Livro TEATRO DE RUA - Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede

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O Pulsar Das Ruas

jussara trindade

Licko Turle Carioca. Atualmente é professor residente pós-doutorado pelo PAPD CAPES/ FAPERJ na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Coordenador do GT Artes Cênicas na Rua da ABRACE - Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Com Augusto Boal, em 1986, funda o Centro de Teatro do Oprimido. De 1995 a 2014, atuou como ator, produtor no grupo Tá Na Rua, dirigido por Amir Haddad. Livros publicados: Teatro Do Oprimido E Negritude, Tá Na Rua, Teatro De Rua No Brasil, AUGUSTO BOAL: Arte, Pedagogia E Política. Prêmios: PROCENA RJ/2001, Artes Cênicas na Rua/2009, Interações Estéticas/2010 e Arte Negra/2013 e Rumos Itaú Cultural/2014. É diretor do centro de criação e pesquisa Aldeia Casa Viva onde ministra cursos e oficinas teatrais. Ator e diretor no coletivo teatral Mambemberê, ambos em Teresópolis, RJ. E-mail: licko.turle@gmail.com

Edson Paulo Se considerarmos a cidade como um corpo, as ruas serão as artérias que se entrelaçam e se complementam em encruzilhadas. Ao escolher fazer teatro de rua temos que pensar em ser sangue quente e pulsante desse “corpo-cidade”. É no fluir das artérias que percorremos as ruas do “corpo-cidade” e suas encruzilhadas, que tomamos os rumos de nossas escolhas. Assim penso o fazer teatro de rua. Colocar-se na rua buscando poetizar o cotidiano, inserir-se na paisagem estática das cidades dando a ela um colorido, interromper o fluxo dos transeuntes e possibilitar momentos de reflexão de maneira afetiva e efetiva: são algumas características do teatro de rua. A todas essas se soma o diálogo com o público. Fundamental para estabelecer o teatro, a ele que pedimos permissão para abrir uma roda, puxar um cortejo, montar uma estrutura cênica. O público, que muitas das vezes é surpreendido com um espetáculo no meio do caminho, de forma espontânea, deve ser fisgado por aqueles que se propõem a utilizar o espaço aberto como local de encenação. Assim como bem o fazem os vendedores de feira livre, os camelôs, e todos aqueles que tiram das ruas o seu sustento. Quando o teatro acontece dessa forma, torna-se uma verdade que une atores e público em um único lugar, ficando o tempo do cotidiano suspenso para dar lugar a outro tempo, o da imaginação, em que o jogo tomará o espaço real, nem que por poucos momentos. Mas serão momentos únicos. Essa condição faz estarmos junto ao “nosso público”, e estar junto significa muito além que andar lado a lado, é se envolver por inteiro e se permitir atravessar, é criar um local em que o espectador deixa de ser passivo e passa também a atuar, jogando com o ator, dinamizando e muitas vezes modificando a encenação. São momentos em que o teatro de rua nos ensina o quanto é valoroso fazer uma arte onde não há limites entre quem faz e quem vê. O ator de teatro de rua deve ter a sensação de estar à beira do abismo, um local de estado de atenção, de prontidão. Ao público cabe jogar o ator no abismo. Essa relação estabelece um local de atravessamento, de rasgar certas armaduras. Vivenciamos ser lançados no abismo quando o público interfere, penetra a cena, e lança outras possibilidades à encenação. Neste sentido, nasce a necessidade de a obra teatral estar sempre aberta, porosa, receptiva; é fundamental para que se dê o convite à interferência do espectador, que vai além do já conhecido trio “bêbado-criança-cachorro”. Se as ruas são as artérias do “corpo-cidade”, e este corpo por vezes padecer enfermo, cabe ao teatro de rua ser o sangue quente e vivo correndo nas artérias, fazer o corpo pulsar. As ruas se apresentam como encruzilhadas, nos colocando diante de uma escolha: que caminho seguir, para continuarmos a pulsar, vivos? Edson Paulo Souza é arte-educador, ator do grupo paulistano Buraco d’Oráculo desde a sua formação em 1998 e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua. PATROCÍNIO

REALIZAÇÃO

CONVIDA - Conselho Nova Vida Defesa da vida e promoção dos direitos humanos. Atua através de ações educativas e culturais no fortalecimento de iniciativas comunitárias respeitando sua capacidade de criar alternativas próprias de enfrentamento e superação.

TEATRO DE RUA - Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede

Nasceu em Londrina/PR. É educadora musical, musicoterapeuta e psicomotricista, com pós-doutorado em Artes Cênicas (CNPq/UNIRIO). Ministra desde 1991 cursos e oficinas para estudantes, educadores e terapeutas. Atualmente, é pesquisadora colaboradora do NEPAA/ UNIRIO e coordenadora de arte da Fundação CECIERJ. Livros publicados: Tá Na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura, ator sem papel (2008), Teatro de Rua no Brasil: a primeira década do Terceiro Milênio (2010) e A contemporaneidade do Teatro de Rua: potências musicais da cena no espaço urbano (2014). É membro da ABRACE - Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas e articuladora da RBTR - Rede Brasileira de Teatro de Rua. Diretora geral do centro de criação e pesquisa Aldeia Casa Viva - Teresópolis, RJ. Preparadora musical do coletivo Mambemberê, de teatro de rua. E-mail: jussaratrin@yahoo.com.br

LICKO TURLE, JUSSARA TRINDADE e VANÉSSIA GOMES (Organizadores)

Grupo Teatro de Caretas Fundado em 1998 em Fortaleza - CE. Tem como propósito aprofundar processos de criação, pesquisa e produção cênicas para o teatro de rua através de atividades de compartilhamento, trocas e investigações com artistas, pesquisadores e grupos teatrais.

Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede

ALDEIA CASA VIVA - Centro de Pesquisa e Produção Teatral É um espaço-conceito criado em 2009 para pesquisa, formação e criação artística em sistema de imersão. Sede do grupo de teatro de rua Mambemberê, de Teresópolis-RJ.

vanéssia gomes

PARCERIA

1ª edição Fortaleza ALDEIA CASA VIVA 2016

Nasceu em Fortaleza/CE. Teatro - Formadora, pesquisadora e atriz (teatro de palco/teatro de rua/ cinema); Curso de Arte Dramática (UFC) - Bacharel em Ciências Sociais (UECE); Especialização (em curso) em Arte-educação e Cultura Popular (Faculdade Darcy Ribeiro); Formação teórico-prática do Método do Teatro do Oprimido; Pesquisadora de Manifestações Tradicionais Populares; artista do Grupo Teatro de Caretas; Diretora Teatral; Pesquisadora/bolsista Fundação Carlos Chagas – SP 2005/2006; Membro do Colegiado Setorial de Teatro – Conselho Nacional de Políticas Culturais – MINC; 2010/2012; Articuladora da Rede Brasileira de Teatro de Rua; integrante Movimento Todo Teatro é Político (Ceará); Consultora UNESCO de arte e educação (2013 a 2016); articuladora de arte e cultura na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - Unilab. E-mail: vanessiagomes@gmail.com


Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede • REDE BRASILEIRA DE TEATRO DE RUA •

1ª edição Fortaleza Aldeia Casa Viva 2016


Organizadores Licko Turle, Jussara Trindade e Vanéssia Gomes Revisão Jussara Trindade Editor de Arte e diagramação Mauricio F. Santana (powerblack.com.br)

Foto da capa Aquecimento do cortejo de Abertura do XVII Encontro Nacional da RBTR (2015) Fotografia: Jussara Trindade

Turle, Licko; Trindade, Jussara e Gomes, Vanéssia (Org.)

66716 TEATRO DE RUA – Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede / Licko Turle, Jussara Trindade e Vanéssia Gomes (Org.). Revisão Jussara Trindade - Fortaleza: Aldeia Casa Viva, 2016. 1º Edição. 168 p. : il. ISBN 978-85-66716-03-0 1. Teatro. 2. Teatro de rua. I. Turle, Licko; Trindade, Jussara e Gomes, Vanéssia.


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PREFÁCIO A Arte E A Ordem, Amir Haddad

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APRESENTAÇÃO

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Pombas Urbanas Semeando Asas, Adailtom Alves Teixeira

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O Contrário Do Menino Diamante: Análise De Uma Saga Contada Pelo Coletivo Dolores, Alexandre Falcão de Araújo

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Transitando Pelas Ruas: Uma Cena Que Constrói Cidades, André Carreira e Lara Matos

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Organização E Acomodação Da Plateia No Teatro De Rua, Jhon Weiner de Castro e Ana Maria Pacheco Carneiro

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O Teatro De Rua E A Cidade Como Espaço Sonoro, Jussara Trindade

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TÁ NA RUA: Uma Possível Dramaturgia Para Espaços Abertos, Licko Turle

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Imbuaça Leva Para Ruas Leandro Gomes De Barros, Lindolfo Amaral

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Quem Tá Na Rua É Pra Gritar, Mirtthya Guimarães e Humberto Lopes

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Invocações: Atuação, Espaço E Criação Nos Espetáculos De Rua ‘Serra-Serra Serrador’ E ‘A Saga No Sertão Da Farinha Podre’, Narciso Telles e Getulio Góis

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O Que Entra Na Roda É Pra Girar Na Gira, Nonato Santos

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Os Atores Das Ruas: Caminhos Entre Risos E Riscos, Osvanilton Conceição

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A Invisibilidade Como Estratégia: Entrelaçamentos Entre O Teatro Invisível De Augusto Boal E O Teatro Do Invisível Do ERRO Grupo, Pedro Bennaton

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Teatro de Rua: Imprevistos e Improvisação, Sandro de Cássio

132

A Porta da Rua é a Serventia da Escola: Intervenções Teatrais de Rua na Academia, Toni Edson

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TRAJETÓRIA DE UM TEATRO DE RUA: o percurso para criação e a atuação do Grupo Teatro de Caretas na cidade de Fortaleza, Vanéssia Gomes

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RBTR – 10 anos pelas ruas do Brasil, os organizadores


• TEATRO DE RUA •

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede •

PREFÁCIO

A Arte e a Ordem

Amir Haddad1

A arte é a possibilidade de organização e manifestação da nossa desordem interior. É também, a forma mais profunda de reorganizar o mundo. Não é a ordem do mundo que organiza a arte, mas sim a desordem da arte que reorganiza o mundo. É a transgressão que possibilita a evolução, uma nova ordem para as coisas. Assim, o conceito tradicional e repressivo de “ordem pública” não é o melhor valor social para lidar com as questões das Artes Públicas, que se realizam nas ruas e nos espaços públicos, de uso liberado para a população. Hoje sabemos perfeitamente que aquele policial que ali está é um representante da ordem pública e está ali para mantê-la. Assim como sabemos, também, que aquele artista ou grupo que está se apresentando em praça publica parece ser um foco permanente de desordem e arruaça. Tanto que os policias ficam logo atentos. Isto quando não agridem, ameaçam ou espancam os “desordeiros” que atrapalham a ordem pública. Para lidar com estes artistas públicos e respeitar o seu trabalho, seria preciso reconsiderar o conceito vigente de ordem pública e entender que estes artistas, ocupando estes espaços, talvez possam fazer mais pela ordem pública do que os agentes de plantão espalhados pela cidade, reprimindo todo e qualquer tipo de manifestação que possa vir a incomodar os donos do mundo ordenado desta maneira. Será preciso reconhecer que existe uma forma superior de organização social que poderá modificar o conceito em uso de “ordem pública”. As artes públicas têm esta função desde a mais remota ancestralidade do ser humano. Arte, medicina, religião, tudo junto, ajudou nossos antepassados a avançarem. Nas sociedades modernas, este papel e esta função foram modificando e desaparecendo por completo, ficando as artes restritas aos espaços fechados e aos que a eles têm acesso. Até chegarmos ao impasse em que se encontra a produção cultural diante da regulamentação do mercado. E a arte que poderia organizar o mundo, como as festas, e celebrações, religiosas ou não, passa a ser substituída pela polícia. 1

Ator, diretor, teatrólogo e professor de teatro. Criou em 1980 o grupo Tá Na Rua do Rio de Janeiro

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• TEATRO DE RUA •

Achamos que não podemos prescindir de polícia nas ruas. E das artes nas ruas? Podemos? Não será possível pensar uma cidade onde o lúdico, prazeroso, a convivência urbana de qualidade, o humor, a criatividade, a poesia e a beleza dividissem com os “representantes” da ordem a organização e a reorganização permanente do mundo? Reivindicamos uma nova ordem pública para uma possível Arte: Pública! São muitos os artistas que escolheram os espaços públicos para se manifestarem e que, no entanto, se encontram sufocados, reprimidos pela necessidade da manutenção da ordem a qualquer custo. Se não houver espaço para a “desordem” que reorganiza o mundo constantemente, teremos muitas dificuldades em pensar um modelo novo de cidade e convivência urbana que nos tire do sufoco em que vivemos hoje em nossas cidades, grandes ou pequenas. Enfim, estimular as Artes Públicas é o que poderá modificar o nosso conceito do que é “Ordem Pública”.

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede •

APRESENTAÇÃO O Grupo Teatro de Caretas em parceria com o Conselho Nova Vida apresenta TEATRO DE RUA: Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede. O livro está organizado de forma a propiciar aos leitores (em especial aqueles artistas que atuam nos espaços abertos) os múltiplos olhares de algumas práticas/experiências artísticas realizadas pelos rueiros do Brasil que se transformaram em estudos, pesquisas, reflexões, registros históricos. De certa forma, ele é para nós uma práxis; ou seja, uma devolução teórica para retroalimentar a nossa prática como artistas-trabalhadores das ruas que somos. Os articulistas, que generosamente contribuíram com esta edição, são atores/ diretores integrantes de um ou mais coletivos ou grupos de teatro de rua. Alguns atuam também no ensino das artes, em instituições públicas e privadas, como artistas-docentes; outros aprofundam suas investigações no campo científico da pesquisa e da pós-graduação. Tod@s, aqui, sem exceção, são artistas! Por isto, consideramos esta publicação como mais uma conquista da Rede Brasileira de Teatro de Rua, no que tange à multiplicação dos saberes e fazeres desta modalidade teatral, na permanente busca pelo fortalecimento das artes públicas no país. Ela é um verdadeiro e merecido presente para se comemorar, neste ano de 2016, os dez anos de atividades continuadas da nossa RBTR, que já começa a ampliar o seu diálogo com los hermanos callejeros de Nuestra América. Agradecemos aos diversos parceiros que foram se somando ao longo da jornada, que fortaleceram e possibilitaram a realização do encontro com a FUNARTE - Fundação Nacional de Artes, o movimento Todo Teatro é Político, do Ceará (o primeiro, com recursos financeiros; e o segundo, com sua rede de articulações locais) e a Casa Civil do Governo do Estado do Ceará, que respaldou a arte pública de rua como um bem necessário para a população do Estado e em consequência para todo o Brasil, nos dando condições para a publicação deste livro e a produção de um vídeo documentário sobre o evento. Viva longa à Rede Brasileira de Teatro de Rua! Que venham mais 10, 100, 1000 anos ... e muitos livros! Evoé!!!

Os organizadores -7-


• TEATRO DE RUA •

Pombas Urbanas Semeando Asas

Adailtom Alves Teixeira2

DO LUGAR São Paulo é a cidade das diversas culturas, formou-se a partir da junção de diversos imigrantes e migrantes, congregando uma imensa diversidade cultural. Em São Paulo existe uma imensa produção artística, tão grande que nenhum guia cultural dá conta de apresentar em sua programação todas as atrações que estão espalhadas pela cidade. E se pegarmos uma área artística, como o teatro, perceberemos a diversidade e uma imensa quantidade de produções espalhadas por mais de uma centena de teatros e outros tantos espaços alternativos. São Paulo tem uma população estimada em mais de onze milhões de habitantes. Não temos dados de quantas pessoas vão ao teatro, pois não há pesquisas a respeito. No entanto, sabemos que a região do centro histórico e expandido, onde está concentrada a maior parte dos equipamentos culturais, representa 14% do território da cidade, no qual residem apenas 20% da população (Cf. SANTOS, 2000). Por tudo isso, podemos deduzir que o público do teatro fechado é uma minoria nesse universo de milhões e é justamente aí, nesse universo dos que não tem acesso a este teatro que muitos fazedores têm buscado seu público. O público do grupo que ora apresentaremos tem sido, em sua grande maioria, o da periferia; portanto, pessoas distantes dos bens culturais. Como arte milenar que é, o teatro deve ser um direito de todos, mas a grande população periférica não tem recebido aquilo que lhes pertence e que Milton Santos chama de “direito ao entorno”. Santos afirma ainda que esses direitos estão apenas “nos discursos oficiais” (2000, p. 47). O autor fala que o destino dos pobres no Brasil é sempre a periferia das grandes cidades e que estes não recebem os serviços básicos, a não ser que paguem por eles. Quanto ao lazer, “se torna igualmente o lazer pago, inserindo a população no mundo do consumo. Quem não pode pagar (...) fica excluído do gozo desses bens, que deveriam ser públicos, porque essenciais” (SANTOS, 2000, p. 48). Outro aspecto é que essa população que reside na periferia é, em grande 2 Professor no Curso Licenciatura em Teatro na Universidade Federal de Rondônia; Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”; integrante do Núcleo Brasileiro de Pesquisadores de Teatro de Rua e membro do GT da ABRACE, Artes Cênicas na Rua; articulador da RBTR; ator e diretor teatral. E-mail: adailtom.alves@unir.br

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede •

parte, migrante ou filho de migrantes, isto é, um povo que se adaptou a uma nova realidade, deixando para trás sua cultura. São, portanto, um povo desterritorializado, já que deixaram para trás aquilo que lhe dava identidade: sua cultura. Portanto, “desterritorialização é frequentemente uma outra palavra para significar alienação, estranhamento, que é também, desculturalização” (SANTOS, 2000, p. 61). Ou seja, a distribuição em um espaço desigual condena essas pessoas a ficarem destituídas dos bens públicos básicos e de sua identidade. Assim, (...) morar na periferia é se condenar duas vezes à pobreza. À pobreza gerada pelo modelo econômico, segmentador do mercado de trabalho e das classes sociais, superpõe-se a pobreza gerada pelo modelo territorial. Este, afinal, determina quem deve ser mais ou menos pobre somente por morar neste ou naquele lugar (SANTOS, 2000, p. 115).

É importante frisar que os integrantes do coletivo Pombas Urbanas tem sempre buscado o diálogo com as pessoas das comunidades. Por isso mesmo, daí resulta a verdade de seus trabalhos, que criam identificação, espelhos que se refletem, mas de maneira crítica. Outro ponto é que os atores desse grupo são todos moradores das periferias, muitos cresceram nos locais onde atuam, daí a força de seus processos criativos, bem como a compreensão desse universo e de seu público, já que sentem na pele as dificuldades vividas por eles. É claro que não é preciso ser um morador dessas comunidades para se fazer teatro para tal público; estamos apenas dando o exemplo de um coletivo que talvez seja exceção, isto é, formaram-se como grupo e, por residir nessas regiões, escolheram apresentar-se nessas comunidades. O exemplo reflete a importância de se conhecer o público para o qual se apresenta e sua localização no espaço urbano diz muito a seu respeito. O grupo aqui apresentado entende o teatro como um direito, tanto para quem faz como para quem vê. E se teatro é uma forma de expressão, uma ferramenta de comunicação entre as pessoas, é fundamental que todos possam ter acesso às mais diversas formas teatrais, que todos possam experimentá-lo como veículo expressivo e que todos aqueles que queiram exercer o teatro como profissão, possa exercê-lo dignamente, independentemente de onde more e atue. DO GRUPO E SEUS PROJETOS O grupo Pombas Urbanas tem 26 anos de existência, surgiu no cenário paulistano em 1989, no bairro de São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. Seu -9-


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surgimento deu-se graças à realização de um projeto desenvolvido pelo diretor peruano Lino Rojas, que, segundo os membros do grupo, estava cansado de trabalhar com pessoas que não davam prosseguimento à carreira teatral. Por isso, foi trabalhar com os jovens na periferia, denominando seu projeto de “Semear Asas”. Lino Rojas, formado pelo INSAD (Instituto Superior de Arte Dramática) de Lima, estudou com outros artistas de renomes como Julian Beck, Henrique Buenaventura, Jerzy Grotowsky, entre outros. Foi com essa sólida formação que veio atuar no Brasil na década de 1970 como dramaturgo e diretor, ficou com o grupo Pombas Urbanas por quinze anos, até morrer tragicamente em fevereiro de 2005. Ainda nesse ano o Ministério da Cultura conferiu a Ordem ao Mérito ao dramaturgo e em 2006 a homenagem veio sob a forma de uma mostra teatral realizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo3, um reconhecimento a um dos pioneiros na pesquisa em teatro de rua na cidade de São Paulo. Segundo Adriano Mauriz4, ator do grupo, houve inscrição de mais de oitocentos jovens para o Projeto Semear Asas em 1989, ou seja, havia muitos jovens em São Miguel Paulista e região querendo se expressar através do teatro. O trabalho de Lino Rojas sempre teve forte relação com a juventude e a periferia, formou o Pombas Urbanas e continuou trabalhando junto às comunidades, seja ministrando oficinas ou criando espetáculos para a juventude. São Miguel Paulista, bairro onde surgiu o grupo, é um dos mais antigos de São Paulo. O historiador Sylvio Bomtempi em seu livro Origens de São Miguel (2000), data a fundação do bairro no ano de 1560 pelo religioso José de Anchieta, mas seu desenvolvimento foi lento. Tornou-se distrito apenas em 1891, mas, assim como a cidade de São Paulo, foi no século XX que teve rápido desenvolvimento. Com a chegada da indústria Nitro Química na década de 1930 ao bairro acelerou ainda mais a vinda de migrantes nordestinos à região, a ponto de o bairro ser chamado de “nova Bahia” (CLEMENTE, 1998). A cultura nordestina é muito perceptível no bairro, seja através da fala de seus moradores ou de nomes dados a espaços importantes como a Praça do Forró, que oficialmente recebe o nome de Padre Aleixo Monteiro Mafra, a Oficina Cultural Luiz Gonzaga, além do Mercado Municipal no centro do bairro, eminentemente popular, com suas comidas típicas nordestinas. Cultura que influenciou os jovens naquele momento. Desde o princípio o grupo tinha a preocupação de estar integrado com a 3

Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, já em sua décima edição.

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Entrevista concedida ao autor em 16/03/08.

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comunidade, pois, já durante as oficinas com Lino Rojas em São Miguel, as primeiras performances propunham reflexões sobre o universo no qual estavam inseridos. Uma das primeiras performances chamava-se Os Pássaros Chorões que Vieram da Bahia. Tratava-se de dois pássaros que pousavam na praça após chegar daquele estado, eram saudosistas e refletiam sobre si. Por não haver casa de espetáculo em São Miguel, Adriano Mauriz afirma que a rua foi um caminho natural. Tudo o que criavam em grupo acabava sendo experimentado na praça, como esta performance. Os primeiros anos do grupo foram dedicados à estruturação artística. Ainda segundo Adriano, Lino Rojas trabalhava com a formação de atores, aliando pesquisa de linguagem e de dramaturgia, daí quase todos os espetáculos serem criados por eles em parceria com o mestre. O primeiro espetáculo de teatro de rua foi Mingau de Concreto, de 1996, elaborado a partir de uma pesquisa das pessoas que povoam o centro da cidade, em especial, as pessoas comuns. Algumas personagens transitam pelo que se costuma chamar de submundo: “bêbados, malandros, travestis, migrantes, meninos de rua, grã-finos decadentes, autoridades, religiosos e também a gente comum que por aí tem de transitar”.5 Esse espetáculo deu projeção ao grupo, tornando-o conhecido na cidade de São Paulo. A preparação de ator criada por Lino Rojas fugia do academicismo, já que estava lidando com jovens da periferia, a quem chamou de “jagunços de calças jeans”, jovens capazes de “explodirem as máscaras da Comédia Dell’ Arte”. O objetivo era fazer com que esses futuros atores fizessem qualquer tipo de teatro, como “atores orgânicos” capazes de transformar suas vivências em arte. Daí, o treinamento ser muito “corporal”. Mas como fazer com que esses jovens, que não haviam tido contato com o teatro, se interessassem por esta arte? O eixo principal era “a descoberta da sua própria origem, do seu reconhecimento, da sua cultura, da sua etnia e de suas relações” (ROJAS, 2008, p. 6). Outra dificuldade colocada pelo grupo era a de que todos trabalhavam e estudavam. Teatro, só nos fins de semana. Essa rotina se manteve de 1989 até 1994, quando os atores passaram a se dedicar apenas à sua arte como auxiliares do mestre Lino Rojas. Ao longo de sua carreira o grupo Pombas Urbanas montou quatorze espetáculos6, impossível falarmos de todos. Em 2004 mergulharam no universo 5

www.pombasurbanas.org.br. Acesso em: 10/07/08.

Os Tronconenses (1991), Funâmbulo (1993), Mingau de Concreto (1996), Ventre de Lona (1998), Uma Baleia Perto da Lua (2000), Buraco Quente (2000), Todo Mundo Tem Um Sonho (2001), A Parceria Que Dá Certo (2002), Quadrúpedes Aquáticos (2003), Bichos Pela Paz (2003), Largo da Matriz (2004); Histórias Para Serem Contadas 6

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caipira e na história da formação de São Paulo para criarem Largo da Matriz. Para tanto viajaram para mais de quarenta cidades a fim de entrevistar os mestres de culturas populares. O espetáculo era uma homenagem aos quatrocentos e cinquenta anos da cidade de São Paulo. Este foi, também, o último trabalho do grupo ao lado de Lino Rojas. Em 2007 o grupo retomou as ruas de São Paulo com um novo espetáculo, diferente de todos aqueles que já haviam montado. Já estavam no bairro de Cidade Tiradentes e, como ao longo de sua história sempre buscaram estar integrados à comunidade, queriam falar sobre aquelas pessoas que cruzavam seu dia a dia. Foi através de um texto do argentino Oswaldo Dragún, escrito em 1957, que identificaram histórias parecidas com a luta travada pelos moradores daquela região. Tudo era novo, pois nunca haviam montado nada que não tivessem a contribuição deles e agora partiam de um texto pronto. Já não havia Lino Rojas, era necessário convidar um diretor. Para esta empreitada, convidaram o diretor Hugo Villavicenzio. O espetáculo Histórias Para Serem Contadas traz duas histórias de pessoas comuns e carrega em seu bojo uma discussão e uma crítica sobre a luta diária pela sobrevivência por parte dos mais simples, que quase sempre são engolidos pela ferocidade do capitalismo. Assim, por falta de emprego melhor, temos um homem que vira cachorro. Inicialmente apenas uma imitação, até ir assumindo, de fato, a animalidade canina. Uma crítica mordaz aos subempregos tão comuns na cidade de São Paulo a que está exposta a população periférica. Outra história é a do camelô que é atacado por uma terrível dor de dente, e como ele ganha sua vida “no grito”, vai ficando sem condições de trabalhar. Ao procurar o sistema de saúde, vai sendo jogado de um lugar para outro, sem solução do problema, sendo levado a uma condição cada vez pior: um vendedor que não pode falar, portanto, sem condições de ganhar a vida. Situação muito comum não só em São Paulo, é uma realidade brasileira: ao perderem seus empregos muitos vão trabalhar na informalidade, ficando muitas vezes desprovidos de direitos básicos, como o serviço de saúde e aposentadoria. O mais recente trabalho, Cidade Desterrada, é um mergulho no imaginário e na própria história do bairro em que estão sediados: Cidade Tiradentes. Além dos espetáculos, o grupo Pombas Urbanas tem desenvolvido diversos projetos ao longo de sua existência. Iremos nos debruçar apenas sobre um, que tem se desdobrado em muitos: o Centro Cultural Arte em Construção. Trata-se de um galpão de 1.600m² alojado na Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo. (2007), Era Uma Vez Um Rei (2014) e Cidade Desterrada (2015).

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Este bairro, segundo dados oficiais, abriga uma população de 229.606 habitantes7, em uma área de quinze quilômetros quadrados. O bairro é composto por diversos conjuntos habitacionais que, ao todo, é tido como o maior conjunto habitacional da América Latina; sua população é composta por uma grande quantidade de jovens. Foi para esta região que o grupo Pombas Urbanas foi em 2004, apresentando-se pela primeira vez no galpão ainda em ruínas, exatamente no dia 21 de abril, aniversário do bairro. Desde o início de sua formação o foco do grupo foi o teatro e os integrantes sempre tiveram “o jovem como protagonista do desenvolvimento local, cultural e humano”8, mas ao chegarem na Cidade Tiradentes viram-se obrigados a modificar muitas ações. Tiveram que criar novos projetos, já que muitas crianças acorreram para o espaço. Foi por essa necessidade que deram início a novos projetos e novas parcerias. Dentre estes, podemos citar uma biblioteca comunitária, aulas de música, grafite, circo, inclusão digital e, é claro, aulas de teatro para crianças e jovens. Muitas ações só foram possíveis devido a patrocínios e a editais públicos ganhos no Município, no Estado e da União. Um projeto importante foi o “Semeando Asas na Comunidade”, uma renomeação do projeto que deu origem ao grupo em São Miguel em 1989. Mas a ideia inicial foi realizada de forma ampliada. Além de capacitar jovens para gerir o próprio projeto e o Centro Cultural Arte em Construção através de aulas de teatro, produção, iluminação, entre outros, o projeto foi alicerçado na proposta de formação de público, com um circuito por quatro praças da Cidade Tiradentes além do galpão, espaços esses que receberam espetáculos do grupo e de convidados ao longo do ano de 2008. Há grande alarde na mídia quando se fala da Cidade Tiradentes, por causa da violência, mas, segundo Adriano Mauriz e Juliana Flory9, o projeto Semeando Asas na Comunidade possibilitou ao grupo perceber como essas situações surgem. Um dos pontos escolhidos foi o Conjunto Habitacional Prestes Maia, o mais antigo da região, com uma população oriunda principalmente do interior do estado e que trouxe consigo a cultura e a tradição, e por isso tinham por hábito realizar festas na praça. Em relato ao grupo, alguns dos moradores relataram que estas festas foram suprimidas após a chegada de uma delegacia de polícia no bairro. Informaram ainda sobre as condições em que foram “jogados”. Suas casas eram pequenas e não tinham espaços de garagens. Quando os primeiros moradores compraram carros, 7

www2.prefeitura.sp.gov.br/sim_dh/sub_cidadetiradentes.html. Acesso em: 10/07/08.

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Adriano Mauriz em entrevista ao autor em 16/03/08.

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Entrevista concedida ao autor em 16/03/08.

