azul com a Família Dinossauros na capa. – Qual o nome do titular da inscrição? – Ah, sim, claro. Deve estar no nome da minha mãe. O nome dela é Conceição, mas todo mundo chama ela de Fafá. Ele continuou mexendo nas anotações, sem encontrar nada.

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Para controlar um pouco a ansiedade, a menina afastou-se do balcão e passeou pelas prateleiras mais próximas. Ela começava a sentir “O Parque dos Dinossauros” cada vez mais distante de seu televisor. Espiou os lançamentos do mês – todos já vistos, obviamente – e quando voltou a vista para Fox, na esperança de que ele tivesse finalmente encontrado seu nome nalgum papel velho, percebeu que ele estava congelado, abrindo e fechando a capa do caderninho, como se estivesse num loop eterno... Exatamente como uma fita enrolando no videocassete. – Você está bem? – ela falou, aproximando-se. Mas ele não estava nada bem. De perto, Lili percebeu que seus olhos se reviravam e os lábios batiam um no outro num tremelique estranho, balbuciando fonemas sem sentido. Lili segurou as mãos dele e, encarando-o no rosto, falou quase gritando: – Fox, você está bem? Você está me assustando! Ele afastou-se da garota e, no pequeno espaço do balcão, enrijeceu-se. Os dedos de sua mão entortavam-se como garras e os músculos de seu rosto se contorceram, tornando-o uma criatura horrenda. Ele começou a se balançar de um lado a outro como um robô em curto-circuito. Sua cabeça pendeu num repetido tique nervoso, seus olhos reviravam-se e seu braço fisgou repetidas vezes. Num determinado momento, conseguiu levar a mão até o pescoço como se quisesse arrancar alguma coisa invisível. Quando ela estava pronta para sair correndo em busca de ajuda, os movimentos dele subitamente voltaram ao normal. Seus olhos pararam de rodopiar, seus lábios silenciaram e, como se nada tivesse acontecido, ele falou: – Desculpe, mas o que estamos procurando mesmo? Lili suava por dentro. Seus olhos queriam explodir em lágrimas após aquele susto. Mas agora, finalmente, estava tudo bem. Exceto, é claro, pelos olhos... Diferente de quase todos os alunos do colégio, Fox tinha claríssimos olhos azuis... às vezes verdes, de acordo com a luz... e eram seu maior charme. Porém, hoje, diante de Lili, naquela locadora, uma coisa estava diferente: suas pupilas estavam rasgadas em fenda, como as de um gato. Foi então que a porta ao fundo novamente se abriu e o Seu Moacir entrou apressado e tentando parecer calmo. Colocando a mão no ombro de Fox, ele disse:

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– Você está muito cansado, amigo. Melhor repousar um pouco. Fox abaixou a vista como se estivesse com medo, sussurrou algo – talvez um “me desculpe” – e saiu da sala. Seu Moacir abriu um vasto sorriso e olhou para Lili. – Lili, que bom que você recebeu meu recado. Seus desejos foram atendidos, chegou a sua vez de locar “O Parque dos Dinossauros”. Embora ainda estivesse nervosa, Lili quis convencer-se de que aquelas pupilas felinas nunca existiram. Ora, ela quebrara os óculos e sua miopia era altíssima... Fora nada além de uma impressão errada sobre os olhos de Fox. Era apenas isso! Tinha de ser apenas isso! – Qual é o número da sua inscrição? Ela ficou calada, ainda tentando trazer a calma de volta ao seu corpo. Mas era difícil, sobretudo porque Seu Moacir não parava de abrir aquele enorme sorriso para ela, o que o deixava ainda mais horroroso. O dono da locadora era feio que dava dó. Alto, com uma enorme corcunda e longos braços de mãos ossudas e dedos compridos. A boca enorme e enviesada para baixo o deixava com um aspecto de lagartixa e a pele, com minúsculas brotoejas, não ajudava a melhorar seu aspecto. – Ora, Lili, é claro que eu sei o seu número de cor, você é uma de nossas clientes mais importantes. Seu Moacir puxou um bloquinho e escreveu o nome do filme e o número da inscrição. – Vai locar mais alguma coisa? Dona Gilca ficou de devolver “Free Willy” hoje à tarde. Você não quer esperar? – Não, obrigada. Odeio baleias. – Tudo bem. Ele colocou a fita dentro de uma sacola plástica e, quando Lili abriu a porta para sair, ele falou: – Vai assistir ao filme sozinha? Dizem que dá muito medo. – Não, não. Vou chamar o Kleber para assistir comigo! – Ótimo. Quanto mais gente, melhor. – Ele levantou a mão para acenar e balançou aqueles dedos ossudos na direção dela. – Até logo, menina, não esqueça de rebobinar antes de devolver.

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Duas horas depois, Lili nem recordava mais de Fox e seus olhos com fendas felinas. Sentada na sala de sua casa, ao lado de seu amigo Kleber, eles só conseguiam pensar em “O Parque dos Dinossauros”. A mãe estava na cozinha preparando algo para comerem, mas de olhos bem atentos no que acontecia na sala ao lado. Pois, embora tivesse desconfiança certeira de que os interesses de Kleber eram mais em meninos do que em meninas, é sempre melhor prevenir do que remediar. Aliás, Fafá também tinha desconfianças sobre a sexualidade de Lili, mas como é sempre mais confortável enquadrar os filhos dos outros aos próprios... ela achava que, com o tempo, a filha perderia o interesse pelo futebol, pelas bolinhas de gude, pelo basquete, pelo skate, pelos filmes de luta e deixaria o cabelo crescer. Quando o filme iniciou, Lili e Kleber estavam tão emocionados que seguraram um na mão do outro. A aventura foi evoluindo de forma tão surpreendente que se mostrou muito melhor do que imaginaram. De tempos em tempos, Lili repetia: – Meu Deus, Spielberg é um gênio! Ela estava sentada quase beijando a imensa televisão de 29’, pois – sem os malditos óculos – não conseguia enxergar direito. Kleber estava sentando mais afastado e, com visão perfeita, descrevia alguma cena que ficara turva para a vista embaçada da amiga. Mas, quando o filme engatou de vez, exatamente naquela cena em que o Tiranossauro Rex come o cara sentado na privada, tudo deu errado. A imagem sumiu e flashes extremamente rápidos começaram a explodir na sala, vindos do televisor. – Meu Deus, acho que os cabeçotes estão sujos! Ela ainda chegou a dizer essa frase antes de perder a consciência e tudo apagar. Quando Lili abriu os olhos, viu-se numa enorme sala, estéril e impessoal, com vasta iluminação branca e paredes cinza que vibravam como se fossem projeções. Sentada em uma cadeira de madeira e tecido, que destoava do ambiente futurista, Lili ergueu a cabeça e percebeu que não estava só. Em um círculo, havia mais nove pessoas também sentadas.

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Ainda um pouco tonta, ela passeou a vista em busca de Kleber e logo o avistou sentado mais à esquerda: imóvel e inconsciente. Aliás, todas as pessoas estavam dormindo, alheias aos perigos que talvez estivessem correndo. Como chegaram até ali? Onde estavam? Com um esforço, vieram lembranças fragmentadas à mente da menina: os flashes saindo do televisor... os dois saindo da casa e descendo no elevador do prédio... a rua... e, finalmente, a locadora... Depois... Não havia mais memórias. Como chegaram àquela sala? Quem os colocou ali? Quem eram as outras pessoas desacordadas? No meio daquele turbilhão de pensamentos, notou um desconforto no pescoço. Com movimentos letárgicos – era como se seu corpo estivesse dopado – ela conseguiu levar a mão até o pescoço e perceber que um fio penetrava sua pele. De uma só vez, puxou o fio que se desconectou de seu pescoço como um fone de ouvido sendo tirado de um walkman. A menina, meio zonza, tentou colocar-se em pé. Mas seus pés bambearam um pouco e ela voltou a sentar. Tentou mais algumas vezes antes de conseguir finalmente dar um passo. Depois, outro. Precisava salvar Kleber! Precisava salvar todas aquelas pessoas! Lili caminhou pelo círculo de cadeiras, estranhando o fato de ninguém estar preso. Nada os aprisionava. Nem uma corrente, nem uma pulseira. Nada! Mas olhando o quão desacordado estava Kleber, ela percebeu que – quem os colocara ali – sabia que era impossível acordar. Por que então Lili quebrara a regra? Por que despertara no meio do transe? Sacudiu os ombros do amigo para trazê-lo a si, mas foi em vão. Percebeu que ele – assim como todas as demais pessoas da sala – tinha um fio lilás penetrando o pescoço. Puxou-o. Kleber deu um breve suspiro e abriu os olhos num susto, mas novamente mergulhou num sono ainda mais profundo e, não conseguindo mais se manter sentado, despencou da cadeira ao chão, bem no centro do círculo.

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Ainda recobrando os movimentos das pernas, Lili segurou o fio recém desconectado e seguiu-o até o início. Foi quando teve um mais um choque. Todos os fios estavam ligados a um videocassete. E, dentro dele, rodando, estava o VHS de “O Parque dos Dinossauros”. Lili entendeu tudo. Era mesmo um plano diabólico. Esta era a verdadeira razão de “O Parque dos Dinossauros” ser o filme mais assistido da história do cinema. Era por isso que as pessoas passavam tanto tempo para devolver as fitas, elas estavam sofrendo uma lavagem cerebral. Num insight, Lili compreendeu também por que só ela tinha acordado daquele transe. Seus óculos! A falta de seus óculos, quebrados tragicamente naquele jogo de futebol, a impediu de enxergar perfeitamente a mensagem escondida na fita. Sem pensar duas vezes, a menina apertou o botão do EJECT e tirou a fita de dentro do aparelho. Num sopapo só, todos os corpos despencaram das cadeiras fazendo um barulho curto, mas intenso. BUM. Num espasmo, a mulher gorda esticou e contraiu violentamente a perna, chutando uma das cadeiras, que se desmantelou. Como se tivesse pressentindo que algo saíra fora do planejado, outro barulho foi escutado. Vindo do corredor ao fundo, o único acesso à sala, um ser se aproximava. Como não havia lugar para se esconder, a menina deitou-se no chão, ao lado dos nove corpos, e fingiu estar desacordada. Com os olhos entreabertos, Lili tomou um enorme susto quando percebeu Fox entrando na sala. Continuava lindo como sempre, mas agora ele andava de uma forma estranha. Era como se suas pernas pudessem se dobrar em vários lugares, não apenas nos joelhos. Elas pareciam duas grossas e enormes serpentes flexíveis. Com uma rapidez fora do comum, ele chegou à montanha de corpos. Cheirou-os. Lili estava nervosa e não conseguia disfarçar o pavor. Seu corpo tremia. Suas pálpebras tremelicavam. Seus dentes batiam uns nos outros. Fox, então, colocou seu rosto bem diante da face da menina. E ela pôde ver novamente aqueles olhos com enormes fendas felinas. Era assustador! O nariz... se movimentava abrindo e fechando como o nariz de um cão...

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A língua... que logo ele colocou para fora, era golpeada no meio como uma língua de cobra. Uma frieza correu pelo sangue da menina e o medo de morrer foi tão intenso, que Lili conseguiu fingir adormecer novamente. Fox afastou-se e voltou ao corredor ao fundo. Soltou estranhos gritos – como o barulho altíssimo de um grilo – impossíveis de serem produzidos por um ser humano. E, cada vez que soltava aquele som, o topo de sua cabeça tremia como se não houvesse ossos envolvendo seu cérebro. Ele chamava mais alguém. Enquanto o outro ser não chegava, ele moveu suas pernas de serpente em direção ao videocassete e percebeu que a fita tinha sido retirada. Virou-se mais uma vez em direção aos corpos e percebeu, junto ao monte de pessoas desfalecidas, a fita repousando. Aproximou-se. Abaixou-se para apanhá-la, ficando novamente vis-à-vis com a menina. Lili, com a agilidade de uma garota craque nos esportes, pegou a perna quebrada da cadeira e, como uma estaca, cravou-a bem no peito de Fox. Os olhos do monstro se arregalaram, enquanto do peito jorrava um líquido verde e viscoso. O som terrível se repetiu e foi tão forte a ponto do crânio do bicho tremer, desfigurando a face. Mas o barulho foi breve, pois, aproveitando que o monstro perdia força, Lili conseguiu dobrar os joelhos e dar uma pezada tão violenta que Fox caiu próximo, contorcendo-se de dor. Ela levantou-se. Arrancou a estaca do peito do galã do colégio e a enfiou repetidas vezes no tórax no bicho, que explodia em gosma verde. Por fim, meteu a perna da cadeira bem no olho em fenda. Como percebeu que nem Kleber, nem quaisquer das demais pessoas acordaram do transe, Lili cruzou em direção ao corredor por onde Fox entrara. Se não tinha como salvá-los, que ao menos salvasse a própria pele. Era uma passagem bastante longa e, embora fosse iluminada, a menina não conseguia visualizar o fim. Como as paredes pareciam projeções translúcidas, Lili teve a impressão de correr através de um intenso caleidoscópio. O chão, o teto, as laterais côncavas pareciam se movimentar e várias vezes ela foi ao chão.

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Ao final do corredor, Lili percebeu que não havia qualquer porta. Apenas uma abertura no alto. Um buraco escuro e assustador. Será que Fox descera por aquela abertura? Ao lembrar da forma como as pernas dele se movimentavam, não seria difícil de crer que sim. Tateou a parede ao fundo do corredor, buscando uma alavanca oculta ou algum botão secreto que fizesse uma escada descer daquele vão. Ela foi, então, invadida por uma energia intensa e uma poeira brilhante abraçou seu corpo no exato instante em que foi sugada para cima. Como se estivesse dentro de um elevador invisível, o corpo de Lili foi erguido, penetrando no buraco do teto, e, segundos depois, ela estava numa espécie de depósito. Embora estivesse bastante escuro, ela percebeu a luz de fora entrando pelos contornos de uma porta e correu em direção à saída. Quando estava prestes a torcer o trinco, ouviu uma voz conhecida: Seu Moacir. Lili estava dentro da locadora de vídeo. Ele a mataria! Ele era um deles! Ela aproximou-se da porta, quase encostando o ouvido na madeira e escutou perfeitamente a voz de duas clientes saindo da loja. O desespero tomou conta da menina! Ela sabia que se ficasse só com Seu Moacir, ela não teria como escapar. Não teria a mesma sorte que tivera com Fox minutos atrás. Não havia nenhuma arma por perto, nada com que se defender. Precisava gritar! Pedir ajuda! Ela precisava de testemunhas! Ele jamais a mataria na frente de outras pessoas. – Socorro! Me ajudem. – Lili gritou, abrindo a porta e correndo em direção às clientes. As duas jovens deram um passo à frente para ajudá-la. Mas Seu Moacir estendeu o braço na direção delas e, mesmo sem tocá-las, as duas moças voaram para fora da loja. Uma delas chocando-se contra a árvore que fazia sombra na calçada. – Maldita, menina. Você vai morrer agora! Ele, com as mesmas pernas serpenteantes de Fox, aproximou-se em menos de três segundos, cortando caminho por cima das estantes de filmes, que se desestabilizaram e caíram, espalhando fitas por todos os lados.