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viram-se obrigados a derrubar a parede da sala para construírem as garagens. As ruas do bairro, muito estreitas, não foram projetadas para receber o caminhão de gás, e não havia espaços de lazer. Dessa forma, conclui-se que o primeiro gerador de violência é o próprio Estado, que condena e condiciona os moradores a uma realidade à qual não estão habituados, não fornecendo aquilo que tanto alerta Milton Santos (2000): o direito ao entorno. O projeto Semeando Asas na Comunidade integrou de vez o grupo Pombas Urbanas em Cidade Tiradentes. Até o jovem que era mais arredio, segundo Juliana Flory, valorizou o empenho do grupo e passou a acompanhar a sua programação teatral, pois, segundo a atriz “tem muito valor essa situação deles estarem num lugar juntos e de ter outras pessoas representando coisas para eles”. E é esse estar juntos o que os moradores buscam, como afirma Adriano Mauriz na mesma entrevista: “o teatro faz as pessoas se relacionarem na rua.” Hoje, muitos desses jovens integram outros coletivos artísticos formados pelos primeiros atores e dividem o mesmo espaço do Centro Cultural Arte e Construção; realizam seus próprios projetos e fortalecem as demais ações do Pombas Urbanas. Asas foram semeadas e muitos jovens alçaram voo na e a partir da comunidade de Cidade Tiradentes. Mesmo tendo uma história de mais de duas décadas, a sua relação com a mídia nem sempre foi fácil, pois já chegaram a ouvir que o público daquela região, Cidade Tiradentes, não é um público leitor de jornal. Por isso o grupo, a partir do citado projeto, tem buscado a divulgação principalmente através das novas mídias. Para tanto, incentiva os jovens que acompanham este e os demais projetos a se formarem e informarem sobre essas ferramentas, no que têm obtido sucesso. Segundo Adriano Mauriz, “o Pombas, ao longo do tempo foi construindo sonhos”. Como se pode ver, um grande sonho, que em 2015 completou vinte e seis anos de existência. O grupo, através de seu exemplo, demonstra que o teatro, por ser uma ferramenta de comunicação, pode ser utilizado pelos jovens de qualquer lugar. Esses atores saíram de São Miguel Paulista, estiveram em diversos outros bairros de São Paulo, até chegarem ao bairro de Cidade Tiradentes. E ao longo dessa história foram conquistando sua emancipação artística, mesmo sem os pressupostos acadêmicos. Atualmente o grupo Pombas Urbanas é composto por sete integrantes: Adriano Mauriz, Juliana Flory, Marcelo Palmares, Marcos Khaju, Natali Conceição, Paulo Carvalho e Ricardo Big.

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O contrário do menino diamante: análise de uma saga contada pelo Coletivo Dolores Alexandre Falcão de Araújo10 A obra teatral A Saga do menino diamante: uma ópera periférica é uma criação coletiva do grupo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, gestada e apresentada em diálogo profícuo com o espaço de encenação: a área aberta do Clube da Comunidade (CDC) Vento Leste11, no bairro Patriarca, zona leste de São Paulo, em quatro temporadas, de 2009 a 2012, sendo que todo esse processo foi realizado com recursos do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo12. O nome e ideia inicial do trabalho partiram de um parceiro do grupo que queria contar a história de um menino que sai da periferia, enfrenta uma longa saga e vence: tornase um diamante. Porém, a ideia soava como uma exaltação do indivíduo, reproduzindo o discurso hegemônico capitalista. A proposta, então, foi invertida: o título se torna um chamariz espetacular que, na verdade, anuncia o contrário: a história não trata de um “menino diamante”, mas da saga de ser um social determinado por um contexto histórico. A obra nasce com uma contradição já em seu nome e, de forma épica, isso é explicitado desde o início da encenação. De forma sintética, podemos dizer que o processo de criação da Saga se valeu dos seguintes procedimentos: estudos teóricos coletivos, preparação corporal, estruturação da linha filosófico-conceitual do trabalho, estruturação do pré-roteiro dramatúrgico, criação de cenas a partir de improvisação com os temas do roteiro, criação de músicas a partir dos temas do roteiro e das cenas criadas, definição da estrutura final do espetáculo e, por fim, ensaios. É importante destacar o caráter racional do método aplicado pelo grupo, que parte do estabelecimento do discurso comum acerca do tema para somente depois traduzir em cena as reflexões coletivas. Definida a reflexão central, o desdobramento seguinte foi o pré-roteiro, onde grandes temas relacionados à questão principal preencheram os espaços e tornaram-se mote para as cenas criadas por meio de improviso. Tal método de criação está relacionado com o caráter fragmentário e radicalmente épico da peça, pois Ator, arte-educador e pesquisador teatral. É mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), colaborador do coletivo Aliança Libertária Meio Ambiente (ALMA), de São Paulo, SP, e professor do curso de Teatro da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Articulador da RBTR e membro do GT artes Cênicas na Rua da ABRACE. E-mail: afalcao.araujo@gmail.com 10

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Nome atual do antigo Centro Desportivo Municipal (CDM) Patriarca.

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Lei Municipal nº 13.279, de 8 de janeiro de 2002.

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na Saga praticamente não é possível reconhecer as personagens individuais, já que estas são alegorias de grupos sociais, de movimentos coletivos. Não há uma única trajetória, ou mesmo algumas trajetórias individuais, específicas, sendo contadas; não há narrativa linear, com começo, meio e fim. O menino diamante é apenas uma metáfora para contar alguns dos movimentos do capital e da classe trabalhadora brasileira desde a década de 1950, até os dias de hoje. Inicialmente concebido para ter três atos, sendo o primeiro externo, o segundo com dois atos paralelos (um interno e um externo) e o terceiro, a festa, o espetáculo acabou se estruturando de fato com apenas dois atos, o primeiro que é a própria saga e o segundo, a festa. Um dos conceitos conscientemente aplicados na encenação veio do arcabouço brechtiano, trata-se do “efeito de estranhamento” compreendido aqui como o meio pelo qual os processos e pessoas são representados como históricos e transitórios (passíveis de serem modificados), retirando do acontecimento o seu caráter natural, lançando a curiosidade e o espanto (KOUDELA, 1991; BORNHEIM, 1992). Na proposição das cenas, muitas vezes os integrantes do Dolores depararam-se com situações que pareciam cristalizadas, “verdades absolutas”; logo experimentavam quebras épicas, a fim de causar estranhamento e proporcionar uma leitura dialética da realidade. Um exemplo de apropriação extremamente potente do efeito de estranhamento na relação com o espaço cênico ocorre na cena do futebol, realizada no lado externo da quadra poliesportiva do CDC, e que tem início com o som de uma bola de futebol batendo no alambrado e o apito de um árbitro. É apresentado “Diamante Negro”, o menino que se tornou um jogador de futebol consagrado; uma das muitas alegorias da peça para mostrar o processo de eleição de alguns escolhidos que se tornam símbolos da possibilidade de ascensão social e vitória pessoal, em detrimento da ampla maioria da população. Um repórter entrevista o atleta e lhe entrega brasões de times de futebol, presos ao alambrado da quadra por uma fita vermelha. Os brasões vão se sobrepondo uns aos outros no uniforme do jogador, enquanto este pronuncia um discurso superficial e cômico tratando de honra e privilégio. Ao final, Diamante Negro integra a seleção brasileira de futebol, representada pela logomarca da Nike, uma de suas patrocinadoras, que é colado acima dos brasões anteriores; o jogador agradece muito a Deus pela oportunidade de vestir a amarelinha e beija a logomarca da Nike, - 16 -


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logo após pronunciar a palavra “deus”. Este gesto gera uma das situações mais cômicas da cena e sublinha a denúncia do esporte como mercadoria. Na sequência, o jogador fica dependurado no alambrado, preso pelas fitas vermelhas ligadas aos brasões. Outro chute e o som da bola se chocando contra o arame encerram a cena. A apropriação do espaço da quadra de futebol como elemento cênico não apenas cria um ambiente para a ação dramática, mas também se integra ao gestus social, afinal, junto com a cena o que está sendo mostrado é um equipamento público de esporte localizado na periferia da cidade, onde diariamente várias crianças e adolescentes jogam futebol, se divertem e também se deixam inebriar pelas mesmas ilusões que estão sendo desmascaradas no espetáculo. A relação com o espaço é sonora (som da bola batendo no alambrado e apito do árbitro), imagética (a ocupação realça o olhar do público para aquele espaço que talvez passasse despercebido no cotidiano) e física, pois o jogador termina a cena suspenso no alambrado-sistema, do qual ele se sente parte privilegiada. Em resumo, o uso lúdico e concreto do espaço em contraste, e o significado crítico denotado pelo discurso cênico causam o efeito de estranhamento. A peça promove o deslocamento no território do CDC e se apropria inclusive do relevo para construir imagens e promover a reflexão. Nesse sentido, outros belos exemplos de ocupação espacial são os que ocorrem junto ao barranco vermelho que estabelece o limite entre a área do equipamento público e a rua. Em uma das cenas, do alto do morro, um menino nu surge, como que nascido do barro. De forma espetacular, o menino é colocado numa tirolesa, preso por cordas que remetem ao cordão umbilical, e desce pelo efeito da gravidade até o centro da cena, no terreiro à frente do barranco, para logo na sequência ser sujeitado por diversas “instituições”: estado, mercado, escola, mídia, família e religião. Tal processo opressivo é representado por meio de um coro de atores vestindo o menino com o macacão, que conforma o figurino-base de todo o elenco. Os atores carregam placas grudadas em suas costas, que indicam as instituições; atam uma fita vermelha em seu macacão e abrem uma grande roda, mantendo o menino ao centro. Inicia-se a dança do pau de fita, uma dança tradicional da cultura popular brasileira. A beleza e leveza do folguedo entram em contradição com o fenômeno social representado. Os atores dançam em torno do menino, sorrindo e cantando, como na versão tradicional da dança, porém neste caso, ela se mostra uma alegoria - 17 -


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do envolvimento do indivíduo por todas as esferas da sociedade, envolvimento que se dá em grande parte pela repressão, como é exemplificado em cenas subsequentes. A cena do pau de fita é uma forma de apropriação crítica e ressignificação de uma manifestação cultural popular, com o intuito de provocar a reflexão e explorar parte do potencial político que ela possa ter num contexto de periferia de uma grande cidade metropolitana contemporânea. A forma como a dança é apresentada, ao mesmo tempo em que remete ao Brasil rural, de onde vieram os migrantes que compõem grande parcela da classe trabalhadora apresentada no espetáculo, a torna simultaneamente lúdica e incômoda, já que ela passa a significar para os indivíduos periféricos não somente a resistência cultural - uma memória bucólica de uma prática que vem perdendo o sentido no contexto urbano - mas também o radical processo de conformação do indivíduo em meio a tantas esferas determinantes dos modos de ser e pensar. A apropriação do Dolores caminha, portanto, em rumo inverso à folclorização e, nesse sentido, dialoga com as observações de Canclini (1983), que afirma que não podemos apreender as manifestações culturais populares de forma estática e idealista, pois elas são resultado das desigualdades e dos conflitos existentes nas relações entre as diferentes esferas da cultura. Algumas cenas depois, no pé do morro, é montada uma favela: figuras oriundas do êxodo rural e da migração norte-sul chegam com suas coisas, carrinhos de feira, panelas, caixotes, e erguem a olhos vivos um barraco semirrealista, com tábuas encaixadas na terra. A memória se materializa em forma de poesia: o barro vermelho de onde nasce o menino diamante é o berço dos mesmos sujeitos periféricos que contam a história e de outros tantos sujeitos do público e do entorno que partilham da mesma exclusão geográfica. A favela representada no barraco erguido rapidamente à vista de todos é a lembrança concreta das histórias de vida de parte dos atores e das comunidades que, não distantes dali, sobrevivem cotidianamente em meio à precariedade de moradia e de condições de vida. A beleza das imagens se contrapõe aos fenômenos sociais representados: a conformação do indivíduo e a segregação espacial. Somando-se e estes momentos, diversos outros trechos da Saga propõem efeitos de estranhamentos de distintas naturezas, como por exemplo, os contrapontos entre discursos verbais em planos e estilos diferentes; a gestualidade e outras formas de discurso; a música cantada e música falada; o estímulo à participação do público e subsequente repressão. Além da estrutura formal de cena, o trabalho do Dolores leva para o campo - 18 -


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da criação artística, de gestão do grupo e do espaço do CDC, proposições de horizontalidade radical sintetizadas no conceito “teatro mutirão”, que poderia ser descrito como a busca pela superação da alienação do trabalho. No grupo há rodízio de funções, todos recebem igualmente pelo trabalho independentemente da função realizada, e decidem coletivamente os rumos a se tomar, o que se caracteriza como um desafio e um processo de contínuo aprendizado. Pela análise do histórico do grupo e da experiência da Saga do menino diamante, consideramos que o Dolores avança na radicalização de procedimentos no escopo do teatro épico e político de rua, desde sua organização interna e processo criativo - em relação à busca de horizontalidade na concepção e condução do processo - até a forma final de seus espetáculos que propõem com ousadia novas relações com o público e com o espaço de encenação. A obra de Bertolt Brecht é imprescindível para a compreensão da Saga, pois o Dolores, em grande medida, se vale do referencial brechtiano. Porém, a práxis do grupo transborda para além desta referência, subverte-a e nos permite refletir acerca de novos procedimentos de criação artística e experiência social. O repertório acadêmico muitas vezes não dá conta das experiências cênicas contemporâneas e, nesse sentido, se o Dolores tivesse se pautado exclusivamente pelas obras do teatrólogo alemão, não teria chegado às formulações da Saga. O caldeirão cultural do teatro político das periferias paulistanas, temperado pela militância junto aos movimentos sociais e pelas diversas frentes de expressão cultural popular, forneceram inúmeros elementos para a criação do espetáculo. A Saga desenvolve valiosos procedimentos de participação do público: deslocamento pelo espaço com elementos cenográficos que também são assentos e ajudam a consolidar os consecutivos espaços de cena; participação direta e festiva em cena, seguida de repressão; fruição e participação na festa pós-espetáculo, onde os limites do teatro já foram rompidos e a experiência é presentificada como debate e também diversão. As cenas geram estranhamentos de diversos tipos: em relação às músicas, aos textos, às partituras corporais e, talvez, os mais belos efeitos em relação ao próprio espaço que é ocupado. A obra foi, inclusive, reconhecida com o Prêmio Shell de Teatro13 – uma das principais premiações do teatro brasileiro - na categoria especial, o que gerou a oportunidade de o grupo realizar um protesto na cerimônia de entrega do prêO Prêmio Shell de Teatro premia, todos os anos, os artistas e espetáculos considerados como os de “melhor desempenho” nas temporadas teatrais do Rio de Janeiro e de São Paulo. O Coletivo Dolores Boca aberta foi premiado na 23ª edição do prêmio.

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mio, fato que repercutiu amplamente na mídia. Durante a premiação, uma atriz e um ator negros, integrantes do Dolores, subiram ao palco para receber a estatueta em formato de concha, símbolo da Shell. Após receber o prêmio, o ator Tita Reis leu uma carta irônica em que agradecia o gesto da empresa ao mesmo tempo em que denunciava seu histórico de destruição, enquanto a atriz Maria Eunice virava em sua cabeça uma embalagem de óleo Shell cheia de tinta preta, simulando óleo queimado. Por se tratar de um trabalho extremamente contundente, que reúne centenas de pessoas em um equipamento público distante do centro de São Paulo para refletir acerca da estruturação das cidades brasileiras, a Saga é um fenômeno do teatro político paulistano contemporâneo, gestado, nascido e desenvolvido na periferia. O desafio permanente imposto ao grupo é a superação dialética de suas contradições, na medida em que a busca da horizontalidade nos processos criativos e de gestão do grupo muitas vezes entra em conflito com os prazos dos editais, com as necessidades técnicas e formais dos espetáculos e com as relações interpessoais entre os integrantes. Além disso, a equação sobrevivência material-aprimoramento estético-militância, característica do fazer artístico e político dos integrantes do Dolores, não é de fácil resolução; demanda novas, criativas e combativas soluções a cada instante. O desdobramento do trabalho da Saga rumo a futuras criações e intervenções solicitará do grupo o contínuo aprofundamento em termo de linguagens artísticas, em diálogo constante com a pertinência política das obras e o envolvimento comunitário, sem o que a ação do grupo deixaria de fazer sentido.

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Transitando Pelas Ruas: Uma Cena Que Constrói Cidades André Carreira14 e Lara Matos15 Este texto se propõe a pensar o teatro na rua, na cidade, como uma prática poética e política que se relaciona com a própria construção da ideia de cidade. Para isso, partimos de algumas premissas, tais como: 1) o teatro que transita pelas ruas tecendo novos olhares sobre o habitar o espaço urbano representa uma ação de desconstrução/fabricação da cidade porque nasce como leitura/escritura da dramaturgia que é a cidade; 2) a silhueta da cidade e seus habitantes são um texto que os atores da rua leem e escrevem no mesmo tempo em que experimentam seus fluxos e dinâmicas; 3) o habitar é a matéria prima da construção da cena na rua, e é isso que permite pensar o teatro na cidade como uma forma que não apenas se acopla ao funcionamento da rua, mas como um elemento constitutivo da rua como espaço público, o que implica necessariamente em diálogo entre o teatro e a rua que produz mútuas transformações. Tratamos ainda de apresentar uma reflexão sobre os possíveis potenciais políticos do teatro na cidade, especialmente no que se refere à possibilidade de estabelecimento de vínculos que chamaremos de “comunidades transitórias”. Ao mesmo tempo tratamos de apontar para as contradições que nós artistas experimentamos em um tempo marcado pela onipresença da cultura do consumo. Observando estes elementos, acreditamos apropriado pensar sobre a capacidade de eficácia do teatro considerando os desenvolvimentos das relações entre a arte e o campo político, particularmente os deslocamentos que reforçam práticas artísticas interessadas na ideia de participação e colaboração.

Nosso desejo de transformação A abordagem das ruas como espaço para o teatro implica sempre na transformação destas – ainda que de forma momentânea – em lugares de encontro. Pelo Diretor do grupo Experiência Subterrânea, Professor do Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC e Pesquisador do CNPq. Email: carreira@udesc.br

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Atriz do grupo Experiência Subterrânea e doutoranda do PPGT Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC.

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menos este parece ser o desejo e a experiência de muitos dos artistas que optam pela rua como âmbito. Se o carnaval e outras festas populares fazem das ruas espaços do lúdico, o teatro poderia trazer para a rua recortes dos fluxos cotidianos ao instalar a ficção como fala que se confrontaria com o rigor do funcionalismo que predomina na cidade. Isso está diretamente relacionado com o projeto de diferentes artistas contemporâneos que percebem o contexto vivo das ruas como material, ambiente e dramaturgia da cena de rua. Podemos perceber, no entanto, que predominam ainda as iniciativas que associam a possibilidade de transformação principalmente com o plano temático dos espetáculos, mesmo que o ordenamento e o controle do uso da rua seja um ponto focal no conflito entre o poder administrativo e a força poética da cena. É essa contradição que determina um aspecto chave do campo ético da cena na cidade: a necessidade de construção de práticas que resistam e se apresentem como dissidentes em relação aos padrões normativos do estar na cidade. Isso se faz ainda mais importante nos momentos em que as autoridades administrativas e até entidades culturais hegemônicas se associam facilmente aos discursos de valorização do “espaço público”, sem levarem às últimas consequências o compromisso com a gestão do público como prática democrática que só pode existir se são incorporados realmente o pensamento e os desejos dos cidadãos, isto é, de todos habitantes da rua, com todos os riscos que isso pode significar. A ideia de espaço público supõe a politização do mesmo o que só pode ocorrer com a explicitação das contradições que definem nossa sociedade. Por isso, as práticas de limpeza e ordenamento dos espaços vazios da cidade, verdadeiros restos deixados pelos interesses que fabricam incessantemente prédios, estacionamentos e centros comerciais, não podem ser aceitas como produção de espaços públicos. Os artistas que desejam transformar algo do contexto cultural e político não têm outra opção que perceber a necessidade de resistir, dissentindo desses projetos. Percebemos que a intromissão do espetáculo de rua nos espaços públicos, e não tão públicos, oferece a possibilidade de abrir diálogos sobre os projetos coletivos para a cidade. Isso pode se dar tanto através do plano temático do espetáculo, como pela linguagem da cena que já instaura a discussão do próprio sentido do espetáculo existir. Uma vez, em um evento nacional de teatro de rua, um crítico se perguntou sobre o sentido de um determinado espetáculo de rua existir. Essa é uma pergunta comum que aparece inúmeras vezes entre aqueles que circulam por - 22 -


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qualquer cidade, e se confrontam com artistas realizando o mais incompreensível esforço por dar vida a algum espetáculo teatral nas condições mais adversas. A resposta deveria ser simples e contundente: estes espetáculos existem - sejam eles compreensíveis para os críticos ou para os transeuntes -, porque nos recordam que é possível, e necessário fazer arte com liberdade nas ruas. As ruas de uma cidade são um espaço político central em nossa sociedade. Apesar de todas as intrigas dos palácios e parlamentos, será sempre na rua onde os grandes conflitos serão resolvidos finalmente. É a relação de forças que ameaça na rua, o que pende a balança do poder. Mesmo as manifestações que vemos atualmente organizadas e discutidas no interior dos meios virtuais, estabelecem ainda a presença na rua como elemento de confirmação ou não do engajamento político estabelecido através das redes sociais. Os movimentos “occupy” começaram pelo Twitter ou Facebook, mas levaram gente à Praça Tahrir no Cairo ou a Wall Street em Nova Iorque para concretizar a operação de luta. A decisão das pessoas de irem ou não às ruas constitui o principal componente do processo político. E mesmo que o teatro na cidade, em sua insignificância de arte marginal, não possa ser o estopim de movimento de massas, ele experimenta um diálogo vivo com as pessoas em um contexto único de liberdade. Nas ruas as pessoas são mais livres para se expressar que em uma sala de teatro, estão mais disponíveis a opinar e a, eventualmente, cumprir o papel de atores no jogo da ficção. Nestas condições dialogam realidade e ficção de uma forma dinâmica. E é a partir do reconhecimento da frágil dicotomia entre atores e espectadores que se dão as possíveis aproximações com o cidadão comum da rua. Este cidadão constitui, de fato, a materialidade ficcional. É neste contexto que o jogo é conduzido pelo ator como modo de intervenção nas tensões dominantes do cotidiano. Usualmente pensamos que o espetáculo teatral na rua convoca um olhar generoso porque a rua seria o berço do artista popular. Mas muitas vezes o que observamos é uma recepção que estranha a presença do teatro na rua. O olhar do transeunte pode ser uma resposta resistente que tem dificuldades para encaixar o esforço dos artistas como parte de um diálogo aberto. As ruas são espaços inóspitos que tratamos de conquistar a cada novo espetáculo, a cada nova apresentação. Parte importante dos nossos esforços quando invadimos a rua com o teatro estão dirigidos a construir situações de compartilhamento, de jogo, de integração com os transeuntes que queremos fazer espectadores, em um contexto adverso e tenso. É preciso lembrar o quanto o trabalho do ator na rua depende de um movi- 23 -


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mento de abertura e diálogo com o universo da cidade. Este deve-se fundar em um movimento constante entre estar receptivo para compreender e agregar o ambiente, ao mesmo tempo seguro para conduzir as intervenções que variam da recepção dócil e generosa para a agressividade e demarcação de território, praticada pelos mais diversos agentes.

A possibilidade de vínculos: “comunidades transitórias” Talvez resulte redundante afirmar a ideia de transitoriedade na constituição do sentido comunitário quando falamos de teatro na cidade, em primeiro lugar porque o teatro é uma arte efêmera por definição; em segundo lugar porque a transitoriedade da própria vida já nos impossibilita pensar o perene como hipótese. No entanto, reafirmar essa transitoriedade é reconhecer algo que define o espírito dos acontecimentos da rua, aquilo que é da natureza básica do estar na rua: a pouca durabilidade das experiências, ainda que possam ser profundas e duradouras em suas repercussões. Nisto reside um dos principais elementos poéticos das artes cênicas na rua porque sua efemeridade demanda intensidade para a produção de resíduos afetivos naqueles que a experimentam como espectadores e até mesmo como possíveis artistas circunstanciais. Georg Simmel16 pensou a cidade moderna e suas dinâmicas de destruição e de transformação considerando que esta cidade moderna precisa ser abordada a partir de suas formas e dos gestos humanos que a compõe. Por isso, é fundamental que se considere a fugacidade e o efêmero da vida urbana (1979). Quando os artistas escolhem a rua para a realização de um projeto cênico já se encontram frente ao fato de que nada do que seja realizado será perene, pois, se isso é verdade para o teatro de um modo geral, na rua, onde as condições variam de forma intensa (desde o clima até o ritmo do fluxo dos transeuntes) a ideia de algo durável se desarma imediatamente. A pouca durabilidade do tempo médio de atenção se comparada com um espetáculo de sala é outro elemento que reforça o efêmero dos acontecimentos de rua. Por outro lado, é justamente isso um dos elementos que reforça o potencial afetivo da cena de rua, e que pede uma especial atenção para a experimentação artística a partir da possibilidade de produção de afetividades. O jogo na rua deve estar relacionado com a possibilidade da criação de 16

Filósofo alemão (1858-1918)

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campos afetivos, isto é, de uma produção de vínculos que rompam com as barreiras que impõem o puro racionalismo. Portanto, a experiência sensorial adquire uma importância destacável como instrumento de aproximação entre cena e os espectadores. Cabe recordar que a rua também é um espaço de ludicidade, onde eventualmente os transeuntes se permitem jogar aproveitando o momentâneo anonimato que potencializa a expressão individual no meio do coletivo. Pensar a hipótese de uma comunidade momentânea está relacionado com a ideia de que nossa imagem da cidade e nossos processos de identificação com os espaços urbanos emergem de nossas experiências de uso e fruição do espaço. O antropólogo Nestor García Canclini17 diz que nossa experiência na cidade não é somente física, pois nos nossos recorridos imaginamos a cidade, “construímos suposições sobre o que vemos, sobre quem cruza conosco, as zonas das cidades que desconhecemos (2005, p. 89). Estas são “interações evasivas e fugazes que propõe a metrópole” (2005, p. 90). O olhar imagina, fabricando a cidade. As formas teatrais de rua oferecem elementos que contribuem com a formulação das cidades imaginárias, e é importante considerar que o processo de imaginação representa uma força modeladora de comportamentos, particularmente, no que se refere à ocupação dos espaços públicos. Por isso, devemos pensar que o teatro que ocupa as ruas sempre será uma proposta que repensa esse imaginário sobre a cidade, um espaço desejado, sonhado. Portanto, a cidade e suas ruas são espaços a serem deformados pela ação da ficção. A atuação artística dialoga não com a amplitude da cidade, mas sim com os recortes espaciais e com as micro polis, isto é, com os fragmentos ocupados por determinados fluxos. São estes espaços delimitados que permitem se pensar na conformação de comunidades transitórias. O sentido de comunidade não é tratado neste texto como algo estável que represente um conjunto de pessoas que habitam determinado lugar, mas sim como uma percepção de compartilhamento com o outro. Isto é, comunidade seria segundo nosso ponto de vista, um perceber-se em contato com um coletivo, produzindo um processo de identificação que operacionaliza determinadas ações contempladas por este “perceber-se em comunidade”. Um exemplo claro disso são as manifestações e protestos de rua quando, determinada por diferentes circunstâncias os participantes do evento vão construindo vínculos específicos que propiciam determinadas tomadas de decisões que nem sempre já estão claras na convocação do próprio 17

Pensador argentino (1939 - )

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evento político. Surgem no meio das manifestações percepções e ideias que estão relacionadas com a identificação de um sentido de comunidade que por vezes leva a própria manifestação a rumos impensáveis no seu início. Muitos dos espetáculos de rua têm em comum propostas que não apenas invadem o espaço público, mas buscam fomentar novas formas de relacionamento dos transeuntes com a sua cidade. Existe uma utopia dos vínculos ainda que isso seja um projeto que reconheça sua forma transitória. Tal hipótese supõe que a intervenção cênica pode abrir oportunidades para a ação criativa dos cidadãos dentro do evento ficcional. Há, neste caso, uma aposta na possibilidade de que os transeuntes assumam comportamentos distintos da lógica tradicional do uso da rua, de forma que isso estabeleça, eventualmente, a percepção de uma comunidade da rua. Cabe dizer que estamos falando de um acontecimento muito próximo à ideia de festa, ou do comportamento da festa o qual permite que as pessoas se abram para o inesperado, e joguem papeis que nunca esperaram desempenhar junto a pessoas que nunca viram antes. É preciso considerar a hipótese que o papel fundamental do espetáculo na cidade possa ser gerar nos transeuntes a sensação da possibilidade de que a ordem corporal da ocupação e do habitar possa ser outra. Isso pode parecer pouco, mas estamos falando de um horizonte de possibilidades que se inscrevem quando o acontecimento artístico toca o íntimo dos espectadores. Isso nos leva a afirmar que os diálogos que o teatro na cidade pretende estabelecer com os transeuntes devem pressupor as múltiplas formas híbridas da cultura da rua para colocar em discussão as formas de relacionamento que podem predominar no espaço público das ruas. Assim, podemos identificar os elementos cênicos que podem cruzar transversalmente os modos de operação dos transeuntes gerando novas (ainda que efêmeras) formas de habitação da cidade. Esse pode ser o ponto de partida para se propor novas comunidades provisórias. Tais comunidades estarão baseadas na possibilidade da manifestação do comportamento lúdico por parte dos transeuntes. Mas, isso não nasce da simples observação como espectador, pois depende de uma decisão do cidadão que mudaria seu comportamento momentaneamente, assumindo os riscos do jogo. Neste sentido, vemos linhas de contato entre a noção de festa, especialmente no que diz respeito à desorganização da ordem e a invenção de novos vínculos entre artistas e a audiência. Mas, pensar isso implica em evitar formas simplistas de instituir a participação, e muito menos de supor que a participação por si só ganhe a importância de um fator de transformação. Ao supor a criação de uma comunidade transitória a partir da ação do tea- 26 -


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tro na cidade, estamos considerando a possibilidade de que esta esteja conformada pelos transeuntes e por atores no processo de abordagem do espaço urbano a partir da proposição de uma nova lógica de uso do âmbito público. Isso ameaça a noção de tempo funcional, ou seja, o tempo de circulação, pela criação de formas alternas de fruição da cidade. Então esta comunidade será definida pelo prazer do jogo teatral, pelo gozo de se observar ou de protagonizar atritos entre o real e o ficcional. Em outras palavras, uma comunidade de jogo que se instala quando as pessoas tomam a iniciativa de se expor sendo algum personagem, e contam com a cumplicidade dos outros para sustentar esse jogo de faz de conta. Assim, o sujeito poderá ocupar o duplo lugar de usuário da cidade e espectador-ator de uma forma teatral que sugerirá uma micro-ruptura lúdica dos ritmos operacionais de um fragmento da urbe.

Fluxos e a cidade como dramaturgia A cidade não pode ser compreendida apenas como cenografia ou como um sitio social, isto é, como um âmbito alternativo ao teatro de sala. Este espaço deve ser compreendido como ambiente complexo, como um texto vivo que é produzido tanto pela configuração arquitetônica como pelos fluxos dos habitantes. O fluir dos cidadãos define os lugares da cidade, pois é justamente o fluxo que caracteriza o uso da cidade pelas pessoas. Então compreender os fluxos e suas potencialidades é algo central no processo de criação dos espetáculos teatrais na cidade. Trabalhar com a noção de cidade, ou seja, de um teatro na cidade, não implica em desconhecer a tradicional ideia de teatro de rua, mas sim ampliar esse conceito tornando-o mais complexo, buscando pensar a teatralidade que dialoga com a cidade como dramaturgia. Por isso, parece oportuno expandir a ideia de rua, considerando todos os fluxos que delimitam e definem nossas cidades. A cidade é um espaço público multifacético e mutante; um espaço que se expande e se contrai a partir da multiplicidade de fluxos de usuários do espaço urbano. Estes fluxos são produzidos tanto por transeuntes como pelos veículos. Consequentemente, também são estes agentes que produzem as eventuais rupturas e interrupções dos fluxos. Tais vetores dialogam com as regras que organizam os fluxos e normatizam o habitat urbano, ao mesmo tempo em que produzem ações que buscam romper estas regras construindo processos de habitação. Tais processos - 27 -


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estão mais relacionados com as necessidades dos indivíduos do que com os projetos ordenadores das instituições, por isso o habitar pode produzir experiências vinculantes que desenvolvem o sentido de lugar, isto é, a percepção da cidade, ou de seus fragmentos como lugares identitários. Quando nos percebemos como habitante de um determinado espaço começamos por atribuir a tal espaço qualidades que estão relacionadas com nosso processo de tomada de posse do mesmo. Esta posse se estrutura a partir tanto de uma produção de identificação com o lugar, como da elaboração de discursos que fundamentam tal identificação. Como tal posse não é da ordem do legal, mas do uso, ela deve ser reafirmada cotidianamente tanto pela reiteração do uso como pela busca do consenso com outros habitantes da cidade que tal posse é coletivamente reconhecida. Assim, funciona para uma ampla diversidade de usuários da rua que vai desde o proprietário de um comércio que usa espaços das calçadas sem nenhuma autorização municipal, para a estátua viva que sempre se coloca na mesma esquina, como para o mendigo que pede esmola no mesmo ponto. O reconhecimento dos usuários da rua cria práticas de habitação e interferem nos fluxos. Por outro lado, a relação geral dos usuários com o ordenamento do fluxo pela autoridade se dá de uma forma compulsória que não é mediada pelo reconhecimento mútuo, mas sim pela imposição de um ordenamento jurídico e pela explicitação do poder de polícia das instituições governamentais. Quando usamos o termo “a cidade como dramaturgia” queremos considerar que todos os elementos da cidade constituem um texto. No entanto, tal texto não pode contemplar a totalidade da cidade porque só podemos ler e escrever esse texto dentro dos limites de nossa própria atuação direta como artistas, como corpos que estão na cidade, ou melhor, em um fragmento da cidade. Podemos visualizar a imagem da cidade como um todo, inclusive estamos acostumados a pensar as cidades com uma unidade abarcável. Mas, isso só é possível no campo do imaginário. Podemos imaginar Recife como uma cidade única, passível de ser delimitada de várias formas, mas essa cidade nunca poderia ser habitada em sua totalidade de forma sincrônica por todos seus habitantes. Cada sujeito habita uma Recife, isto é, por uma Recife que está determinada pelo repertório de usos e por um mapa de caráter individual que nasce das necessidades e práticas de cada pessoa na cidade. É por isso que na hora de se pensar os processos de criação na cidade devemos nos distanciar da imagem totalizante das cidades para nos concentrarmos na ideia da - 28 -


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cidade como fragmento, um fragmento definido pela amplitude de usos que um determinado conjunto de pessoas ajuda a estabelecer. Podemos ler e escrever a cidade dentro dos parâmetros de seus fragmentos. É a justaposição de fragmentos definidos pela circulação dos cidadãos que conformaria o mapa vivo de qualquer cidade. O que importa neste caso não é o traçado organizado, ou as delimitações de bairros e regiões administrativas, mas sim como os usuários definem suas cidades mediante suas práticas culturais cotidianas. Ao estar na cidade o artista é capaz de ler a mesma como um texto em permanente transformação. A própria presença da experiência artística já transforma esse texto e deve demandar nova leitura.

O teatro construindo a cidade: a disputa do poder simbólico Porque não partir da ideia da inutilidade da arte como instrumento político? Do ponto de vista do capitalismo a arte só tem sentido quando se instrumentaliza como mercadoria. Isso é óbvio, poderá pensar o leitor. Sim, é óbvio como também é óbvio que tudo sob o sistema do capital, até mesmo o amor, só é útil se transformado em alguma mercadoria ou em máquina de produzir consumo. Mas, por ser óbvio não pode ser esquecido. Então a questão inquietante é: como fazer uma arte que se resista a ser mercadoria? Impossível chegar a essa meta diria Fredric Jameson18 (2000), porque no capitalismo atual a fusão entre o sistema econômico e a cultura é completa. Nada de nossa vida escapa a ser mercadoria. Estamos completamente imersos na lógica do consumo e somos muito hábeis para transformar qualquer coisa em objeto de consumo, até nós mesmos nos autoproduzimos como objetos de consumo. Guy Debord19 foi muito claro nesta crítica ao capitalismo quando o descreveu como “Sociedade do Espetáculo” (2015) onde tudo se vende como espetáculo até a militância política revolucionária. Este é o contexto de crise para os artistas que pretendem colocar em discussão a cultura do sistema. Nos sobraria criar em resistência, ou dissidência como diz José Antonio 18

Pensador marxista norte americano (1931- ).

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Pensador marxista francês e diretor de cinema experimental, fundou a Internacional Situacionista (1931-1994)

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Sánchez20 (2015). Isso implicaria em produzir objetos artísticos que ainda que não sejam imunes às práticas de mercantilização imediata, busquem produzir outros tipos de vínculos com seus públicos. A hipótese seria não reforçar a ideia de público consumidor, mas sim produzir tensões com a cultura do consumo, buscando as possibilidades de criação de vínculos com os espectadores que não sejam meramente de consumo do produto. É importante não confundir tal proposição com uma completa recusa a toda e qualquer prática que implique em trabalhar com cachês pagos por instituições, aceitando apenas uma remuneração que provenha diretamente da passada do chapéu na rua. Essa pode ser uma opção ética dos artistas, mas, não estamos partindo do princípio que o correto para resistir às lógicas do consumo seria a completa negação de atribuição de valores ao trabalho artístico. Ainda assim reconhecemos um grande potencial provocativo nas escolhas que implicam na negação da ordem do produto comercial. Valeria a pena começar inclusive a pensar nas estratégias adotadas pelos artistas para fazerem seus trabalhos conhecidos, e para conquistar espaços nas redes de circulação, especialmente os festivais de teatro. Não tratamos aqui de advogar por um idealismo simplista que não esteja atento à complexidade dos fenômenos que estão relacionados com a produção e circulação das obras artísticas. Observamos que existem práticas coletivas organizadas por premissas baseadas na hipótese da criação de novas formas de relacionamento, de novas afetividades, o que, efetivamente pode abrir horizontes para a reflexão de como superar a dificuldade de se criar espaços de autonomia e dissidência para os artistas frente à voragem do sistema de circulação dos espetáculos. As práticas de resistências podem estar ancoradas principalmente na não aceitação da lógica de comercialização como forma geradora do processo de criação artística. Ao invés de trabalharmos com a premissa de oferecer um produto para um público consumidor seria interessante ter como ponto de partida a necessidade de se oferecer linguagem para convocar a uma troca simbólica com os usuários da cidade, isto é, trabalhar com a utopia do encontro. O ato de provocar as pessoas que caminham pelas ruas com um acontecimento cênico que demanda não 20

Pesquisador espanhol (1963 - )

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apenas atenção, mas também um exercício de leitura já implica na possibilidade da construção de um espaço criativo no qual o espectador poderá ter um papel ativo como sujeito que cria, e se recria como leitor/autor da peça como acontecimento. Ser dissidente não é apenas declarar nossa desconformidade com o estado de coisas que constituem nossa realidade política e social, é também produzir tensão com as formas artísticas que se adequaram ao princípio do consumo, buscando, ao mesmo tempo, fugir das proposições panfletárias e por vezes hipócritas, que podem ter um efeito contrário do desejado. Os valores do bem artístico fundamental não estão apenas na obra como coisa, mas principalmente na obra como experiência de linguagem, e neste sentido é fundamental pensar o lugar do espectador, do transeunte das ruas. Convocá-lo a desvendar os procedimentos do espetáculo e produzir seus sentidos é uma maneira de atribuir a este sujeito um papel de protagonista no processo artístico. Levar o transeunte que aceita se colocar na condição de espectador, a uma experiência estética que escapa ao mais óbvio padrão de teatro, pode ser um instrumento de construção artística que abra espaços para um tipo de acontecimento que é mais propício na rua que nas salas de teatro: a eminência da festa, ou seja, a irrupção do comportamento do jogo entre os transeuntes e artistas. Isso novamente nos leva à ideia de uma “comunidade transitória”, pois o estado de jogo, a festa, é uma clara manifestação deste tipo de comunidades nas quais pode haver uma grande intensidade de experiência ainda que o tempo seja restrito a alguns poucos momentos ou poucas horas. A festa e jogo se definem por sua “inutilidade” intrínseca, isto é, o puro prazer, a obtenção do gozo. Sabemos que as festas produzem mercadorias, e as próprias festas são mercadorias de muito valor, mas isso deve ser entendido como uma instrumentalização paralela, dado que o coração da festa é simplesmente o prazer fora de toda ordem produtiva. Aqui aparece outro elemento a ser considerado na discussão da poética de um teatro que ocupa a cidade: a hipótese de uma produção que se reafirma na sua inutilidade instrumental. Algo que negue os sentidos imediatos, a possibilidade de produção de um sentido instrumental e funcional em favor da experiência como jogo compartilhado com os transeuntes. Um teatro que busque no acontecimento e - 31 -


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nos rumos produzidos pelo próprio processo de produção-recepção os seus sentidos sem a normatização completa através das estratégias da encenação. Vinculamos isso com a possibilidade de que os espectadores casuais possam testemunhar o prazer do outro que representa ou assiste a representação. É importante reafirmar que nas ruas tanto atores como espectadores são eventualmente, e de forma simultânea, atores da cena de rua. Estes ainda constituem elementos da dramaturgia com sua simples presença e gestos. Isto está relacionado com a percepção de que a cidade é fundamentalmente um espaço no qual as forças institucionais (públicas ou privadas) tentam impor suas lógicas produtivas e funcionais, portanto, toda força que resiste a isso estaria abrindo espaços de questionamento das instituições. Isso não implica dizer que toda e qualquer uma dessas ações de resistência cumpra um papel questionador da ordem, mas que sim produzem fraturas que podem se exploradas com o fim de se repensar a cidade como espaço de encontro e compartilhamento. A experiência artística do teatro na cidade está diretamente vinculada com a possibilidade de instalar o jogo ficcional em espaços que privilegiam sempre o funcional. As ruas são reguladas para o trânsito de pessoas e veículos, já o teatro aparece como uma prática do lúdico. Considerando isso, pode-se afirmar que as dimensões políticas, ideológicas e estéticas do teatro na cidade estão estritamente vinculadas ao seu elemento base que é o jogo. Portanto, ao pensar a eficácia deste teatro estamos considerando o desejo de que a rua, a cidade (espaços de convivência hiper-fugaz) sejam transformados com base nas trocas de experiências individuais propiciadas pelo acontecimento teatral. Quando a ficção irrompe em um espaço fundamentalmente dedicado à realidade, isto é, à vida cotidiana com todos seus riscos e percalços, e tal irrupção rouba a energia anteriormente dedicada ao cotidiano se abre uma janela (inútil) que oferece aos espectadores a possibilidade de um tipo de experiência que poucas outras práticas oferecem no nosso dia a dia.

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Organização e acomodação do público no teatro de rua: algumas reflexões Jhon Weiner de Castro21 Ana Maria Pacheco Carneiro22 Um assunto a ser explorado Naturalmente as pessoas buscam acomodar-se da melhor maneira possível em qualquer situação. Não é diferente quando se trata de assistir ou interagir com uma peça teatral. Em espaços convencionalmente criados para encenações, os edifícios teatrais, o comum é que encontremos assentos, acústica, iluminação e outros elementos que buscam oferecer um determinado conforto para o espectador. No Teatro de Rua, ou melhor, em qualquer espaço aberto não convencionado para representações cênicas, a acomodação do público se dá de forma bastante singular e diferenciada. E embora seja óbvia essa consideração, busca-se pontua-la, aqui, com o único intuito de discutir as diferenças e implicações desse tipo de espaço e sua relação com a acomodação do público, e a consequente influência na relação com a encenação. Cabe lembrar também que, em se tratando de Teatro de Rua, tais questões nem sempre são discutidas ou exploradas o suficiente. É comum encontrarmos reflexões sobre a organização do público diante uma apresentação de rua, mas raramente essas reportam ou admitem outra forma que não seja de formato em roda, ainda que na prática ocorram distintas formas de se organizar nesse espaço, amplamente registradas em vídeos e fotos dos mais diversos grupos, mas pouco refletidas ou comentadas. Isso explicita, em parte, a dificuldade em encontrar publicações que reflitam sobre essas questões. Um dos propósitos desse trabalho é justamente, suprir essa lacuna, ao buscar suscitar e refletir sobre situações ligadas à acomodação e organização do público, nas apresentações de rua. E, consequentemente, também refletir sobre propostas cênicas em trabalhos que consideram o posicionamento do público em suas apresentações, e realizam opções conscientes que se valem das características e possibilidades orga21 Mestre em Artes/Teatro (UFU). Ator, Professor do curso de Teatro da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). E-mail: castroteatro@gmail.com

Doutora em Artes Cênicas (UFBA), Mestre em Teatro (Unirio). Atriz, Professora do curso de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: anampcarneiro@hotmail.com 22

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nizacionais relacionadas ao espaço naturalmente encontrado em um determinado local, escolhido para receber uma encenação. É importante esclarecer, ainda, que essa e outras reflexões fazem parte de um estudo mais aprofundado que constituiu a pesquisa de mestrado “Espaço teatral: a influência direta em montagens para o Teatro de Rua. Uma análise a partir dos trabalhos do Grupo Mambembe”23, desenvolvida a partir da análise de fotos e percepções/memórias pessoais das centenas de apresentações do referido grupo24. Posicionamento, acomodação e organização: a relação com as possibilidades do espaço Para que façamos determinadas considerações acerca do posicionamento e adequação da plateia nesses espaços é necessário compreender o que de fato interessa ao espectador no momento de se instalar. Assim, pauto algumas questões que permeiam o instante em que o espectador se acomoda para a apresentação. A primeira decisão tomada por quem se localiza no espaço (ou próximo dele) é a de se colocar apto para esse encontro com a obra artística, como se dissesse: “Vou assistir!”, ou “Vou interagir!”. O momento seguinte diz respeito ao “como” assistir. Isso implica numa decisão pessoal, ou seja, o quanto cada pessoa se coloca aberta para o momento. E cabe lembrar que: “Diferente do público que está em um teatro (edifício) disposto e preparado para assistir o espetáculo, o público que está na rua, comumente, tem seu encontro com a apresentação por uma casualidade.” (NOGUEIRA, 2013). Isso dá ao espectador grande autonomia em todas essas decisões iniciais, já que nenhuma convenção, ao menos espacial, irá impedir que ele afastese do local. Essas duas primeiras decisões, “vou” e “como” assistir, podem ser considerações bastante subjetivas, mas definem a forma como o espectador irá se portar perante o acontecimento teatral ali instaurado. E mesmo sabendo que tais decisões dependem de escolhas particulares, ou seja, são variáveis de um indivíduo para outro, ainda assim, existem algumas convenções tomadas como regra geral (de certa forma) em relação ao comportamento. Pesquisa desenvolvida pelo Prof. Ms. Jhon W. Castro e orientada pela Profª Drª Ana Carneiro, realizada no Programa de Pós-Graduação em Artes/Teatro, na Universidade Federal de Uberlândia-UFU (2015).

23

24 Fundado em 2003, o Grupo Mambembe – Música e Teatro Itinerante, composto por alunos, técnicos e professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), relaciona a maior parte de suas produções artísticas à linguagem do Teatro de Rua.

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Uma delas, como observa Calixto de Inhamuns (2011, p. 134), trata da área ocupada pela cena: “Alguns param, outros mudam seu trajeto, mas ninguém ousa invadir o espaço dramático. O espaço sagrado do teatro.” Uma vez identificado o espaço de representação, dificilmente um espectador se colocará nesse lugar. É como se existisse um acordo firmado entre as partes, dizendo “o que pode” ou “não pode” ser feito; e com raríssimas exceções haverá uma quebra. Normalmente essa quebra só ocorre quando existe uma proposta do artista, permitindo, convidando, instigando esse adentro pelo espaço cênico. Ou então, pode ocorrer o incontestável ato inesperado (já quase esperado), de aparecer um bêbado ou um cachorro. André Carreira estabelece pelo menos dois tipos de comportamento do espectador e sua relação com a apresentação: “(...) aqueles que estabelecem uma relação mais comprometida e procuram estar o mais próximo possível (ainda que nem sempre se comprometam a sentar no chão para ver a apresentação), até os que observam a distância em uma atitude que se equilibra entre a curiosidade e a crítica.” (CARREIRA, 2005, p. 34). A maneira como os espectadores se posicionarão para participar, apreciar, interagir com o espetáculo apresentado, dialoga intrinsicamente com a proposta apresentada pelo grupo, pelos artistas. Para se acomodar o público primeiramente busca compreender as possibilidades originadas a partir da disposição pela qual o espetáculo se organiza no espaço teatral da rua, ou seja, no espaço definido “a partir do momento em que a rua (ou adro, ou calçada, ou praça, parques, etc.) está tomada pela atividade teatral, ou seja, após o início da encenação, seja ela uma peça, um cortejo, uma intervenção cênica” (CASTRO, 20015, p. 8). Tais escolhas, na verdade, são bastante intuitivas, com o sentido de analisar e perceber onde se dá a apresentação e onde me arranjo para assistir. Quando o espetáculo se reposiciona pelo espaço durante a encenação, seja pelo deslocamento dos atores ou pela disposição de cenas em pontos diferentes, implica também em novas adequações por parte do público. Nesses casos, concordando com o que diz Carreira, “o público está, então potencialmente condenado a um movimento permanente, ainda quando não está obrigado a se deslocar para seguir a ação dramática.” (CARREIRA, 2005, p. 34). Existem grupos que sequer pensam nas relações, posicionamento e acomodação do público; o que não impedirá ao espectador de se influenciar e decidir de acordo com o que está posto diante dos seus olhos. Seria como “contar com a sorte” e esperar que tudo ocorra bem. Uma disposição da plateia (em relação ao espetáculo) bastante comum de - 35 -


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se realizar na rua é a forma circular, onde os espectadores posicionam-se em volta da área de representação. Há quem defenda que essa configuração de roda ocorra naturalmente. Basta que o ator inicie sua apresentação e o público, desde que interessado, se acomodará nesse desenho de arena. Sobre isso, Denis Guénoun considera a implicação da escolha por parte da plateia em função da busca por melhores condições, e do que se encontra nesse espaço teatral: Antes de tudo porque, ao que parece, o círculo é uma boa disposição para ver e ouvir. Os teatros refazem a organização espontânea da aglomeração, fixando-a: qualquer pessoa que já tenha armado um tablado num lugar de circulação pública sabe que os curiosos se dispõem espontaneamente num círculo perfeito - se o espaço não apresentar nenhum obstáculo, claro. (GUÉNOUN, 2003, p. 18-19).

No entanto, penso que essa escolha intuitiva por parte do público, se determina em razão da maneira como o grupo se organiza no espaço teatral; principalmente em função da movimentação e da presença, ou ausência, de objetos cênicos no espetáculo, ou ainda, quando há estruturas ou obstáculos próprios do lugar, fator já ressaltado, aliás, pelo próprio Guénoun. Seja por uma escolha estética durante o processo de pesquisa e montagem do espetáculo, ou uma alternativa de adequação às realidades do grupo, o fato é que a roda se instaura, ou não, em função da organização espacial dos atores e dos materiais presentes na encenação. Cenários altos, por exemplo, podem determinar frontalidade, meia lua, ou outra disposição. Certamente, uma vez que a plateia não consiga assistir a cena devido a qualquer estrutura que bloqueie sua visão, principalmente a visão que tem dos atores, ela buscará se agrupar numa configuração mais adequada. Considerando que o posicionamento do espectador depende do posicionamento dos atores e objetos de cena, ou seja, de como se organiza a montagem cênica no espaço teatral da rua, é possível ao grupo provocar a forma como o público irá a se colocar nesse espaço, de forma a contribuir com seu próprio interesse. É possível analisar algumas formas e circunstâncias de condução, sejam elas mais ou menos objetivas. As conduções podem ser diretas, ou seja, imperativas quanto à organização desse espaço teatral, como quando o artista faz uma simples demarcação com giz, ou dispõe alguns objetos em torno de si, ou coloca cadeiras para o público, ou mesmo diz onde devem se posicionar, enfim, utiliza maneiras que estabelecem uma - 36 -


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distinção entre espaço do público e espaço de representação. Outras formas menos claras, mas igualmente utilizadas a partir de opções conscientes do grupo, deixarão maior abertura para outros fatores relacionados à escolha por parte da plateia, mas também irão incidir diretamente na acomodação. As fotos da Imagem 1, a seguir, demonstram a ocupação do espaço com uma proposta que demarca uma determinada área com um imenso pano, e assim, faz com que o público se posicione em relação a essa organização mais imperativa:

Imagem 1. Fotos da apresentação do espetáculo O conto da ilha desconhecida – Grupo Mambembe. Participação no Festival de Inverno de Itabira organizado pela Fundação Carlos Drummond de Andrade. Itabira-MG, 2007. Fotos: Internet. Disponíveis em: www.viacomercial.com.br

O pano, com aproximadamente 25m2, colocado antes da chegada dos atores e do público em cortejo, leva os espectadores a se posicionarem naturalmente em torno dos limites e extensão que esse ocupava no espaço cênico, sem que precisassem ser direcionados verbalmente. Diante a circunstância colocada, o público se posicione de uma forma conduzida e específica. As imagens que se seguem (Imagem 2), de ângulos e momentos distintos, mas da mesma apresentação, servem para elucidar uma outra proposição criada pelo grupo e sua forma de influenciar na escolha de acomodação dos espectadores em relação à peça encenada. Na primeira foto, observa-se a colocação de uma estrutura de madeira, montada no local antes da chegada do grupo, em cortejo, a qual determinava o reconhecimento de um espaço de atuação. Tal estrutura era organizada propositalmente diante de espaços que oportunamente ofereceriam melhores possibilidades de acomodação para a plateia – no caso, à frente do coreto que havia na praça. Percebe-se ainda uma área livre de obstáculos e de público, onde encenam os atores. Na foto seguinte, pode ser observado o espaço de representação formado entre o público e essa estrutura, ocupado pelos atores. Nas outras fotos, observa-se a dispo- 37 -


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sição da plateia, seguindo os incidentes físicos do local: uma calçada e os degraus de uma escada.

Cena: O baile dos rondós

Cena: Ascensão de Cosme

Cena: Despedida das Violinhas

Cena: Chegada ao jardim dos Rodamargens

Imagem 2. Apresentação do espetáculo O barão nas árvores – Cenas: O baile dos Rondós; Ascensão de Cosme; Despedida das Violinhas; Chegada ao jardim dos Rodamargens. Grupo Mambembe. Mariana-MG, 2007. Fotos: acervo Mambembe.

Ao montar a estrutura cenográfica próxima ao coreto da praça e de frente para uma grande área aberta cercada por meios-fios dos canteiros (na lateral) e escadas (ao centro), induziu-se à plateia organizar-se em um formato de semicírculo. Buscando acomodar-se primeiramente sentados nas escadas, seguido dos meios-fios, depois no mesmo nível do chão do espaço de atuação e por fim de pé, os espectadores vão posicionando-se e deixando livre uma área central enquanto dispõem-se, quase que intuitivamente, numa configuração similar aos antigos espaços gregos. E isso não se dá por uma insistência do grupo para que ocupem ou deixem de ocupar algum lugar específico, ou seja, é livre a escolha, mas essa já foi direcionada a partir da organização do grupo nesse espaço. A disposição espacial observada nessas imagens pode ser decodificada através da seguinte ilustração: - 38 -


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Imagem 325. Acomodação da plateia. A ilustração simula planta baixa de parte do local correspondente às fotos anteriores (conjunto Imagem 2). Trata-se de uma das praças onde foi apresentada a peça O barão nas árvores (2007). O esquema é composto ainda pela demarcação de duas áreas: espaço da plateia e espaço de atuação (conforme legenda).

Nessa disposição, além de uma visão do todo, já que o espetáculo foi desenvolvido e ensaiado para atender tal organização, o espectador tem uma melhor percepção sonora e acomodação mais favorável para acompanhar a encenação até o fim, sem grandes incômodos; algo a se considerar, já que se tratava de uma apresentação de rua com duração média de 50 (cinquenta) minutos. Cabe lembrar que não se pode afirmar que todos os espectadores permanecem do início ao fim no mesmo lugar que iniciaram; mas isso não se pode garantir nem mesmo em espaços convencionais. De qualquer forma, o que pode ser observado na pesquisa realizada é que as escolhas do grupo, quando bem pensadas, sempre garantiram um posicionamento já esperado, e em poucas situações houve ocorrências destoantes do que se acreditava que ocorreria com cada proposta levada à rua. Mas em cada apresentação era preciso avaliar bem o espaço de modo a favorecer ao espetáculo, aos artistas e certamente aos espectadores. Em relação às escolhas feitas pelo público, há uma ligada ao agrupamento, Ilustração própria, criada para essa pesquisa. A planta baixa foi criada com base nos registros fotográficos e de memória que tenho desse espaço, no qual o grupo se apresentou em diversas outras ocasiões utilizando esse ou outro ponto da mesma Praça Gomes Freire em Mariana-MG. E embora não possa determinar uma escala precisa do espaço, para o entendimento que se faz necessário nessa pesquisa, a imagem não cria discrepâncias que prejudiquem as percepções aferidas sobre a apresentação em questão.

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onde a escolha do espectador se condiciona em evitar chamar atenção para si. Uma alternativa comum e pertinente para ser analisada quando tratamos de Teatro de Rua. O espectador busca certa segurança aderindo-se à massa. Portanto, isolar-se ou posicionar-se muito próximo dos atores ao invés de perto do restante da plateia, não é uma opção tão corriqueira. Há uma determinada propensão em se unir aos demais espectadores, evitando exposição destacada perante o espetáculo e ao próprio público. Seja como proteção (desviando-se do foco), por conforto, ou simplesmente para não atrapalhar o desenvolvimento da encenação, o espectador começa a se colocar nesse espaço. E há até mesmo os que se distanciam muito do espaço cênico, ainda que estejam interessados em assistir. Carreira observa ainda uma situação diretamente ligada à acomodação relacionada ao conforto buscado pelo espectador: O ponto de vista preferencial no qual se localizaria o “espectador ideal” no teatro de rua é múltiplo e, portanto virtual. Por mais que em certos espetáculos se possa fixar um melhor ponto de observação, a verdade é que a incomodidade inerente à representação de rua joga por terra o conceito de espectador ideal. Talvez os primeiros 15 minutos de um espetáculo devam ser vistos desde um lugar específico (o espectador sentado), mas é muito provável que na seguinte meia-hora, o espectador tenha uma necessidade imperativa de ficar de pé para esticar a perna e descansar suas costas. (CARREIRA, 2005, p. 34).

Observando situações como essas nas apresentações de rua é possível criar uma relação e disposição pelo espaço de forma a estabelecer um contato mais convidativo ao público. A montagem cênica Os irmãos Dagobé, desde seu processo de criação possuía características adequadas para uma apresentação em arena, com o público em volta do espaço de atuação, isso devido à movimentação criada pelos atores em cena. Porém, ocasionalmente ocorreram situações onde o agrupamento da plateia determinava outra configuração para a apresentação, como se nota nas imagens abaixo. Nas fotos abaixo (Imagem 4), é clara a forma como o público aproveita a inclinação de um canteiro elevado para se posicionar sem que outros a sua frente encubram a visão, fato que leva à aglomeração do público em apenas um dos lados da rua. O outro lado só é ocupado por algumas pessoas, à medida que oferece a possibilidade de um lugar para sentarem.

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Pessoas aproveitam a inclinação do canteiro elevado.

Poucas pessoas ocupam o outro lado.

Imagem 4. Fotos da apresentação de Os irmãos Dagobé – Grupo Mambembe. Temporada pela Região do Vale Jequitinhonha; Chapada do Norte-MG, 2005. Foto: acervo Mambembe.

Ter a visão do todo também é fundamental. Ninguém se sente confortável assistindo um ou outro ator apenas. Mas um bom ângulo nem sempre supera a comodidade. Sentar-se, por exemplo, é uma opção bem considerada pelo público. No entanto, nem todo lugar irá fornecer esta possibilidade logo em frente ou em torno do espaço de representação. Um meio-fio é sempre uma boa opção, e se estiver próximo, certamente será ocupado por pessoas, pois não exige tanto abaixamento devido à diferença de nível em relação ao chão, fornecendo assim certa comodidade. Mas esse mesmo meio-fio também pode trazer complicações quando sua posição no espaço não fornecer uma disposição favorável à abertura de cena proposta pelo grupo. Se tratando de uma apresentação demorada (com longo tempo de duração), é mais provável que o espectador preocupe-se em se sentar que em ver pelo melhor ângulo, ou seja, é comum que ele sacrifique a qualidade visual e sonora em função da comodidade. É possível que durante a apresentação ele acabe se deslocando, mas isso pode levar algumas cenas para acontecer, ou mesmo nem ocorrer. A própria claridade pode determinar a direção e o ângulo para o qual o espectador irá se direcionar; comumente, ninguém se sente confortável posicionando-se de frente para o sol. Ambientes sujos, ou mesmo com aspecto de sujo possivelmente serão evitados. Ficar de pé por muito tempo cansa, e incomoda até mesmo a concentração; às vezes a plateia prefere assistir de um ângulo menos favorável, a ter que ficar em pé. Lugar para apoiar-se, local com sombra, boa escuta e visão da cena, enfim, são alguns aspectos que influenciam a decisão do espectador no momento da acomodação. Estar ciente de que a plateia irá buscar um determina- 41 -


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do conforto pode sugerir alternativas ao próprio processo de instalação do grupo nesses espaços abertos. Algumas imagens permitem observar o posicionamento da plateia em relação ao espaço e à encenação. Na Imagem 5, percebe-se como as pessoas se acomodam em diferentes planos e direções em relação à cena (lado direito), assim como se localizam acima, no grande Imagem 5. Apresentação de O conto da ilha desconhecida – Grupo Mambembe. Festival de muro de mais de 7 metros de altura, ou Inverno de Ouro Preto e Mariana. Ouro preto-MG, ainda assistem a apresentação de dentro 2006. Foto: acervo Mambembe. de casa, nas janelas. Na imagem 6, as pessoas acomodaram-se em degraus da igreja, de onde assistem a apresentação sentadas e com boa visibilidade. A organização do espaço acaba por se configurar semelhante À de um palco italiano, no que se refere à clareza na localização da separação palco-plateia. Imagem 6. Apresentação de A terceira margem do rio – Grupo Mambembe. Temporada pelo Vale Jequitinhonha; Virgem da Lapa-MG, 2005. Foto: acervo Mambembe.