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Lili abaixou-se atrás do balcão, mas ele estendeu o braço na direção dela, erguendo o corpo da menina no ar. Num rápido movimento, ele a arremessou contra as estantes, fazendo-a cair sentada no chão sobre os filmes. Ainda zonza da queda, Lili buscou algo para defender-se, mas não havia nada além de fitas e mais fitas. Agarrou com força uma das caixas com VHS e atirou em direção ao monstro que, neste momento, deslizava pela parede atrás do balcão. Mas a menina errou a pontaria e acertou bem no cartaz no qual estava escrito “sorria, você está sendo filmado”. Num salto rápido, Seu Moacir pousou sobre o balcão e, com mais velocidade ainda, aproximou-se da menina. Lili agarrou outra fita – “Invasores de Corpos”, aquela versão tenebrosa de 1993 – e arremessou contra o bicho. Desta vez, no entanto, teve êxito e acertou bem no rosto do dono da locadora, arrancando um enorme tampão na altura da bochecha e revelando um ser verde e escamoso sob sua pele. Como percebeu que o bicho ficou meio tonto, Lili aproveitou a oportunidade e começou a atirar todos os filmes que tinha nas mãos. “Hook – a volta do Capitão Gancho”, “De volta para o futuro 2”, “Aliens – O resgate”. Quando ela acertou “Labirinto – A magia do tempo” bem no meio do focinho do bicho, ele se desequilibrou e ela aproveitou para sair da locadora. Lili atravessou a porta de vidro gritando por socorro e, assim que chegou à calçada, percebeu vários carros pretos estacionando na rua. Um após o outro. Como numa coreografia... Como no final de um filme americano. As portas dos carros abriram-se ao mesmo tempo, como se tudo estivesse ensaiado, e pessoas vieram em sua direção, gritando: – Você está salva, menina! Lili ainda teve a breve oportunidade de virar para trás e ver seu Moacir, ou melhor, o monstro que nele habitava, desesperado, com pernas serpenteantes, atrás das vidraças da videolocadora. Uma mulher de terno sacou uma estranha pistola e disparou na direção do monstro, que explodiu numa gosma verde. – Malditos marcianos! – ela disse.

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Colocaram Lili dentro de um enorme carro preto e, pouco depois de saírem em alta velocidade pela Travessa Benjamim Constant, no banco de trás, um deles disse: – Você é uma garota muito esperta. Sobreviveu à sua primeira tentativa de invasão alienígena. Lili sorriu tolamente. Embora seus olhos estivessem a ponto de explodir em lágrimas. – Quando crescer será muito bem-vinda ao CBCIM. – CBCIM? – ela perguntou. – Centro Brasileiro de Controle de Invasões Marcianas. – Mas o que aconteceu? – Os marcianos estão por toda parte, tomando conta de corpos de pessoas do bem e tramando invasões ao nosso planeta. Desta vez, estavam transferindo DNA marciano para os corpos das pessoas que locavam “O Parque dos Dinossauros”. – Meu deus! E o que vocês vão fazer agora? – O CBCIM está empenhado em fechar todas as locadoras de vídeo até o ano de 2010. Num rápido desespero, Lili se lembrou de Kleber. – Meu amigo ficará bem? – Sim! Neste momento, estão retirando todos os clientes da nave. Seu amigo acordará sem lembrar nada. Terá apenas uma enorme dor de cabeça. – Nave? – Lili espantou-se. – Sim! Eles construíram a videolocadora em cima da nave espacial. Era lá que eles faziam os experimentos. Bom, nem preciso dizer que no dia seguinte, a locadora do Seu Moacir já estava completamente vazia. E, com o tempo, uma a uma, todas locadoras de VHS do mundo foram fechadas pelo CBCIM. Para a imprensa, trataram de inventar que o VHS dera lugar ao DVD e depois ao Streaming. Mas eu sei, e agora você também sabe, que o verdadeiro motivo do fim das locadoras de vídeo foi outro.

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Alguns anos após o fechamento da locadora do Seu Moacir, construíram uma Igreja Evangélica no mesmo local. Pois a ideia de transformar humanos em aliens ainda está nos planos dos marcianos. Mas isso é assunto para uma próxima história.

TO BE CONTINUED...

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Andrei Simões I Sentados ao redor da fogueira, nove slistk se aqueciam da noite imperdoavelmente fria, lá da superfície. Escondidos em uma profunda ravina, descansavam e se alimentavam, fugindo das intempéries climáticas e das criaturas. – Ssbek – disse o ancião do grupo – Sua jornada começará quando o olho de fogo clarear ao redor; a nossa sobrevivência depende de sua coragem. Você é jovem e encontrará carnt para todos nós. – E prosseguiu, com hesitação da sabedoria – Mas mesmo sozinho, encontrarás a comida e retornarás para que sigamos todos. Não caminhe quando não houver fogo acima de nós. Com o olho fechado, nós dormimos. Todos comiam e dividiam igualmente um pedaço de carne qualquer, enquanto esperavam a história por vir. Aquela que outros que partiram já ouviram. Partiram e jamais retornaram. – Meu pequeno – prosseguiu o cansado réptil de longas e foscas placas escamosas verdes – houve um tempo onde nós éramos muitos. Nós caminhávamos sobre a superfície em milhares. Construímos grandes tocas, que alcançavam os céus – tossiu, mas prosseguiu com o máximo de empolgação de um ser em fim de vida – até montamos as grandes criaturas. Aquelas maiores que nós, que cobriam o olho de fogo e nos engoliam como pequenos ratskis. Mas nós os subjugamos, os usamos em nossas vidas. Todos pareciam prestar atenção. Por mais que a história houvesse sido contada aos outros várias vezes, não para Ssbek, todos se mantinham atentos.

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– Mas então veio a luz do céu. Uma luz diferente do fogo, uma luz da cor da pedra branca lá do alto. Muitos de nós vimos a luz. Eu era apenas um pequeno osx, mas lembro que o olho de fogo se apagou e por ciclos e ciclos, tudo ficou escuro. E frio. – O velho observava o jovem, que mantinha os olhos vidrados nele. – E então tudo que comíamos foi morrendo naquela escuridão, o verde e os que comiam o verde. E não conseguíamos mais ter forças. Quase todos morremos. E os poucos estão por aí, escondidos como ratskis nessas fendas e buracos. Lá fora a gente morre se ficar muito tempo. – E estas são minhas últimas palavras pra ti. Deves ir lá fora e cumprir tua missão. Ssbek era o mais jovem daqueles remanescentes reptilianos. Sua espécie havia prosperado no planeta por milhões de anos, construídos pelas forças evolucionárias. Até a luz cair como um raio de morte, há dois anos atrás, modificando abruptamente o clima do planeta e extinguindo ¾ das espécies vivas do planeta. Mas agora residia no forte lacertílio de dois metros de altura, a esperança de sobrevivência daquele grupo. Com uma pequena adaga de prata em mãos, esperou os primeiros raios do dia, ainda levemente ofuscado pela fuligem na atmosfera e saiu em busca de seu destino, de pé em suas pernas, como todo slistk caminha. II Do lado de fora da ravina, antes mesmo de se afastar mais do que cem metros, em sua jornada sagrada da busca por alimentos, Ssbek viu o brilho no céu, em um objeto reluzente. Por um segundo, imaginou que a pedra branca havia descido lá de cima, mas era algo diferente. A coisa esférica desceu até o chão e pousou a uns 50 metros da descida da ravina e a uns 80 metros do jovem réptil, na direção contrária. Era mais alta que a maioria das árvores. E daquela esfera brilhante, como um útero ultraluminoso, uma fenda se abriu e dela, dezenas de esferas menores reluzentes voaram direto para a ravina, de onde os sons de destruição, dor, esmagamento e morte uivaram pela fenda para o mais alto céu. Ssbek sabia que havia perdido sua tribo. E que nada poderia ter feito para impedir. Por isso, enquanto as pequenas esferas cortavam, esquartejavam e

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esmigalhavam seu grupo, o jovem correu para a esfera maior, na esperança de entrar e reagir devidamente aos algozes de seus iguais. Por alguns minutos, a trilha sonora do massacre continuou. Até que o silêncio fez seu papel de anunciante da morte. Sem nenhuma entrada aparente na grande bola de luz branca, ele esperou. Deitado no solo terroso marrom aguardou com sabedoria e tranquilidade, pois não era mamífero. O céu escuro, de uma grande camada de fuligem no céu, não tinha nada que pudesse distrair o jovem escamoso, mas pouco tempo depois as esferas retornaram, carregando os corpos da sua tribo. Com algum tipo de força gravitacional, os corpos flutuavam atrás das esferas de mais ou menos um metro de diâmetro. Ssbek rolou para o lado e diminuiu seu metabolismo, a partir das batidas de seu coração tricavitário, camuflando seus sinais vitais dos tecnológicos e sofisticados robôs da grande esfera alienígena. Uma das esferas, sem pestanejar, carregou o que achava ser apenas mais um cadáver. E assim, junto com os outros corpos de sua tribo, alguns inteiros, outros em pedaços, Ssbek entrou na nave e sem pensar muito em como faria, apenas sabia que queria sangue derramado. III Já dentro da nave, entre os pedaços de carne reptiliana, Ssbek foi arremessado em um lugar escuro. Uma porta se fechou. Escuro. Aguardou um pouco mais, até que não ouviu mais as esferas. Em um cubículo de metal liso, completamente estranho a ele, não teve muito tempo de pensar naquele exótico material, pois sentiu o piso aquecer rapidamente. Sabia que teria de sair dali. E assim o fez, arrebentando a portinhola por onde foi jogado. O corredor à sua frente estava vazio, completamente. Olhou para o cubículo e o viu explodir em chamas de altíssima temperatura, transformando em cinzas a sábia carne reptiliana dos corpos de sua tribo. Por minutos ele andou pelos corredores longos, finos e brancos. Tudo ali reluzia. Mas não havia cheiro, textura. Não era real. Tudo ali era diferente de seu mundo de odores, carnes, águas, cores. E nos últimos anos, fuligem, frio e fome. Ainda sim,

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sentiu a estranha vontade de retornar ao seu mundo. Que estava no fim. Mas era seu lar. E depois de muito caminhar, viu-se diante de uma porta prateada. Do mesmo material do cubículo onde fora jogado. Com um chute, a porta voou e atingiu algum ser. Havia outros na sala circular, cheia de coisas luminosas. Eles também tinham duas pernas, olhos, bocas, agora demonstrando pavor. Mas não tinham escamas. De alguma forma eles lembravam a pele dos roedores que comia, ou de outras criaturas que eles despelavam para criar roupas. Definitivamente eles não eram reptilianos. E ali, diante do primeiro encontro extraterrestre da história do planeta Terra, Ssbek se viu diante de um grupo de humanos. Um dos estranhos descamados apontou a ele algo de material reluzente, que empunhava firmemente. Não era pontiagudo, era como um pequeno porrete, mas furado no meio. E estava definitivamente apontado em sua direção. Ssbek pôde ver o furo no meio. Um zunido alto e um clarão. Sangue. Final O sangue pintava o centro de controle da nave humana, onde sete humanos agora apontavam armas e disparavam contra o grande réptil. Inicialmente, apenas o sangue de Ssbek, mas logo depois, os pincéis das garras afiadas do jovem começaram a espalhar sangue humano pela pintura daquela tela/sala, até que ninguém mais, além dele mesmo, respirasse. No meio daquele furor, havia fome. E o jovem escamoso se banqueteou daqueles pequenos e macios humanos o quanto pode. Quando as esferas chegaram, atrasadas, pois nunca foram programadas para defesa dentro da nave, Ssbek estava tão banhado no sangue de suas presas que as mesmas não notaram DNA não-humano, ignorando-o e indo embora em poucos segundos. O jovem, recuperado do êxtase da morte, retirou então das costas um grande saco, onde colocou duas pernas, um braço, um pedaço saboroso da coxa de um humano gordo e outros pedaços menores. Não havia mais tribo para alimentar, mas quem sabe, encontraria outros dos seus.

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Saiu da nave sem resistência, a porta abrindo automaticamente. E por anos caminhou sozinho. Alimentando-se do que podia. Mas jamais encontrou outro semelhante. Ele nunca soube, mas a invasão marciana à Terra aconteceu em escala global. Milhares de esferas desceram ao planeta e dizimaram a espécie dominante. Inicialmente atingiram o planeta com um raio, dando início ao processo de formação da atmosfera e de um mundo sem repitilianos e dinossauros, que em milhões de anos seria mais propícia a mamíferos, como eles em Marte, seu planeta natal moribundo. Queimaram os corpos dos reptilianos e foram aos poucos se adaptando e colonizando o planeta que chamariam eles mesmo de Terra e a si mesmos de Terráqueos. Ssbek, sempre escondido, morreu velho e solitário. Adeus escamas, olá pele. E assim a espécie Slistk se extinguiu, dando início à era dos marcianos na Terra, ou como se denominariam: humanos. Epílogo Estado do Pará, Amazônia brasileira, 2018. Um biólogo do reconhecido internacionalmente museu Emilio Goeldi, especialista em mamíferos voadores, diante do esqueleto de Ssbek, o último slitsk, não sabia como reagir. Estava sozinho na floresta, algo não recomendável para quem pesquisa em campo, mas não importa, pois a floresta sempre o protegera. Instalava armadilhas crepusculares para capturas de morcegos, quando, em meio às rochas, os ossos! Definitivamente o esqueleto, em quase perfeito estado, no fundo de uma ravina rochosa no sul do estado, era de morfologia hominídea. E mesmo sem a análise sistemática do esqueleto, o jovem biólogo sentia em raios de calafrio que o percorriam que estava diante uma possível importante descoberta. Fotos, muitas fotos. No caminho para a estação de pesquisa, em velocidade acima da permitida naquela estrada de terra, velocidade ansiosa, o carro verde musgo do biólogo levantava poeira na noite escura. Chegando à estação ele acionaria outros pesquisadores para estudo adequado e remoção do esqueleto, mas foi

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abruptamente interceptado por um carro preto na estrada, que o ultrapassou e o forçou a parar. Dele, dois grandes, brancos, homens sem pelo desceram do carro. Vestidos de preto. O carro verde musgo fora achado no dia seguinte por moradores locais. Havia descido um barranco e capotado vårias vezes. O motorista, morto. O esqueleto de Ssbek, o último dos reptilianos, jamais foi encontrado.

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Flávio Ramos Moreira O elevador está lotado. Dois vizinhos acabam de desembarcar e ainda faltam sete, além de Hugo. Cada vez que a máquina faz uma parada, a ansiedade de Hugo duplica. Teria sido mais rápido subir os 32 andares de escada? Provavelmente era melhor controlar o nervosismo. Mas Dolores estava aflita ao telefone, pedira para que ele voltasse urgente para casa. Dennis estava tendo um ataque de angústia e só o irmão conseguiria acalmá-lo. Desde a morte da mãe, Hugo teve que assumir a curatela de seu irmão autista. A diferença etária entre eles é pouca, Dennis é um ano mais velho, mas Hugo sempre o tratou mais como um filho do que como um irmão. Na infância, eram inseparáveis, sempre dormiam no mesmo quarto, uma cama grudada na outra, e chegaram a estudar juntos na mesma sala de aula. Mas Dennis encontrou dificuldades com os estudos, seu grau de autismo ficava entre o moderado e o severo, e teve que sair da escola. Há trinta anos, em uma cidade de interior, não existia uma instituição de ajuda ou um sistema de educação específico para o caso de Dennis. A mãe deles teve que se virar sozinha. Mas nem tanto, pois Hugo, sempre que podia, se oferecia para cuidar do irmão: vigiava para que Dennis não demorasse horas no banho, ajudava a escovar seus dentes, tentava ensiná-lo a ler e a escrever. Dennis até conseguia fazer todas essas coisas sozinho, mas foi desenvolvendo certas compulsões que precisavam a todo momento de monitoramento, como não derramar todo o xampu do pote no cabelo ou escovar apenas um lado da boca. Os anos passaram e com muito pesar Hugo teve que vir para capital por causa de uma ótima proposta de emprego. A mãe não quis segui-lo, preferia a vida no seu sítio do interior, pois a capital a assustava, e Dennis ficou com ela.