O caos organizado Espetáculos distintos requerem necessidades diferentes. A forma como o grupo organiza o espaço teatral pode nem mesmo determinar uma área específica para o público. No entanto, isso não significa um prejuízo, desde que a abordagem estabeleça uma boa relação entre a tríade espetáculo/espaço/espectador. Quando bem trabalhada a integração de tudo que envolve o acontecimento teatral, propiciamos ao público e aos artistas, novas alternativas para sua interação. A escolha de posicionamento feita pelos espectadores, nesses casos, poderá buscar sentidos que vão além da acomodação que beneficia apenas o próprio conforto. Uma vez envolvido com a encenação, o ele se sujeita a esforços em busca de seu melhor envolvimento com a obra exposta. - 42 -


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Durante as apresentações da peça Darandina (2003 a 2005), do Grupo Mambembe, procurávamos ocupar o espaço natural do local escolhido para apresentação, de forma unificada com o público. O primeiro contato com os transeuntes e moradores do lugar se dava pelo cortejo, com músicas e interações convidativas. O Mambembe sempre buscou relacionar seus cortejos com a peça encenada; então, para cada espetáculo novo, uma nova proposta visava instaurar um estado propício ao universo da representação. Nessa montagem, todos (plateia, atores e músicos) adentravam juntos no espaço onde ocorreria a apresentação. Nesse trabalho especificamente, não utilizámos amplificação para os instrumentos dos músicos que compunham a peça; assim, não havia no espaço nenhuma referência de onde estariam posicionados quaisquer uns dos artistas. Para iniciar a trama da peça, subitamente, o cortejo era interrompido por um ator que subia, escalava literalmente o ponto mais alto da praça, ou quadra, ou adro, etc. Assim, a organização inicial do espetáculo variava e dependia diretamente do espaço natural (a arquitetura já imposta pelo próprio local) do lugar onde nos encontrávamos. Houve subidas no teto de coreto, em caixa d’água, em alambrados, árvores, monumentos, enfim, qualquer lugar de onde todos poderiam avistá-lo facilmente, não importando onde se encontrassem naquele local.

Imagem 15. Ator sobre caixa d’água. Apresentação de Darandina – Grupo Mambembe; estreia. Ouro Preto -MG, 2003. Foto: Sandra Arruda.

Imagem 16. Ator sobre grade da quadra de esporte. Apresentação de Darandina – Grupo Mambembe. Ouro Preto-MG, 2003. Foto: acervo Mambembe.

Imagem 17. Ator sobre monumento da praça. Apresentação de Darandina – Grupo Mambembe. Minas Novas-MG, 2005. Foto: acervo Mambembe.

O personagem Darandina (que dá nome a essa montagem cênica) ficaria ali, no ponto mais alto que encontrávamos no local, até o final da peça, quando seria agarrado e retirado pelos outros atores. Outros artistas (atores e músicos) circulavam constantemente entre os espectadores, interagindo e criando relações as mais diversificadas. Não havia marcação pontual de movimentação, havia personagens - 43 -


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elaborados que seguiam uma narrativa. Isso ativava na plateia um estado de atenção constante, pois de qualquer lugar e a qualquer momento poderia surgir um ator interagindo diretamente, surpreendendo o público. O ritmo frenético da musicalização e das falas instaurava agitação, movimentação e interação com o universo da peça. Diálogos espontâneos surgiam da plateia; não havia convenções e regras que impedissem, ou então, tinham sido desfeitas. A relação interativa entre o artista e o público tende a suscitar novas formas de pensar o uso do espaço teatral, seja esse espaço convencional para o teatro ou, um espaço natural de um lugar que tenha sido escolhido para uma apresentação itinerante. E possibilidades de interação entre atores e espectadores, ainda que não sejam físicas, inferem em novas relações entre o espaço e o espetáculo nele encenado. O uso em comum do espaço e o contato físico entre atores e espectadores são situações que propõe outra relação sobre acomodação e percepção do espetáculo. Para Richard Schechner (apud BIDEGAIN, 2007, p. 59), essas observações perpassam as produções evocando novas ideias de interação. Considerações finais Cada proposta elaborada, cada espetáculo apresentado, cada novo espaço escolhido implicará em novas escolhas por parte do espectador. Quando se trata de um espetáculo realizado na rua é necessário considerar que cada espaço oferece diferentes recursos para a encenação e para organização da plateia. O espectador se orienta de acordo com o que nota no espaço, tendo sido ele direcionado ou ao menos sugestionado, através de apontamentos imperativos ou apenas estímulos. A rua enquanto espaço natural é um ambiente desorganizado e, portanto, devem ser estudadas as possibilidades encontradas em cada situação. Perceber as probabilidades e procurar entender como o público se comportará frente à proposta cênica pode definir o rumo da apresentação. Ganhar o público nesse tipo de ambiente pode necessitar compreender e ganhar primeiro o espaço. Ao comentar sobre espaços abertos, Inhamuns faz algumas considerações a respeito da organização: Nas ruas e praças, ao contrário, a desorganização do espaço cênico é a tônica. O público é volátil, deseducado, passante, o espaço é fragmentado e a encenação teatral é uma intervenção. Ao invés de desorganizar o espaço, o espetáculo terá que organizá-lo, dominá-lo e fazer com que as pessoas se interessem pelo que nele vai acontecer. Depois de controlado, se for do gosto, é possível desfragmentá-lo e instalar uma desorganização organizada nesse espaço dominado. (INHAMUNS, 2011, p. 134)

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Observar atentamente e compreender as possibilidades oferecidas pelo espaço auxiliam na preparação que antecede a apresentação. Nem sempre é necessário dialogar apenas com aquilo que o espaço proporciona; podemos até interferir na estrutura básica do local acrescentando novas composições. O que não devemos desconsiderar é a capacidade de influenciar o direcionamento do público a partir de nossas propostas de ocupação cênica. Em Teatro, cada escolha é uma afirmação. No fim, tudo se relaciona com a organização espacial do grupo (artistas) em cada espaço. As decisões da plateia referentes à sua própria forma de posicionar-se e acomodar-se, procedem, em parte, daquelas tomadas inicialmente pelos atores, pelo espetáculo.

O teatro de rua e a cidade como espaço sonoro

Jussara Trindade26

A rua nos ensurdece por sua polifônica, polissêmica e insurgente profusão de ruídos: de pregações e de pregoeiros, de cantos ensaiados e improvisados: tantas vezes bêbados, de sirenes e de patrulheiros, de assovios e de cancioneiros, de repentes e de rompantes: individuais e coletivos... A cidade é constituída por incontável número de coros. Em qualquer cidade – e por mais desatentos que sejam os cidadãos a circular, de um destino a outro, sem prestar atenção ao trajeto e aos seus tantos obstáculos – há nas artérias pulsantes que se caracterizam em caminhos de deambulação sinfonias diversas, das mais simples às mais sofisticadas. Novos ouvem melhor que os velhos, cães ouvem melhor que os jovens, artistas da música tendem a ouvir mais intensamente que os cães... Nas grandes cidades, nas megalópoles velhos, jovens, cães e artistas, todos, indistintamente – a partir de diferentes percepções – ouvem uma grande e dissonante sinfonia. Alexandre Mate

O verbete recepção é definido pelo Dicionário de Teatro de Patrice Pavis (2003) – importante obra de referência para os estudos teatrais da atualidade como “interpretação da obra pelo espectador” e “análise dos processos mentais, 26 Coordenadora da equipe de Arte da Fundação CECIERJ, com pós-doutorado em Artes Cênicas pela UNIRIO/ CNPq. Pesquisadora de música e teatro, diretora musical do Grupo Mambemberê e coordenadora da Aldeia Cultural Casa Viva, Teresópolis, RJ. E-mail: jussaratrin@yahoo.com.br

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intelectuais e emotivos da compreensão do espetáculo”. Mas, ainda que logo a seguir, utilize como recurso explicativo uma imagem do espectador como que imerso “num banho de imagens e sons”, ao desenvolver suas considerações sobre os códigos perceptivos da recepção Pavis descreve a atividade teatral dentro de um quadro referencial estritamente visual, corroborando a tendência de apreensão do espetáculo ainda sob os parâmetros da perspectiva - conceito oriundo da pintura que inseriu, no palco renascentista, o princípio cartesiano de separação radical entre observador e objeto observado, entre espetáculo e espectador. Numa época ávida por explicações científicas, a noção de perspectiva ofereceu ao teatro os meios para criar, sobre um painel plano colocado no fundo da cena, a ilusão da profundidade em um palco espacialmente limitado. A inovação trouxe o espaço tridimensional para dentro das salas teatrais, substituindo a visão real da vida cotidiana pela ilusão “realística” do ponto de vista do espectador ideal, sentado no centro da plateia. Desta forma, o teatro renascentista burguês não teve mais qualquer necessidade de espaços abertos, pois podia inventar o seu próprio mundo “real” a partir das leis da perspectiva visual. Enquanto isso, do lado de fora das salas fechadas, o teatro que se realizava nos espaços públicos das cidades permanecia atuando a partir de uma realidade multidimensional, dada não pela ótica de um observador estático e distanciado da cena, mas pelo deslocamento do espetáculo no espaço e/ou pela participação ativa daqueles que o acompanhavam, em seus movimentos e sons. É a partir da ideia dessa recepção multissensorial – exercida por um espectador-ouvinte - que defendo, aqui, a necessidade de ampliarmos os nossos canais perceptivos, a fim de percebermos que o espetáculo de teatro de rua atua fortemente por meio de distintos registros de recepção, igualmente importantes. Não se trata, evidentemente, de substituir uma primazia (visual) por outra (auditiva), mas de mergulhar mais fundo na obra de arte, e fruir o fenômeno teatral por outras vias que a modernidade renascentista, em seu ideal de Ciência, frequentemente deixou à sua margem. Trata-se de compreender o espetáculo teatral de rua como obra artística essencialmente audiovisual, e não apenas visual tal como a literatura especializada tratou de difundir ao longo do tempo. Nesse sentido, o caminho que proponho abordar é o sonoro-musical, ou seja, o da audição e da escuta – dimensão sensorial que transcende o fenômeno estritamente acústico para abranger esferas mais amplas do humano, inscritas também no social, no cultural, no urbano e no contemporâneo. Se o fenômeno do “ouvir” - possibilitado pelo aparelho auditivo - cumpre uma função fisiológica, o ato da - 46 -


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“escuta” vai além e se converte num meio para a atribuição de sentido do mundo, pois é também uma construção histórico-cultural e, como tal, condicionada pela época na qual está inserida (Harnoncourt, 1998). Ou seja, aquilo que percebemos como “som” também nos informa sobre a realidade circundante, ajudando-nos a lembrar, associar, raciocinar, tomar decisões; enfim, a sobreviver no mundo e, também, transformá-lo. A multidimensionalidade do teatro de rua coloca em questão a noção teatral historicamente consagrada de recepção enquanto processo estritamente visual. Proponho, em contrapartida, a escuta cênica como um modo de recepção próprio dos teatros que se desenvolvem em espaços abertos, uma vez que nestes o espectador mantém com o espetáculo uma relação mais complexa do que aquela que foi historicamente definida pelo palco renascentista. Em meio aos múltiplos e incontroláveis estímulos do espaço aberto, o teatro de rua é potencialmente um centro sonoro para o qual tende a convergir a atenção de um público que, a princípio, se encontra ali por outras razões que não a de ser “espectador”. Frequentemente, é a música – mobilizada por uma escuta cênica – o fator sensorial através do qual o espectador eventual da rua é atraído pelo espetáculo e decide interromper o seu trajeto cotidiano para assisti-lo, ou mesmo acompanhá-lo num cortejo. É amiúde pela musicalidade de seus atores-músicos que um espetáculo de rua obtém sucesso no desafio de instaurar, no ambiente caótico e fragmentado da cidade contemporânea, um espaço cênico capaz de religar o cidadão às suas matrizes culturais mais profundas, restaurando o seu sentido de pertencimento a uma comunidade. Mas, a que se poderia atribuir esta notável capacidade? Segundo pesquisas no campo da neurologia e da psicoacústica, estímulos sonoro-musicais criam imagens sonoras na mente do ouvinte. Originalmente, a noção de imagem sonora se relaciona com um tipo de construção mental préconceitual, pois é, basicamente, um padrão de impulsos neurais interpretado pelo cérebro como a percepção sensível daquilo que é captado pelo ouvido. As imagens sonoras – ou seja, as imagens mentais evocadas por sonoridades – formam-se no córtex cerebral onde são identificadas, armazenadas na memória e, eventualmente, enviadas a outros centros cerebrais (Roederer, 2002). É por isso que, ao escutarmos um dobrado, o badalo de um sino ou um estampido, por exemplo, podemos experimentar sensações de alegria, nostalgia e medo, antes mesmo de podermos racionalizar sobre as imagens mentais possivelmente decorrentes dessas percepções - 47 -


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auditivas, respectivamente uma cena de circo, uma igreja convocando os fiéis para a missa e um tiro. Estudos de semiologia musical, como os do etnomusicólogo Jean-Jacques Nattiez (2004), levam à identificação de uma “sintaxe musical” – um sistema de relações formais entre os elementos constituintes do fenômeno musical (melodia, harmonia, estilos) - e uma “semântica musical” que relaciona as sensações auditivas a outras esferas além da sensorial: emoção, cultura, ideologias. Para o pesquisador, há dois níveis de recepção musical: no primeiro, mais consciente, o ouvinte percebe sensações físicas; no segundo, mais profundo, as sensações se ligam a sentimentos. Assim, procedimentos sonoro-musicais podem ser empregados na cena teatral com o propósito de suscitar no público determinadas associações. Deste modo, a escuta cênica das imagens sonoras produzidas na cena teatral de rua parece ser um caminho através do qual é possível transcender os limites bidimensionais de uma recepção estritamente visual e expandir os canais de recepção para uma apreensão multidimensional do espetáculo. Apresenta-se, assim, para o teatro de rua, o desafio de construir as próprias referências sobre a recepção cênica com base em suas especificidades estruturais, como aporte imprescindível para o desenvolvimento da pesquisa estética, de metodologias de análise do espetáculo e da crítica teatral, voltadas especificamente para a modalidade. “Quem é a musa das ruas?” – pergunta-se Alexandre Mate, pesquisador de teatro de rua. Tal questão, formulada também a partir de outros eixos temáticos além do artístico, tem ocupado, das primeiras décadas do século XX à atualidade, um lugar considerável entre estudiosos de várias áreas científicas. Contudo, pode-se encontrar, como ponto em comum a conectar diferentes campos do conhecimento, uma concepção de cidade como objeto múltiplo, complexo, polifônico, cujo entendimento só é possível com base em uma abordagem multidisciplinar que inclui estudos diversos, desenvolvidos por geógrafos, sociólogos, filósofos, teóricos da comunicação e do turismo, semiólogos, urbanistas, pensadores da pós-modernidade, além de pesquisadores da história, da antropologia e da arte. Em que pesem as singularidades de cada área, em suas múltiplas manifestações a cidade vem sendo pensada por seus estudiosos não apenas como espaço e população, mas como uma rede complexa de relações entre indivíduos e grupos; como portadora de um outro que até recentemente lhe seria considerado estranho; como espaço social onde o indivíduo é simultaneamente fruto e agente; como espa- 48 -


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ço comunicacional em que diferentes veículos exercem uma ação concreta, muitas vezes nefasta em seus efeitos; enfim, como lugar onde a vida é hoje praticada em todos os seus aspectos. A seguir, destacarei algumas considerações desenvolvidas por um expoente do urbanismo que têm contribuído para fortalecer e aprofundar estudos sobre o teatro de rua, enquanto modalidade urbana. Em um projeto-piloto publicado em 1960 sob o título de Imagem da cidade (1988), Kevin Lynch analisa a forma visual três cidades estadunidenses - Boston, Jersey City e Los Angeles - no intuito de investigar a paisagem urbana na perspectiva da imagem mental que, dela, constroem seus próprios cidadãos. Acreditando que essa imagem está impregnada de memórias e significações, o arquiteto norte-americano exorta-nos a considerar a cidade não algo em si mesmo, mas como objeto da percepção dos seus habitantes, atribuindo grande importância ao ser humano que nela vive. Lynch identifica cinco tipos de referências arquitetônicas e espaciais da cidade que participam deste processo de construção imagética: vias, limites, bairros, cruzamentos (pontos nodais) e elementos marcantes (marcos)27. Essa classificação se destina, sobretudo, à tarefa de decifrar o que ele designa como legibilidade da paisagem citadina, isto é, a capacidade que a cidade possui de oferecer símbolos reconhecíveis à compreensão visual daqueles que nela vivem e/ou transitam, os quais possam atuar não só como facilitadores da orientação espacial no ambiente ou para a execução das atividades cotidianas, mas também como referenciais simbólicos fundamentais para as pessoas que ali vivem. Embora formuladas há tantas décadas passadas, as noções apresentadas por Kevin Lynch demonstram não terem perdido a sua eficácia e atualidade, pois têm oferecido um aporte interessante para novas pesquisas no que tange à elaboração de análises de espetáculos teatrais realizados em espaços abertos, o que constitui uma importante inovação dentro do panorama atual da produção acadêmica brasileira. Em artigo publicado na coletânea Teatralidade e Cidade (CARREIRA e outros, 2011), por exemplo, Vicente Concílio utiliza a noção de ambiente proposta por Linch, para analisar Hygiene28 sob o ponto de vista “dos sentidos que um determinado objeto, ou no caso, espaço, provocam no seu observador”. O pesquisador articula a noção de ambiente à de marco que, segundo ele, domina cada etapa do 27

As denominações em parênteses são encontradas em edições mais recentes da mesma obra.

O espetáculo estreou em 2005. Foi resultante do projeto “A Residência” do Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, o qual previa a ocupação de um edifício abandonado, situado na Vila Maria Zélia, zona leste dessa metrópole.

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espetáculo, iniciando pela antiga igreja da Vila Maria Zélia. A análise assevera que a igreja em questão oferece aos espectadores o ambiente – físico e simbólico – aos acontecimentos cênicos no início da apresentação. Assim, Hygiene “faz uso de um espaço carregado de sentidos, principalmente porque ele exibe as marcas do tempo de forma evidente” (Concílio 2011, 71) demonstrando, por meio de cenas na rua, que os sentidos atribuídos aos elementos da cidade variam não apenas com a sua forma e com os materiais que os constituem, mas também conforme a sua história e utilização deles pelas pessoas; ou seja, têm um inesgotável potencial para a ressignificação do espaço urbano, que o teatro de rua pode explorar criativamente. As considerações desse pesquisador apresentam uma significativa contribuição para a análise do espetáculo de rua, ao oferecerem subsídios para a análise de espetáculos teatrais na perspectiva da cidade, tomada como ambiente que se constrói tanto pelas suas estruturas físicas quanto pelos usos que dele fazem os seus habitantes. Contudo, tomarei a liberdade de acrescentar, aqui, a dimensão urbana que nos interessa particularmente: a sonora. Utilizarei, como justificativa, a noção de imaginabilidade proposta por Kevin Lynch para definir “a característica, num objeto físico, de que lhe confere uma alta probabilidade de evocar uma imagem forte em qualquer observador dado” (Linch apud Concílio 2011, 68) (grifo meu), na convicção de que tal qualidade, atribuída prioritariamente por Lynch aos elementos físicos da cidade, pode ser estendida também aos seus elementos sonoros uma vez que, presentes como marcas de um determinado ambiente, apresentam igualmente uma alta probabilidade de evocar uma imagem forte, na mente do ouvinte. Seria esse, justamente, o efeito da musicalidade do espetáculo de rua sobre o espectador-ouvinte: evocar imagens sonoras fortes. Também farei alusão à análise de Concílio com base na noção de “testemunho auditivo” do musicólogo Murray Schafer, como forma de resgatar eventos sonoros aos quais não presenciamos pessoalmente, mas que podem ser inferidos (pelo menos, em parte) por meio do registro literário de quem “estava lá” no momento mesmo do acontecimento sonoro. Seria essa uma estratégia utilizada por este pesquisador para driblar a situação desvantajosa que os pesquisadores enfrentam nesta área, sobretudo ao buscarem embasamento histórico para a análise de fenômenos sonoros. Assim, explica, [...] embora possamos utilizar modernas técnicas de gravação e análise no estudo das paisagens sonoras contemporâneas, para fundamentar as perspec-

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede • tivas históricas teremos que nos voltar para o relato de testemunhas auditivas da literatura e da mitologia, bem como aos registros antropológicos e históricos [...] Sempre procurei ir diretamente às fontes. Um escritor só é considerado fidedigno quando escreve a respeito de sons diretamente vivenciados e intimamente conhecidos [...] Assim se estabelece a autenticidade da testemunha [e] tais descrições constituem o melhor guia disponível na reconstrução das paisagens sonoras do passado (Schafer 2001, 24).

É, portanto, na perspectiva do testemunho auditivo que recorro ao relato de Concílio. Assim inicia-se a sua análise:

Em Hygiene, o ponto de partida é a igreja da Vila Maria Zélia. Dessa forma, o Grupo XIX fez a opção de tomar um marco importante como origem da cena, e cujo uso vai ganhar novo sentido a partir da cena teatral nele originada. O público já está aguardando o início da peça, normalmente explorando os espaços do pequeno bairro, assombrado pela própria descoberta da calma preciosa da vila. Ouvem-se os sinos, as portas da igreja são abertas. Uma canção é entoada. De dentro da edificação sacra, sai uma figura transtornada, um homem com roupas puídas, que remetem a outra época, e que tira dos bolsos um punhado de terra. Está instaurado o espaço teatral (Concílio 2011, 68-69).

Verifica-se que o primeiro signo teatral a ser destacado enquanto ação cênica pelo pesquisador é, eminentemente, sonoro. A audiovisibilidade do espetáculo se coloca à sensibilidade do receptor, o público, desde o momento em que ouvem-se os sinos e simultaneamente as portas da igreja são abertas. Novamente um elemento sonoro é acionado, complementando o sentido daquilo que foi visto antes: uma canção é entoada. Ou seja, a cena que segundo Concílio “instaura o espaço teatral” é criada por uma evidente concomitância entre o auditivo e o visual. Entretanto, diante da imagem literária formada em nossa mente pelas palavras testemunhais do pesquisador, podemos supor algo mais a respeito da musicalidade que o espetáculo instaura na Vila Maria Zélia. Schafer, por exemplo, dedica todo um capítulo do seu livro ao simbolismo do sino: Provavelmente nenhum artefato se espalhou tanto ou teve tantas associações duradouras para o homem quanto o sino. Os sinos se apresentam em uma vasta ordem de tamanho e apresentam incrível diversidade de usos. A maior parte deles opera em um de dois caminhos distintos: atuam tanto como força de reunião (centrípeta) quanto de difusão (centrífuga) (Schafer 2001, 244).

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De acordo com o pesquisador, a força centrífuga do sino se aplica a diferentes objetivos práticos, conforme a cultura: expulsar os fantasmas (Roma Antiga), afastar as tempestades (Áustria), manter longe os espíritos do mal (Alemanha), exorcizar as bruxas (pueblos indígenas do Arizona). Como força centrípeta, o sino convoca os fiéis (paróquias cristãs), atrai fregueses (Japão), atrai os homens (Israel, Arábia). Outros sinos apresentam funções específicas, como os guizos das antigas vestimentas dos bobos da corte, bufões e saltimbancos na Idade Média, os sinos de alerta ou de identificação de animais. Já o sino de igreja mantém tanto a função centrípeta quanto a centrífuga, pois em seus primórdios “pagãos” o artefato se destinava a afastar os demônios e, ao mesmo tempo, atrair os ouvidos sagrados das divindades; mais tarde, o monoteísmo cristão limitou-se a usar esse som para suplicar as bênçãos de Deus e exigir a obediência dos fiéis aos seus preceitos e liturgias. A partir de suas investigações com os sinos, Schafer conclui que este som evoca respostas “profundas e misteriosas” na psique, mostrando inclusive uma correspondência visual com a imagem da mandala29, que simboliza a perfeição, a completude e o “todo” em várias culturas orientais. No mundo cristão, o divino era sinalizado pelo sino da igreja: O sinal sonoro mais significativo da comunidade cristã é o sino da igreja. Em um sentido bem verdadeiro, ele define a comunidade, pois a paróquia é um espaço acústico circunscrito por sua abrangência. O sino é um som centrípeto; atrai e une a comunidade num sentido social, do mesmo modo que une homem e Deus (Schafer 2001, 86).

Se, do lado de fora e do alto das torres, o som dos sinos buscava alcançar os confins do território cristão, “o interior da igreja também reverberava com os mais espetaculares eventos acústicos” no intuito de penetrar o território “interior” da alma humana. Nas grandes catedrais onde se entoava o cantochão medieval, por exemplo, produzia-se o mesmo efeito de reverberação que, graças às paredes e piso de pedras, prolonga-se demasiadamente (por seis segundos ou mais). Numa análise psicoacústica, esse efeito sonoro teve consequências simbólicas importantes para o homem daquela época: O som das igrejas normandas e góticas, rodeando o público, fortalece a ligação entre o indivíduo e a comunidade. A perda das altas frequências e a

29 O autor descreve testes, por ele realizados, “nos quais se pedia às pessoas que desenhassem suas impressões sobre os sons que eram tocados para elas em um gravador. O som de sinos de igreja com frequência estimulou desenhos circulares” (Schafer 2001, 249).

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede • consequente impossibilidade de localizar o som faz com que o fiel se torne parte do mundo dos sons (Blaukopf apud Schafer, 171).

Para esse especialista no universo dos sons, o eco e efeitos de retorno hoje utilizados nas músicas eletrônica e popular recriam, no imaginário do ouvinte ocidental, a multidirecionalidade do som produzido por aquelas abóbadas ressoantes das grandes catedrais, presente também nos lugares naturais – cavernas, planícies, topos de montanhas – cujo potencial acústico foi utilizado pelo homem para recriar os seus “ruídos sagrados”30 na intenção de comunicar-se com o divino. “O espetáculo [Hygiene] faz uso de um espaço carregado de sentidos, principalmente porque ele exibe as marcas do tempo” - comenta Concílio – e estas “marcas” se revelam também nas badaladas do sino enquanto arquétipo sonoro de uma comunidade onde a igreja foi, um dia, o marco representativo da comunhão entre os seus membros, e nos sons da canção que é entoada, remetendo o espectador aos cantos eclesiásticos que essa mesma igreja perpetuou até nossos dias. O espectador-ouvinte é impactado não apenas pelos elementos visíveis do espaço, mas também pelos elementos sonoros que o invadem com a sua carga semântica. Outras considerações sobre a audiovisibilidade da cena de rua podem ser ainda formuladas. Pelo relato, por exemplo, não fica muito clara a natureza especificamente musical daquele canto. Diante da sucinta informação de que “um canto é entoado” poderiam surgir perguntas de conteúdo técnico-musical, como: “a canção é entoada em uníssono, a capella, pelos atores que permaneciam ainda dentro da igreja?”; “é uma canção tradicional, de conteúdo religioso, ou foi composta especialmente para a cena?”; “houve algum tipo de acompanhamento instrumental?”. São estas, porém, questões que costumam passar ao largo das análises dos espetáculos teatrais, em função da já comentada primazia do visual; contudo, houve aqui uma diferença significativa: aquelas perguntas não puderam ser respondidas, mas puderam ser feitas, uma vez que o fato musical foi registrado pelo importante testemunho auditivo do pesquisador. A canção foi, no contexto global do espetáculo, um acontecimento cênico essencial para a instauração do fenômeno teatral naquele espaço, e não somente um elemento acessório, ali colocado como recurso de “embelezamento” da cena. Em outras palavras, o que se revela é que parece não ter sido necessário que o pes30 “Ruído sagrado”, para Schafer, refere-se a sons de grande intensidade produzidos por fenômenos naturais e tidos como deuses pelo homem primitivo. Internalizado, passou a ser associado a estruturas de poder, e utilizado com a finalidade de enfrentamento ou dominação.

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quisador se alongasse, explicando em pormenores técnicos a tal canção, porque o que está em jogo é a força da imagem sonora que atinge o leitor, mesmo por meio das palavras escritas; o ambiente sonoro do espetáculo se coloca no momento mesmo da leitura desse testemunho auditivo, mostrando que um simples registro de elementos musicais também contribui para a compreensão de camadas mais profundas de recepção – ainda que indireta - de um espetáculo apresentado no espaço público da cidade. As considerações acima confirmam a suposição de Concílio de que cada objeto de um espetáculo é carregado de sentidos “conforme a própria forma e os materiais que constroem esse objeto, como também sua história e utilização” (Concílio 2011, 68). Pode-se considerar, então, que tal hipótese é válida também para os objetos sonoros, cujas formas, materiais e utilização, estimulam e ampliam os sentidos a eles atribuídos pelo imaginário do espectador-ouvinte. Nessa perspectiva, surge para o teatro de rua um amplo campo, ainda em aberto, para a experimentação, criação, reflexão e crítica: o da cidade enquanto espaço sonoro, em suas dimensões física, social e simbólica.

Tá na rua: uma possível dramaturgia para espaços abertos Licko Turle31 Demonstrando ao público que uma apresentação de teatro é tão-somente uma construção social e, como tal, pode ser modificada e até melhorada pelo homem, a linguagem do grupo Tá Na Rua (RJ) atua des-envolvendo as instituições sociais e suas ideologias, des-naturalizado-as em seus espetáculos. Por isto, revelar a ideologia que está por trás de certos comportamentos sociais é a base da sua proposta dramatúrgica, a qual procura entender aquilo que legitima determinadas institucionalizações. Professor Residente CAPES/FAPERJ Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO. Coordenador do GT Artes Cênicas de Rua da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua. Licenciado em Letras (UERJ), Mestre e Doutor em Artes Cênicas (UNIRIO).. Ator e Diretor Teatral do grupo Mambeberê, Teresópolis/RJ. Especialista em Teatro do Oprimido e Teatro de Rua. Articulador da RBTR. E-mail: licko.turle@gmail.com

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Segundo José Duarte, em seu livro O Que é Realidade (1988), a sociedade é formada por um conjunto de instituições legitimadas por ideologias e por seus vários mecanismos de manutenção do poder, gerando por meio desse processo uma suposta naturalização da realidade. O Tá Na Rua procura, através de seus trabalhos, demonstrar como esta ‘realidade’ é construída, utilizando uma dramaturgia que apresenta as contradições implícitas nesta construção através de imagens cênicas. Estas revelam que a realidade é um fenômeno social e não natural, construído a partir de um discurso linguístico (principalmente pelo signo verbal). Tal processo é aparentemente simples, mas bastante complexo, em sua realização pelo ator. Mostrá-lo para o público requer do grupo muitas informações e a conquista de uma opinião clara sobre o assunto, para que aquele possa perceber, nas entrelinhas e na tessitura dos textos escolhidos, as imagens de um texto paralelo crítico e revelador que é mais ‘visto’ que ‘lido’ ou ‘ouvido’, e que visa levar o espectador a uma reflexão. Essa dinâmica exige um treinamento permanente32, que capacite o ator a encenar, improvisar, jogar com outras estruturas textuais, não lineares ou necessariamente dramáticas. A estrutura dialogada do texto dramático é típica do drama burguês. Este traz a ação para dentro da casa, para a instituição ‘família’ (COSTA, 1998). Por isso, o Tá Na Rua raramente usa textos dramáticos tradicionais33, optando por materiais de outra natureza, que possam ser adequados para espaços abertos: letras de músicas, crônicas, e até ‘bula de remédio’ (o que não deixa de ser um texto oficial, uma prescrição linguística hermética para leigos e, portanto, ideológico). É, por exemplo, o caso da música Bodas de Prata, utilizada para a encenação de um número constante no repertório do grupo. Essa valsa brasileira da década de 40 cuja letra é uma apologia à instituição do casamento - é cantada por um homem, evidenciando a ótica masculina tradicional sobre o assunto. A canção apresenta, romanticamente, o lado bom de um casamento que já durou vinte e cinco anos. Os atores simplesmente mostram tudo o que, provavelmente, é produzido e reproduzido durante este longo período de relacionamento entre um homem e uma mulher como, por exemplo, a divisão desigual do trabalho doméstico e a atenção aos filhos. Para Walter Benjamim (1994), o desaparecimento da arte de contar é o resultado do declínio de uma tradição e de uma memória comuns, que garantiam a existência de uma experiência coletiva, ligadas a um trabalho e um tempo compartilhados, em um mesmo universo de prática e de linguagem. É possível reconhecer, no trabalho artístico do Tá Na Rua, esta dimensão artesanal preservada na dramaturgia - o modo de contar a história, e não o texto - que está sempre em processo de construção, aberta ao devir.

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São exceção os espetáculos Morrer Pela Pátria, de Carlos Cavaco (1984), e Uma Casa Brasileira, com Certeza, de Wilson Sayão (1989). 33

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O processo dramatúrgico foi desenvolvido da seguinte forma: a música é cantada pelo noivo, que dança com a noiva enquanto os outros atores ritualizam, por meio de movimentações pelo espaço, a imagem da cerimônia de casamento com todo o glamour possível: a festa, a valsa dos noivos. Quando a letra é repetida, os atores desconstroem aquele discurso inicial, trocando o véu da noiva por um lenço de cabeça; sobre o vestido é colocado um avental sujo; o buquê, substituído por uma vassoura. O ator, sempre cantando, tira o paletó e senta em uma poltrona. A mulher corre para lhe entregar o jornal, tira os sapatos do marido e volta a varrer o chão. O homem abre o jornal, de forma que este lhe cubra a visão do que está acontecendo na casa: a confusão doméstica e a briga das crianças agarradas ao avental da mãe, a comida queimando, etc. No final da canção, o homem puxa a mulher e a faz sentar-se em seu colo, com as crianças a seus pés. Pose para a foto. Fim. Para o Tá Na Rua, o fluxo destas imagens compõe a realidade da instituição ‘casamento’, e é o que precisa ser apresentado teatralmente. Esse processo cria, em relação ao texto “oficial”, um texto paralelo que estabelece uma contradição entre a letra da música e as imagens que vão sendo formadas, revelando como o discurso ideológico legitimador da instituição do casamento é incutido na consciência das pessoas como um relacionamento de dominação natural entre homem e mulher. Por ocasião do movimento “Diretas Já” pela volta das eleições diretas para presidente no Brasil, o grupo optou por sair para as ruas e participar do comício da Candelária, em 1984, pedindo ao público presente a volta da monarquia ao país. Durante a função, era apresentada a estrutura sócio-econômica de um regime monárquico e as relações internas do binômio dialético senhor-escravo: o ator branco (Amir Haddad) era o rei, e o ator negro (Roberto Black), o escravo. Todos os outros atores, que eram brancos, não faziam nada: eram todos nobres. A imagem mostrava, então, que um trabalhava para o sustento de vinte. O grupo se deslocava pelas ruas adjacentes ao comício, pedindo a volta da monarquia e explicando ao povo estupefato que era este o melhor sistema para o país, “que sempre tinha sido assim”, e cantando em coro, ao final: “Tudo está no seu lugar, graças a Deus, graças a Deus... Não devemos esquecer de dizer, graças a Deus, graças a Deus!”34 Ou seja: a realidade sócio-economica-politica-cultural é natural, é divina! Outra ação, nesta linha, foi o espetáculo Para que servem os pobres?, montado para o I Fórum Global Rio-Eco 92. Naquela ocasião, a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida para sediar o grande debate sobre como criar alternativas ao grave 34

Tudo está no seu lugar, música e letra de Benito Di Paula. Rio de Janeiro: Gravadora Copacabana, 1976.

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problema da fome e da pobreza no Terceiro Mundo. Dentro da lógica da estrutura dramatúrgica do grupo, foi escolhida a tese do antropólogo Herbert Gans, que descreveu dezenove assertivas explicando, ironicamente, a importância e a necessidade da pobreza para a manutenção do equilíbrio social mundial. Uma das cenas desenvolvidas pelo grupo foi a “Festa Grã-fina” que, por falta de pobres para trabalharem como criados, não acontecia. Não havia garçons, cozinheiros, motoristas, músicos, para servirem... aos ricos! A montagem revelava a inversão entre causa e efeito (da pobreza e da divisão de classes no capitalismo) que a ideologia produz naturalizando a ideia de pobreza. Dentro dessa lógica, a realidade é imutável. A dramaturgia desenvolvida pelo Tá Na Rua apresenta, então, alternativas para a construção de outra realidade, mostrando as brechas, as falhas das estruturas sociais, indicando possibilidades de quebrar o jogo ideológico ao demonstrar como se manifesta a super estrutura social de um país capitalista. Então, os fatos históricos, os cordéis, etc, enfim, todo material escrito lhe serve como leitmotiv; menos o texto dramático, porque este circunscreve a realidade a partir da ótica de determinada classe social, levando a discussão para o âmbito do privado. O Tá Na Rua optou por ‘contar’ ou ‘narrar’ parte da história recente do país, aproximando-se do gênero épico porque, nele, o narrador está sempre presente no ato mesmo de narrar, com onisciência sobre tudo o que aconteceu na história e com os personagens, seus pensamentos e emoções, e descreve objetivamente as circunstâncias da história. A voz utilizada é a do pretérito, procedimento que cria uma distância entre o narrador e o mundo narrado, permitindo um posicionamento objetivo, sem identificação ou fusão com os personagens. O ator jamais se ‘transforma’ nos personagens que apresenta; evita sofrer qualquer metamorfose nesse sentido. Simplesmente, se manifesta! Na narração, ocorre um desdobramento: sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado), em que os atores-narradores apenas mostram como esses personagens se comportaram. Esta opção pela narrativa permite, aos atores e também ao público, uma liberdade de reflexão e a possibilidade de analisar a estrutura social brasileira, devido ao efeito de ‘distanciamento’ que a mesma provoca. Segundo Rosenfeld (2004), apresentar a nossa própria situação, época e sociedade, como se estivessem distanciadas de nós pelo tempo histórico e/ou pelo espaço geográfico, permite ao público reconhecer que as próprias condições sociais são apenas relativas e, como tais, fugazes e não enviadas por Deus. Isso é o início da crítica, no teatro épico de Bertolt Brecht. O célebre efeito de distanciamento começa a funcionar, portanto, a partir da - 57 -


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própria estrutura épica das peças. A ação ‘dramática’ propriamente dita é distanciada pelo pretérito, quando a narração é posta em cena. Os espetáculos aqui comentados utilizam vários recursos de distanciamento, como a apresentação simultânea e sucessiva de quadros, música incidental, canções, acrobacias, imagens técnicas, intervenção de um coro, etc. A ideia neles implícita é a de que o teatro deve se opor à realidade, não disfarçando o seu caráter lúdico e teatral, mas retirando o espectador da vida cotidiana, fazendo-o sentir que está inserido em uma celebração. Para isto, procuram criar um ambiente formoso e festivo, cercando o público de cores luminosas, lembrando-o de que está participando de uma manifestação ritualística, litúrgica, de puro jogo, e que aquilo não é a ‘vida’, em seu sentido comum. Para o Tá Na Rua, o texto dramático tradicional (construído por meio de diálogos) aponta para uma dramaturgia adequada ao palco à italiana; logo, não serve para suscitar o processo dialético que o grupo propõe. Este precisou, portanto, sair em busca de uma outra possível dramaturgia. Dar não dói, o que dói é resistir é a síntese dessa pesquisa – uma montagem cuja estrutura dramatúrgica permite que o espetáculo seja lançado em todas as direções, atuando de forma multidirecional e atingindo lugares não previstos – base da relação intrínseca entre o teatro e o espaço aberto da rua. Neste, tal confronto acontece com micro ações se propagando em diferentes planos e intensidades. Pois ali tudo está em movimento, atingindo lugares inusitados que o teatro convencional não poderia atingir, devido aos seus limites espaciais e ideológicos. Um teatro quântico! O espaço fechado, mesmo com uma dramaturgia aberta, resulta no mesmo: é um teatro para uma única classe. Não modifica a realidade, porque o público que o assiste é formado, basicamente, pelo grupo social que detém um poder, do qual obviamente não deseja abrir mão. Ou, então, o público é formado por intelectuais, uma micro sociedade que não pretende revolucionar a realidade dada já que, em última análise, é o segmento intelectual dessa mesma elite sócio econômica. Espaço aberto x espaço fechado Pensemos em futebol! Fazer teatro dentro do prédio teatral é ‘jogar na casa do adversário’, onde ‘a torcida é toda ‘contra’. É uma armadilha, porque esses edifícios já são ideológicos em si, construídos para fazer a manutenção da ideologia burguesa. Tanto é, que só uma classe, basicamente, tem acesso a esses espaços: aquela que de- 58 -


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tém o poder. Apresentar-se nestes equipamentos significa proporcionar, a essa elite, os instrumentos necessários à construção de mecanismos de defesa contra as ações divergentes dela, num fenômeno de apropriação e aniquilamento ou até de incorporação da linguagem, com o intuito de reduzi-la. Ali, no edifício teatral, a realidade oficial e seus mecanismos, como a censura e outros, conseguem atuar fortemente. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o espetáculo Somma, criado e dirigido por Amir Haddad em 1974. Nessa ocasião, a crítica teatral agiu de forma aniquiladora. Ela, que é formadora da consciência de toda uma classe social e do pensamento teatral, atuou no sentido de desqualificar o próprio caráter de teatralidade do espetáculo, eximindose de qualquer tipo de apoio ao elenco do Grupo Teatro Mágico, quando a peça foi arbitrariamente interditada pela censura (REBELLO, 2006). Quando apresentados em espaço fechado, os espetáculos de proposta revolucionária e transformadora que funciona como um ‘chamamento’ contra o massacre ideológico do sistema neoliberal, são acessíveis somente às pessoas das classes alta e média e cumprem a ambígua função de um teatro classista que se quer conscientizador. Isto fica claro, por exemplo, se analisarmos a situação pelo viés da acessibilidade à informação. Para assistir ao espetáculo, o público tem que pagar! Nesse caso, a informação é paga; terá acesso a ela somente quem tiver dinheiro para comprá-la. Aquele que não tiver condições de realizar este ‘negócio’, não poderá apreender o universo simbólico ali proposto; não obterá o novo conhecimento que o espetáculo pretende ‘compartilhar’. Assim, dilui-se o seu potencial transformador, porque passa a ser propriedade de uma só classe social. Ainda que a intenção seja questionar, criticar ou revolucionar a realidade, o próprio teatro, etc, cria-se um paradoxo ou, talvez, uma simples incoerência entre desejo e ato. Ao se apresentar em espaços abertos, onde a informação não é paga, o Tá Na Rua rompe com essa distorção. Leva a discussão ideológica para a rua, restaurando a ideia da Ágora grega, onde os grandes temas que interessavam à pólis eram discutidos pelos cidadãos, nas cidades Estado. Na rua as instituições são expostas, esgarçadas, carnavalizadas; enfim, “viradas ao avesso” pelos atores. Assim, deixam à mostra o material de que são constituídas: a sua verdadeira anatomia – as vértebras, os membros, os órgãos que a mantêm viva. A ideia é desestruturar este organismo (DELEUZE, 1985). O simples ato de levar a instituição para fora do espaço privado, tornando-a pública, já inverte a lógica a ela inerente e questiona as suas regras, torna-a vulnerável; relativiza a verdade absoluta de seu discurso ideológico. No espaço aberto, é criado um campo de batalha, uma liça, uma arena, um ‘palco-ringue’ onde - 59 -


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será travado o confronto entre o cidadão e a cidade (HADDAD, 2005). Por isso, o Tá Na Rua denomina grande parte de seus espetáculos como ‘autos’, com o sentido medieval de que um fato importante para a comunidade é exposto à opinião pública, para então ser analisado e julgado coletivamente. É ela quem escolhe o lugar do embate, e não a instituição em foco. A lógica aqui presente é a de não estabelecer um combate direto. Para que confrontar a política no próprio Senado ou questionar o casamento dentro de uma igreja? É no campo das artes que se dá a dimensão estética da política, isto é, a ‘partilha do sensível’. Segundo Jacques Rancière, (...) a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão. Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade política. 35

Então, a estética do Tá Na Rua produz uma nova ética que busca re-sensibilizar os sentidos e reeducar o cidadão comum pela emoção, pela maneira de perceber, ver e ouvir, vivida coletivamente. 35 IN: “São Paulo S.A., Práticas estéticas, sociais e políticas em debate: situação estética e política”. 17 a 19 de abril de 2005, SESC Belenzinho, SP, Brasil. Tradução: Mônica Costa Netto. http://www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/subindex.cfm?Referencia=3806&ParamEnd=5

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Linguagem linguística versus linguagem estética Os discursos ideológicos têm na linguagem verbal o seu meio privilegiado de comunicação. As palavras, por serem polissêmicas e passíveis de múltiplas interpretações, são apreendidas de acordo com o universo simbólico de cada um. Em termos práticos, isso significa que sua inteligibilidade não é igual para todos; a prerrogativa de sua compreensão é dada a apenas uma parcela da sociedade que, deste modo, coloca as demais sob o seu domínio. Por exemplo, a maioria das pessoas não entende o que está escrito nas entrelinhas de um contrato de aluguel, nos manuais de equipamentos eletrônicos, na bula de um remédio e, principalmente, nas leis. A Constituição e os textos oficiais são elaborados segundo um vocabulário e uma gramática que pertencem a um determinado grupo social e intelectual. Pela sintaxe - dessa elite – a população, em sua maioria, é mantida na ignorância. E como o mundo e a sociedade capitalista estão divididos em classes e papéis, o conhecimento também é dividido: alguns acabam lendo, muito bem, os textos oficiais das instituições (são eles quem os fazem, aliás) e, por isso, inscrevem esses textos na sociedade. Mas, a maioria não consegue ter acesso às informações cruciais. O Tá Na Rua tenta fazer uma ‘tradução’ desses textos para a linguagem popular. ‘Todo tradutor é um traidor’36. O grupo torna-se, portanto, um ‘bom’ tradutor para o povo, uma vez que trai o texto oficial. Substitui a linguagem linguística pela linguagem estética, pelo universo simbólico da arte, ‘traduzindo’ o mundo em imagens e não só em palavras, porque os que conhecem mais palavras acabam assumindo o poder desse mundo explicado pelas mesmas. O Tá Na Rua se afasta propositalmente deste campo, onde a realidade é construída oficialmente, e traz o confronto para o terreno da sensibilidade, do sensível e do afetivo. Traz a ‘realidade’ para perto, onde ela é mais palpável. Em lugar de ler a realidade e a sociedade, propõe ver e tocar a realidade e a sociedade. Esta ‘tradução’ é a dramaturgia do grupo Tá Na Rua. A dramaturgia x o dramático Existe uma estrutura dramatúrgica, um modus operandi, na construção dos 36

Traduttore, traittore.

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espetáculos do Tá Na Rua. O primeiro momento se dá quando o coletivo de atores conversa sobre o tema que lhes é apresentado. Este pode ser sugerido por um integrante, pela leitura de um jornal, por um momento específico que o grupo está passando, um fato político novo, um ‘movimento’37. Todos conversam sobre o assunto e expõem o que sabem, tanto quanto o que não sabem a respeito do mesmo (sendo às vezes o último, o mais importante). Este trabalho tem um objetivo: ‘cercar a franga’, ‘achar o mote’. Poderíamos traduzir de outra maneira estes códigos internalizados da cultura popular: estudar o assunto amplamente tem, como objetivo, o ‘rastreamento’ da ideologia e das contradições implícitas no tema, na tentativa de descobrir qual é a instituição que responde pela mesma, (Pátria, Família, Igreja, Teatro, etc.), com suas regras e mecanismos de coerção, manutenção, aniquilação, conversão ou exclusão (DUARTE Jr., 1988). Os atores do Tá Na Rua já possuem um treinamento desta dinâmica, o que lhes possibilita produzir coletivamente este ‘novo conhecimento’ e, simultaneamente, iniciar uma produção gestual de imagens que possam revelar o discurso ideológico ali presente, que percebem estar agindo naquela situação e atuando sobre a formação do pensamento e da consciência dos nela envolvidos. Utilizam, para isto, recursos estéticos: música, elementos cenográficos, figurinos, adereços, objetos simbólicos. O que antes era pensado e dito com palavras, agora é pensado e visualizado. São cenas, é teatro! Nesta fase, a liberdade de criação do ator é fundamental. Não pode haver censura nem julgamento, mas somente a liberdade de improvisar, com humor, a crueldade da verdade que a ideologia falseia e manipula. A partir deste raciocínio, pode-se dizer que o Tá Na Rua é uma anti-ideologia que atua na periferia do poder, à margem da realidade-sociedade, com o intuito de apresentá-la como o produto de uma construção arbitrária, não natural. Nas suas ‘montagens’ não há mensagens nem heroísmos. Não existe um propósito de ‘salvar’. E em momento algum a ideia que o move é converter ou coagir, mas tão-somente revelar outros pontos de vista sobre certa questão, para que uma nova visão da realidade amplie as possibilidades “Movimento significa, para um grego, toda e qualquer alteração de uma realidade, seja ela qual for” (CHAUÍ, 2005).

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de reflexão crítica sobre essa mesma realidade. Este é o jogo! Deleuze e Guatarri (1995) propõem uma figura conceitual – rizoma – como uma forma de pensar que questiona os princípios evolutivos comumente aceitos – os processos de desenvolvimento ‘em árvore’ ou ‘arborescente’ - que se perpetuaram no ocidente sob a forma de paradigma científico. Para os autores de Mil Platôs, trata-se de uma estrutura de pensamento organizada pela lógica binária e linear que construiu a psicanálise, a linguística, o estruturalismo e até a informática. A esta lógica, eles propõem outra: a do rizoma, que produz um mapa aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível a modificações. Este pode ser rasgado, revertido, adaptado a montagens de qualquer natureza, ser preparado (por um indivíduo, um grupo, uma sociedade). O mapa rizomático tem múltiplas entradas, como uma toca de animal. Derrida (2005) aponta, em Freud, a tendência da cultura ocidental, desde Platão e Aristóteles, de ilustrar prioritariamente por imagens gráficas as relações entre razão e experiência, percepção e memória. Deleuze e Guatarri também falam sobre a memória. Os autores distinguem uma longa e uma curta, cuja diferença não é apenas quantitativa, mas qualitativa: a curta seria rizomática, enquanto que a longa, arborescente e centralizada. A primeira se relaciona ao esquecimento como processo; ao rizoma coletivo, temporal e nervoso. A segunda está relacionada à família, à raça, à sociedade. Os sistemas arborescentes são hierárquicos, têm memórias organizadas, mas um elemento só recebe informações de uma unidade superior. Na construção de Dar Não Dói..., o Tá Na Rua trabalhou com a memória curta, ou seja, com a memória rizomática que recebe informações múltiplas, e não apenas de uma unidade superior centralizadora. Dito de outro modo, esta poderia ser considerada uma memória ‘inteligente’, que está sempre em busca de linhas de fuga com um espaço fora, construindo multiplicidades e não estabilidades. Jacques Rancière (2005) aponta a mistura entre as artes como uma das marcas do regime estético da arte. Em Dar Não Dói..., o grupo Tá Na Rua adotou esse regime de pensamento que des-hierarquiza as artes, onde o real precisa ser submetido à lógica ficcional para ser pensado. O processo de criação seguiu o raciocínio de Rancièrie sobre a questão da denúncia da ‘crise da arte’ pelas grandes teorias e experiências vanguardistas de fusão entre a arte e a vida que, segundo esse autor, ‘evidenciam que a batalha cen- 63 -


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trada no debate sobre a história – suas ilusões e desilusões – se dá hoje no terreno da estética’ (RANCIÈRE, 2005, p. 11). Ao escolher o tema da ditadura militar, o Tá Na Rua opta, portanto, por discutir a história do país por meio da sua prática estética, efetuando uma forma de partilha do sensível que busca superar a hierarquização do poder. Esta é a sua forma política de manifestação, plenamente vivida no terreno da estética. Concluindo O teatro brasileiro contemporâneo, em muitas de suas manifestações, apresenta uma necessidade visceral de desterritorialização e de, rizomaticamente, criar ligações com o espaço exterior ao prédio teatral. Pode-se dizer que alguns grupos ‘brincam’ com a possibilidade de conectar os espaços internos (do teatro) com os externos (da cidade), mantendo, entretanto, os primeiros como um referencial seguro de onde pode, sem os riscos de sair, enxergar os segundos. Dito de outra forma, convidam o espectador a ‘espiar’ o mundo à sua volta; insinuam um movimento nessa direção; criam ‘aberturas’ arquitetônicas através das quais tenta estabelecer contato com esses espaços externos; chegam a revelar, simbólica e concretamente, essas passagens (espaciais, corporais, éticas) que se situam entre o dentro e o fora. Mas tudo isso permanece como desejo, não indo além da possibilidade. Amir Haddad e o grupo Tá Na Rua radicalizam esse mesmo desejo; saem – literal e metaforicamente – do espaço interno, privado, da segurança, para aventurar-se do lado de fora. Não ‘espia’: mergulha. Não sonega o próprio desejo de rizoma: deixa-se penetrar e ser penetrado pelo rizoma do mundo; ‘faz rizoma’ nele e com ele. O que lá ‘dentro’ era reflexão intelectual sobre a percepção corpórea torna-se, ‘aqui fora’, intensidade corporal vivida como experiência corporal pura: pulsação, calor, suor de um corpo único que, ao menos temporariamente, abandona suas individualidades de atores/atrizes/espectadores para tornar-se Corpo sem Órgãos (DELEUZE, 1995). Não o corpo paranóico ou masoquista produzido por uma sociedade esquizofrênica que insiste em dicotomizar as relações sociais, o mundo e a própria vida, mas o corpo-ovo, pulsante, vivo, simultaneamente sexual e anti-genealógico. Na desterritorialização consumada pelo Tá Na Rua, a necessidade maior é a de conter o ímpeto rizomático que dificulta a colocação de limites saudáveis entre o dentro e o fora. - 64 -


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Trabalhando prioritariamente em espaço fechado, outros grupos brasileiros conseguiram proporcionar maior visibilidade e respeitabilidade em relação ao seu projeto teatral, uma vez que a crítica e a classe intelectual - públicos formadores de opinião – têm como atividade usual assistir aos espetáculos ‘em cartaz’, estabelecendo aprioristicamente com os mesmos uma relação de disponibilidade, ainda que esta possa ter um caráter mais profissional do que de simples ‘gosto’ pessoal. Este fato é praticamente inexistente quando se trata de uma apresentação teatral ‘de rua’, ou como Amir Haddad prefere colocar, ‘em espaços abertos’. Para verificá-lo, basta abrirmos um jornal de grande circulação e observar que, no espaço reservado à crítica teatral, as análises são dirigidas, em sua esmagadora maioria, a espetáculos realizados em salas. Favorável ou desfavorável, um comentário escrito e divulgado num meio de comunicação sempre funciona como um atrativo, retroalimentando o estreito círculo de relações sociais e profissionais, dentro do universo dessa arte. De qualquer modo, e em que pesem as reais dificuldades econômicas, uma produção teatral ‘em sala fechada’ estará sempre mais apta a conseguir sustentabilidade financeira, através da bilheteria ou da venda de espaço publicitário para patrocinadores, do que um espetáculo ‘de rua’, onde o ‘passar o chapéu’ é visto somente como uma tradição. Do ponto de vista do acabamento estético, o Tá Na Rua não consegue um grau tão alto de refinamento, quanto outros grupos brasileiros que investem seus esforços em espetáculos em salas fechadas. Não seria exagero afirmar que um tal nível de acabamento só é possível nos espetáculos realizados em espaços privados. Não porque o público da rua seja menos inteligente ou exigente que o outro, mas devido à natureza transitória e fluida desse teatro que, para existir enquanto tal precisa estar permanentemente aberto aos imprevistos de um espaço público, os quais são, em si, parte integrante do próprio espetáculo. Sendo a agilidade – mental e física - a sua natureza essencial, as qualidades imprescindíveis ao artista ‘de rua’ relacionam-se mais com a capacidade de ‘jogar’ e improvisar rapidamente, de interagir com todos os tipos de pessoas durante o espetáculo, do que com as habilidades técnicas convencionalmente atribuídas individualmente ao ‘bom’ ator, ainda que estas estejam baseadas na corporalidade, sensibilidade e inteligência. Trata-se, enfim, de uma questão de escolhas éticas e estéticas, que tanto uns quanto outros já têm muito bem definidas, defendendo-as com igual paixão e empenho. E o Tá Na Rua, do lado de fora do edifício teatral, se mantém firme no propósito de buscar um teatro desclassificado que alcance a todos os cidadãos. - 65 -


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Imbuaça leva para ruas Leandro Gomes de Barros Lindolfo Amaral38 No ano em que o Imbuaça (nome que homenageia o embolador sergipano Mané Imbuaça), completa 39 anos de teatro, o grupo estreia o seu mais novo espetáculo de rua, intitulado “A Peleja de Leandro na trilha do Cordel”. Trata-se de uma homenagem a um dos mais importantes poetas populares do Brasil, que faleceu em março de 1918, mas os seus folhetos continuam sendo comercializados em todo país e alguns títulos foram adaptados para a dramaturgia. Aliás, o teatro de rua tem utilizado o cordel de diferentes formas, nesses últimos 40 anos. Foi no Festival de Arte de São Cristóvão/SE, em 1977, que um grupo de atores sergipanos entusiasmou-se ao ver o Teatro Livre da Bahia, com o seu Teatro de Cordel, ocupando as ruas daquela cidade em um cortejo alegre e descontraído, até chegar à Praça São Francisco, onde abriu uma roda com oito metros de diâmetro e apresentou três pequenas histórias, intercaladas com danças e músicas do cancioneiro popular. O público ficou embevecido com aquelas cenas simples e de comunicação imediata. O cotidiano da praça foi rompido pelo teatro que começou a ocupar o espaço público e democrático, sem aparato de qualquer espécie. Aqueles jovens atores, que fundaram o grupo Imbuaça naquele mesmo ano, se apropriaram da proposta e começaram a estudar a Literatura de Cordel. Em dezembro de 1977, o ator do Teatro Livre da Bahia, Benvindo Sequeira, veio a Aracaju, a convite da Sociedade de Cultura Artística de Sergipe – SCAS, para ministrar uma oficina de teatro de rua. Antônio do Amaral participou do trabalho e trouxe os ensinamentos para o Imbuaça, que no ano seguinte lançou o seu primeiro espetáculo de rua intitulado “Teatro chamado Cordel”. Este fez um longo percurso e influenciou o surgimento de outros grupos, dentre eles o Alegria, Alegria/Natal– RN; Quem tem boca é pra gritar/Campina Grande–PB; Joana Gajuru/Maceió-AL. Essa longa história está prestes de completar 39 anos e o Imbuaça, graças ao Edital Artes de Rua/2014, da Funarte, faz agora uma homenagem a Leandro Gomes Pós-doutorando em Artes Cênicas/UFBA, é ator do Grupo Imbuaça desde 1978. Tem ministrado oficinas de Teatro de Rua, a partir das danças dramáticas e da Literatura de Cordel. E-mail: lindolfo@infonet.com.br .

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de Barros, que contribuiu significativamente para a construção de vários textos da dramaturgia brasileira. “A Peleja de Leandro na trilha do Cordel” foi concebida a partir dos estudos biográficos sobre a vida e obra de Leandro, sem a preocupação de elaborar um espetáculo cronológico e verossímil, mas expondo fragmentos de vários folhetos, quase um mosaico, em que o poeta é apresentado ao público através da sua obra. Leandro Gomes de Barros é considerado, pelos estudiosos da Literatura de Cordel, como um dos maiores e dos mais profícuos poetas brasileiros, pelo número de folhetos produzidos, pela forma e visão crítica nas abordagens dos assuntos. Trabalhou com diferentes temas dentro dos ciclos heroico, maravilhoso, religioso, moralidade, cômico, histórico, além dos temas que envolviam o amor e a fidelidade. Mark J. Curran (1986) enalteceu o trabalho do poeta popular, comentou sobre a maneira de comercializar os folhetos e indicou um dos temas abordados por ele:

(...) foi o epítome do poeta popular do Nordeste. Foi não só um dos primeiros a escrever e imprimir folhetos que incluíam o melhor da tradição oral, mas também o mais prolífico dos poetas populares. (...) Como os outros poetas, Leandro tinha que viajar intensamente para vender seus folhetos e recolher notícias para seus temas. O trem do Recife até Garanhuns fornecia um meio de transporte e também um tema gostoso quando Leandro tratava dos ingleses que tinham construído a estrada de ferro. (CURRAN, 1986, p. 316 – 317).