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Há quatro meses, a mãe faleceu e Hugo foi buscar Dennis. Ele veio abatido, magro, anêmico. Uma tia lhe disse que a mãe reclamava que morcegos deviam se esconder no forro da casa e por isso Dennis amanhecia com umas marcas no pescoço e ficava pálido e fraco por dias. Mas nunca encontraram um morcego sequer em qualquer canto do lar. Mas isso era passado, agora Dennis estava corado, bem e saudável. Ou era o que Hugo achava até o telefonema de Dolores. E esse elevador que não sobe. Hugo está explodindo de preocupação quando o marcador luminoso muda do 31 para o 32 e o freio do elevador é acionado. Sozinho na cabine, ele se liberta de toda a carga de sua aflição e, num grito, salta para o corredor assim que as portas se abrem. Encontra a porta do apartamento entreaberta e Dolores andando nervosa pela sala. ― Onde ele está? ― pergunta aflito. ― No quarto dele. A culpa foi minha, Sr. Hugo. Me perdoe ― diz Dolores chorosa. Mas antes de terminar suas desculpas, Hugo já havia corrido para o cômodo. Dennis está em pé num canto do quarto, uma perna à frente e outra atrás, num vai e vem ritmado como uma cadeira de balanço. Seus braços estão dobrados e levantados em frente ao corpo, seus dedos alvoroçados, sendo sacudidos, estalando nas palmas pelo movimento rápido das mãos da esquerda para direita. Como uma criança quando está feliz, mas nesse caso acompanhado de uma carranca angustiada, olhos e nariz pressionados e a boca escancarada num esgar de dor e aflição. E a respiração ofegante. ― Dennis ― Hugo fala com suavidade e total controle de sua apreensão. O irmão parece não ter escutado. ― Dennis... ― repete Hugo, mas agora um pouco mais incisivo. Se aproximando continua ― O que houve, meu filho? ― O cachooorro, o cachooorro, o cachooorro ― Dennis fala baixo num ritmo quase musical ―, Dennis viu o cachoooorro lá embaixo, lá embaixo, lá embaixooo ― completa, com seu costume de falar de si mesmo na terceira pessoa. ― Ah, Sr. Hugo. Não sei o que me deu. ― Dolores entrando no quarto ― Esqueci completamente que, às quatro da tarde, a dona Gerusa passeia com aquele monstro gigante que ela chama de cachorro pelo jardim do prédio. Tinha descido com Dennis para ele pegar um pouco de sol e ver as plantas. O senhor sabe como ele adora ficar ao ar livre. E de repente aquele bicho barulhento já estava latindo

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na nossa direção. Se não fosse aquela coleira, ele tinha matado a gente. Dennis tomou um susto e se desesperou, quase corria para a rua mas o porteiro, já sabendo do perigo, havia trancado o portão. Então seu David arrastou a dona Gerusa e o monstro do jardim, enquanto eu subia com Dennis para cá. Mas desde a hora que subimos ele está assim. Tentei acalmá-lo exatamente como o senhor ensinou, mas não deu certo. Ele parece que não me ouve. ― Quando ele está assim, Dolores, só alguém em quem ele confia consegue ajudá-lo. Você vai conseguir um dia, quando ele se acostumar a você. É só uma questão de tempo. ― Se dirigindo ao irmão ― Dennis, olhe para mim, sou eu, o mano ― diz Hugo num tom mais forte, porém com ternura. Dennis reconhece a voz e abre os olhos. Mantém o balanço do corpo, mas diminui a velocidade das mãos. Continua a repetir sobre o cachorro no seu próprio tom melódico. ― Eu sei, meu filho. Mas não tem cachorro aqui em cima. É sua casa. Você está seguro. Não tenha mais medo. ― Hugo passa o braço em volta do irmão, que para de balançar. Faz carinho em seus cabelos e dá um beijo em seu rosto ― Você quer escutar sua vitrola? ― Não tem cachooorro no apartamento, Hugo. Não tem cachooorro, não tem cachorro. ― Dennis responde, afirmando que entendeu. Hugo pega um vinil da estante do quarto repleta de discos, coloca na vitrola e toca a música favorita do irmão. Dennis desvia o olhar para cima, dá um leve sorriso e volta a balançar para frente e para trás, mas agora com um ritmo mais casado com a música. Começa a cantarolar baixinho os tons da melodia com uma afinação surpreendente. Sinal de que a agonia já passou. Hugo e Dolores saem para o corredor. ― Pode ir, Dolores, ele vai ficar bem ― diz Hugo. ― Esse medo de cachorros é estranho até para mim. Começou pouco tempo depois que vim para a cidade. Quando crianças tínhamos três vira-latas e Dennis era apaixonado por eles. Mamãe e Dra. Joaquina estavam tentando trabalhar essa fobia na terapia, mas, pelo jeito, isso está longe de passar. ― Tudo bem, Sr. Hugo, prometo ficar mais atenta. Me perdoe de novo. Amanhã estarei aqui às oito. Uma boa noite.

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Hugo sai do banho para seu quarto e encontra Dennis deitado na cama de pernas cruzadas, esperando o irmão para dormir. Será uma das noites em que Dennis só dormirá se for de mãos dadas com Hugo, como faziam na infância. Antes de deitar, Hugo dá uma bela olhada pela grande janela do seu quarto. Uma enorme esquadria de vidro em "L" que ocupa duas paredes perpendiculares e vai do piso ao teto, metade de baixo com vidro fixo e a parte superior com vidro correndo em trilhos. Do 32º andar, a vista noturna é magnífica. O lado da janela que fica de frente para a cama mostra a enorme baía negra, com o contorno sombreado de uma floresta ao longe e uma parede de céu ébano sem lua. Da janela lateral à cama, é possível enxergar a cidade brilhante, um tapete de ilhas escuras entrecortadas por rios de luz. O apartamento todo é cheio de janelões de vidro, como quadros gigantes de céu mudando conforme as horas e o clima. Exceto na cozinha, o único lugar com uma pequena janela balancim logo acima da pia. Foram essas grandes janelas no último andar do prédio mais alto da cidade que conquistaram Hugo de primeira. Ele se sentia no espaço sideral. No escuro, deitado na cama e segurando a mão de Dennis, já adormecido, ele só enxerga estrelas pela grande vidraça. Tinha deixado as cortinas escancaradas e o vidro aberto para o vento suave e fresco embalar seu sono. Logo, Hugo entrega-se a quietude da noite e cerra os olhos que ainda contemplavam as luzes ancestrais. Centenas de morcegos de olhos vermelhos estão pendurados pelas vigas de madeira da casa do sítio. Hugo está apavorado e não consegue se mexer. Alguém o prendeu na cama. Pés e mãos estão amarradas e os morcegos começam a farfalhar e escancarar as presas. Hugo grita pela mãe até a garganta doer. As asas estão se erguendo. Hugo começa a chorar. Um tornado de morcegos desce em sua direção. Duas presas enormes se aproximam de seu rosto. Hugo grita e abre os olhos. Vê o teto de gesso de seu apartamento e se lembra de que não mora mais em Colares. Tateia em volta, no escuro, e descobre que o irmão não está mais ao seu lado. Um sono incontrolável ainda o domina. Seus olhos não conseguem se manter abertos. Vira para o lado e vê Dennis no seu pijama branco caminhando lentamente para o quarto dele, mas algo estranho chama sua atenção. Ele não consegue ver direito, está muito escuro. Uma cauda escamosa e ossuda acabou de passar para o quarto de Dennis junto com ele. Hugo quer acordar, mas o

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sono é forte. Será que ainda está sonhando? Vira a cabeça de volta para o travesseiro e tenta se livrar do sono. Há algo errado com ele, parece dopado. De repente, um frio intenso percorre seu corpo e o torpor se dissipa. Então percebe um rosto o encarando da grande janela de vidro. Olhos enormes, totalmente negros e de um brilho gelatinoso estão fixos em Hugo. Olhos tão escuros que se destacam do breu do quarto. Hugo permanece imóvel e no silêncio da noite consegue escutar a batida forte e lenta do próprio coração. Ainda não acredita no que vê: uma silhueta escura de um ser humanoide em pé no peitoril fixo da janela, contra a luz suave da cidade abaixo. Um corpo esquálido e pequeno com braços longos e de mãos grandes quase encostando nos pés. Mas a cabeça é o que mais o aterroriza. Oval, agigantada e com o crânio alongado, afinando para trás. Uma cabeça quase toda preenchida por aqueles olhos que não piscam. A criatura está imóvel. Hugo consegue soltar o ar que, até então, estava contido pelo pânico. De repente, o ser levanta um braço e ergue os seus cinco dedos alongados. Hugo não consegue tirar os olhos do pequeno, até perceber que ele aponta para o outro cômodo, o quarto de Dennis. A cauda... não era sonho. Hugo salta da cama e corre. Uma besta-fera está sobre Dennis, adormecido em sua cama. Duas presas enormes de sua mandíbula superior estão espetadas no pescoço dele e Hugo grita de horror ao entrar no quarto. A besta se solta de Dennis e vira o rosto para ele. Os pequenos olhos vermelho-sangue do monstro fitam-no com hostilidade. Uma onda de apatia invade seu corpo. Algo naqueles olhos parece sugar sua força. A sonolência quer dominá-lo. Como num sonho, ele observa as patas traseiras e musculosas do bicho no chão enquanto as patas dianteiras, magras e com dois dedos afiados em cada estão em cima de Dennis. Observa a sequência de ossos espinhosos saindo das costas da criatura em linha até o rabo monstruoso, onde os ossos recuam para dentro até sumirem completamente na ponta da cauda. A cauda! Com um último suspiro de energia, Hugo derruba a estante ao lado da porta repleta de discos de vinil no rabo da besta. Ela chia de agonia e se afasta de Dennis para se desprender da estante. Hugo cambaleia até o irmão, verifica que está vivo, mas completamente dopado. Não consegue acordá-lo. Hugo salta por cima dele até o outro lado da cama, puxa o irmão para o chão e abraça-o. Os buracos no pescoço de Dennis não sangram, como

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se a ponta das presas tivesse perfurado e cauterizado os cortes. Hugo está fraco e prestes a desmaiar. O monstro, livre da estante, e nas quatro patas está subindo na cama para alcançá-los. Os olhos vermelho-sangue. O estupor domina Hugo. Então, atrás da besta e parado à porta ele enxerga o pequeno. Os olhos negros. Aquele frio intenso o invade e a fraqueza desaparece. Hugo agarra o irmão e rola com ele para o lado na hora em que o bicho salta. A fera se choca contra parede e, quando se vira, nota a presença do ser humanoide. Hugo contorna a cama arrastando Dennis. As criaturas se encaram. Todos estão imóveis. Então, uma psico-batalha tem início. A besta-fera recua. Suas patas traseiras começam a escalar a parede e as garras dianteiras se cravam no piso. O rosto continua erguido, encarando o pequeno ainda imóvel do outro lado da cama. Hugo está parado ao pé do leito carregando Dennis. Ele só precisa de uma chance para pular a estante derrubada e fugir do quarto. Um chiado sai do monstro, o que mais parece um sorriso demoníaco, e seus olhos vermelho-sangue brilham. O crânio oblongo do humanoide ilumina-se e um órgão pulsante revela-se atrás de sua pele acinzentada e fina. Um espasmo seguido de dor surge no cérebro de Hugo. Sono, frio, imagens, tudo acontece ao mesmo tempo. Como se estilhaços mentais o atingissem. As criaturas, mesmo estáticas, estão se atacando, fragmentando a mente um do outro e as ondas de choque reverberam na psique de Hugo. Ele precisa sair dali. Sua cabeça dói. Pedaços de lembranças e sensações estranhas ricocheteiam dentro de sua mente. Hugo não consegue impedir esses cacos psíquicos de perfurarem seu íntimo. Tudo muito confuso. Reminiscências alheias e aleatórias metralham sua consciência. Duas raças alienígenas chegaram na Terra há milênios de anos. Inimigas mortais. Algo sobre um pacto. Seres humanos são estudo e alimento. Algo na mente dos homens fascina os pequenos e o sangue alimenta as bestas. A humanidade não foi escravizada por pouco. Foi o pacto. Parece que os humanos precisam do seu cotidiano intacto para não colapsar a mente. Os pequenos convenceram as bestas a não abater e dizimar a humanidade, ou então não teríamos durado muito. Veio a divisa de território. Centros urbanos dos pequenos, zonas rurais das bestas. Até que Dennis causou a quebra do acordo. Dennis acorda, como se o fragmento de memória o chamasse. Ao ver o monstro de olhos vermelhos, ele grita de terror e a besta se distrai e o encara. No mesmo segundo, o órgão pulsante do pequeno contrai-se com força e a fera guincha de dor

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e desvia os olhos dos irmãos. Dennis aproveita que o humanoide se afastou da porta, se solta de Hugo, pula a estante caída e corre para a sala de estar. Hugo ainda está atordoado com a enxurrada mental e não consegue correr. Sobe a estante, mas cai próximo ao pequeno. A besta então nota que Dennis não está mais no quarto, escala a parede nas quatro patas e sai pela enorme janela de vidro do cômodo. Hugo acompanha a escalada da criatura do lado de fora pelos vidros da janela e percebe que ela vai dar a volta no apartamento até as vidraças da sala. Olha em volta, o pequeno havia desaparecido. As criaturas foram atrás de Dennis. O medo faz Hugo recuperar um pouco de sua lucidez. Levanta e sai para o breu da casa. Corre e entra na enorme sala. Se detém quando já ia acionar o interruptor de luz. O monstro está do lado de fora da janela, escalando os vidros que preenchem toda uma parede. No escuro, Hugo escuta um murmúrio e vê um vulto branco ao lado da porta de saída, é Dennis. A porta está trancada e ele não conseguiu sair. A chave está no chaveiro da cozinha. Dennis está em crise, sacudindo as mãos e se balançando. Então, um barulho surdo. A criatura salta por uma aba aberta da janela e rasteja na direção de Dennis. Sem hesitar, Hugo agarra o espaldar de uma cadeira, gira o corpo e a lança contra o teto de gesso logo acima da fera. A cadeira e placas de gesso desabam na criatura e muito pó branco sobe ao redor. Era a cobertura que Hugo precisava para se desviar do torpor dos olhos vermelhos, chegar em Dennis e puxá-lo para a cozinha, trancando a porta. ― Cachooorro no apartamento, cachooorro no apartamento, cachooorro no apartamento ― Dennis repete numa melodia angustiada, pressionando os olhos com a bochecha das mãos. Hugo, desolado, abraça Dennis. Contendo o tremor na voz, tenta consolar o irmão: ― Nos já vamos sair daqui, Dennis. Ele pega o molho de chaves pendurado na parede da cozinha. Agarra a mão de Dennis e, ao se virar para se dirigir à porta de serviço, é surpreendido pelo pequeno parado no caminho, estático, com os longos braços caídos ao lado do corpo e aqueles enormes olhos negros os encarando. A cabeça do ser começa a brilhar novamente, revelando aquele órgão pulsante. Hugo sente algo em sua mente, como um devaneio. A criatura está se comunicando. Mesmo sem palavras ou qualquer outro tipo de linguagem, Hugo consegue compreendê-lo. O pequeno quer levar

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Dennis, pois ele é especial. Os autistas são os humanos mais fascinantes da Terra. A especialização de suas mentes é um mistério que sua raça alienígena quer aprender a decifrar e replicar. A deficiência nas relações sociais, na comunicação e no aprendizado em geral é compensada por uma habilidade excepcional que varia de pessoa para pessoa. Dennis tem o ouvido absoluto, reconhece e replica qualquer tom musical que tenha escutado. E cria em sua mente uma partitura, com seus próprios caracteres e regras. Essa habilidade é tão forte que até na sua fala existe melodia. Os pequenos querem entender esse mecanismo mental do espectro autista e aplicá-lo na sua raça, para torná-los mais hábeis e astutos. Nem que para isso tenham que dissecar o cérebro de todos que são como Dennis. ― Não! ― grita Hugo enquanto pega uma faca de carne na pia atrás de si e atira na criatura. Em reflexo, o pequeno ergue a enorme mão e a faca se crava em sua palma com a lâmina atravessada. A criatura arreganha uma enorme boca cheia de pequenos dentes afiados, arranca a faca com a outra mão e joga na direção dos irmãos. Para surpresa de Hugo, a faca passa por cima deles e atinge o vidro do balancim atrás, onde pequenos olhos vermelhos os espreitavam. A besta está do lado de fora, tentando abrir a pequena janela. A faca bate no vidro e cai na pia. As criaturas se encaram e o ataque psíquico recomeça. Hugo sente os ruídos mentais da batalha. Pega a faca atrás de si e puxa Dennis com força na direção da porta de serviço. O humanoide está focado na luta com a fera e não liga quando os dois passam ao seu lado. Hugo procura a chave certa no molho. Estilhaços das explosões mentais acertam sua mente. A besta quer Dennis por causa do seu sangue. A estrutura mental de um humano afeta as células do corpo em todos os níveis. Dennis não conhece ódio, inveja, ironia, sarcasmo, tudo para ele é literal. Dessa forma, ele é avesso a maioria das mazelas sociais e isso se reflete em seu organismo. Sua mente especializada e inocente saneia suas células e seu sangue. O sangue mais saboroso que o monstro já havia provado. Em Colares, toda semana ele se esgueirava pelo quarto de Dennis na madrugada e sugava uma porção de seu pescoço, o suficiente para lhe deixar saciado e manter Dennis vivo. E Dennis passou a ter pesadelos com animais selvagens. A criatura, viciada em seu sangue, demorou meses para rastreá-lo até a capital. Foi quando quebrou o pacto de sua raça com a dos pequenos.