Observa-se, no registro de Mark Curran, o deslocamento do poeta entre a capital e o interior de Pernambuco, com o intuito de comercializar e de coletar informações para a produção de novos folhetos. As palavras do estudioso contribuem também no entendimento sobre a inclusão da personagem “inglês”, encontrada em alguns dos seus folhetos, dentre eles Dinheiro (O Testamento do Cachorro), apropriado por Ariano Suassuna no Auto da Compadecida. O poeta gostava de ridicularizar os ingleses, responsáveis pela construção e manutenção da estrada de ferro em Pernambuco, bem como os portugueses que mantinham algumas casas comerciais em Recife. No folheto Os Colectores da Great Western, de 190639, o poeta descreve a viagem de trem, a quantidade de coletores e as mudanças que ocorreram na fiscalização dos viajantes: 39

Alerta rapaziada Da margem da Great Western,

Segundo o estudioso Mark J. Curran, o folheto foi escrito e editado em 1906.

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O inglês fez uma coisa; Acho que queira Deus preste! Botou coletor nos trens Matou morcego por peste. Eu nunca vi esta estrada Como agora desta vez, Outrora tinha um fiscal, Agora tem dois ou três. Não viaja mais no mole, Nem mesmo a mãe do inglês.

(CURRAN, [BARROS], 1986, p. 322-323)

O poeta é crítico ao comentar as situações do cotidiano no transporte interurbano, construído e mantido por pessoas vindas do exterior. Satiriza as atitudes dos funcionários que fiscalizavam os passageiros e com isso contribuiu também para o registro histórico de práticas ocorridas no início do século XX, no Estado que lhe acolheu e onde ele concebeu grande parte dos seus folhetos. Esse recorte é um dos exemplos da Literatura de Cordel contribuindo para a construção da memória do país, além de expor a visão crítica do poeta também em relação à presença de emigrantes no Nordeste brasileiro. É o olhar do colonizado sobre o colonizador, da cultura subalterna sobre a hegemônica. A crítica àqueles que sempre detiveram o controle do poder econômico. Estudar a Literatura de Cordel com essa perspectiva é reconhecer a contribuição do poeta popular no registro da história considerada não oficial, na medida em que essas narrativas foram concebidas por aqueles que não representavam o poder estabelecido, mas desenvolveram um papel significativo: Todos os motivos julgados dignos de um registro poético merecem esse mesmo ritmo fulminante de fixação e divulgação no ambiente popular nordestino. Uma estiagem prolongada, incêndio em proporção invulgar, alagação fluvial, assassinatos, vitória eleitoral, todos os assuntos acima da norma cotidiana e banal vão para o documentário poetizado no interior dos sertões e litoral do nordeste, como exato cumprimento de uma missão rotineira de cronistas oficiais. (CASCUDO, 1971, p. 153)

Essa diversidade temática, bem como o tratamento poético, independente das questões serem de natureza trágica ou agradável, contribuíram para a construção - 68 -


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de um determinado modo de conceber a dramaturgia, cuja narrativa fragmentada interferiu nas ações dramáticas, rompendo ou mesmo sobrepondo-se, numa relação paralela entre discurso e história. Essa característica influenciou os dramaturgos em diferentes processos encontrados no trânsito do folheto à dramaturgia. Leandro Gomes de Barros é um dos poetas que concebeu folhetos com essa estrutura. O Cavalo que defecava dinheiro e o folheto Dinheiro (O testamento do Cachorro), apropriados por Ariano Suassuna, são exemplos em que os dois aspectos, discurso e história, foram evidenciados no processo de elaboração do texto. O primeiro está relacionado à ocorrência: o poeta narra os fatos, conta a alguém como aconteceu. Já na segunda história, os acontecimentos ocorrem diante do leitor, com as personagens em ação. Para Todorov (1976, p. 211), a história é uma convenção. Ela não existe no nível dos próprios acontecimentos. De fato, as ações estão no passado e elas são apresentadas no presente. Alguns folhetos expõem esses dois aspectos que fazem parte da construção de uma obra literária. É o caso de Vaccina para não ter Sogra:

Por que é que a medicina Estuda tanto e não logra Por exemplo um preparado Que dê mais valor à droga? Por que razão não inventa Vacina pra não ter sogra?

Isto dizia eu um dia, Falando com um inglês. Disse o inglês: Mim já viu Essa vacina uma vez, É um remédio sublime, Mim antes de casar fez.

Eu então lhe perguntei: Como é essa vacina? Disse o inglês: Oh! tu pega Uma sogra bem ferina Bota o cuspo dela em ti, Que sogra aí amorfina.

(CURRAN, [Barros], 1986, p. 332)

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O poeta utilizou os primeiros versos para apresentar o problema: “inventar uma vacina para não ter sogra”. Em seguida, saiu do plano da narrativa para estabelecer um diálogo: “Isto dizia eu um dia, falando com um inglês”. É evidente que a situação ocorreu no passado, mas os fatos passam a ser relatados no plano presente, entre as duas personagens, a partir do estabelecimento do diálogo. Essa estrutura não foi idealizada pelo poeta popular, provavelmente chegou ao seu conhecimento através da Circularidade e esse mesmo procedimento os autores utilizaram na construção de textos dramáticos, cujo folheto serviu de material de base, principalmente aqueles que caracterizaram tal processo com o termo “adaptação”, a exemplo de João Augusto, Orlando Senna, Benvindo Sequeira, Antônio do Amaral, Racine Santos, Clotilde Tavares, Virgínia Lúcia, dentre outros. Mas, tudo isso ocorreu graças ao trabalho desenvolvido por Ariano Suassuna, na década de 1950, principalmente pelo sucesso alcançado quando da apresentação do “Auto da Compadecida”, no Festival de Teatro Amador, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, em 1957. Três histórias atribuídas por Suassuna ao “romance popular anônimo do Nordeste”, que constam na publicação do Auto da Compadecida (páginas 15 a 17) como epígrafes, fazem parte dos títulos da Literatura de Cordel. São elas O Castigo da Soberba, O Enterro do Cachorro e História do Cavalo que Defecava Dinheiro. Na leitura do folheto de Cordel História do Cavalo que Defecava Dinheiro, cujo autor é Leandro Gomes de Barros, várias semelhanças podem ser observadas na estrutura dos versos. E considerando que o poeta popular sempre se preocupou em expor o número de estrofes e esquema das rimas, é provável que Suassuna tenha utilizado como epígrafe os versos de Leandro. O poeta nasceu na cidade de Pombal/PB, em 19 de novembro de 1865 e faleceu em Recife/PE, no dia 4 de março de 1918, portanto, bem antes de Suassuna nascer e escrever o Auto da Compadecida (1955). Vale observar o epígrafe de Ariano Suassuna e os versos de Leandro Gomes de Barros. História do Cavalo que Defecava Dinheiro Folheto: Leandro Gomes de Barros Epígrafe: Ariano Suassuna Foi na venda e de lá trouxe Três moedas de cruzado Sem dizer nada a ninguém Para não ser censurado: No fiofó do cavalo Fez o dinheiro guardado.

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Foi na venda e de lá trouxe Três moedas de cruzado Sem dizer nada a ninguém Para não ser censurado No fiofó do cavalo Foi o dinheiro guardado


• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede • Disse o pobre: - “Ele está magro, Só tem o osso e o couro, Porém, tratando-se dele, Meu cavalo é um tesouro. Basta dizer que defeca Níquel, prata, cobre e ouro”. Níquel, prata, cobre e ouro.

Disse o pobre: Ele está magro Só tem o osso e o couro, Porém tratando-se dele Meu cavalo é um tesouro Basta dizer que defeca

O folheto de Leandro tem o título O Cavalo que Defecava Dinheiro, cujo conteúdo chama a atenção pelas coincidências com a obra de Ariano Suassuna. É composto de oito páginas, com setenta e sete estrofes em versos sextilhas. A história trata de um duque velho, casado, invejoso, que nada lhe satisfazia. Desejava possuir tudo quanto aparecia em sua frente. Ele era compadre de um pobre que morava com sua esposa em um pequeno casebre dentro de suas terras. Certa feita, o pobre foi trabalhar em um engenho longe de sua morada e na volta encontrou um cavalo perdido, magro e velho, que não podia mais trabalhar devido as suas condições físicas. Resolveu levar o animal para sua casa. Disse o pobre à mulher:

Como havemos de passar? O cavalo é magro e velho Não pode mas trabalhar Vamos inventar um “quengo” Pra ver se o querem comprar

O pobre foi à mercearia, adquiriu três moedas e não falou para as pessoas o que iria fazer com as mesmas. Ao chegar em casa, colocou-as no ânus do animal, transformando tal orifício em um mealheiro (pequeno cofre com uma fenda por onde se põe dinheiro com o objetivo de armazená-lo). Depois saiu comentando que estava rico porque era dono de um cavalo que defecava dinheiro. Quando o duque soube de tal história, falou para sua esposa e no dia seguinte foi visitar o compadre pobre, pois desejava saber se era verdade o que a vizinhança estava comentando. Ao chegar no pequeno casebre, o duque procurou saber das novidades. Se o compadre estava trabalhando e o que estava fazendo. O pobre foi logo dizendo: - É muito certo compadre

Ainda não melhorei Porque andava por fora

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Faz três dias que cheguei Mas breve farei fortuna Com um cavalo que comprei

O duque imediatamente foi lhe dando conselho, pedindo para ele guardar o segredo da façanha do animal. O pobre resolveu levar o duque para conhecer o cavalo no fundo da casa e ele viu as três moedas de cruzado. Perguntou se o animal só defecava aquela pequena quantia. O pobre explicou que ele estava magro e tinha se alimentado com bagaço que havia encontrado no terreiro. Todavia, depois de gordo não haveria quem o vencesse no dinheiro. O duque começou negociar o cavalo com o pobre e resolveu pagar seis contos de réis pelo animal. Quando retornou a sua casa foi logo gritando que era o homem mais rico do mundo inteiro porque possuía um cavalo que defecava dinheiro. Levou o animal para a estrebaria, deu milho, farelo e alface. Nada do bicho defecar dinheiro. Procurou nas fezes e viu que não havia moeda. Percebeu que foi enganado pelo compadre pobre. Aí o velho zangou-se Começou logo a falar: Como é que meu compadre Se atreve a me enganar? Eu quero ver amanhã O que ele vai me contar

Quando o velho aparecer Na volta daquela estrada, Você começa a falar Eu grito: oh mulher danada! Quando ele estiver bem perto, Eu lhe dou uma facada

Porém o compadre pobre, Bicho do quengo lixado Fez depressa outro plano Inda mais bem arranjado Esperando o velho duque Quando viesse zangado

Porém eu dou-lhe a facada Em cima da borrachinha E você fica lavada Com o sangue de galinha Eu grito: arre dadana! Nunca mais comes farinha!

O pobre foi na farmácia Comprou uma borrachinha Depois mandou encher ela Com sangue de uma galinha E sempre olhando a estrada Pra ver se o velho vinha. Disse o pobre à mulher:

Quando ele ver você morta Parte para me prender, Então eu digo para ele: Eu dou jeito ela viver O remédio tenho aqui, Faço para o senhor ver. Eu vou buscar a rabeca

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede • Faça o trabalho direito Pegue essa borrachinha Amarre em cima do peito Para o velho não saber,

Começo logo a tocar Você então se remexa Como quem vai melhorar Com pouco diz: estou boa

Como o trabalho foi feito

Já posso me levantar.

E tudo aconteceu como o pobre havia planejado. O duque ao ver a mulher morta, caída e o peito sangrando, desesperado deu ordem de prisão ao compadre, chamou-o de bandido, infame e cara dura. Ele explicou que não é crime matar uma mulher malcriada, mesmo porque em dez minutos ele poderia resolver aquela situação. Pegou a rabeca e começou a tocar. De repente, o velho viu a mulher se remexer. Aos poucos ela foi acordando e começando a falar: Estou boa, já posso me levantar. O duque velho ficou impressionado com a cena que acabara de ver e o pobre explicou o que havia ocorrido.

O pobre entusiasmado Lhe disse: já conheceu Quando esta rabeca estava Na mão de quem me vendeu Tinha feito muitas curas

De gente que já morreu

Avarento e interesseiro, Que já fez do seu cavalo Que defecava dinheiro? Meu velho, dê-se ao respeito, Não seja tão embusteiro.

O duque velho que tinha vindo à casa do compadre pobre para resolver a situação do cavalo, quando viu a tal rabeca ficou cheio de ambição para adquirir o instrumento. O compadre resistiu e disse que só venderia por seis contos de réis. O velho resolveu pagar a mencionada quantia e seguiu de volta para sua casa. Ao chegar, começou a discutir com a sua esposa, dizendo-lhe que precisava mostrar para que servia aquela rabeca. Ela resolveu enfrentá-lo. O senhor é mesmo um velho

O duque, confiante no instrumento que havia adquirido, disse a mulher – “cale a boca, o mundo agora virou, dou-lhe quatro punhaladas, já você sabe quem - 73 -


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sou”. A velha continuou resmungando, provocando-o. Ele cumpriu o que tinha prometido. Deu quatro punhaladas em sua mulher que caiu morta. O velho muito ligeiro

Foi buscar a rabequinha, Ele tocava e dizia: Acorde, minha velhinha; Porém a pobre da velha,

Nunca mais comeu farinha.

No que se refere ao conteúdo do folheto, cuja autoria é atribuída a Leandro Gomes de Barros, observa-se que o mesmo forneceu a Ariano Suassuna a informação que consta na epígrafe da publicação (O animal que defecava dinheiro), como também viabilizou outro processo intitulado de “reescritura”, como o autor classificou o seu trabalho. A “borrachinha e a rabeca”, presentes no folheto de Leandro, foram transformadas na bexiga do cachorro e na gaita, porém foram mantidas as mesmas funções na construção dos quiproquós. Outro fato que chama à atenção, as espertezas do Cumpadre pobre são semelhantes às travessuras da personagem João Grilo, do Auto da Compadecida. João Grilo, juntamente com o seu parceiro Chicó, armam várias situações com o intuito de tirar algum proveito delas. A personagem é trapaceira, astuta, maliciosa, inventiva, conhecida também como amarelinho, quengo (característica do compadre pobre, citado por Leandro Gomes de Barros, no seu folheto) e sempre quer levar vantagem, de alguma maneira, sobre as pessoas. No Auto da Compadecida a personagem João Grilo constrói uma série de situações, duas das quais provavelmente Ariano Suassuna extraiu do folheto O Cavalo que Defecava Dinheiro. Vale observar a dramaturgia e comparar com o folheto de Leandro Gomes de Barros. João Grilo (para Chicó) É isso que é preciso combinar com você. A mulher vem já para cá, cumprir o testamento. Eu deixei o gato amarrado ali fora. Você vá lá e enfie essas pratas de dez tostões no desgraçado do gato entendeu? (SUASSUNA, 2001, p. 89).

E assim Chicó fez. Cumpriu a determinação do seu companheiro. Mais adiante, nessa mesma cena, João Grilo prepara outra artimanha (sem, contudo, resolver a anterior), prevendo que alguma coisa poderia sair do seu controle. E sem- 74 -


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pre tendo Chicó como o seu fiel escudeiro. João Grilo (para Chicó) Homem, vá embora pelo amor de Deus que a mulher vem por aí! Espere. A bexiga é que vai nos garantir se o negócio der errado. Leve-a encha-a de sangue e bote no peito dentro da camisa. Vá, vá. (SUASSUNA, 2001, p. 91).

Essas duas situações estão próximas daquelas encontradas no folheto de Leandro. E as suas conclusões confirmam de onde elas foram retiradas. João Grilo vende o gato à esposa do padeiro porque o animal descome dinheiro, ou seja, defeca moedas tal qual o cavalo do folheto. E quando o padeiro descobre que tal ato não passa de mais um trambique de João Grilo, vai procurá-lo para tomar satisfação (p. 102). Mesmo fato que ocorreu com o duque velho do folheto, que foi à procura do cumpadre pobre que havia lhe vendido o cavalo que defecava dinheiro. Quanto à bexiga e à gaita (que substituíram a borrachinha e a rabeca do folheto), Suassuna criou uma situação próxima daquela encontrada no texto de Leandro para utilizar os objetos. Severino de Aracaju (cangaceiro), no momento em que estava se preparando para cometer o assassinato de João Grilo, ouve uma proposta do vigarista. João Grilo Um momento. Antes de morrer, quero lhe fazer um grande favor. Severino Qual é? João Grilo Dar-lhe esta gaita de presente. Severino Uma gaita? Para que eu quero uma gaita? João Grilo Para nunca mais morrer dos ferimentos que a polícia lhe fizer. Severino Que conversa é essa? Já ouvir falar de chocalho bento que cura mordida de cobra, mas de gaita que cura ferimento de rifle, é a primeira vez. João Grilo Mais cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer. Severino Eu só acredito vendo. João Grilo Pois não. Queira Vossa Excelência me ceder seu punhal. Severino Olhe lá! João Grilo Não tenha cuidado. Pode apontar o rifle e se eu tentar alguma coisa para o seu lado, queime. Severino (pede ao Cangaceiro) Aponte o rifle para esse amarelo, que é desse povo que eu tenho medo (entrega o punhal a João sob a mira do Cangaceiro). E agora?

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• TEATRO DE RUA • João Grilo Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chicó. Chicó Na minha, não. João Grilo Deixe de moleza, Chicó. Depois eu toco na gaita e você fica vivo de novo! (murmurando a Chicó) A bexiga, a bexiga! (SUASSUNA, 2001, p. 121 – 123)

E assim, a cena transcorre até Chicó receber a punhalada e desfalecer, fingindo que está morto. Severino ao ver o homem caído e o sangue escorrendo, solicita então que ele ressuscite Chicó. João Grilo começa a tocar a gaita e Chicó aos poucos vai se movendo no ritmo da música. Severino fica impressionado com aquela situação e pergunta a Chicó se ele está sentindo alguma coisa. Ele respondeu: “nadinha”. Então, resolveu negociar a gaita com João Grilo. Essa sequência revela o processo de “reescritura” desenvolvido por Suassuna no Auto da Compadecida, e expõe as fontes apropriadas por ele na construção da sua dramaturgia. Isso não retira a importância do seu trabalho para o teatro brasileiro, pois a sua contribuição é imensurável. Todavia, fica constatado que o autor lançou mão da Literatura de Cordel para construção de textos e esse procedimento provavelmente possibilitou também a difusão do folheto popular. O fato é que antes de 1957 não havia tantos autores utilizando o Cordel na construção de textos. Outro aspecto que se deve levar em consideração é a contribuição desse processo como fator de potencialização (produção e comercialização) da fonte inspiradora. Vale lembrar quando da apresentação do espetáculo do grupo Imbuaça,“Teatro chamado Cordel”, na feira de Campina Grande, em 1980, próxima a uma banca de comercialização, o poeta conseguiu vender 19 folhetos do “O matuto com o balaio de maxixi”, de José Pacheco, título adaptado por Antônio do Amaral e apresentado naquela ocasião. Tal fato surpreendeu o poeta popular que declarou nunca ter vendido tanto um mesmo título, em um período de tempo tão curto.

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Quem tá na rua é pra gritar Mirtthya Guimarães40 Humberto Lopes41 “Nós somos grupo porque cuidamos um do outro. São nossas diferenças que nos unem.” Humberto Lopes Sobre o grupo Para conhecermos melhor o Quem Tem Boca é Pra Gritar, farei um breve contexto histórico, necessário para a compreensão de algumas escolhas que o grupo fez e faz até hoje. O Quem Tem Boca pesquisa essencialmente o teatro de rua, mas houve durante esses 27 anos de carreira, momentos em que se experimentou trabalhar em palcos fechados, porém o seu foco é a busca por uma energia desenvolvida pelo ator que vai à rua. E assim, busca-se analisar como esta energia construída em sala se relaciona com o espaço urbano, com todas as suas instabilidades e probabilidades. Desde o início de suas atividades o grupo se dedicou ao trabalho na rua, isso influenciado pelo próprio período que o grupo nasceu, o pós-ditadura militar, “O nome do Grupo esclarece algumas posições, que começou com um ‘bando’ de jovens que viam na rua um palco aberto para expor suas posições políticas.” (GUIMARÃES, 2011, p. 35). Isso fica muito evidente na trajetória, que desde o início ousa na sua forma de fazer e pensar teatro: Um dos primeiros trabalhos realizados pelo Grupo foi experimentar a obra “A exceção e a regra”, de Brecht, na rua. Quando este, na figura de Humberto Lopes, participou do Simpósio Brecht no Brasil em 1987, o Quem Tem Boca tinha sido um dos primeiros grupos no Brasil a ter esta atitude, ousar o Brecht na rua. Desde o início o Grupo teve posições fortes, tanto nas encenações como nas suas opções estéticas. (GUIMARÃES, 2011, p.35)

Graduada em Teatro - Licenciatura pela Universidade Federal da Paraíba. Mestre em Arte Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Estudante da especialização: Arte, Educação e Sociedade, pelo CINTEP. Educadora, atriz e do Grupo de Teatro de Rua Quem tem Boca é Pra Gritar da Paraíba. É articuladora da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR). Professora de Arte da Educação Infantil em CREIs, da Rede Municipal de Ensino de João Pessoa.E-mail: mirtthya@gmail.com

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Ator, diretor e fundador do Grupo de Teatro Quem Tem Boca é Pra Gritar. Articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua e Técnico de Artes Cênicas da Fundação Espaço Cultural da Paraíba.

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Como era um grupo de jovens estudantes secundaristas, puderam dedicar muito tempo de suas vidas estudando grandes escolas e pensadores do teatro: Realismo, Expressionismo Alemão, Arte Circense, Danças Folclóricas, Commedia dell’Arte e importantes nomes da literatura teatral: Grotowski, Eugenio Barba, Stanislavski, Augusto Boal, Meyerhold, Antonin Artaud, Brecht e Dario Fo. O grupo nasceu em Campina Grande, em 1987, cidade metropolitana da Paraíba, e mudouse em 1995 para a capital João Pessoa, onde hoje tem uma sede própria localizada no Centro Histórico da cidade, lugar ideal para o desenvolvimento de suas atividades. O grupo também é articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua, e nesta situação recebe artistas de todo o país, transformando o Galpão Usina de Arte – como é chamado o seu espaço desde 2000 – em um verdadeiro celeiro de trocas e aprendizados para seus atores e convidados. Desde 2011, vem realizando encontros com artistas e grupos de dimensão regional e nacional. Realizou em 2013 o evento intitulado “A Tomada da Cidade de João Pessoa pelo Teatro de Rua”, onde estiveram presentes artistas de quatro regiões do país. E esta vem sendo uma prática do grupo: promover encontros e\ou festivais, reunindo na Paraíba fazedores de teatro de rua do país inteiro. O treinamento do grupo A busca do grupo parte, essencialmente, da descoberta de uma energia oriunda do ator e que se estabelece no espaço cênico urbano caótico. Para analisá-la vamos adotar o método matricial e considerar que seus componentes constituem várias macro matrizes42, ou seja, sete integrantes que contribuem\influenciam em todo o processo, cada qual com suas particularidades, e são influenciados pela matriz do outro. De acordo com o Método Matricial, matriz é “um quadro formado pelos elementos de criação que o artista escolhe para gerar sua obra.” (BRITO e GUINSBURG in CARREIRA et al., 2006, p. 20). No nosso caso, o ator não escolhe a matriz, a característica mais forte do ator acaba influenciando o processo de construção e é isso que reconheço, aqui, como matriz. Outro conceito de matriz que também coaduna com a proposta do grupo é o conceito proposto por Renato Ferracini (1998), que vem complementar o nosso entendimento sobre o tema: Tal definição foi desenvolvida à partir da metodologia proposta pelo Método Matricial (BRITO e GUINSBURG, 2006).

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede • Uma ação física e ou vocal orgânica e pessoal, descoberta e pesquisada pelos atores, e que dinamizam suas energias potenciais, é chamada de MATRIZ. ... Assim, a Matriz é entendida como o material inicial, principal e primordial; é como a fonte orgânica de material do ator, à qual ele poderá recorrer, sempre que desejar, para a construção de qualquer trabalho cênico. A matriz é a própria ação física\vocal, viva e orgânica, codificada. (FERRACINI, 1998, p. 103, 104).

No Quem Tem Boca é Pra Gritar compreendemos a matriz como uma ação física\vocal, que é viva e orgânica, porém não codificada. Para facilitar o entendimento, elencaremos a matriz mais forte de cada um, não citando os nomes dos integrantes, mas, chamando-os de: matriz intuição; matriz música; matriz corpo; matriz riso; matriz griô; matriz micro e matriz jogo. A seguir, iremos aliar a compreensão de matriz proposta por Rubens Brito, que é um conceito matemático usado de forma análoga para a análise do processo de criação da cena, e a matriz proposta por Ferracini que é de ordem técnica, e que diz respeito ao material levantado em sala de ensaio. Juntando estas matrizes de cunho pessoal o grupo ainda pesquisa matrizes comuns (coletivas), como por exemplo, algumas manifestações populares como o Cavalo Marinho, Coco de Roda e de Embolada e Maracatu, mais especificamente do Caboclo de Lança. Tais manifestações trazem um sentido de matriz como “essência”, é a partir daí que nasce uma quarta vertente de matriz, casando analise, técnica e essência. A partir destas considerações preliminares, descreveremos como o grupo se apropria das matrizes para desenvolver sua pesquisa, sua energia. Do Cavalo Marinho, exploramos a energia enraizada, agilidade e criatividade\improvisação. O treinamento do grupo vai desde dançar a manifestação, à elaboração de jogos e exercícios desenvolvidos a partir dela. Guiado por Humberto Lopes, o grupo tem um arsenal de jogos que toma como referência a resistência, o enraizamento e a contenção de energia. Um jogo muito explorado pelo grupo se dá através da movimentação do chamado “mergulhão” do cavalo marinho, que é um passo muito rápido. Desconstruímos este ritmo intenso e variamos o jogo do mergulhão numa movimentação muito lenta, toda destrinchada, decupada, percebendo toda a musculatura e todos os gestos aí contidos, porém o principal foco deste jogo é conseguir segurar o impulso que é gerado pela sonoridade forte e pulsante da manifestação, e controlar este mesmo impulso para utilizá-lo com força, em outro momento onde não temos o elemento externo que apoia e estimula - que é o ritmo da música. - 79 -


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Tudo isso faz parte do que estamos chamando de pré-caos, que é o procedimento pelo qual o ator passa para chegar ao seu estado potencializado e assim, à expressividade caótica. Esta é a nossa linguagem para o teatro de rua; por isso damos tamanha importância para o treinamento, pois é ele que vai expressar a linguagem e as escolhas do grupo. Na obra Teatro de Rua: olhares e perspectivas os autores reforçam a especificidade do teatro de rua, e vou mais além reforçando a especificidade do treinamento diferenciado: O teatro de rua tem características próprias que se chocam profundamente com o teatro tradicional, [pois] não é o espaço que caracteriza o Teatro de Rua e sim a linguagem, a maneira de encarar o espectador, e a função do ator (CÂNDIDO E PEIXOTO apud TELLES e CARNEIRO, 2005, p. 119)

As Matrizes Desde 2007, faço parte do grupo Quem Tem Boca é Pra Gritar, e desde então observo os integrantes, como cada um se comporta diante de determinados exercícios ou situações. Como trabalhamos com uma filosofia de teatro de grupo, observo a importância e influência de cada um para o coletivo. Por isso convencionei, então, chamar estas influências de “matrizes”, as quais passo, em seguida, a descrever: A matriz intuição explora o desenvolvimento espiritual e mental dos atores, é provocativa e muito criativa; é esta matriz que nos instiga a ultrapassar barreiras pessoais e a vencer limites corporais e mentais, aguçando nosso potencial criativo. Normalmente é esta matriz que direciona as pesquisas, acentuando a curiosidade de todos. Aqui, podemos citar exercícios onde somos estimulados a acreditar no impossível, a ver o teatro como a arte em que “tudo é possível” e que estamos aqui para provar esta certeza. A matriz música é voltada para os elementos musicais, sonoros; ela nos instiga a investigar os sons, a descobrir possibilidades não só com os instrumentos musicais (todos os atores tocam mais de três instrumentos musicais), mas a musicalidade que pode derivar de objetos e do próprio corpo. Também somos estimulados a explorar nossos potenciais vocais, limites e amplitudes. A matriz corpo aprofunda o potencial das matrizes das manifestações populares, a agilidade, o enraizamento, o vigor físico, ativando toda a capacidade física do corpo, mas não só conhecendo as potencialidades corporais, como também as filosofias inerentes a cada manifestação que exploramos. - 80 -


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A matriz riso se apoia no elemento cômico, que já é muito presente no trabalho do Quem Tem Boca, descobrindo possibilidades com o corpo e com a voz para provocar o riso, como ser engraçado, como atrair o riso até em momentos difíceis. Esta matriz é atua todo o tempo, e se estivermos juntos esta matriz estará inevitavelmente presente. A matriz griô trabalha a capacidade de contar e recontar histórias, peripécias, o potencial criativo aliado ao potencial de reprodução. Muitas vezes este contar\criar\recontar histórias está atrelado à puia43, recurso que o grupo explora frequentemente. A matriz micro traz a capacidade de alcançar os detalhes, de ser minucioso, cuidar das coisas que são menores. Isto é muito importante para os atores, pois estando na rua existe uma tendência a ampliar, exagerar, e através desta matriz exploramos o micro, o interno, aparece o cuidado com o menor e as coisas que não são tão óbvias, nem tão explícitas. A matriz jogo, como o nome o diz, transforma tudo em jogo, ou seja, através do jogo explora todos os elementos anteriores, sempre pensando em elaborar dinâmicas que carreguem um pouco de cada uma das outras matrizes; explora o estado de prontidão, disponibilidade, companheirismo, cumplicidade, o brincar44. Caosfonia Esse termo surge a partir da necessidade de estudarmos a música de uma forma diferenciada, direcionada para atores que estão pesquisando o caos no teatro de rua. A caosfonia - proposta por Humberto Lopes - é desenvolvida por todos os atores do grupo, ou seja, por todas as matrizes; contudo, é orientada de modo sistemático pelo músico e ator do grupo Cleiton Teixeira. Da mesma forma que Humberto Lopes propõe exercícios físicos, Cleiton propõe exercícios voltados para voz e instrumentos musicais. Nos primeiros momentos do trabalho exploramos a afinação, tentando identificar o timbre de cada um. São propostos exercícios de aquecimento vocal como: soar as vogais, solfejar as notas em números, controle do diafragma, entre outros. Podemos citar ainda o duelo de imagem e voz, exercício que consiste no seguinte: dois grupos se posicionam de frente um para o outro em fila lateral; um 43

Puia na linguagem do Cavalo Marinho significa palavras\frases de duplo sentido.

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Etimologicamente a palavra brincar deriva de brinco, argola que cria vínculos.

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desafia o outro com um som-imagem e, no final, o que for mais expressivo e criativo, “vence”. Esse exercício explora, também, uma desordem na produção do som que o grupo quer gerar propositalmente. Em um segundo momento, tendo compreendido os timbres, partimos para exercícios mais especificamente voltados para o que estamos chamando de caosfonia. Nestes, exploramos elementos musicais como, por exemplo, o que chamamos de “contratempo”; ou seja, por vezes a voz está em um andamento (velocidade) e o corpo noutro, ou vice e versa. Aqui, podemos citar também um exercício que é realizado em várias etapas: inicialmente, cantamos uma música: “Que medo, medo, dá medo, que medo, medo me dá, que medo, medo, dá medo, que medo, medo me dá. Ê, ê, ê, ê, ê, ê, ê ê. Ê, ê, ê, ê, ê, ê, ê ê, ô, He, ê, ê, ô. (2x em alturas diferentes)”.

pulso do ritmo (mais marcante) Figura 1

contra tempo (menos marcante)

O ritmo em vermelho é o natural, aquele imposto pela música, que geralmente é de fácil percepção; já o amarelo é o desafio, não tão natural de se encontrar, sendo mais difícil mantê-lo. É com este desafio que trabalhamos, com o “contratempo” do ritmo; nele, improvisamos com o corpo. Depois a sequência é invertida: o corpo trabalha no ritmo marcado em vermelho e a voz, no amarelo; este é um desafio ainda maior. Quando utilizamos a voz, podemos escolher uma “célula” da música (no caso, um trecho da melodia) e explorá-la, utilizando vários timbres e alturas; a junção dessas “células” produz uma música, talvez não tão melódica quanto a primeira, porém não deixa de ser música. Interpretamos aí a caosfonia, que para nós é a ressignificação de um ritmo primário. - 82 -


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Este mesmo exercício pode ser feito com outras músicas. Uma delas é: “Já é meio dia, lá em Macapá não é, já é meio dia, lá em Macapá não é. Quem quiser vai de boné, quem quiser vai de boné, quem quiser vai de boné”. No novo processo de montagem, “Quase Shakespeare”, muitos princípios que viemos estudando sobre o caos transformaram-se em exercícios práticos. É possível observar que há um amadurecimento das ideias e, no decurso deste processo, pesquisas de mais de vinte e seis anos de intensa prática estão sendo lapidadas e ganhando uma forma mais compreensiva teoricamente. Jogo das explosões Este exercício tem o objetivo de explorar a capacidade de elaborar a energia, guardá-la, para poder ser liberada quando for necessária. Descreverei de forma sequenciada as etapas do jogo: Utilizamos um objeto: a guiada45 do caboclo de lança do Maracatu. Depois de intenso alongamento brincamos\reproduzimos o movimento original do lanceiro, com as guiadas, que medem mais ou menos 2,10 metros. Seguramos com a mão esquerda o meio da lança e com a direita a outra ponta, deixando livres uns dois palmos do fim. Alguns movimentos podem ser realizados, e um dos mais simples é assim realizado: Mover a guiada para frente e para trás, ou para cima e para baixo, sempre chacoalhando a lança no ritmo da música. Outro movimento, um pouco mais complexo, exige um giro: indo para frente inclinamos simultaneamente a lança para cima e giramos em espiral, retornando ao ponto inicial. Todo o exercício é guiado por um estímulo sonoro que é dado; então, todos com as guiadas na movimentação inicial, girando para direita e esquerda. Através de um sinal externo, travamos de forma aleatória as guiadas, de forma que fique um no meio. Este tenta sair sem tocar a guiada no chão, os outros não deixam o “guerreiro” do centro sair. Ao som do estímulo externo, todos “explodem” para Figura 2 45

Lança de madeira, ornada de fitas coloridas, geralmente a guiada tem 2 metros e um dos lados pontiagudos.

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fora formando um círculo, e o ator do meio permanece. Em seguida canta, dança e diz um texto (no nosso caso, um trecho do espetáculo “Quase Shakespeare”). Com mais um estímulo sonoro, todos “implodem”, para “explodirem” em seguida a partir de outro estímulo; só que o ator que se encontra no centro salta agora no movimento com o giro. E assim é feito com todos os que estão na roda, todos têm o seu momento individual de implodir e explodir. Isso nos faz lembrar os movimentos de uma contração, que vai ganhando força até ter o clímax, e então temos a explosão de energia. É exatamente assim que imaginamos quando estamos na rua. Ficamos na sala contraindo, preparando-nos para a grande explosão que é o espetáculo quando acontece na rua. Esta acontece quando os atores entram na roda e começam a se relacionar com o espaço e com o público. A rua tem uma energia própria: ela pulsa de diferentes formas, assim como os transeuntes-espectadores. “A lança do guerreiro” é um exercíFigura 3- nesta posição o ator que fica no centro cio que utilizamos para o nosso aquecimententa sair sem tocar o bastão no chão. to, porém ao mesmo tempo também trabalhamos com a noção de explosão de energia, reflexo, níveis (alto, médio e baixo) e ritmo. Neste exercício, o ator segura um bastão seguindo o ritmo da música, faz movimentos que lembram os que o guerreiro de Maracatu faz, ou seja, com as duas mãos segurando o bastão, lança-o para cima e para baixo na diagonal, para frente e para trás na altura da cintura, variando de acordo com a Figura 4 - posição final, após explosão. música; a posição base é a “base de pantera46”, que é a coluna ereta, pernas abertas e joelhos bem flexionados, como 46

Este é um exercício proposto pelo grupo de Teatro LUME (Núcleo Interdisciplinar de pesquisas teatrais da UNI-

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mostra as figuras abaixo:

Figura 5

É o koshi47 que guia o movimento; neste exercício o lanceiro do Maracatu está sempre enraizado. Busca-se “enraizar” e “desenraizar”, todo o tempo. Também podemos utilizar saltos com giros. Especificamente, neste trabalho utilizamos duas músicas do CD “Afrociberdelia” de Chico Science e Nação Zumbi: a música “Corpo de Lama” e “Enquanto o mundo explode”, respectivamente. Na primeira, que não é tão rápida, temos a oportunidade de projetar os movimentos e explorar melhor o espaço, já na segunda, frenética, nos entregamos a este ritmo e deixamos que ele ocupe o espaço, sempre lembrando que todo o impulso do movimento parte do plexo ou koshi. “Da terra pro ar”: este exercício, parte da manifestação popular Cavalo Marinho, e é bem desafiador. Em círculo, começamos a brincar com o mergulhão, do Cavalo Marinho, no seu ritmo mais natural, tradicional, neste primeiro momento do exercício podemos utilizar músicas de Cavalo Marinho. Feito um breve aquecimento com o mergulhão, retira-se a música, e faz-se a mesma movimentação em “câmera lenta”, partiturizando cada movimento, racionalizando o gesto que, por muitas vezes, é improvisado. Uma segunda etapa deste exercício é brincar o mergulhão, utilizando os quatro elementos: terra, fogo, água e ar. Esta é uma etapa desaCAMP) no qual: “Para esse exercício o ator tem uma posição lixa: olhos abertos e olhando sempre para frente, base aberta, joelhos flexionados, coluna reta sentada na bacia e braços ao longo do corpo. Essa posição deixa a região do koshi livre e “em trabalho” constante, e todos os impulsos, ações e reações devem partir daí. Em um primeiro momento o ator treina, individualmente maneiras diferentes de andar, correr, saltar e girar dentro dessa forma preestabelecida.” (FERRACINI, 1998, p. 150). Também fazemos a variação deste exercício, no qual ficamos em círculo, e uma pantera fica ao centro com olhos fechados, as outras panteras do círculo vão “provocar” a pantera que deve reagir, a pantera não pode se defender antes de ser atacada. Este exercício explora muito a atenção, concentração e o estimulo a resposta. 47

Conceito utilizado por Eugenio Barba, que em japonês significa: quadril.

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fiadora para o ator, principalmente do Quem Tem Boca, que já estamos habituados a brincar o Cavalo Marinho. Esta movimentação, que está muito presente em nossa memória corporal, lembra o elemento terra. O mais desafiador é realizar a movimentação em: água, fogo e ar, pois estimula a mente, os músculos e a coordenação. A terceira etapa deste exercício é fazer a movimentação básica do mergulhão: o ator pula no lugar que está, salta para o meio da roda, pisa três vezes, alternando os pés, pula no meio e salta retornando ao seu lugar de origem. Essa sequência é realizada em poucos segundos. Na brincadeira tradicional, o espaço das três pisadas é o momento que você desafia o outro com peripécias e movimentos mais elaborados (específicos da brincadeira), no qual podemos ter: saltos, giros, acrobacias, etc. Para o exercício, este tempo de três pisadas é feito em “câmera lenta”; depois invertemos, fazemos a saída lenta e as pisadas em tempo natural. É um jogo de oposições e contrações bem interessante, desafiando corpo e mente, quebrando com a estrutura já incorporada da brincadeira, no corpo. Neste exercício, exploramos tanto a contensão da energia como a explosão, assim também exploramos forças contrárias, nosso impulso de querer realizar a movimentação que o nosso corpo já está habituado em fazer, e esse contra impulso que nos permite realizar o exercício. “Big bang”, é um exercício que consiste em explorar o nascimento de uma explosão. Todos os atores realizam um exercício de contato improvisação48, e em determinado momento um dos atores fica no centro de um grande “útero” formado pelo restante dos atores. A função de quem está no meio é sair, e a função do “útero” é não deixar sair, porém, sem forçar, sendo suave e natural. Este conflito de forças “yin e yang”, que é gerado pela relação dos dois objetivos, faz “nascer” uma energia, incontrolável com desejo de expansão. Mas, num determinado momento essa energia explode, e precisa novamente ser reelaborada, seguindo com o contato de improvisação. Exercícios de forças contrárias: são muito explorados pelo grupo, e por isso desenvolvemos uma série de jogo. O mais utilizado é o que chamamos de “marinheiro na onda”, que consiste em caminhar e no meio da trajetória, duas forças contrárias guiam seus movimentos. A pessoa se mantém como se estivesse em um barco balançando muito, uma força lhe puxa pelo plexo para frente e outra força lhe puxa para trás, pelo meio das costas, a proposta é manter o equilíbrio, recitando Técnica desenvolvida nos anos 70, por Steve Paxton. Os interpretes improvisam movimentos a partir do contato físico com o outro, o contato também pode ser realizado com objetos, com o espaço, enfim. Apesar de ser improvisado existem movimentos que são treinados, fixos da própria técnica.

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simultaneamente um texto (previamente decorado). Há uma tensão no eixo central do corpo e o ator deve se manter de pé, dizendo o texto.

Tensão

Força de expansão Yang

Força de expansão Yin

Figura 6

Outro exercício é o da “ativação da oposição corpóreo-vocal”. Este jogo foi elaborado por Humberto Lopes. Como mostra a figura a seguir, em um determinado espaço são dispostos círculos de vários tamanhos e uma faixa delimitando a altura que podemos trabalhar. Geralmente, esta faixa fica numa altura de mais ou menos um metro. Cantando uma música e movimentando o corpo, o ator tem que passar pelos círculos, não necessariamente todos, obedecendo à altura estipulada; ele pode utilizar o nível baixo, só não pode passar da faixa. Cada círculo tem um propósito: nos círculos maiores se explora a movimentação lenta e contraída do corpo e a voz rápida e expandida (cantando a música nessas coordenadas); nos círculos menores explora-se a movimentação rápida e expandida, juntamente com a voz lenta e contraída. Não é um exercício fácil, pois são vários comandos com coordenadas opostas. Ainda pode ocorrer um outro estímulo que é o do orientador do exercício, que pode pedir variações vocais, explorando intenções. Esse jogo explora as possibilidades físicas, equilíbrio, respiração, distribuição e controle de energia; ao mesmo tempo em que exige muita energia, também gera muita energia. É um ótimo jogo para trabalhar oposições de forças e de sentidos. Todos esses exercícios foram desenvolvidos para a construção de uma energia e de uma expressividade que estamos chamando de expressividade caótica. A expressividade caótica é a relação entre saberes, energias, influências, memórias e lugares presentes no corpo do ator, que se estabelecem\relacionam no espaço cênico da rua e com os transeuntes\espectadores, que por sua vez, também têm seus saberes, energias, influências, memórias e fluxos próprios. Ela aborda princípios, dentre os quais o principal deles é a elaboração da energia do ator que se relaciona com o tempo-espaço urbano caótico, diversificado por conta da poluição sonora, a - 87 -


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verticalidade e horizontalidade dos prédios, o trânsito, os vendedores ambulantes, e com os transeuntes\espectadores, que até então, não esperavam se deparar com um espetáculo. Segundo Humberto Lopes49: Diante do “caos” urbano se estabelece um possível entendimento e reciprocidade entre o trabalho desenvolvido em sala que, partiu da construção de uma “energia” para o trabalho do ator, e é essa “energia” que permite um reinventar Urbano–Caótico–Corpóreo-Energético. A elaboração dessa energia em sala parte de matrizes corporais presentes em algumas manifestações populares nordestinas como, coco de roda, cavalo marinho e maracatu, que constroem bases físicas de enraizamento (coco de roda e cavalo marinho) e equilíbrio precário (caboclo de lança do maracatu), buscando uma sintonia e uma relação possível quando se está na rua, considerando também a horizontalidade, a verticalidade e o movimento irregular, difuso e confuso da rua, fazendo com que o ator do Quem Tem Boca construa sua expressividade caótica, permitindo uma desconstrução do gesto cotidiano, reorganizando e construindo um gestual que reorganizará e estabelecerá estruturas bases para o que chamo de “pré-caos”, reelaborando estruturas corporais, não codificas, que comporão os personagens, e que, ao mesmo tempo, cria uma energia que se reorganiza e se relaciona no exato momento da ação teatral. (LOPES, 2013)

A expressividade caótica não pertence só ao ator, ela é também uma relação entre as histórias múltiplas50 que colapsam no momento cênico. São contextos múltiplos, caóticos que relacionam e elaboram uma nova energia para Transeunte/ aquele momento. É a relação entre Ator Expectador os três: o ator caótico, o espaço urEspaço bano caótico e os transeuntes com Urbano suas múltiplas histórias de vida, que gerarão o que estamos chaExpressividade mando de expressividade caótica. Caótica Para finalizar, é preciso Figura 7 ressaltar que esta é uma pesquisa 49

Em entrevista gravada em setembro de 2013.

Segundo Stephen Hawking na obra “O universo numa casca de noz” Feynman compreende: “Como o universo vai lançando dados para ver o que seguirá, não tem uma só história, como se poderia esperar, mas sim deve ter todas as histórias possíveis, cada uma delas com sua própria probabilidade”. (2001, p. 22).

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em constante processo, que compartilhamos agora com os fazedores de teatro de rua de todo o país, no sentido de contribuir para a busca permanente de formatos diversos das artes públicas de rua.

Invocações: atuação, espaço e criação nos espetáculos de rua ‘Serra-Serra Serrador’ e ‘A Saga no Sertão da Farinha Podre’51 Narciso Telles52 Getulio Góis53 O teatro é a arte da invocação, os artistas são grandes invocadores! Eles ressuscitam os mortos, fazem voltar às lembranças mais distantes. Ariane Mnouchkine O presente capítulo é uma re-escritura e junção de dois textos escritos em tempos distintos sobre o processo de criação de espetáculos de rua. A diferença da dimensão temporal desses trabalhos, o primeiro de 1987 e o segundo de 2010, nos permitem a ressuscitar seus mortos e evocar nossas lembranças, pois em ambos os trabalhos os autores desse texto estiveram envolvidos como atores, diretores e criadores. Isso possibilita que possamos refletir sobre os processos de criação em teatro de rua ou mesmo na relação teatro e cidade na medida em que podemos perceber pontos de intersecção e problematização no qual o espaço urbano em suas múltiplas perspectivas atravessam e interpenetram os processos criativos. #1 Invocação Revolucena e o ‘Serra-Serra Serrador’ 51 O presente capítulo é constituído de re-escritas de textos anteriormente publicados pelos autores em livros e periódicos de Artes Cênicas. 52 Ator, professor do Curso de Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFU, com pós-doutorado em Teatro pela UDESC. Pesquisador do CNPq. Membro do Coletivo Teatro da Margem (Uberlândia – MG). narcisotelles@hotmail.com

Ator, Professor de Teatro da Escola de Educação Básica (ESEBA –UFU). Mestre em Artes pela UFU e doutorando em Artes Cênicas pelo Programa DINTER – UNIRIO/UFU. 53

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A linguagem teatral de rua do Grupo Revolucena (1979 - 1990), sediado no município de Angra dos Reis/RJ têm como características principais: a crítica social; a relação com a cultura popular da região. Na criação de ‘Serra-Serra Serrador’: A nossa preocupação, era com a questão do patrimônio, desde o início, antes mesmo do Revolucena se constituir[como] um grupo, naquelas peças que fazíamos no Colégio Estadual Artur Vargas(CEAV) já tinha essa preocupação. Só que a gente foi percebendo que nós estávamos perdendo muito o nosso patrimônio, foi aí que resolvemos fazer[em 1980] o “Serra-Serra...54

Em 1982, o espetáculo ocupa à ruas com a justificativa de “dar continuidade a uma campanha iniciada pelo grupo em prol do tombamento e da preservação dos monumentos históricos da cidade que se encontram em estado de total abandono.”55 De todos os espetáculos encenados pelo Grupo Revolucena, “Serra-Serra Serrador” é o que mais apresenta uma vinculação com a cultura popular da região. Todo o projeto de encenação, desde a temática até a cena propriamente dita, tem referência às festas, ritos e tipos populares da cidade e da região. A montagem de “Serra- Serra Serrador” é totalmente baseada no folclore do Serra-Velho e em fatos históricos ocorridos no município. A tradição do Serra-Velho acontece em Angra dos Reis há muitos anos, acreditam alguns que desde o século XIX. Na noite anterior ao dia de São José, 18 para 19 de março, um grupo de pessoas vestidas de preto percorre o centro da cidade indo às casas dos moradores mais velhos. Chegando lá, chamam o morador até que este acorde e atenda ao chamado. Ao chegar à janela ou ao portão, o morador é surpreendido por vozes que anunciam sua morte e pedem informações sobre quem vai ficar com a herança. Um membro do grupo serra uma lata e com voz estridente repete “ai,ai,ai...” ao fim da anunciação. As pessoas que fazem parte do grupo são conhecidas como “serradores”, e o que faz a voz estridente é chamado de tripa. Ao longo do tempo, essa tradição vem sofrendo críticas por parte dos mais idosos, ficando, inclusive, desaparecida por vários anos.

Pra começar a gente foi acompanhar um serra-velho, pra ter a idéia de como era. Eu nunca tinha ido e achei engraçadíssimo; eles lá mexendo, assombrando...56

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Entrevista realizada por Narciso Telles com José Marcos Castilho. Angra dos Reis, 1998

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Programa do espetáculo

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Entrevista realizada por Narciso Telles com Carlos Henrique Braz. Rio de Janeiro, 1998

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O fio condutor do espetáculo era a serração dos prédios e logradouros da cidade. Em cada ponto, o cortejo parava e iniciava-se a serração. Dois atores eram os serradores, e um outro representava o patrimônio. Assim, surgiam em cena a Dona Carioca, o Galixo, a Dona Casa da Cultura, o seu Chafariz da Saudade, o Barão de Jugueiros entre outros. Todos os personagens foram criados a partir de referências históricas encontradas no livro “Ouro, Incenso e Mirra” de Alípio Mendes. A leitura deste livro foi fundamental para a realização do espetáculo, com bem diz o ator José Marcos Castilho: “(...) olhando o livro do Alípio Mendes achamos algo interessante, e foi aí que nós resolvemos fazer o “Serra Serra...”57 A ideia era apropriar-se de fatos históricos do município para mostrar à população a importância de Angra dos Reis no passado e a necessidade de preservação do patrimônio. Na verdade, a história de Angra foi o fio condutor de toda a encenação. Estava presente no texto dos atores, nos figurinos - o vestuário branco simbolizava a herança africana no município -, na ocupação do espaço, nos personagens, pois a intenção era mexer com a memória coletiva dos participantes. A memória coletiva foi um caminho estratégico que o Grupo vislumbrara para conseguir sensibilizar a platéia para o problema da preservação dos bens culturais do município. “No Serra-Serra..” a história era deles, do público também, eles também passam por ali, eles também viram acontecer, e também eram responsáveis pela manutenção daqueles prédios (...)”58 Cantando e dançando, o Grupo propõe uma atitude de celebração à vida desses populares, que também fizeram parte da história de Angra. As coreografias eram criadas pelos próprios membros do grupo ou retiradas do folclore regional. “Serra-Serra Serrador”, o Revolucena é um espetáculo em que a teatralidade é construída pela própria cena, não dependendo, assim, da participação ativa do público. Essa modificação em relação aos outros espetáculos pode ser entendida como um amadurecimento do grupo, agora intentando um cuidado estético maior em seu teatro, mesmo se mantendo fiel ao projeto ideológico de sua fundação. A esta ideia podemos, também, acrescentar que as experiências anteriores foram importantes para o conhecimento e aprimoramento das possibilidades do teatro de rua que o Revolucena busca em “Serra-Serra Serrador”. Tendo a cidade como cenário, o espetáculo estrutura-se a partir de uma 57

Entrevista realizada por Narciso Telles com José Marcos Castilho. Angra dos Reis, 1998

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Entrevista realizada por Narciso Telles com Carlos Henrique Braz. Rio de Janeiro, 1998

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performance em movimento através do espaço: o espetáculo ia acontecendo como uma procissão pelas ruas e praças do centro de Angra dos Reis. A escolha do trajeto da procissão foi definida durante o processo inicial de pesquisa sobre as condições dos diversos bens patrimoniais a serem preservados. Os atores percorrem as ruas da cidade começando pela Bica da Carioca, passando pelo Chafariz da Saudade, na Praça Duque de Caxias, pelo antigo local onde se erguia o Teatro São José no Largo da Lapa, pela Rua do Comércio e termina por serrar o Rio do Chôro, na Avenida Raul Pompéia. Em cada ponto, algum ator encarna o monumento a ser serrado pelo grupo que anuncia sua morte.59

Tentando caracterizar a performance processional, Brooks McNamara (1985) identifica seis pontos presentes nessas performances, dos quais destacamos cinco: a) sua importância cerimonial e simbólica: b) o emprego de elementos que a distinguem do movimento cotidiano através do espaço; c) utilizando-se de símbolos, a procissão enfatiza eventos importantes para uma dada comunidade; d) pode ser organizada formal ou informalmente, promovendo uma troca entre os performers e os espectadores; e) o foco pode estar em uma combinação de “procissão e estação”, ou seja, em ambos, a procissão pára em certos locais considerados importantes. A partir dos pressupostos identificados por McNamara, podemos melhor entender o modelo de ocupação do espaço seguido pelo Revolucena em “Serra-Serra Serrador”. Durante o cortejo, os personagens vão aparecendo um a um nos locais definidos pelo Grupo. A cada parada a cena é repetida: dois atores serram o patrimônio, que acorda e conta sua história. Esta sequência cortejo-cena acontece durante todo o espetáculo. Durante a apresentação, o Grupo compunha a procissão de forma a ressaltar símbolos compreensíveis e familiares aos espectadores, por meio das músicas e coreografias, muitas das quais eram retiradas do folclore regional. Os elementos simbólicos presentes no espetáculo estavam pautados nas manifestações culturais/ religiosas angrenses. A performance processional do espetáculo continha um misto das tradicionais procissões católicas - que ocorrem durante o ano no município - com ele59

“Serra-Serra Serrador” agrada o público nas ruas de Angra. Jornal Maré, 13/03/82.

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mentos da cultura afro-brasileira. Todos os figurinos, exceto dos personagens fixos, eram brancos, lembrando roupas dos rituais afro e da capoeira. Sobre essa questão, Zequinha Miguel nos esclarece: “No caso de minha formação como diretor, eu acho, que tem muito a haver com Angra, essa coisa de procissão, de umbanda, esse ambiente arquitetônico faz a minha cabeça, Angra tinha esse ambiente.”60 A passagem do espetáculo pelas ruas da cidade congrega, a cada momento, um maior número de espectadores, muitos, por curiosidade, acabam assistindo a toda a encenação. Esse processo de arregimentação do público faz com que o mesmo seja heterogêneo e se modifique - até quantitativamente - ao longo do espetáculo. O público não possui uma participação ativa nas cenas, mesmo assim, forma-se uma verdadeira procissão em torno dos atores. De todos os espetáculos de rua apresentados pelo Revolucena, “Serra-Serra Serrador” foi o que mais teve a cobertura da imprensa local, para todas as apresentações encontramos uma convocação em jornal, inclusive mencionando todo o trajeto do espetáculo. Essa divulgação promovia a existência de um público previamente convocado para o espetáculo. Este chamamento já conduz uma atitude modificada frente ao espetáculo diferenciando daquele que não foi convocado para tal evento, está ali por acaso, configurando-se no público acidental. Essa diferença na forma de motivação do público frente ao espetáculo vai se refletir no próprio comportamento diante da cena. Um público convocado já se prepara de antemão para esta “cerimônia social”, estabelecendo códigos de conduta durante o espetáculo, diferente daquele que é pego de surpresa, cuja relação “cerimonial” é construída no momento em que o espetáculo o encontra. A heterogeneidade do público é outro fator comum para os espetáculos de rua. Nas ruas, encontramos pessoas de vários tipos, transeuntes que, muitas vezes, esbarram com um espetáculo e ali extravasam, com alegria ou tristeza, sua relação com o mundo. Essa variedade constante do público é, para nós, um elemento definidor da estética teatral de rua e deve ser incorporada pelos grupos no processo de construção de seus espetáculos. O espaço das ruas era ocupado totalmente pelos atores, formavam-se duas 60

Entrevista realizada por Narciso Telles com Zequinha Miguel. Angra dos Reis, 1999

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filas: uma do lado direito e outra do lado esquerdo da rua, no meio, passava o diretor Zequinha Miguel, coordenando, durante apresentação, o andar do espetáculo, caracterizando uma “direção ao vivo.” Zequinha, como um “capitão” dos folguedos folclóricos, passava de um lado a outro do espaço, reforçando a movimentação dos atores e cantando as músicas. A forma encontrada pela direção do espetáculo, para enfatizar a relação dos personagens com o prédio ou logradouro que estes representavam, foi unificar o momento de aparição dos mesmos. Todos aparecem, como dissemos, após a serração, e, em sua maioria, da frente do local que representam. Nesse espetáculo, percebemos que o Grupo utiliza os espaços do traçado urbano, não há nenhuma construção cenográfica, as cenas ocorrem no próprio patrimônio. “Serra-Serra Serrador” propõe uma ressignificação do traçado urbano. Outra passagem que merece atenção é a cena do personagem Galixo. Na montagem de 1982, esta era a última cena, passando, na montagem seguinte, para penúltima com a inclusão da Casa da Cultura no trajeto do espetáculo. O Velho Galixo, nome dado no século XIX ao atual Rio do Chôro, rio que corta todo o centro da cidade e se encontrava em estado de degradação pelo acúmulo de sujeira e lixo. Esta degradação era justamente a temática da cena. Realizado em frente ao leito do rio, esse momento do espetáculo inicia-se com os atores fazendo a serração do “Velho Galixo”, entoando um cântico de lamento61 pela degradação do rio. Num determinado momento, o personagem vai aparecendo devagar atrás das grades que separam a rua do leito do rio, iniciando o monólogo do “Velho Galixo”, com sua roupa cheia de lixo: latas, garrafas, objetos de higiene pessoal. Durante a fala deste personagem, questões da história do rio e a denúncia do atual estado de degradação são focalizadas. Após, o personagem vai novamente para o outro lado das grades, desaparecendo aos olhos do público. O personagem “Galixo” tem um figurino próprio, construído a partir de referências dos tipos populares. Como esse personagem não representa um bem imóvel (prédios e logradouros), mas, sim, pessoas que viveram na cidade e, pelo seu 61 Segundo a lenda, as escravas lavavam roupas nas margens do rio e eram chicoteadas pelo feitor para que trabalhassem com maior rapidez, e as negras sem reagir, apenas choravam é, por isso, que a cachoeira ficou conhecida pelo nome de rio do chôro.

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comportamento diferenciado, eternizaram-se na memória da população, isto possibilita um estudo mais aprofundado de figurinos e adereços em que cada elemento do personagem tinha um referencial. O personagem do político demagogo, que fala ao final de toda a “serração”, prometendo à plateia resolver o problema daquele prédio, faz o contraponto necessário para a compreensão do público frente ao estado de abandono do patrimônio municipal. A fala deste personagem dá o tom político e crítico ao espetáculo. Mantendo firme a ideia conscientizadora do Revolucena. O interessante é que a aparição do personagem, surgindo de dentro do leito do rio, vai modificando a posição dos espectadores. No decorrer da cena, há uma nova composição da plateia, que necessita achar o melhor espaço para ver a cena. Essa movimentação do público faz com que ele procure - sem perceber - novas possibilidades de se relacionar com o espaço urbano, dando a ele novos significados durante a apresentação do espetáculo. A liberdade do público em escolher seu lugar durante a realização do espetáculo teatral é, para Richard Schechner, um ponto fundamental e diferenciador do teatro ambientalista em relação ao teatro tradicional. O espaço cênico no teatro ambientalista adquire uma importância fundamental para a realização do espetáculo. Longe de ser apenas o local onde o fenômeno teatral se realiza, torna-se, também, um local tomado e modificado pelo público à medida que este se movimenta pelo espaço.

A plenitude do espaço, as formas infinitas que o espaço pode transformar, articular - esta é a base do teatro ambientalista. Também é a fonte de treinamento do ator de teatro ambientalista.(...) Creio que existe telações reais entre o corpo e os espaços através dos quais se move o corpo.(...)O primeiro princípio cênico do teatro ambientalista é criar e usar espaços completos.62

O princípio ambientalista proposto por Schechner auxilia-nos na análise da movimentação do público no espetáculo em questão. Na apresentação, o público caminha por um espaço sem limites pré-estabelecidos, é ele que define seu lugar durante o cortejo e a cada parada constrói seu espaço de forma a encontrar o melhor local 62 SCHECHNER, R. El Teatro Ambientalista. México: Árbol, 1988. p 30 “La plenitud del espacio, las formas infinitas en que el espacio se puede transformar, articular, animar - esa es la base del diseño del teatro ambientalista. También es la fuente del entrenamiento del intérprete del teatro ambientalista. (...) Creo que existen relaciones entre el cuerpo y los espacios a través de los cuales se move el cuerpo(...)El primer principio escênico del teatro ambientalista es crear y usar espacios completos. (tradução do autor)

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para assistir à cena, organizando-se de forma diferente em cada momento. Assim, “Serra...” é um espetáculo que propõe uma investigação múltipla da história da cidade. A procissão, a roda, a cena frontal, a utilização dos prédios, logradouros são as várias maneiras encontradas pelo grupo para mostrar de forma viva um pouco dessa história para seus espectadores. No Revolucena, todo o trabalho de criação dos atores era realizado a partir de inúmeras improvisações. As cenas eram criadas e acrescidas da pesquisa individual dos personagens, já realizadas pelos atores.