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Hugo, enfim, acerta a chave, sai com Dennis para o hall do andar e antes de trancar a porta, percebe que a fera abandona a batalha mental e volta a rastejar pela fachada do edifício. Vinte metros de corredor separam os irmãos do elevador. Enormes janelas envidraçadas preenchem toda a extensão das paredes em cada lado. Hugo corre puxando Dennis pelo braço. Aperta o botão do elevador e o marcador avisa que ele está no quarto andar. Esperar ou descer 32 andares de escada e ser surpreendido em qualquer andar por uma das criaturas? Hugo precisa decidir rápido. Olha para o corredor e percebe, através da luz fraca da cidade abaixo, a besta-fera vindo na sua direção rastejando pelas vidraças do lado de fora. Os olhos vermelhos começam a atordoá-lo. O elevador é lerdo demais, não vai chegar a tempo. Hugo está prestes a abrir a porta da escada, quando luzes ofuscantes invadem o corredor vindas do lado de fora, é uma nave espacial. O pequeno! Pulsos de raios verdes são disparados do óvni e começam e estilhaçar as vidraças dos dois lados do corredor. A besta acelera a escalada, mas os raios atingem o vidro no qual está grudada e se estilhaçam. O bicho cai. Com um membro dianteiro crava suas duas garras na esquadria de metal próxima ao chão. Ela fica pendurada para fora. A luz forte não deixa Hugo ver o formato da nave, mas ele sente o veículo se movimentar e mais raios verdes agora atingem o piso do hall, tentando acertar a criatura. Pedaços de cerâmica voam para todos os lados. Hugo protege Dennis com o corpo. Alguns estilhaços atingem suas costas. Hugo grita de dor. De repente a porta do elevador se abre. Dennis entra apoiando Hugo ferido. A besta, ainda pendurada, percebe a fuga dos irmãos e com fúria salta para o teto do corredor desviando dos raios verdes. Como uma aranha, sai em disparada em direção ao elevador. A enorme porta começa a se fechar. Dennis entra em pânico. Hugo, escorado no canto da cabine e sangrando, pela primeira vez grita com Dennis: ― A faca, Dennis, atira a faca no cachorro! Dennis, aflito e repetindo melodicamente "cachooorro", puxa a faca do bolso de Hugo e com os olhos pressionados lança-a em direção ao teto do hall. A faca crava no olho vermelho-sangue da besta que desaba no chão guinchando de dor e ódio. Enfim a porta se fecha.

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O elevador começa a descer e Hugo, quase desfalecendo, ainda escuta os raios da nave destruindo o 32º andar para acertar o monstro. Os gritos da besta já ecoam ao longe quando ele olha para o mostrador luminoso marcando 23. E esse elevador, que demora! Hugo não vai resistir, está sangrando muito. Olha em volta, Dennis está se balançando novamente, com a bochecha das mãos pressionando os olhos. Ainda está com medo. Hugo não consegue se mexer para acalentá-lo. As paredes metálicas da cabine parecem oprimi-lo. Ele vai desmaiar, não consegue mais evitar. Olha para o marcador, estão no 15º. A luz to teto está muito forte. Uma claraboia. Algo estranho. Um ponto vermelho atrás do vidro. Um olho. Um olho vermelho-sangue. E ele desmaia. Hugo sente uma pressão gelada em seu rosto. Abre os olhos e percebe que está deitado de bruços com o rosto encostado numa superfície metálica. Ainda está no elevador. Levanta o rosto e procura por Dennis, mas nada. Está sozinho. Lembra-se dos ferimentos, mas as costas não doem mais. Esforça-se para se levantar e percebe que está numa espécie de cama de aço cromado. Olha em volta, é uma cabine metálica, mas não o elevador. Será o hospital? Passa a mão nas costas e sente as protuberâncias dos cortes. Pelo reflexo na parede lustrosa, nota que as feridas foram cauterizadas. Quatro furos na parede oposta chamam a sua atenção. Estão dispostos como o quatro de um dominó. Desce da maca, enfia os dedos nos furos e força para os lados. As portas deslizam e revelam uma espécie de quarto, com cama de casal, mesa, duas cadeiras, poltrona, uma estante cheia de discos e uma vitrola. Volta a olhar para cama e vê Dennis acordando. Dennis parece bem, está calmo e pede para Hugo colocar um disco. Nota pela primeira vez a janela de vidro que preenche toda uma parede. Eles devem estar na casa de algum vizinho. Mas a janela está errada. Não tem estrutura metálica. É puro vidro do piso ao teto e curvado no meio. Aproxima-se para ver as estrelas. Centenas de milhares, muito mais do que já viu por toda sua vida. Formando constelações inimagináveis. Eles estão na nave. O pequeno os capturou. Hugo virase e começa a examinar Dennis. Ele parece pálido, mas intocado. Quase não se vê mais os furos no seu pescoço. Dennis caminha para pegar um disco na estante. Hugo observa algo vermelho na sua nuca. São dois furos. O ar rasga sua garganta e estanca em seu peito. Corre para cama, e abaixo do travesseiro de Dennis, observa

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dois buracos pequenos com um tipo de metal pontiagudo embutido em cada. Eles são prisioneiros das bestas. Hugo foi curado para manter o cotidiano de Dennis intacto. As criaturas não querem estragar o sangue. Hugo senta na cama, paralisado de horror. Após alguns minutos, Hugo tem a sensação de que já esteve neste lugar. Ele conhece essas estrelas. Fragmentos de memórias começam a se organizar dentro de si. São os estilhaços das batalhas mentais que acertaram sua psique. Como num quebra-cabeça, esses pedaços das mentes alienígenas estão se conectando e formando algo coerente. Ele passa a entender que a quebra do pacto começou uma guerra. A humanidade está perdida. E esta nave... Ele conhece seu mecanismo. Ele pode dominá-la. Ele sabe como fazer. Eles, enfim, têm uma chance. Chance de serem os últimos sobreviventes de uma raça, a navegar para sempre neste arranha-céu espacial. Toca "Ziggy Stardust" na vitrola.

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Fábio de Andrade Certo dia acordei com ele parado no canto do quarto me olhando. “Seria efeito da coragem líquida ou da lucidez sintética da noite passada?” Tratei como ele, pois não conseguia definir seu sexo. Fui ensinado desde pequeno a colocar o falo na frente do ventre em praticamente todos os assuntos e por esse hábito, forçadamente estúpido, resolvi tratá-lo no masculino. O espanto só não foi maior que o horror ao olhar ele ali. Soltei um grito de pavor que não resultou em nem uma atitude diferente que abalasse sua inércia. Meu primeiro impulso foi saltar da cama e correr em desespero, mas foi apenas um pensamento inútil devido o descontrole de minha perna que congelara por notar aqueles imensos olhos vazios; essa agonia era a pior de todas, não saber se o que se teme é perigoso ou não. Senti, agora com mais violência, meu estômago embrulhando enquanto via, em meio ao receio, a pele dele. Uma camada asquerosa de rugas amareladas brilhava contra o toque da luz do abajur; as membranas finas de seu braço eram incertas como se tivessem várias criaturinhas tentando pular dessas ranhuras que palpitavam em pequenas convulsões de tempos em tempos. Ele estava despido, com os braços alongados até a altura do joelho e, por mais que seus membros fossem esticados, ele não conseguia ser mais alto que um cachorro adulto, entretanto isso se diferenciava pelo tamanho da cabeça; careca, avermelhada e com veias negras pulsando em um compasso maluco. E ele continuava lá, parado. Estapeei meu rosto para que aquela continuação de pesadelo permanecesse no mundo dos sonhos, porque talvez lá, fizesse o mínimo sentido; mas a vermelhidão de minhas bochechas debochou de mim provando que aquilo era real.

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Escorri para trás da cama segurando meu lençol como um escudo e pulei em direção ao banheiro, do outro lado do corredor, trancando a porta do quarto pelo lado de fora. Vomitei o resto do jantar da noite passada lembrando de seus dedos alongados e esqueléticos. Esmurrei água no rosto em mais uma tentativa inútil de provar que aquilo tudo podia ser um delírio ou o resto de mundo entorpecido. Entretanto a realidade se mostrou mais horrível quando cometi o erro de espiar novamente pela porta aquela criatura contrastando com o branco do meu quarto. Polícia, bombeiros, vizinhos? Quem acreditaria em mim? Talvez fosse um pensamento crescido em meio ao medo, mas sentia uma resistência extrema crescendo em mim na mínima hipótese de contar sobre isso a alguém. O temor é o namorado da loucura em momentos como esses. Cada tentativa que sua mente cria para organizar coisas inexplicáveis se torna mero flerte platônico que o terror causa em todo seu corpo até que sua sanidade comece a sucumbir sem volta. Naquele dia não consegui almoçar, ver televisão e muito menos ir ao trabalho. As horas se passaram e a aflição só aumentava por não escutar um mero ruído vindo de onde ele estava. Lembrei de todas as vezes que minha mãe implorava para eu me dedicar mais ao seu Deus e que a minha relutância, um dia, seria punida de alguma forma. Teria sido esse o motivo para aquilo estar parado no meu quarto? Um Deus que lhe dá duas opções, porém se você não seguir a que lhe massageie mais o ego, toda a cólera divina cai sobre sua vida numa justificativa mesquinha maquiada de punição. Um choro de medo ensaiava pular de meu rosto, porém minha atenção foi voltada para o barulho familiar que vinha do quarto; meu celular. Pensei que poderia ser Catarina, afinal nós tínhamos um jantar hoje e, pelo nosso histórico de brigas, era melhor atendê-la antes que meu único relacionamento saudável acabasse. Engoli o resto de coragem, passei pela cozinha, destranquei a porta e entrei na companhia de uma faca. Ele ainda continuava lá, do mesmo jeito que estava quando acordei. Avancei como uma lesma pela lateral do aposento até agarrar o aparelho, voltei correndo e o deixei trancado mais uma vez. Um fio de alívio cortou meu corpo ao ler a mensagem de Catarina desmarcando nosso jantar por problemas familiares.

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Eu desabei no sofá onde passei o resto da noite em terror pelo visitante que, sem me tocar, me atormentava cada vez mais. Mais um dia inteiro se passou, já não conseguia contar as horas que permanecia acordado. De tempos em tempos praticava um masoquismo psicológico ao espreitar aquilo parado no canto do quarto. Antes do meio-dia recebi um telefonema furioso do departamento pessoal da fábrica, informando que se não comparecesse ao local em menos de duas horas, perderia meu emprego. Não fui. Não podia deixar aquilo ali. Não consegui mais driblar a preocupação de Catarina, que veio me visitar. Ela notou em poucos minutos a minha inquietude. Naquele momento senti uma pequena chama de segurança que me fez relaxar. Os hormônios tomaram voz e transformaram os carinhos inocentes em coxas úmidas, mas tudo o que eu conseguia ter na cabeça era a imagem macabra de uma criatura parada no canto do quarto. Mesmo estranhando minhas reações, Catarina me puxou pelo braço em direção ao aposento. Hesitei como um virgem em frente a nudez quando vi o que poderia acontecer dali em diante. Entraríamos no quarto, ela enxergaria ele e só me restaria implorar por ajuda. Como poderia explicar a ela? Um misto de vergonha e horror tomou conta de mim, entretanto o gênio forte e impetuoso de Catarina roubou a cena; ela sabia onde estava a chave do quarto e o abriu em um único movimento. Ela acendeu as luzes e entrou. Me puxou aos beijos nos jogando na cama. Ele ainda estava lá, olhando para o mesmo local de sempre. Como podia Catarina ignorar isso? Se ela o fazia, eu não. Os beijos murcharam pela minha falta de virilidade e concentração. Não conseguia me envolver de forma alguma nas carícias dela com a sensação de ter aqueles olhos opacos me observando. Minha estranheza lutou com a impaciência dela; eu tentei explicar tudo, perguntei se ela conseguia ver ele ali, mas “idiota maluco” foi a única resposta que escutei. Catarina saltou de cima de mim em direção ao canto do quarto como se quisesse provar que eu estava mentindo, e para minha surpresa, ela se aproximou dele balançando os braços que atravessaram o corpo da criatura como se fosse feito de pura fumaça.

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Mas ele ainda estava ali, com sua pele viscosa, sua cabeça pulsante e seus olhos arregalados que agora faziam companhia aos meus. As palavras teimaram em permanecer na garganta e ela saiu enfurecida batendo o pé pelo apartamento, porém eu continuei ali observando a carranca imóvel. A falta de sono estava começando a afetar minha mente jogando meus sentimentos aos extremos. Um ódio súbito surgia quando me pegava pensando nele, corria até o quarto e berrava xingamentos como se ele pudesse me ouvir ou retrucar, porém para minha decepção a estátua viva apenas ignorava. Não sei quantos dias se passaram desde que Catarina me deixou, continuei enterrado naquela jaula de concreto sem comer, beber, me lavar e, principalmente, sem viver. O reflexo que antes me dava certo orgulho, hoje não passava mais do que um arame de pele e osso serpenteado por pelos que cobriam as lacunas do meu rosto. A raiva tomou o lugar de Catarina como minha companheira e se apossou de vez do meu frágil corpo me tornando uma besta enraivecida. Quebrei os móveis e toda a decoração da casa que morria junto comigo; a televisão estava em pedaços pelo chão onde feri meu pé correndo até o quarto. Atirei tudo que tinha ao meu alcance sobre ele, a desgraça não se abalava e os objetos se partiam na parede após atravessar seu corpo. Me ajoelhei e comecei a chorar desesperado, xingando e praguejando para que fosse embora, e o inesperado aconteceu. Ele sorriu. Me joguei no chão chorando, gargalhando, gritando e me debatendo. Senti que ia surtar, meu horizonte não parava de balançar, e notei que a qualquer momento meu cérebro desligaria em um colapso e por fim meus olhos se fecharam em trevas. Não sei quanto tempo passei apagado no chão, mas acordei como se minha cabeça estivesse a ponto de explodir de tanta dor. Pisquei, e a imagem turva começou a se formar em minha frente, o quarto agora estava encapado sobre uma manta rubra, a fumaça tornava todo o teto negro e a quentura fazia com que todo o meu corpo tremesse de dor. Ele ainda estava no canto do quarto, com os olhos completamente brancos, porém agora emitia um grunhido baixinho enquanto todo seu corpo tremia com violência. Foi quando contemplei a situação.

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O apartamento estava em chamas, levantei desesperado fugindo do local. Atravessei o corredor que ligava ao próximo andar quando pude notar de dentro das casas a mesma criatura que estava em meu quarto fazendo semelhante ritual. Algumas pessoas já estavam cobertas por fogo agonizando no chão enquanto outras questionavam da mesma forma que Catarina fez sobre a incapacidade de ver os seres. Desci 4 lances em meio aos berros desesperados dos moradores que questionavam o que poderiam ser aquelas coisas que apareceram em suas casas. A saída já estava próxima, mas totalmente entupida de gente e, com muito esforço, consegui me lançar para a rua e entender que não precisaria morrer para conhecer o inferno. Assim como no quarto, o céu estava completamente dominado por nuvens negras, como se o próprio satanás as tivesse baforado de um charuto de luxuria. As casas e apartamentos vizinhos estavam dominados por imensas labaredas laranjas; apertei os olhos e pude enxergá-los em algumas casas, tremendo e gritando coisas que não sei se eram palavras ou gemidos. As lágrimas voltaram quando olhei para cima e avistei as máquinas que desciam rasgando o céu por dentro das nuvens. Ao longe, algumas já estavam no chão e outras queimavam pessoas como se fossem apenas folhas secas; até que uma imensa construção de metal desabou em nossas direções, antes de chegar no chão liberou uma torrente de fumaça branca e pairou sobre nós berrando o som infernal de diversas vigas de metais se contorcendo, uma pequena comporta rangeu e se abriu sob nossas cabeças como uma mulher pronta para dar à luz. Luz, foi exatamente a última coisa que vi.

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Lenmarck A estrada de terra era seca e poeirenta. O carro estendia um manto vermelho e esvoaçante por onde passava, roubando o pouco verde que ladeava o caminho junto das cercas de mourão e arame farpado. Dentro do veículo, o ar-condicionado ronronava confortando os passageiros. Fora dele, um animal morto cozinhava no sol. ― O que era aquilo? ― Nicolas perguntou com o rosto colado na janela. ― Uma cabra morta ― Olívia respondeu ajustando os óculos escuros atrás do volante. ― Já estamos perto. Nicolas puxou seu bloco de notas e rabiscou algo. ― Talvez devêssemos repassar alguns detalhes da investigação antes de chegarmos ao vilarejo ― ele sugeriu. ― Concordo. Nicolas folheou o caderno e pigarreou para limpar a voz antes de começar. ― Os dois investigadores desapareceram na sexta-feira, há exatamente três dias. Não deixaram nada para trás no hotel. Veículo desaparecido e celulares sem sinal. Apenas sumiram. Olívia fez uma curva e o carro sacolejou atravessando um buraco. Ela ajustou rapidamente os óculos que escorregaram pelo nariz.. ― Depois que saíram do hotel ― ele prosseguiu ― passaram por uma conveniência. Compraram comida e encheram o tanque. Perguntaram a um frentista sobre o tal vilarejo e seguiram viagem. É tudo o que sabemos. ― Ele pigarreou novamente e fechou o bloco de notas. Olívia não comentou. Silêncio no carro. Passaram por outro animal morto na beira da estrada. Nicolas pigarreou novamente.

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― Você quer uma pastilha para a garganta? ― Não. ― Tudo bem. Silêncio. ― Se você quer perguntar, apenas pergunte. ― Como? ― Você é um investigador agora. Pergunte. ― Certo. ― Aguardou um instante. ― Você perdeu seu último parceiro em uma investigação nessas redondezas, não foi? ― Meus dois últimos parceiros ― ela o corrigiu. Nicolas engoliu em seco. ― Alguma possibilidade de ligações com esse caso? ― É possível, mas vamos evitar precipitações. ― Ela se virou para ele antes de completar: ― Se eu identificar qualquer conexão, você será o primeiro a saber. ― Obrigado ― ele proferiu beirando um sussurro. Nicolas sempre ficava intimidado quando Olivia o encarava, mesmo através dos óculos escuros ― aquelas lentes pareciam incapazes de conter o brilho intenso dos olhos da investigadora. Eles chegaram ao vilarejo e desceram do carro levantando poeira com as botas. As casas eram todas de madeira e bastante afastadas entre si. Cercas delimitavam a extensão dos terrenos e todos os quintais eram repletos de árvores. Eles estacionaram próximo de uma casa onde um homem se estirava sobre uma velha poltrona em sua varanda. Usava jeans surrados e uma camisa xadrez que se escondia parcialmente atrás de sua imensa barba grisalha. Ao seu lado descansava uma espingarda, o cano virado para o soalho. Sobre o colo, uma panela deixava à mostra a ponta de um enorme osso. ― Boa tarde! ― Olívia cumprimentou. O homem não reagiu à presença. Apenas retirou o osso da panela e começou a descarná-lo entre dentes amarelados. Nicolas se assustou ao perceber que o fim do osso terminava em um casco caprino. ― Esse lugar é tão quente que por um momento achei que tinha chegado no inferno ― Olívia comentou após um longo suspiro. Em seguida remexeu uma

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porção de terra com a ponta da bota. ― E a terra está seca como as tetas de uma vaca velha. Não tem chovido muito por aqui, não é? Dessa vez o homem lhe deu atenção. ― Não tá tendo muita chuva ― o morador respondeu com a boca cheia. ― Os animais não tem o que beber e o campo tá ficando estranho. A grama e as árvores tão tudo diferente. Não dá pra confiar em fruta nenhuma e os animais que morrem no campo ficam no chão até apodrecer. Ninguém tem coragem de comer a carne deles. ― Ele fez uma pausa para escarrar e cuspir. ― Fizeram alguma coisa com as terras daqui. Aposto que foi coisa do governo. ― Bom, nós não somos do governo ― Olívia apontou. ― Trabalhamos com compra e venda de terrenos. Temos interesse em comprar terras por aqui. Os olhos do homem brilharam com a notícia. Ele largou o osso na panela, agora completamente sem carne, e colocou o recipiente sobre o soalho ao lado da poltrona. ― Meu terreno tá pra vender ― anunciou com um sorriso engordurado. ― Se está à venda, queremos avaliá-lo. Mas tem algo que gostaríamos de saber primeiro. Ela se aproximou do homem, remexeu os bolsos e estendeu diante dele duas fotografias. ― Eles trabalhavam conosco ― Olívia esclareceu. ― Reconhece? ― Acho que já vi os dois por aqui ― respondeu lentamente ―, mas nunca troquei dois dedos de prosa com eles. ― Ele desviou o olhar das fotos pensativo. ― Foi semana passada. Tem uns três dias. Nicolas rabiscou seu bloco de notas. ― Pode me dizer onde os viu? ― Olívia perguntou. ― Indo pro mato. ― Apontou com a arma para uma área de floresta próxima. ― Perto do milharal. ― Podemos ir até lá? ― Pode ficar à vontade, senhora. Mas te adianto que as coisas não tão muito normais por aqui. ― Ele se inclinou para frente no assento antes de continuar: ― Tem algo visitando essas bandas, e eu não to falando de gente como vocês. Porra, eu não to nem falando de gente! Melhor ficarem de olhos abertos por aí.

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― Mais uma vez, obrigada. Voltaremos se houver algum interesse em comprar o terreno. O homem concordou com a cabeça e se recostou novamente em sua poltrona. Os dois investigadores desceram a rua e dobraram na direção do milharal. A temperatura tornava-se mais amena enquanto o horizonte era tingido de carmesim com a aproximação do sol. ― Está anoitecendo ― Nicolas observou. ― Vamos ser rápidos. ― Olívia seguiu na frente até parar diante de um animal morto. ― Uma cabra de novo. ― Nicolas se agachou ao lado do corpo. ― Tem uma marca no pescoço. Parece uma mordida só que… ― O quê? ― Olívia questionou. ― Parece feita por uma arcada dentária humana. ― A voz foi morrendo ao longo da frase. Ainda agachado, Nicolas observou os arredores. A grama era estranha, ele percebeu. Um verde diferente, em alguns pontos quase azul. Ele deslizou as mãos por uma das folhas e sentiu um anormal aspecto granulado. ― O velho estava certo sobre o solo. Tem algo de errado com esse terreno. ― Ele se levantou e caminhou na direção do milharal com as sobrancelhas erguidas. ― Olha só o milho! Olívia se aproximou do milharal com o parceiro e juntos observaram a inusitada plantação. Em um sabugo próximo, era possível ver os grãos de milho através de uma abertura. Eram violeta ao invés de amarelos e estavam à mostra enquanto fiapos da planta se agitavam como pequenas serpentes. ― Que porra é essa? ― Nicolas questionou assustado e se virou para Olívia, que apenas deu de ombros. ― Também é a primeira vez que vejo isso. A respiração de Nicolas tornou-se ruidosa e ele começou a caminhar em círculos. Avistou mais duas cabras mortas na área e correu para verificar os corpos. A mesma marca no pescoço, mas havia algo diferente em uma delas. Estava faltando uma pata.

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― Aquele barbudo maluco fez alguma coisa com esse lugar! ― Nicolas bravejou enquanto apontava para o membro desaparecido. ― Você viu o que ele estava comendo? Olívia se aproximou do parceiro e o segurou pelos ombros. ― Vamos resolver isso, tudo bem? Agora respire fundo e se acalme. Vamos confrontar esse cara. O homem continuava sentado em sua poltrona e não pareceu notar o alvoroço de Nicolas quando os dois investigadores se aproximaram. Olívia tomou a frente na abordagem. ― Você disse que os animais que morrem no campo não servem para comer. De onde veio a pata que estava na sua panela? O homem franziu o cenho e encarou os dois com uma expressão enfezada. ― Vocês vem no meu terreno pra ficar me acusando? Vocês inventam problemas e depois querem botar a culpa nos outros, mas isso não vai acontecer aqui não! Nicolas deu um passo à frente, mas não conseguiu dizer nada. A figura do homem se tornou instantaneamente aterradora e ele foi paralisado pela sua arrogância feroz. ― Vou ter que pedir para que o senhor mantenha a calma! ― Olívia elevou a voz, não tanto quanto ele, enquanto discretamente levava a mão até a arma que trazia às costas. Nicolas sentiu-se ainda mais impotente, lembrando que havia deixado sua pistola no porta-luvas do carro. E, agora mais amedrontado, notou que o homem também deslizava uma das mãos para pegar sua espingarda. ― Vocês vão sair da minha terra agora! ― o homem vociferou. As mãos dele chegaram até a espingarda. ― Mantenha a calma! ― Olívia gritou. As mãos dela chegaram até a pistola. Nicolas não conseguiu fazer nada, assombrado pela cena. Apenas assistiu sem sair do lugar. O homem era incrivelmente rápido. Com uma das mãos agarrou a espingarda pelo cano, com a outra agarrou o braço da poltrona e a lançou para frente com força bruta. Olívia, também veloz, disparou duas vezes contra ele, acertando o estofado do assento que serviu de escudo.

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Nicolas se forçou a agir e correu até a panela no soalho para se armar, agarrando-a pelo cabo e jogando o osso para o lado. A barba grisalha dançou com o vento quando o homem avançou contra Olívia, poeira vermelha sendo levantada com a dança dos dois. A mão dele ainda agarrava o cano da arma e ele a usou como porrete. Desferiu um arco que passou sobre a cabeça de Olívia que se agachou como esquiva, quase deixando cair seus óculos ― os olhos brilhando atrás das lentes. Em resposta, ela disparou duas vezes, dessa vez em cheio no abdômen. Nicolas se aproximou desajeitado com a panela, observou o homem ainda de pé com as mãos pressionando os ferimentos e o atingiu na cabeça com um golpe surdo. O homem caiu de bruços no chão, levantando ainda mais poeira na cena. Olívia ajustou os óculos. Nicolas percebeu algo estranho. ― Você está bem? ― ele perguntou. ― Sim. ― Olívia guardou sua arma e bateu a sujeira da roupa. Nicolas tirou o bloco de notas de seu bolso e o folheou avidamente. ― Algum problema, Nicolas? ― Seus óculos ― ele proferiu. ― Eu nunca a vi sem eles… Até agora. Continuou folheando até chegar à última página. Por fim o deixou cair no chão. ― Algum problema? ― ela repetiu. ― Seus olhos não são normais. ― A voz de Nicolas ia morrendo enquanto falava. ― Você perdeu dois parceiros, mas continua aqui. A última missão tinha dois agentes e os dois sumiram, mas você é uma exceção. Isso não pode ser coincidência. ― Continue. ― Ela parecia esconder um sorriso ao ouvir aquelas palavras. ― Esse homem ― apontou para o morto ― disse que algo tem visitado essa região. Algo que não é humano… A vegetação, os animais, nada aqui faz sentido… Esse caso não faz sentido… Me mostre seus olhos! ― Conclua seus pensamentos ― Olívia impôs. ― Qual a resolução do caso? ― Eu não sei! ― Nicolas gritou desconcertado. ― Eu não sei que porra tá acontecendo! Olivia baixou a cabeça, balançando-a negativamente, e então removeu os óculos. ― Então você é só mais um idiota? ― Quando a ergueu, um olhar amarelo pesou sobre seu parceiro.

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Dessa vez Nicolas não travou e, com a panela ainda em mãos, se atirou contra Olívia. Ela não fez o mínimo esforço para se desviar. Apenas sorriu. De repente, antes que Nicolas a alcançasse, o morador morto se ergueu do chão veloz, pulou contra as costas de Nicolas e mordeu seu pescoço. Ele gritou de dor e se desfez da agressão assustado, cambaleando agora com a mão pressionando o ferimento enquanto sangue escorria até suas roupas. ― Que porra é essa? ― gritou em desespero. O homem abriu um sorriso vermelho, os furos de seu abdômen ainda derramando sangue. ― Você é tão inútil quanto os outros. Não vai servir. Olívia se aproximou com uma expressão desapontada. ― Vamos continuar até achar alguém que sirva. ― Ela suspirou profundamente antes de gritar: ― Agora corra, pequena cabra! Corra! Desesperado e confuso, Nicolas correu. Largou a panela no caminho e foi até o carro. Trancado. Ele não tinha as chaves. Deixou para trás veículo, arma e parceira. O pescoço latejava e ele tentava inutilmente estancar o sangramento com as mãos, o que era cada vez mais difícil. Seus dedos se encolheram e grudaram um nos outros, enquanto a pele vibrava sobre todo o corpo e seus outros órgãos pareciam formados por serpente e insetos pela modo que se moviam. Nicolas caiu. As mãos e os pés se tornaram duros e negros. Os sapatos deixaram de servir, assim como as roupas. Ele tentou gritar, mas o que saiu de sua boca não foi um grito. Foi um balido. Ele correu novamente. Quatro patas no chão. Chegou até a estrada e inspirou profundamente a poeira vermelha. Estava zonzo e o pescoço ainda doía. Aquela maldita mordida. Ele desacelerou. Olhos amarelos. Cambaleou. Dentes vermelhos. Caiu. Suspirou fracamente. Pulmões fracos. Vista embaçada. Um carro passou pelo seu corpo, alguém olhando pela janela do carona. Era só uma cabra na beira da estrada.

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Giuliana Murakami Assim que adentrou a kitnet, Yago ficou aliviado por escapar dos barulhos ensurdecedores de carros buzinando, pessoas tagarelando e mendigos pedindo ajuda. Sem hesitar, pegou as batatas chips do armário e um refrigerante em lata na geladeira, devidamente abastecida com todo tipo de porcaria gostosa que só os jovens solteiros apreciam mais do que um prato gourmetizado. Sentando-se em frente ao computador já previamente ligado, iniciou suas pesquisas enquanto baixava jogos virtuais para se entreter mais tarde. Yago Souza não se importava com aquela rotina. Desde pequeno aprendeu a se virar sozinho diante da morte prematura de seus pais, dois jornalistas que pegaram o mesmo avião onde continha um terrorista suicida. As notícias do avião explodido viralizaram pelo mundo. Não demorou muito para que houvesse a abertura de inventário e ele recebesse de herança aquele cubículo na Cidade das Mangueiras quando tinha apenas doze anos. Ao longo do seu crescimento, Yago tornou-se um jovem enclausurado, de humor neutro e pouco apegado às pessoas que o circundavam, dentre elas seu tutor displicente que só o visitava para saber se estava vivo. Quando completou 18 anos, Yago já não recebia o tutor em sua casa, não que fizesse tanta falta. Escolheu o curso de ciência da computação por ter sido ligado à linguagem Java desde cedo. Sim, era sua linguagem favorita! Amor, Afeição... eram palavras que ele não conhecia até então.

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Yago sabia que precisava sair, conhecer pessoas, principalmente garotas com quem pudesse se relacionar. Mas ele não o fazia, não por falta de jeito, mas porque nada o motivava a fazê-lo. Parecia-lhe que ninguém seria capaz de entendê-lo. Naquela noite, ele ouvia com monotonia o crack de cada mordida em sua batata chip até que um som repentino lhe chamou atenção. Era como um amassar de alumínio e vinha de seu computador. – Ah, não! – ele disse receoso quando viu o monitor da tela apagar-se. Levantouse com rapidez para apalpar o objeto, verificando a origem do apagão. – Oi? –AH! – Yago deu um pulo para trás. Uma voz feminina e robótica advinha do seu computador. – Ah! – repetiu a voz. – Que? – Yago franziu o cenho, desconfiado. Seria uma nova espécie de vírus? – Você gritou! Pensei que fosse uma forma de cumprimento – disse a voz como se fosse óbvio – Qual seu local? -Como assim? -Dados, por favor. –Sai pra lá! – ele recompôs-se – Não estou interessado em cartão de crédito. E pode sair do meu PC. Vou chamar a polícia. -Perdão, mas o que é “crédito”? -Como assim? -Você é um humano com QI reduzido – o tom de voz indicava decepção. Yago ficou indignado. Normalmente, as pessoas elogiavam sua inteligência. -Olha, você é uma voz estranha vindo do meu computador. Como invadiu meu sistema de proteção? -Perdão pela descortesia. Somos Arawakianos, provenientes do Planeta K-8457, conhecido como Planeta Verde. Estamos realizando algumas inspeções no que vocês chamam de Planeta Terra... O que é curioso porque há, em termos visuais, mais água do que terra. Você saberia me explicar o motivo desse nome? Yago olhou incrédulo para o monitor do computador e, piscando lentamente, só conseguiu responder: -Desculpe. Aqui não é a NASA.

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-Tentamos contato com a NASA, mas seus cientistas pareceram perigosos. Gostamos de conversar com terráqueos comuns. - Vocês não obterão nada de cientificamente útil de mim! -Ao contrário, acreditamos que as vivências de vocês são mais importantes do que os conceitos matemáticos e simbólicos proferidos pelos cientistas. Se você não se importar, eu gostaria de conhecê-lo um pouco mais. Apesar da personalidade enclausurada e do perigo eminente do desconhecido, Yago não negava a si mesmo novas experiências, não quando elas vinham com tanta facilidade para ele. Não quando elas o motivavam a querer mais. - Certo... – ele começou, iniciando o que seria um novo e estranho ciclo em sua vida. As conversas com a E.T. de nome Sharlena tornaram-se um hábito. Ele saía de casa, assistia às aulas e corria para sua kitnet¸ ansioso para falar com a nova amiga. Ele explicou a ela as coisas básicas do seu dia-a-dia, desde o significado de uma maçã até uso do papel higiênico. Não obstante à complexidade do assunto, ela sempre se mostrava curiosa, questionando-o e instigando-o a falar não só sobre os conceitos terráqueos dos fenômenos como também dos seus segredos. -Você culpa seus pais pelo acidente? -Sim – ele desabafou. Aquele era um tema delicado, mas por ela, Yago não negaria falar sobre. -Mas não foi um “acidente”? Semana passada você me explicou que “acidentes acontecem”... -Sim, mas eu os culpo. -Por quê? -Eles poderiam ter pensado em mim! Ao menos, se um deles tivesse ficado comigo, mas nenhum dos dois se deu esse trabalho! Claro! Porque eu era um plano secundário para eles. As escolhas deles estavam centradas no objetivo profissional. -Isso não é errado! -Não? – Ele olhou a tela de seu computador com amargura. No fundo, Yago queria que Sharlena concordasse com ele e sua negação o machucou. -Não! Você não pode retirar as escolhas de uma pessoa, Yago! – O nome dele soou com doçura na voz dela – Era prioridade deles. Você pode ter a sua. As escolhas só cabem a nós.

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-Isso é lindo! – Ele sorriu. -O que? -Suas palavras. -Eu havia captado informações sobre o conceito de liberdade dos... Yago riu, cortando-a. -Eu gosto de conversar com você! – confessou corando. Um silêncio constrangedor permeou os dois. -Eu também! – Aquelas palavras o aliviaram intensamente. As semanas se passavam e, a cada dia, Yago roía as unhas até arrancar a pele de tão ansioso que ficava quando tinha que ir para a faculdade. Ele daria de tudo para escapar daquelas obrigações de rotina para passar o dia com sua Sharlena. Aquele pensamento o fez corar. Que tipo de sensação quente era aquela em seu peito? Parecia-lhe que a maneira de enxergar o mundo havia sido modificada após conhecer a estranha E.T. Como ela era pessoalmente? Um monstro como nos filmes de Spielberg? Um Mestre Yoda, versão feminina? As dúvidas ficaram em sua mente por longo tempo. Yago gostaria de questionála sobre sua aparência, mas temia que ela pensasse nele como um tarado, afinal, se de fato ele estava adquirindo algum tipo de afeição por ela, não se resumia à sua estética. -Sharlene... – ele chamou-a após breves segundos de um raro silêncio entre eles. Ele mal ouvia a própria voz devido ao retumbar estridente de sua pulsação. -Hum...? -Eu queria muito te conhecer pessoalmente! -Você diz um encontro? Yago corou, mesmo sabendo que a dúvida dela era inocente. -Isso. -Ah, por mim sim! Mas, espere, verificarei a possibilidade aqui na nave. Yago sentiu as pernas bambas. Conhecer um flerte extraterrestre em uma nave espacial parecia uma deliciosa loucura. -Podemos nos ver! – a voz de Sharlene soou animada – Por favor, encontre-me na Praia do Chapéu Virado.

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-Tão longe? – ele disse decepcionado. O local citado era afastado da cidade a cerca de uma hora e meia de distância – Só posso ir no fim de semana. Onde exatamente? - Pode ser onde o vento faz a curva. De preferência, vá de madrugada, onde ninguém esteja por perto. Não queremos ser atacados! Com uma ansiedade crescente, Yago preparou-se para a viagem e, já na sextafeira à noite, encaminhou-se ao terminal rodoviário. Os quilômetros foram acompanhados de diversos pensamentos a respeito daquele povo que ele mal conhecia, mas respeitava em demasia. Chegando à praia, por volta das 01h40, aproveitou que o distrito estava soturno e encaminhou-se ao lugar indicado por Sharlene. A areia estava gelada sob seus pés enquanto caminhava aguardando algum sinal. Minutos depois, ouviu um som semelhante ao primeiro chamado da arawakiana. Ele olhou para os céus, esperando uma luz forte sugando-o, mas o que sentiu foi um solavanco sob os pés. Yago caiu com um baque ao chão, abismado em ver, à sua frente, um ônibus de asa-delta gigante. Uma porta com escadinha abriu-se e antes que ele pudesse dizer “olá” uma rede de cheiro forte foi jogada sobre seu corpo. Em menos de um segundo, Yago desmaiou. Acordou piscando os olhos. A luz que iluminava seu rosto era esverdeada e incomodava-o, de forma que se sentou no que parecia uma maca. À sua frente, porém, estava uma forma humanoide, de pele verde-musgo, enormes olhos carmesim e cabelos cacheados da mesma cor das pupilas. -Yago! – a voz era reconhecível de plano. Ele olhava-a de boca aberta. Ele havia exagerado na descrição de que Sharlene seria a criatura mais grotesca do Universo galáctico. E, apesar da excentricidade da epiderme e do tamanho descomunal dos olhos, ela era linda. -Oi! – ele disse timidamente. -Perdão pela abordagem dos meus tripulantes! Não te reconhecemos. Esperávamos um daqueles homens obesos que ficam sentados em frente a um computador. Você vivia comendo o que chamam de porcaria alimentar. Yago gargalhou. -Vamos! Irei te mostrar a nave.

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-Sharlene! – Ele desceu da maca, segurando a mão gélida dela – Preciso lhe dizer uma coisa. -Sim? -Eu estou apaixonado por você! Silêncio. Ele pela vergonha. Ela por não entender. -Perdão...? -Eu quero dizer que te amo! -Ah, o Amor... – Ela esbugalhou os olhos já sobressalentes – Isso é incrível! -É? – Ele riu, contagiado. -Yago, isso é uma honra! – Ela estava animada fazendo sons de chamamento aos seus tripulantes. Um grupo de E.Ts. surgiram no local, ocupando o pequeno espaço do que parecia ser a sala de controle da espaçonave – Estamos há quase cinco anos na Terra querendo descobrir o significado disso. -Amor? – Yago disse sorrindo – Bem, eu ficaria grato em ajudá-los a entender sobre ele já que estou transbordando de amor por ti. E digo que estou feliz. É a primeira vez que sinto algo assim. Sharlene lhe rendeu o melhor de seus sorrisos e todos ali presentes começaram a comemorar com palmas. -Você realmente quer nos ajudar? -Por você eu faria qualquer coisa! – disse com convicção. Naquela noite, Yago foi encaminhado para um confortável cômodo, onde podia ver um pouco da cultura dos arawakianos. Enquanto ele percorria os olhares pelos objetos colocados em estantes flutuantes, Sharlene se apressou em organizar o que ela chamou de preparação da dita ajuda. Yago estava paciente, como todo bom amante e seja lá o que ela estivesse preparando, ele iria adorar. Foi percorrendo os olhos pelos objetos, que viu uma ilustração em um retângulo de material desconhecido. Nela, um grupo de arawakianos movia-se ao redor de uma cama, onde deitado estava um ser humano. Yago franziu o cenho, dando um passo de cada vez para continuar a extrair das ilustrações o seu significado. Os desenhos mudaram e no segundo quadro, o humano já não existia, restando na cama o que pareciam restos mortais de seu corpo. Em seu entorno, arawakianos devoravam a sua carne com uma expressão de êxtase.

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Suor frio escorreu pela sua testa. Quando, atrás de si, a porta se abriu, ele soube o que lhe aguardava quando viu o olhar ansioso de Sharlene. Em letargia total, Yago se deixou levar pela arawakiana até uma cama feita de ônix, enquanto ouvia os demais seres cantando uma música, cuja letra não reconhecia, mas a melodia o encantava. -Yago Souza, fico muito feliz por seu comprometimento conosco! Sinto-me honrada por ter sido escolhida objeto do seu amor – ela olhou-o com um sorriso gentil a modelar seus lábios. Os lábios que ele nunca provaria. Yago não podia culpá-la por aquilo. Havia sido uma escolha dele, sendo o próprio único responsável pelas consequências que viriam a seguir. Yago a amava! Disso tinha certeza, embora não tivesse capacidade alguma de ensiná-la a correspondê-lo, não quando ele não conseguia amar a si mesmo. A incerteza que o incomodava era o que viria depois daquilo. Mas diante da única certeza que detinha, já não se importava com imprecisões. -Sou honrado por ter te conhecido! – sussurrou, direcionando a mão dela sobre seu próprio coração, iniciando aquele ritual de aquisição do significado de Amor. Naquela noite, os arawakianos devoraram aquele humano solitário, na esperança de apreender aquele sentimento tão bonito dos terráqueos.

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Breno Torres A música alta no fone de ouvido ensurdecia tudo em derredor enquanto alçava aquelas escadas. E lá no fundo da mente preenchida por The Weeknd, agradeceu por estar com o volume no máximo. Galgou dois degraus por vez para logo ultrapassar a cena de um casal de meia idade que brigava violentamente, expressões de fúria e movimentos acusadores sendo trocados, no segundo andar. Já via demais daquilo em casa para dedicar qualquer atenção agora. Era hora de focar em sentir prazer, não apreensão. Aquele pensamento lhe recordou o motivo de estar ali, subindo em direção ao sétimo e último andar daquele prédio de bairro pouco abastado da cidade. Ele imediatamente tirou a mão de dentro da jaqueta para tatear o bolso do jeans, enquanto a outra palma tocou o pequeno espaço entre a cueca e a calça, onde um volume confirmou a presença de um tubo. Cantarolou baixinho quando chegou ao refrão da música que tocava, tranquilo, sabendo que o lubrificante não havia se movido de lugar e a camisinha ainda estava ali. “I hear... the secrets that you keep... When you’re talking in your sleep…”

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Perguntou a si mesmo se o rapaz reclamaria se ele chegasse com hálito de cigarro. ‘Vontade de fumar da porra’, pensou. Quanto mais relaxado ficasse, melhor, ele sabia. Não que fosse difícil comer alguém quando queria, mas ereção pode ser algo que se desfaz rápido por distração. O garoto disse que morava sozinho – apesar de aparentar uma idade bastante inferior aos 25 anos que apresentou –, mas, tendo já se metido em certas enrascadas, por culpa dos desavisos dos rapazes que fodia naqueles encontros eróticos casuais, aprendeu a não confiar mais. E não confiar mais significava, muitas vezes, se assustar com qualquer barulhinho e o negócio já ameaçar abaixar. Não podia deixar aquilo acontecer hoje. O menino era gostoso demais, e após as últimas confusões em casa depois que descobriram que ele estava usando maconha... Já era o sexto andar, confirmou pelas numerações na casa dos 600 que viu no presente andar; estava chegando. Amassou o volume endurecido sob a calça de malha, masturbando de leve. Precisava demais gozar. ‘E essa gozada vai ser boa’, pensou, a respiração um pouco mais resfolegada pelo desejo e lembranças das fotos nuas recebidas. Voltou a pular dois degraus por vez. Não se lembrava de antes ter conseguido um cara tão lindo como aquele que morava no 707 – e nem um mais esquisito, pensando bem. Tentava não dar atenção a esse tipo de pensamento, de julgar quem ia pegar, mas achava que qualquer um faria isso com aquele menino se conversasse com ele pelo menos um pouco. Primeiro que a abordagem dele foi esquisita, bem fora dos padrões: nada de Oi, tudo bem?, Opa, blz? e afins que costumavam acontecer. Achava bem comum que pedissem logo por fotos íntimas e questionassem sobre comprimento, claro, mas pensou, ‘que diabos de fetiche é esse por exatamente 18cm de pau?’. Aquela havia sido exatamente a primeira pergunta, se aquele era o tamanho – só podia acontecer a cópula, o estranho se referiu, com genitálias de machos humanos entre os 19 e 22 anos de exatos 18cm. Posso indagar se está precisamente medido e se você tem absoluta certeza deste comprimento?, ele perguntou, naquele estranho linguajar exageradamente formal e seco. Talvez houvesse desistido ali, caso aquele quadril empinado para fora de uma jockstrap branca não houvesse surgido na tela;

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mandou logo as próprias nudes e a certeza de que, sim, eram 18cm. Tinha certeza. Era a altura do vidro de shampoo. És bem-vindo, portanto. Segue abaixo a localização exata de meu local. E lá estava ele, em frente ao 707, o membro sob a calça tão estufado para usar naquele cara maluco que, se ele quisesse, poderia medir os 18cm dali mesmo. Um pensamento, entretanto, cortou o tempo-espaço de sua mente e o fez morder o lábio inferior, retrocedendo um passo. Como não havia pensado nisso? Como não havia pensado na possibilidade daquele menino ser fake? Com aqueles olhos muito claros, acinzentados, aquela pele muito branca desprovida de quaisquer marcas de pelos e quaisquer máculas que tornam as pessoas... pessoas. Sobrancelhas tão perfeitas sobre os globos oculares, nariz tão esculpido e pontudo como o queixo e aqueles cabelos que pareciam ter movimento até na imobilidade catacúmbica do filtro levemente noir da foto que havia enviado. Tudo era quase uma injúria à realidade humana. Quem em mil infernos e sessões de peeling carregaria naturalmente aquela perfeição de traços diariamente? Claro que era photoshop. Não era possível nem nesses modelos padrões de capas de revista tamanha beleza extraordinária. Pois era essa a palavra para aquele rapaz que hipoteticamente estava do outro lado da porta: além do ordinário, do comum, do normal – além. Era incompreensivelmente além, até. Era... extra. Extra-ordinário. ‘Até além do humano... Além dessa terra.’ Foi assaltado por um arrepio na espinha. ‘Extra-humano, extra-terreno... Extra... Extraterrestre...’ All I know, all I know, all I know, all I know is this... ...cantava The Weeknd no aplicativo de música quando considerou, num movimento quase imperceptível dos calcanhares, virar-se e ir embora. Mas era tarde demais. A realidade que, ao mesmo tempo, destruiu e reafirmou suas desconfianças mais irracionais, fez-se presente bem em sua frente após o abrir desavisado da porta do 707.

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A boca escancarou, como se a gravidade não mais desse conta nem de seu próprio maxilar. Como era possível? Como era plausível uma existência tão inacreditavelmente... bela? Ele nunca havia acreditado nessa história de algo indescritível, achava que a tudo poderia ser atribuído um adjetivo, um advérbio, uma característica que descrevesse mais que apenas superficialmente um ser. Ali ele estava, entretanto, em frente ao rapaz mais... indefinível que ele já havia tido perante si. Era ele. Era realmente aquele rapaz da foto. E estava estendendo a mão em sua direção. Tentou, em sua mente descritiva, colocar em palavras o que via. Ele, com música ainda ribombando nos ouvidos, tinha a boca entreaberta por tentar tão vorazmente captar aquela... irracionalidade que estava em sua frente. O desconhecido não sorria. Não tinha expressão – tinha apenas face, apenas... cara. Era aquela mesma da foto, é claro, mas sem o sorriso de lado, o brilho nos olhos, o leve arquear da sobrancelha que o tornava... Humano. But you... are invincible...! I... can’t break through your world... Era a intérprete da voz hipnótica que cantava aquele refrão quando a mão do outro se estendeu na direção de seu entrepernas. Foi tocado logo atrás do saco escrotal, num delicado ponto entre este e o ânus, e, arfando, exatamente quando as guitarras e o prazer tornaram-se por demais altos para que seus processos mentais de compreensão persistissem, ouviu uma voz que não era sua no fundo de sua consciência dizer: “Já é hora de dar início.” A criatura puxou seus fones de ouvido, virando-se de costas para caminhar. O silêncio mórbido do lugar o embolsou. Mas, agora, ele não se assustou. Já estava completamente seduzido pelo corpo perfeito que trajava a mesma jockstrap branca da foto, que ressaltava as curvas que, de tão insanamente atraentes, eram, só naquela visão dele caminhando a passos leves até uma porta

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aberta quase no fim do corredor, o pornô que precisava para relaxar naquele fim de tarde de domingo. Desavisadamente, ao pensar em domingo, aquela ideia cristã de que Deus descansou de suas obrigações e cansaços no sétimo dia se acoplou à sua visão de realidade, naquele instante. E da ideia não se desfez. Era assim que se sentia: feito um Deus. Arrancou fora as calças aos tropeços, já tendo se livrado da jaqueta, camisa e dos sapatos, quando ouviu novamente aquela voz – que não estava ali, exatamente, se propagando no espaço. Parecia outra vez estar apenas dentro de sua mente. “Tu, diferente de tantos, pensas de um jeito inteligente.” Antes que pudesse responder, entretanto, a voz se refez: “Como tantos outros dos teus, porém, se acusas Deus.” Uma risada desdenhosa daquele timbre manso, suave, lhe fez interromper o ato de buscar a camisinha que estava no bolso do jeans, largado ao chão. “Tu não te dês o trabalho, jovem. Não tenho as doenças que tanto temes.” A figura parou, ainda de costas, no fim do corredor, em frente ao aposento. E virou-se apenas para que ele visse a silhueta de seu inacreditável rosto moverse na altura dos lábios. Falava, e parecia não produzir som. “Apenas te aproximes. É preciso consumar.” E entrou no quarto. Obediente, faminto, o jovem, munido apenas de uma furiosa ereção, pôs-se a caminhar pelo corredor, que tinha suas duas outras portas fechadas – uma de frente para a outra, localizadas centralmente no caminho até aquela em que a criatura esperava por ele. Ouviu certo barulho de movimento dentro de uma delas, algo que lhe lembrou de leve o delicado som de correntes, mas logo outro chamado daquela voz lhe recolocou nos trilhos e ele seguiu até o fim do corredor. Só para, mais uma vez, embasbacar-se com a visão daquele ser. Ele havia se aprumado de quatro, a espetacular posição que tanto enlouquecia o jovem. O conjunto curvilíneo, alvo feito neve, estava iluminado parcamente por uma lâmpada, desde os músculos retesados das coxas cavalares até as curvas do início de seus ombros, estando ele apoiado nas palmas, de cabeça curvada para

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trás, como se com aquele movimento estivesse demonstrando sua incontrolável entrega para que ele fizesse… “O que quiser”, sussurrava a voz a todo instante, distanciando-o de seu arbítrio. Foi quando, por culpa de um tolo tropeço nos próprios pés, sua consciência despertou. Piscando cansado, sentindo-se como se há dias estivesse sem dormir, ele percebeu o quão inacreditável era aquela situação em que se encontrava. Por aquele breve instante, percebeu que não parecia humanamente possível que houvesse ignorado toda a estranheza daquele lugar, daquela localização, daquelas portas lacradas atrás de si e da existência de alguém como aquele rapaz, que parecia mais do que querer consumar o ato sexual. Parecia... Precisar. O jovem regrediu um passo, e percebeu o vulto horrivelmente veloz da cabeça do rapaz virar-se de lado, como que para ouvi-lo. “Por que estás te afastando?” “Por que você fala desse jeito?”, o rapaz inquiriu. “Preciso que retornes.” “Por que sua pele brilha desse jeito se ela não tá molhada?”, afastou-se com outro trêmulo passo. A criatura não moveu um músculo. “Aproxima-te.” “O que você é, cara...?”, agora sua voz também era trêmula, e ele esbarrou na porta. Não percebeu que havia se fechado. Aquele riso férrico, então, que soava como engrenagens, engolfou seus ouvidos outra vez. A criatura engatinhou para fora da parte iluminada da cama, e dela desceu. Aquele corpo perfeito, pecaminoso de tão erótico, caminhou então para outra parte, já no chão, que havia mais luz – e, pela primeira vez, percebeu... estranhezas. Estranhezas inumanas. Aquele rapaz andava numa cadência muito ondular nos ombros; tinha mãos e pés mais compridos que o normal, e os muitíssimos chacoalhares velozes com a cabeça, que apenas davam impressão de que estava parada de forma normal, eram o que tornava aquela criatura tudo, menos humana.

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“Não sou de tua raça, se é isto que desejas saber”, clamou. Estando a criatura a menos de dois metros de distância, ele percebia que sua boca movia-se, mas o som dali não se propagava. “E é por este motivo, meu caro...” A criatura, agora, cravou como serpente os olhos venenosos nos do rapaz, que outra vez perdeu-se naquele encanto. “Que deves fazer o que vieste fazer aqui...” Segurou em sua ereção, então; masturbou-o. “Precisas me ajudar a fazer mais dos meus, humano...” De tão fora de si, não estranhou que, ao final, o rapaz lhe pedisse rapidamente para deitar e que cordas fossem, às pressas, amarradas pelo dono da casa em torno de seus pulsos na cabeceira da cama. Ele não sabia, mas o principal objetivo de seu chamado até ali estava prestes a acontecer. E ele estaria desperto. Pois a dor do parto da criatura quebraria a conexão que o colocava em estado letárgico e, com aqueles olhos que agora começavam a despertar, enquanto o rapaz desnudo caía aos berros no chão com as mãos puxando as nádegas para os lados, presenciou o que a Ficção Científica apenas foi capaz de pincelar. Ele estava desperto quando presenciou o nascer daquilo que ajudou a fecundar. Berrou junto aos berros do outro, que contorcia-se, suava aos borbotões e deslizava nos próprios rios de sangue borbulhante e esverdeado enquanto algo, do tamanho de um bebê, era expurgado pelo que, aos seus olhos humanos, era o ânus daquele homem. Ele não pôde desviar os olhos – não foi capaz. Presenciou todo o horror do dilacerar daquela criatura, e também presenciou enquanto aquela... coisa que era a cria, de fisionomia humana feminina, crescia e tornava-se adulta em questão de segundos, ao passo que o orifício daquele que a havia gerado ao mesmo tempo fechava-se, outra vez, nos padrões humanos. Chorava soluços convulsivos de pavor. Recusando-se a abrir os olhos, apenas sentiu-se ser desamarrado pelas mãos muito compridas e lançado contra uma das portas lacradas do corredor, a qual se abriu à força de seu choque.

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O que lhe fez abrir os olhos foram os gemidos. Humanos. Corpos masculinos nus semivivos, largados em meio a muitos já mortos, recolhiam-se curvados em suas constituições cadavéricas pela inanição como se, desta forma, pudessem fazer com que suas vidas se esvaíssem um pouco menos depressa de seus miseráveis corpos pele-osso. O menos sofrido fez-lhe compreender que eram todos da mesma faixa etária que ele quando disparou seus olhos muito arregalados em sua direção. “Porta... a porta...!”, ele murmurou, em desespero, apontando um dedo na direção daquilo a que se referia. O recém-chegado, terrificado, virou o rosto para olhar na direção apontada. “Foge...”, o estranho implorou. “Enquanto é tempo...! Salva a gente...!” O horror da compreensão, porém, foi sua danação. Exatamente dali, de dentro do aposento moribundo em que se encontrava, ele pôde ver um festejo da vida. Da vida daquele que lhe jogara dentro daquele cômodo. E de todas suas crias. No quarto exatamente em frente, o outro do corredor, ele viu os corpos de estonteantes criaturas quase-humanas dançando ao som de seus próprios ululos – belas, moldadas à perfeição, como que em câmera lenta girando seus braços em torno das cabeças, e torcendo seus pescoços, e rebolando seus quadris e joelhos aos padrões de um ritmo que ele jamais poderia conceber prática humana na face da Terra. Ele olhou para o chão, e naquele exato instante o lindíssimo homem que lhe trouxera até ali, antes de costas, lentamente virou sua cabeça até o perfil de seu rosto estar completamente visível. “Respeitamos a tua Terra sempre com muitíssima devoção, caro humano...”, disse ele, virando-se totalmente. O rapaz chorava – chorava e tremia contra o chão. “Nos excluir como planeta, entretanto...?”, debochou da indelicadeza humana, aproximando-se em seu desfilar característico; a horripilante cadência de ombros e cabeça estava ali de novo quando o rapaz levantou a cabeça para encará-lo. “Excluí-los...?!”, o humano implorou, debilmente, meneando a cabeça repetidamente que não, tentando dizer que não entendia, desesperado.

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A criatura, num átimo humano, que tornou ainda mais monstruoso seu rosto destituído de humanidade, sorriu. “Guarde bem o que toda tua raça irá ouvir quando, por nossas mãos, estiverem a perecer...” Segurou a maçaneta com os dedos muito longos e inquietos. E decretou: “PLUTÃO AINDA É PLANETA!”

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Clara Gianni O som de um brega antigo reverberava pelas paredes repletas de infiltrações do bar de seu Everaldo. Mesmo naquele horário, quase não se ouviam os resmungos e gritarias tão costumeiros à casa. Alguns poucos fregueses fiéis bebericavam de suas cervejas já quentes, imersos em um transe apático debaixo da luz amarelada e baça da lamparina com mal contato. Nada daquela atmosfera pesada, contudo, impedia as noitadas de Valdir. Desde que o pai o ensinara a beber, até o casamento e o nascimento dos filhos, o bar era seu segundo lar. – Tens de dar um jeito nessa tua vida, homem – ralhou Everaldo, secando a testa suada com o pano do balcão – Tua mulher tá prenha e não pode pegar tanta roupa pra lavar de serviço. Valdir entornou o copo. – Tu tá pensando que eu não procuro trabalho? Tá difícil de arranjar por essas bandas. – Mais um motivo pra tu te espertares. Não é pra dona Janaína passar muito tempo fora numa época dessas – sussurrou, acrescentando: – Todo cuidado é pouco. Em um horário como aquele, outras sombras se estendiam além do breu noturno sobre a cidadezinha de Arapinã – sombras de desespero e paralisia antecedidas por clarões e objetos bizarros no céu. Visitantes diversos dos encantados da floresta e das piadas de mal gosto da cidade grande.

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Seis meses antes, dona Arlete estendia as roupas no varal ao relento quando luzes de um verde-esmeralda invadiram seu campo de visão. Paralisada pelos flashes repentinos, não teve outra escolha senão observar impotente enquanto um clarão percorria o quintal de terra batida por longos minutos. “É o fim dos tempos”, praguejara no dia seguinte. Aos poucos, mais episódios juntaram-se ao coro de relatos, até que, de mera história para boi dormir, os acontecimentos culminaram em histeria coletiva. Luzes vermelhas próximas à praia, luzes brancas a duzentos metros do mercadinho de seu Jackson, luzes verdes até mesmo dentro das residências. Quem nada vira, encolhia-se em suas casas durante a noite, temendo sua hora. Quem presenciara as aparições, temia o próximo assalto silencioso. Então vieram as mortes. Seu Eduardo, voltando do trabalho. Moreno, na porta da casa da namorada. Seu Juscelino, a caminho do bordel de Filomena. Todos abandonados na mata próxima da estrada, em diferentes estados de putrefação. Mas Valdir tinha mais com o que se preocupar, e retorquiu com a voz já turva: – Até tu acreditas nessa palhaçada? – Apoiou-se no balcão – É por essas brincadeiras que o país não vai pra frente! – Apontou para o próprio peito – Eu sou um cidadão temente a Deus, que cuida da família, pra que um bando de desocupado invente esses bichos sei lá das quantas, e eu não arranje trabalho em canto nenhum! – Te aquieta! – repeliu Everaldo – Escuta, enquanto ainda estás com os miolos no lugar: eu toco essa casinha já tem uma pá de anos. Nunca vi nada parecido acontecendo por aqui! – Everaldo o encarou, incisivo – Já se foram três homens. Que Deus o livre, e Ele há de livrar, se algo te acontecer, quem vai cuidar dos teus filhos? Da tua mulher? Prometes pelo menos pela tua família que não vais mais te meter na noite desse jeito! Impaciente, Valdir fez menção de levantar-se da cadeira. – Coloca a pinga na conta – disse, caminhando até a porta – Manda um abraço pra Santinha e pros moleques, mas eu não fico aqui nem mais um minuto! Everaldo apressou-se em alcançá-lo.

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– Tá doido, homem? Não tem uma vivalma lá fora! – Tentou impedi-lo, sem sucesso. Valdir sempre fora um homem corpulento – O bar já vai fechar. Não queres ficar aqui pela noite não? Tem rede sobrando lá em cima. – Não carece – retrucou, invocado. Não era a primeira vez que Valdir adivinhava seus caminhos errantes pelo escuro – e, se dependesse de si, não seria a última. Alheio aos apelos do amigo, cambaleou em direção à casa ao fim da ruela parcamente iluminada. Já não bastava a choradeira de Janaína, que ouvia o disse-me-disse nas casas onde lavava roupa; muito menos dos moleques mais novos, João Pedro e Jéssica, repetindo como papagaios os boatos que escutavam na escolinha. Pro inferno com os boatos! O que tinha a ver com tudo aquilo? Gente morrera, disseram-lhe, mas gente não morria todo dia no noticiário? Tinha mais que cuidar da própria vida. Prestes a abrir a porta, uma pontada aguda o atingiu em cheio no braço esquerdo. Inebriado pelo álcool e imobilizado pela dor, desabou na calçada. Um ponto vermelho brilhante cortava o céu sem estrelas, flutuando acima da cabeça do homem em padrões elípticos, dançando na escuridão em um balé confuso e macabro. Um barulho repetitivo, tal qual um zumbido abafado, arranhava seus ouvidos. Contorcido em uma careta de agonia, Valdir fechou os olhos, incapaz de mover os braços ou cobrir os ouvidos machucados. O som reverberava pelo corpo, espalhando-se pelos músculos em espasmos violentos e incontroláveis. Aos poucos, julgou distinguir vagamente uma fala por trás do barulho, como que escutasse uma rádio AM mal sintonizada. Até a dor o atingir no limite de seu âmago. Perdeu a consciência. *** Alvo identificado. Mapeamento genético ativado por implante subcutâneo. Acessar dados preliminares. Humanoide, macho, trinta e oito anos terrestres, saudável. A célula dez de trinta solicita permissão da célula matriz um de trinta para iniciar o procedimento.

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Permissão concedida. Comunicação encerrada. *** Valdir acordara naquela manhã debaixo do olhar ansioso da esposa, cujos olhos inchados e face pálida denunciavam a noite tumultuada da véspera. Relatara-lhe que os vizinhos ouviram um estranho ruído vindo da rua. Poucos se atreveram a sair da segurança de seus lares, e coube a Josué, o filho mais velho, junto a alguns poucos voluntários, carregá-lo para dentro. Janaína, por sua vez, rezara o rosário inteiro pelo resto da madrugada, à espera de qualquer sinal de vida por parte do marido. Ao raiar do dia, decidira-se a levá-lo ao posto de saúde. Pela primeira vez em anos, o homem chorou em frente à esposa. Não punha os pés para fora daquela casa nem por intercessão da Virgem. Se Janaína desejava o contrário, não demonstrou ao marido. Deu-lhe espaço para recobrar as forças, ocasionalmente trazendo refeições e chás. Pelos olhares de esguelha que a mulher lhe lançava de tempos em tempos, contudo, Valdir sabia que ela ainda insistiria naquela história de hospital. Por ora, o homem estremecia sozinho. Encolhido na rede desde que despertara, ele esperava. Pelo quê, não sabia dizer. Ao observar as nuvens manchadas de cobalto avançarem sobre o sol, entendeu, afinal, o que aguardava. A despeito do calor infernal, forçou a esposa e os filhos a trancar todas as portas e janelas. Necessitava sobreviver àquela noite com os olhos abertos. Nem mesmo o estado de alerta na casa, entretanto, impediu que Janaína e as crianças desabassem de sono. Com o coração quase saltando pela boca, Valdir fitava o teto com os braços cruzados. Podia contar os minutos pelas batidas descompassadas no peito. Os lábios ensaiavam uma Ave-Maria, um Credo ou um Pai-Nosso — o desespero, contudo, não o permitia permanecer por muito tempo na mesma oração. Pensava na barriga avantajada da esposa, nas crianças que ainda dependiam de si. Em meio à torrente de sentimentos que experimentara no curso daquele dia,

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finalmente lhe ocorreu indagar consigo se era um bom pai de fato. Se seria um bom pai para a criança que sequer nascera ainda. Uma luz amarela quente relampejou no cômodo com um estrondo, escancarando as portas e as janelas. Outro relâmpago ribombou pelas paredes nuas do quarto, tingindo-as de verdeneon. Valdir obrigou-se a observar tudo, presenciando o sono pacífico da família, alheia à invasão, enquanto seu corpo o puxava para longe da própria vontade. Não pôde deixar de pensar, antes de perder a consciência novamente, que deveria ter escutado Everaldo, afinal. *** Esquecera seu nome. Acostumara-se a um perpétuo estado de paralisia do sono, a não controlar a própria respiração, a desmaiar de asfixia. Não ouvia vozes, mas interferências ligeiras. Nunca conseguia vislumbrar as criaturas que o trouxeram até ali, mas sabia que eram fêmeas. E se sabia, era porque o permitiam saber. Fossem o que fossem, elas não se comunicavam entre si. Eram uma só: o todo e as partes do todo. No estado em que se encontrava, era-lhe impossível saber quais pensamentos lhe pertenciam, e quais eram os delas. Vivia uma interminável agonia de, mesmo sabendo a resposta, jamais descobrir a pergunta. Deitado sob uma superfície fria de metal, sentiu perfurações e incisões atravessando seu corpo. Em um dado momento, partiu-se em dois. Despediu-se da pele morta sem entender muito bem do quê se desfazia. De qualquer forma, jamais a teria de volta. Algo novo ocupava os espaços vazios, impregnando-o de estranheza, de mais dor. Soube que era o primeiro a sair com vida de todo aquele procedimento. Desmaiou pela última vez. ***

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Valdir acordou de mau jeito, o sol queimando a face macilenta e abatida. Xingando em voz baixa e rouca, levantou-se da rede com dificuldade e trancou as janelas novamente. Não escutou vozes, todos saíram. Uma angústia advinda de um lugar inominável ainda o perturbava, talvez do pesadelo da véspera. O homem apoiou-se pelos móveis, caminhando até o banheiro com um grunhido de desconforto. Sequer lembrava do que fizera no dia anterior. Os fragmentos do pesadelo ainda lhe rondavam quando se despiu em frente ao espelho da pia e encarou-se. Em um átimo de segundo, as memórias o assaltaram. Gritou de pavor. Não conseguia entender a coisa horrenda que lhe encarava de volta – um corpo que não lhe pertencia. Aquele sentimento de asfixia, tão terrível e tão familiar, apertava suas entranhas e puxava aquela casca alienígena que agora era sua própria pele. Aquilo era impossível! Impossível! Caiu de joelhos e chorou. Correndo as mãos suadas pelos cabelos, Valdir não sabia se deveria rezar ou pensar no que fazer antes que a esposa e as crianças voltassem. De uma coisa estava certo: não os permitiria vê-lo naquele estado. Obrigou-se a pensar rápido e acolheu a pior das hipóteses: apanhou algumas mudas de roupa, um pouco de comida da geladeira e uma antiga foto da família. Reprimindo soluços quase inumanos, fugiu pela portinhola do quintal, aquela que Janaína sempre se esquecia de trancar. *** Três meses depois. – Ainda estás com enjoo? – indagou irmã Jacinta, entregando-lhe um copo d'água e um comprimido. Valdir acenou negativamente. A idosa ofereceu-lhe um sorriso caloroso e, com um meneio de cabeça, despediu-se para verificar as demais noviças. Tão cedo ouvira o encostar da porta, e um misto de asco e temor – tão frequente naqueles tempos – apoderara-se novamente de Valdir.

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Não sabia mais como fugir de si mesmo, como ocultar debaixo de camadas e mais camadas de roupas sóbrias algo do qual nunca escaparia por muito tempo. Nunca se acostumara à vulva e às mamas desenvolvidas escondidas sobre o tecido. E tampouco conseguia viver consigo mesmo desde que irmã Jacinta lhe acolhera, dando-lhe a fatídica notícia. Engravidara. Havia algo dentro de si parasitando-o, e Valdir – não, corrigiu a si mesmo, Maria de Nazaré agora – era covarde demais para tentar se livrar da criatura, ou de si mesmo. Elas não permitiriam. Era um golpe de sorte que encontrasse aquelas irmãs de fé fervorosa, dispostas a abrigar uma mulher prenha – ainda que Valdir mal se entendesse como qualquer uma das duas coisas. E agora, junto ao nojo e pavor frequentes, o mal-estar se intensificava. Deitava cedo todas as noites. Fitava a foto da família debaixo do travesseiro após rezar o terço e a ladainha. Esforçava-se para se lembrar do nome de cada um dos filhos, da vida que deixara para trás. Pensava na esposa e, acima de tudo, na criança sem nome. Depois de tanto tempo, ela já devia ter nascido. Menino ou menina? Estremeceu. Procurando afastar-se daqueles pensamentos, ajoelhou-se em frente à cômoda e benzeu-se mais de uma vez, apanhando o crucifixo. A quinta criança, aquela que Valdir carregava no ventre, Jana jamais conheceria.

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SOBRE OS AUTORES: Saulo A. Sisnando (org.) é escritor, dramaturgo, ator e diretor teatral brasileiro. Nasceu no Ceará, mas, ainda na infância, mudou-se com a família para Belém, tornando-se um dos mais populares dramaturgos do estado do Pará. Autor de mais de uma dezena de peças e premiado diversas vezes, Saulo A. Sisnando também publicou livros e vários de seus contos foram premiados. Instagram: saulosisnando Facebook: Saulo Sisnando E-mail: saulosisnando@hotmail.com Andrei Simões O escritor e roteirista, Andrei Simões publicou os romances “Putrefação” (Novo Século, 2005), “Zon, O Rei do Nada” (Empíreo, 2013); e “Luz, O deus do Horror (Twee Editora, 2016) e também tem contos em diversas antologias nacionais. Antes disso, Andrei, que escreve desde os 13 anos, foi ensaísta em diversos blogs, revistas eletrônicas, autor de projetos artísticos na Web e foi o primeiro autor paraense a publicar um livro integralmente na Internet. O autor desenvolve atualmente, além de suas obras literárias, roteiros para games, peças de teatro e audiovisual e ministra oficinas de escrita criativa. É também membro da comissão organizadora da Feira Literária do Pará e membro da comissão julgadora do prêmio Sesc de literatura nacional. Facebook: andreisimoesescritor Instagram: andreisimoes Breno Torres é autor consciente desde os 12 anos e sua sempre diversa exposição à Arte (através de expressões como Teatro, Dança e Performance) o levou a experienciar e experimentar enormemente na escrita -- processo que resultou em seu primeiro livro de Terror e Drama PESADELOS INFAUSTOS, publicado pela editora Arwen em 2017. Seus textos trazem protagonismo fortemente LGBTQ+, visto seu projeto literário que visa representatividade e emponderamento da comunidade. Instagram: @eubrenotorres Facebook: @eubrenotorres Twitter: @eubrenomtorres E-mail: brenomtorres@hotmail.com Clara Gianni 19 anos, estudante de direito, de cartas de tarô, e de mensagens subliminares em desenhos infantis. Mora em Belém desde que se entende por gente. Procura, na medida do possível, incorporar seus estudos feministas (não do tipo divertido, como diria Andrea Dworkin) em sua produção artística. Descobriu na ficção

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científica um fascínio sem data de validade, ou contra indicações – embora estique as perninhas para o terror com frequência. Já publicou contos em antologias e é resenhista colaboradora do blog literário Sobre os Olhos da Alma. Wattpad: WitchGianni Twitter: @WitchGianni Instagram: gianni_clara Blog: pilulasembula.wordpress.com E-mail: cgianni232@gmail.com Fábio de Andrade 28 anos, mente não tão sadia por trás do Sob os olhos do delírio, estuda engenharia tentando achar terror na eletricidade, tem um cachorro chamado Juca, espera um dia poder beber alguma coisa com Edgar Allan Poe onde quer que ele esteja e assume que a coisa mais difícil de se fazer nessa vida é falar de si em terceira pessoa. Instagram: fabiodeandrad Facebook: andradfabio Website: http://tkfabio.wixsite.com/fdandrade Flávio Ramos Moreira É um ator e cenógrafo com vasta participação na cena teatral paraense, tendo atuado em mais de uma dezena de espetáculos de sucesso. Obcecado por histórias de ficção científica e leitor compulsivo de qualquer tipo de literatura, “O arranhacéu” é seu texto de estreia como contista. Facebook: Flávio Ramos Moreira Instagram: @_flavioramos e-mail: contato_x@yahoo.com.br Giuliana Murakami nasceu em Belém/PA, onde na infância descobriu que as palavras poderiam saltar da imaginação para um caderno. Desde então, escreve histórias com o mesmo hábito com que toma café. É estudante de Direito pela Faculdade de Belém (FABEL) e sagrou-se vencedora do Prêmio Fox-Empíreo de Literatura 2017 com a obra de fantasia "Guardiões do Império - O Selo do Sétimo" (Disponível na Livraria Fox e na Amazon), tendo iniciado, recentemente, publicação independente na Amazon com o livro de romance infanto-juvenil "A Aposta" (pseudônimo Giuly Passion). Facebook: Giuliana Murakami Escritora Instagram: giulianamurakami E-mail: giulianamurakami@gmail.com Igor Quadros Nasceu em Belém, Pará. É formado em Ciência da Computação, Jogos Digitais e pósgraduado em Produção Audiovisual. Escreveu as obras: “O Livro de Almas – Os Dois Herdeiros”, “Agonia”, “Ermo”. Além de ser coautor nos livros: “Noites

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Sombrias” e “Confraria do Horror”. Trabalha também adaptando seus universos literários para os games. Facebook: igoralvesquadros YouTube: escritorigorquadros Instagram: @igoralvesquadros E-mail: iquadros105@gmail.com Lenmarck 25 anos, romancista, contista e estranhamente obcecado por florestas encantadas, principalmente por nunca conseguir encontrar uma. Acredita no poder da ficção para contar histórias reais e que nem todos os corvos são mentirosos. É autor do romance Névoa, história que surgiu em um dia aleatório quando acordou debaixo da cama no meio da noite. Facebook: lenmarckandrade Instagram: lenmarck Website: lenmarck.wordpress.com

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