No Barão [de Julgueiros], pela pesquisa [descobri que] ele andava meio curvo, andava de pijama. [Nossa pesquisa] era sempre baseada em uma pessoa que existiu realmente na cidade, na história de Angra.63

Nesse espetáculo, os personagens representavam os monumentos e prédios. Assim, cada ator personificava um determinado prédio a partir de uma pesquisa histórica e social do mesmo. “Nós incorporávamos os personagens para dar o recado do espaço que existia.”64 Importa perceber o entendimento que o ator do Revolucena tem em relação ao trabalho de construção dos personagens. Em várias de suas falas, aparece o termo “incorporação do personagem”. Se fizermos um estudo etimológico da palavra, vamos perceber que incorporar significa, segundo o Dicionário Aurélio, dar forma corpórea, juntar num só corpo, nesta perspectiva, podemos acreditar, que para os atores, construir um personagem era entendido como dar vida a outrem, pois a figura do ator desaparecia para o nascimento do personagem. A improvisação era um recurso que viabilizava uma maior aderência do ator ao personagem, o que não pressupunha que, durante o processo de criação, outros elementos fossem incorporados. “A gente mistura o ator, o personagem é alguém que a gente viu na rua.”65 A pesquisa individual do ator pauta-se, num primeiro momento, na observação das pessoas em seu cotidiano como um material que pode ser utilizado no personagem, o que ultrapassa o campo específico da interpretação, e ocupa outros espaços na construção da cena, como o estudo dos figurinos e adereços, que seguiam a mesma ordem. No Grupo em questão, são as improvisações contínuas que marcam a forma 63

Entrevista realizada por Narciso Telles com Marcelo Germano. Angra dos Reis, 1998

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Entrevista realizada por Narciso Telles com Marcelo Germano. Angra dos Reis, 1998

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Entrevista realizada por Narciso Telles com Marcelo Germano. Angra dos Reis, 1998.

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de treinamento dos atores. Ao acreditar que a espontaneidade possa ser um dos elementos fundamentais para o ator, o Revolucena, mesmo sem assumir diretamente, utiliza-se de elementos presentes no método de Stanislavski. Eugênio Kusnet, um dos maiores divulgadores do método Stanislavski no Brasil, ressalta que “num verdadeiro teatro o espírito de improvisação nunca perturba, nem prejudica a harmonia do espetáculo, porque todos os atores são acostumados a improvisar sem nunca perder de vista os objetivos comuns.” (KUSNET, 1987, p.99) Na montagem do Revolucena, os atores vão acrescentando elementos aos seus personagens e, simultaneamente, construindo o texto do espetáculo. É da própria improvisação que os diálogos são criados. Disto, estabelece-se uma organicidade maior entre a interpretação e o texto, pois os dois nascem conjuntamente num mesmo processo. Para os atores-revolucenas, o trabalho do ator passa por uma disponibilidade para a cena, objetivando adquirir uma vivência maior do personagem.

Eu sempre senti que o personagem do teatro de rua é parte do momento da cena, é diferente do palco. Você, naquele momento, está sendo o próprio personagem. O Marcelo que incorporou o Barão, e este que dá as respostas feitas pela rua. (grifo nosso)66

Aqui, também o espaço cênico intervém no trabalho do ator. Por ser um espetáculo itinerante, “Serra-Serra Serrador” apresenta para os atores a necessidade de um personagem bem construído para responder às exigências do espaço. Na rua, a plateia, muitas das vezes, participa do espetáculo, mesmo quando não convidada a isto, o que requer um ator disponível para que se estabeleça um jogo entre ele e os espectadores, de forma que o espetáculo possa prosseguir tranquilamente. No caso de “Serra-Serra”, como as cenas eram realizadas em pontos definidos, os atores tinham a possibilidade de organizar seu espaço de atuação de forma a definir o local da cena e o do público. Havia entre os atores uma afinidade que proporcionou uma fluidez maior nas improvisações e uma troca constante. Assim, a utilização “acidental” de elementos do Método pelo Revolucena foi possível, na medida em que o próprio processo de criação coletiva do Grupo promoveu a construção de toda a encenação por meio de improvisações, intentando no ator a espontaneidade necessária para a realização do fenômeno teatral. E por entender que o treinamento do ator para o 66

Entrevista realizada por Narciso Telles com Marcelo Germano. Angra dos Reis, 1998

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teatro de rua passa, necessariamente, pelo improviso. Como nos narra o ator Carlos Henrique Braz: “Eu tinha dado um caco no ensaio que acabou ficando, era um apelido do Chafariz [da Saudade], que era bibelô de praça pública.”67 Essa disponibilidade de escolha do personagem pelo ator e a liberdade de criação passavam por uma ética, presente entre os próprios membros do Grupo. O ator era livre, mas toda a criação era debatida, antes de ser assumida efetivamente no espetáculo. Para os atores-revolucenas, mais importante do que um aparato técnico para a realização de seu trabalho, era desenvolver seu senso crítico, sua visão de mundo, assim, o trabalho dos atores era definido “dentro do tipo de teatro que o grupo pretende, pois o ator inventa personagens adequados à sua maneira de interpretar.” (FERNANDES & MEICHES, 1988, p.152) A linguagem de teatro de rua do Grupo Revolucena pauta-se pela compreensão que o grupo tem de sua inserção na sociedade e na perspectiva de mudança. Assim, “Serra-Serra Serrador” é um momento final de um trajeto iniciado com “Fingindo de Gente” (1980), em que o Revolucena, por meio de um processo de criação coletiva, buscou desenvolver uma linguagem própria de teatro de rua. #2 Invocação: A Saga no Sertão da Farinha Podre: O Coletivo Teatro da Margem e a cidade revisitada Coletivo Teatro da Margem68 (CTM) é um grupo formado por egressos do Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Nasce da prática acadêmica de um grupo de pesquisa, constituído como um espaço de investigação improvisacional coordenado pelo Prof. Dr. Narciso Telles. Sua fundação dá-se em Araçuaí – MG no ano de 2007. Ao longo desses anos de atividade e com a conclusão de formação universitária de seus membros o CTM passa também a ter uma relação com o sistema teatral de Uberlândia e Região, para além nos muros da Universidade. O percurso de trabalho foi iniciado com o estudo prático dos viewpoints como procedimentos de criação e jogo. Durante três meses com seis horas semanais em sala de aula improvisamos. Juntamente com esta etapa e percebendo que para a formação em teatro e para as questões norteadoras da pesquisa a prática de montagem faz-se 67

Entrevista realizada por Narciso Telles com Carlos Henrique Braz. Rio de Janeiro, 1999

Os atuantes do Coletivo Teatro da Margem de 2007 a 2013 foram: Afonso Mansuetto, Priscila Bello, Adriana Moreira, Marcella Prado, Lucas Dilan, Nádia Yoshi, Samuel Giacomelli, Marina Ferreira, Narciso Telles, Camila Tiago e Jhonatan Rios. Os colaboradores do CTM: Luiz Carlos Leite, Eluhara Resende e Getúlio Góis.

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necessária para a aquisição de conhecimento, buscamos no roteiro de dramaturgia Canoeiros da Alma, de Luiz Carlos Leite a fonte de trabalho para nossa montagem. Segundo Bogart a fonte de trabalho constitui-se de uma série de atividades realizadas no início do processo de criação (BOGART, 1995). O roteiro tinha como temática a vida diária dos moradores do Vale do Jequitinhonha e sua relação com o rio. Decidimos então, fazer uma imersão nas cidades de Araçuaí e Itinga, localizadas na Região do Vale, para a coleta de material. Durante dois dias realizamos uma “antropologia do sensível” visando coletar elementos de diversas ordens: corporais, imagéticos, sonoros, naturais, verbais, sociais, históricos destas localidades que compunham o ambiente do roteiro dramatúrgico. A pesquisa de campo ofereceu aos alunos a perspectiva da compreensão da alteridade, no contato com uma “minas” bem diferente da região do Triângulo Mineiro, pois a criação pressupõe a necessidade de conhecer algo, que não deixa de ser conhecimento de si mesmo e com este material retornarmos a nossa sala de trabalho. Os Viewpoints basicamente trabalham com proposições de improvisação relacionadas a Tempo, Espaço e Composição. Nesse treinamento entramos em contato, paulatinamente, com os elementos constituintes da ação cênica, contudo por sua aplicação a partir do corpo do ator, sua abordagem se aproxima de aspectos da dança, de onde a técnica foi ampliada, como conta Nunes:

Em 1979, Bogart conheceu a coreógrafa Mary Overlie, a inventora do Six Viewpoints, um modo de estruturar o tempo e espaço na improvisação em dança, passando a adotar essa metodologia em sua prática como diretora. Por meio de um trabalho de colaboração, Bogart e Landau expandiram gradualmente para nove Viewpoints Físicos (Relação Espacial, Resposta Sinestésica, Forma, Gesto, Repetição, Arquitetura, Tempo, Duração e Topografia) e três Viewpoints Vocais (Altura, Dinâmica e Timbre) e seus desdobramentos (Andamento, Aceleração/Desaceleração e Silêncio). (NUNES, 2008, p. 109).

O material colhido na pesquisa de campo foi re-trabalhado em sala com o uso dos viewpoints e da composição. Os viewpoints e a composição oferecem uma forma coletiva de abordar as questões que aparecem na fonte de trabalho e nos ensaios. Utilizando-se de elementos como a surpresa, a contradição, o imprevisível e o mistério, os vps desenvolvem a percepção aberta, a possibilidade de usar tudo em sua volta sem excluir previamente, sem julgar o que é certo ou errado no processo de jogo e criação. Os procedimentos de trabalho com base no espaço, na repetição, na criação - 99 -


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de ações físicas por meio de um circuito individual e/ou coletivo proporcionam ao ator, pela via da prática, a aquisição de conhecimento de elementos contidos na arte teatral para que posteriormente passe ao trabalho de composição. Segundo Tina Landau (1996: 26.) “a composição é a prática de selecionar e combinar componentes da linguagem teatral em um trabalho de criação de cenas” 69, um método para revelar nossos pensamentos e sentimentos sobre o material que estamos trabalhando para a criação de cenas curtas (Tradução livre do autor). As composições eram realizadas utilizando os viewpoints e o material que fora colhido na pesquisa de campo. Acolhíamos o acaso e incorporávamos os desvios. Para Rosyane Trotta: ‘O Coletivo Teatro da Margem transporta o espectador a um lugar impreciso entre a ficção e a realidade, mas sempre avesso à abstração: a cada passo colhemos o fruto de um processo criativo plantado em geografias, memórias, cheiros, retalhos de matéria viva. A concepção espacial da obra – e a água que gradativamente se esparrama pela cena – parece ser o fio condutor ou o elemento agregador da descontinuidade dramatúrgica. O grupo transita entre várias abordagens, sem optar por um recorte único de seu objeto: ora reconta um fato, ora constrói imagens metafóricas; às vezes o ator mimetiza o personagem, às vezes atua como o narrador que apenas mostra ou desenha a ação.’

Nosso segundo espetáculo ‘A Saga no Sertão da Farinha Podre’ (2010) mais uma parceria com Luiz Carlos Leite, parte dos documentos sócio-históricos da criação e desenvolvimento do Município de Uberlândia e da questão: como o discurso progressista sobre cidade apaga as diferenças e segregações existentes nelas? Como criar [de]ordem na ordem da cidade. Como perspectiva de percurso destes procedimentos de práticapensamento e na procura de uma escrita da prática que exercitamos no Coletivo Teatro da Margem, trago agora o texto/cartografia produzido por Getúlio Góis sobre o processo de criação do espetáculo de ‘A Saga no Sertão da Farinha Podre’. Diz Góis: Deixe-me situá-lo. Para tecer uma ideia geral do processo criativo do espetáculo “Saga no Sertão da Farinha Podre”, divido o processo em duas fases, onde no primeiro momento os atores trabalharam Composition is the practice of selecting and arranging the separate components of theatrical language into a cohesive work of art for the stage. 69

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede • muitas vezes sozinhos [ elaborando composições] , sem a presença do encenador e no segundo momento, o grupo objetiva mais a montagem do espetáculo. Lucas Dilan retoma o personagem travesti com o figurino. Marcela traz um esboço da mulher que vem apresentar mais adiante: cobrindo-se com um cobertor, come farinha. A boneca “bebê” também está sendo carregada. Ao que parece, estão buscando personagens. O trabalho do dia encontra força na exploração física de dois montes de areia e um de pedra brita. Afonso lê trechos da Bíblia referentes à Babilônia. Voltam ao monte de areia. Buscam Babilônia, a cidade, a metrópole. Enterram-se na areia várias vezes. Buscam experimentar o que discutiram na sala de trabalho: o enterro de Poliníces, irmão de Antígona. Tudo muito caótico e sem a preocupação do sentido. O compromisso é a busca, o experimento, o corpo em outras situações que, em sala, não é possível. Sobem em árvores. Experimentação de deslocamento de um ponto a outro. Nesse período ainda não se sabia ao certo como seria o desenho da movimentação do espetáculo. Porém, sabia-se que os Atores que estariam ensaiando Antígona seriam expulsos da cidade, utilizando o argumento do Texto de Platão – que expulsa dos Atores da República. A busca desse deslocamento, desse despatriamento, e de como seria a figura de Platão inicia-se com mais clareza. Os atores buscam levar consigo objetos, para responder às perguntas do Diretor: O que levo comigo? O que deixo para trás? Open Viewpoints. Aquecem as relações na sala e partem para o espaço externo. Foi previamente combinado que partiríamos da Universidade até uma praça a quatro quadras de distância, experimentando o deslocamento do Bloco, os atores expulsos, abertos aos diferentes estímulos da rua – a escuta sensível proposta por Anne Bogart. Sugiro orientações: “Se orienta também pelo espaço, pela arquitetura, pelos padrões de chão. Busca fortalecer as reações sinestésicas entre o grupo. Não abre tanto para o externo, mas também se deixa penetrar. Tem vento, tem grama, tem sol. Estabelece relação com o espaço.” Sinto dificuldades em interferir. É notório que qualquer fala de quem está de fora afeta os rumos do trabalho. O grupo já manifesta a vontade de lidar com a música em cena. Buscam a Babilônia. Bloqueiam a rua. Param carros. Experimentam bloquear o fluxo do trânsito deitando-se no asfalto. Sobem em numa árvore do canteiro central. Priscilla tira a camiseta, ficando de biquíni. Toma sol e logo se veste, continuam a caminhar. Passa uma viatura da Polícia Militar e para alguns integrantes. Nesse dia o grupo experimenta, ainda que de leve, o que é a força do poder arbitrário da cidade. Um estudo de texto em ação. O desenho de cena que Narciso esquematizou como desenvolvimento do espetáculo, era basicamente em: 1- Chegança (caminhada até o centro do espaço); 2- Cena de Antígona e expulsão dos atores por Platão (centro do espaço); 3- Narrativas de desenterro (dispersão dos atores pelo espaço e fuga). Narciso propõe a escuta do último movimento da “Bachianas Brasileiras Nº 2”, a “Tocata” – mais conhecida como “O Trenzinho do Caipira”, na versão de Egberto Gismonti.

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• TEATRO DE RUA • Lucas já era PLATONA JHONES. Essa figura veio da ideia de que Platão interrompia o ensaio dos atores e os expulsava da República. Agora, surge a dona da cidade banindo os atores da sua cidade ideal. Ela assume o retrato do poder carnavalizado, maquiado, mascarado da cidade. Luiz Carlos Leite, responsável pela escrita da dramaturgia juntamente com Narciso, lembrava sempre de uma frase publicada na revista Veja, sobre a cidade de Uberlândia que dizia algo como: se Uberlândia fosse uma mulher seria fútil, bem vestida, cheia de shoppings. Platona foi então sendo construída como a carnavalização do poder. As referências estendem-se na visualidade da personagem e na atuação de Lucas Dilan. Platona é um CLICHÊ do poder carnavalizado. Na primeira cena, um macacão azul e verde (cores da cidade de Uberlândia), com uma imensa peruca a la Elke Maravilha, botas de plataforma mimetizando cascos de animal e um chicote para controlar as feras do seu pasto. Assim, uma oposição de poderes foi sendo sedimentada: Platona Jhones (dona da cidade do progresso) x O Profeta (condutor da manada dos desenterrados). O coro em Antígona já trazia, desde os primeiros momentos, a busca da imagem da boiada e foi se expandindo até que, em algum momento, os capacetes de operários utilizados no início do processo deram lugar a caveiras de gado, buscadas no meio do pasto desse Sertão. No início do processo da cena de Antígona, os atores traziam a imagem do gado somente na movimentação corporal, utilizando uma máscara de camiseta enrolada na face. A ideia do que era marginal estava ali, mas Narciso propôs a troca dessas camisetas por um tipo de máscara comum nos carnavais da periferia carioca: a MÁSCARA DE CLÓVIS, ou Bate-bola, reforçando assim o jogo teatral da primeira cena, um momento mais de representação e pela ocupação espacial em roda, em proximidade ao teatro de rua tradicional. O fluxo, naquele momento, toma outra ordem. Não como no início, com o foco na pesquisa espacial, nas primeiras descobertas das saídas para o espaço externo. Naquele momento, a busca se evidenciava no discurso, nas estruturas de composição, nas intencionalidades de cada cena. Narciso e Luiz estavam efetivamente presentes. E a orientação dramatúrgica, assim, aponta direções. Chega então a figura de João Relojoeiro, personagem história da cidade de Uberlândia70. Porém, ao se observar o resultado final da cena, torna-se mais ampla, como a figura do Santo Popular, comum a todas as cidades. Foram feitas leituras de pesquisas sobre o caso. João Relojoeiro foi o bode expiatório de um crime em que forjaram provas contra ele, acusando-o de um crime que não cometeu, favorecendo assim uma família que buscava o pagamento de um seguro pelo roubo da própria joalheria. O Coletivo tenta achar o que seria essa cena, por meio de vários Opens, improvisam e também preparam cenas para mostrarem. Nessa cena, o elemento farinha é retomado, permeando assim todo o espetáculo. O elemento sangue, que Lucas havia utilizado em sua cena deixando o rastro de sangue das mortes das travestis, compõe agora a situação de tortura de João. 70

Cf. CORREIA, Iara Toscano. Caso João Relojoeiro: Um Santo no Imaginário Popular. Uberlândia: EDUFU, 2004.

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede • Narciso associa a cena com a música “João do Amor Divino, de Gonzaguinha: É que meu nome é/ João do Amor Divino de Santana e Jesus/ Já carreguei, num guento mais,/ O peso dessa minha cruz”. Ainda restava o esforço individual das cenas de desenterros. No aniversário da cidade de Uberlândia (31/08/2011), os atores exercitaram na Tubal Vilela, praça central da cidade, mais experimentações de composições de desenterros. Priscilla foi a primeira a mostrar sua cena. Na esquina de um bar/café tradicional no centro da cidade, onde homens costumam se reunir, levou um bolo e cantou parabéns para a cidade; depois, veio com uma pá jogando terra pelas ruas até voltar à praça onde se banhou na fonte luminosa da cidade. REAÇÃO SINESTÉSICA. Ao fundo, a Banda Municipal toca o hino da cidade para que a TV possa fazer uma reportagem sobre o aniversário Em outro desenterro, Adriana, com um cartaz, diz: “Quer uma mulatinha, meu bem?”. Esse texto será utilizado na cena “MULHERES SEM ROSTO”, uma compilação dos desenterros das mulheres. Jonathan desenterra uma figura de um mendigo, amarrando uma perna e caminha manco. Samuel traz uma figura profética, referenciada por Arthur Bispo do Rosário, e utiliza um manto, que será redimensionado no espetáculo. Lucas explora a ideia dúbiada travesti Miss Sertão da Farinha Podre, dando voltas pela praça em uma bicicleta ornamentada de balões da cor da bandeira, tocando o hino da cidade –elemento este sugerido por Narciso como parte da composição a ser apresentada. Comemora o aniversário da cidade, distribuindo balões verdes e azuis para as pessoas, criando uma espécie de passarela. Mas o discurso se modifica e ele retoma o texto do assassinato das travestis, tira a roupa, banha-se no sangue e sai caminhando pela praça. Narciso tinha uma imagem para as mulheres: nasceriam do chão. As conexões sempre tiveram fluxo para a reelaboração. A imagem da Teresa, a corda de lençóis usada na fuga dos presos, descoberta também nos primeiros momentos, retorna agora com outro sentido. TEREZINHA MORANGO, MISS BRASIL, visitou Uberlândia em 1957. Platona Jhones retorna à cena, com outro figurino: a bailarina com quepe militar e bigode de Hitler (uma inspiração dos Dzi Croquettes), entra pela praça e organiza o desfile do bom gosto, das mulheres de família da cidade, apresentando a ilustre visitante desenterrada do engano, Terezinha Morango. Curioso que observo, agora, que Platona sempre propõe uma relação de poder também pela emissão da voz: ora no palco com o microfone, ora no espaço da praça com o megafone. Nesse desfile, vem à tona a figura do negro. Grande Otelo tinha sido cogitado para ser desenterrado, porém, o material era tão amplo que sua referência aparece apenas como estímulo. De qualquer forma, a figura do negro estava ali, desenterrada, e proibida de estar junto, de participar do mesmo espaço: “Você não. Você é preta!” diz Platona. A situação evoca mais uma vez a figura do Profeta que desenterra “As mulheres sem rosto”, ao som de “Terezinha de Jesus”, a figura masculina opressora, violenta uma mulher de Quatro Rostos,

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• TEATRO DE RUA • misto das outras três: A Negra, A Macumbeira e A Noiva, ora sofrendo com as dores, ora reforçando o discurso masculino também com violência. As cenas possuem sempre muita polifonia, vários elementos que dialogam entre si de forma heterogênea e múltipla constituindo a obra, direcionadas pelo olhar do encenador e, por isso, muita coisa me escapa. Gostaria de escrever realmente coisas necessárias para esse momento. Estamos em meio a um processo muito interessante. Um processo que delimita mais um degrau de amadurecimento de um coletivo de artistas cênicos. Um novo espetáculo está sendo engendrado.

A experiência do Coletivo Teatro da Margem nas apresentações da Saga no Sertão da Farinha Podre é constituída pela ampliação do acesso ao teatro à população da cidade, tendo em vista que o espetáculo fora apresentado de 2011 a 2014 em diversas praças de bairros da cidade que até aquele momento não haviam recebido quaisquer espetáculos de teatro. Para o Coletivo o espetáculo foi em primeiro lugar uma necessidade artística de revisitar a história da Uberlândia e perceber suas contradições e, ao mesmo tempo, partilhar uma prática de teatro de rua como escolha poética. Criamos um espetáculo que caminhava pela praça e assumia no desenho espacial a lógica da cidade. ************** Em processo, as criações se fazem no âmbito do desenterro, onde os criadores tiram de si e do mundo, aquilo de sepultado e escondido. Em cena, revelam do que estão cheios, suas experiências anteriores, suas referências e buscam encontrar como quem busca algo que se perde e precisa ser lembrado onde se perdeu, a razão de sua própria fala. Falar deste processo, de um outro em desordem que busca suas razões, é tentar compreender as razões sobre a arte e suas questões enquanto criação, com suas desconexões e rasuras. Em processo, cenas já nascem destinadas a serem abortadas pelos criadores. Estas cenas, tortas na sua gênese, cumprem por vezes o papel de lançar pistas daquilo que ainda se guarda. Encontramos nos escritos da diretora Anne Bogart (2009, 98), o diálogo com a imagem dos mortos. Somente quando algo foi decidido que o trabalho pode realmente começar. A determinação e a crueldade, que extinguiram a espontaneidade do momento, exigem que o ator comece um trabalho extraordinário: ressuscitar os mortos. O ator deve agora encontrar uma espontaneidade nova e mais aberta dentro desta forma estabelecida.

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Seguimos a profecia de desenterrar os mortos, os artistas continuam seu caminho, desvelando com eles o futuro enterrado nas terras do ‘Sertão da Farinha Podre’ e na memória cênico-urbana de ‘Serra-Serra Serrador’.

O que entra na roda é pra girar na gira

Nonato Santos71

Motivada pela necessidade da pesquisa requerida pela linguagem específica para o teatro de rua, até então nova para a Companhia, a Escarcéu iniciou um processo de investigação das possibilidades cênicas dos materiais recicláveis e de uso caseiros não apenas por questões de ordem financeira, mas, pela necessidade de agregar teatralidade e plasticidade artesanal aos figurinos e adereços. Investindo na pesquisa de adereço e figurino, a Companhia construiu a partir de materiais como, por exemplo, a urupemba, uma espécie de peneira de fibra vegetal, confeccionadas geralmente em palha e talo de carnaúba, utilizadas para peneirar grãos. A Companhia Escarcéu chegou aos seguintes resultados: A urupemba, utensílio doméstico, ganhou nova função cênica ao ser utilizada como sombrinhas de frevo durante os cortejos que antecediam as apresentações do espetáculo e na cena da procissão, como máscaras na cena de abertura do espetáculo e na cena da dança do Babau da morte e, como balões juninos na cena da festa de São João, além de ter servido para demarcação do espaço do público na roda. O tecido de algodão cru, usualmente utilizado para embrulhar açúcar, serviu de matéria base para confecção do estandarte, que levava o nome da Companhia pelos cortejos. As figuras do Boi, da Burrinha, Babau da Morte e dos mamulengos, foram trabalhados em papel machê e espuma de colchões velhos. Os figurinos foram resultantes da apropriação e da customização das cores e roupas usadas pelas personagens do reisado, do pastoril, dos blocos carnavalescos de Mossoró/RN e das vestimentas e paramentos usados na Umbanda. Buscouse através do figurino uma linguagem que expressasse questões sexistas e sociais Raimundo Nonato Santos da Costa. Mestre em Artes Cênicas pela UFRN, Especialista em Antropologia Cultural e Graduado em História pela UERN, onde é professor. Fundador e diretor do grupo Escarcéu, Mossoró, RN.

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suscitadas pelo texto, afinal, além dos indicativos socioculturais expressados numa primeira leitura visual, “o que uma personagem veste confirma sua fala, esta por sua vez define um estado de espírito” (BEIGUI, 2006: 86). Associando “estado de espírito” ao significado das cores, o verde e amarelo foram às cores do vestido usado pela personagem Rosita Rabo Quente como forma de estabelecer uma correlação entre esta personagem e as cores oficiais da bandeira brasileira, num contraponto com o azul e vermelho do figurino do fraque estilo “Tio San” da personagem Porrote que por meio das cores utilizadas era associado simbolicamente com a bandeira americana. Esta combinação serviu para correlacionar a relação conflituosa existente entre os personagens do espetáculo e a conflitante relação política, cultural e econômica que se estabeleceu entre o Brasil endividado e Estados Unidos credor do terceiro mundo dos anos 80. A cor marrom foi usada por duas personagens, Cabo Fincão e Seu Policarpo como forma de evidenciar primeiramente o gosto que ambos nutriam pelo poder, e também como forma de associá-los ao poder político local, isso porque o marrom era a cor da roupa que o então prefeito da cidade72 costumava usar em suas aparições públicas. O vermelho do figurino da personagem João Redondo trazia uma referência ao “encarnado” do pastoril e também por ser esta a cor da bandeira dos partidos políticos de esquerda, que nos anos 80 e 90 começavam a conquistar a simpatia e adesão da população em geral. Para Lenilda Sousa, atriz do espetáculo, o figurino era um importante elo no feedback público/espetáculo. A relação entre cores e figurinos usados pelas personagens foram sofrendo modificações ao longo da temporada, devido a mudanças conjunturais no plano político local e também pela própria dinâmica de aperfeiçoamento do espetáculo ao longo da temporada. Arantes (1988: 34) afirma que: “tudo nas sociedades humanas é constituído segundo os códigos e as convenções simbólicas”. Concordo com o pensamento do autor por entender que a arte teatral como expoente da cultura converte-se num processo dinâmico que mesmo quando intencionalmente se visa congelar o tradicional para impedir a sua deterioração, as transformações ocorrerão sempre. Dentro deste processo cabe ao artista buscar a si mesmo, vendo-se de outros ângulos, isso significa dizer que ao compor seu personagem, o artista mergulha num processo de autoconhecimento, mesmo quando se coloca como observador dos outros. As figuras de Boi e Burrinha serviram como elementos incentivadores da 72

Doutor Dix-Huit Rosado Maia. Foi Prefeito da cidade de Mossoró/RN entre os anos de 1980 a 1989.

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participação do público. Ao convidar o espectador para entrar na roda e participar de uma cena, os atores utilizavam as figuras, executavam as danças e cantavam toadas de Bumba-meu-boi. O público tinha um papel relativamente ativo na função, participava das danças e em algumas cenas interagia com os atores, como por exemplo, quando eram convidados para “botar boneco” junto com a personagem João Redondo. Esses momentos do espetáculo prestavam-se ainda aos improvisos dos atores/atrizes. A música cantada durante a realização do cortejo foi uma apropriação dos frevos e marchas que eram usados pelo bloco Os Pimpões, agremiação carnavalesca organizada e mantida financeiramente por mais de sessenta anos por Dona Cristina, uma lavadeira que apaixonada pelo carnaval de rua, juntava suas economias durante o ano inteiro para comprar as fantasias dos integrantes do seu bloco entre os anos 60 e 80. Os motivos dessa homenagem da Companhia Escarcéu à Dona Cristina através da incorporação das músicas carnavalescas ao espetáculo são apontados na entrevista que a atriz e diretora teatral Lenilda Sousa concedeu ao programa radiofônico “Ponto por Ponto” da Rádio Rural quando afirma que: “cantar as músicas dos Pimpões nos cortejos era a nossa forma de reconhecer a importância daquele bloco de carnaval e, principalmente, de Dona Cristina, como inspiração e motivação para nosso trabalho na rua”73. No entanto, o efeito pretendido com a música, dança, adereços, figurinos, texto e o trabalho dos atores durante o processo de encenação do espetáculo A Árvore dos Mamulengos era o cômico. Ao ser encenado na rua, a montagem da Escarcéu ganhou agilidade, dinamicidade e alegria, sendo sobretudo popular na medida em que conseguiu agradar as mais variadas plateias e por abordar temas importantes para época de sua realização como, inflação, autoritarismo, machismo e colonialismo de forma alegórica e sem o ranço dos espetáculos politicamente engajados. Para Mendes (2008: 98), “a comicidade é uma arma que dispara em todas as direções, os alvos da simpatia e ojeriza serão também sempre móveis, explorando as expectativas da época, o pacto com as pulsões agressivas e libidinais de cada platéia”. Por meio das entrevistas realizadas com os atores percebe-se que a plateia entendia e participava do espetáculo, cada um a sua maneira, dentro de suas perspectivas e visões de mundo. A finalidade do espetáculo era a de provocar o público para participação na cena. Entre os espectadores havia sempre os que se identificavam com as cenas 73

Entrevista concedida em 27 de março de 2007.

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de conflito. Outros que gostavam de ver a personagem Cabo Fincão sendo ridicularizada pelas artimanhas da Marquesinha e João Redondo, talvez por estas personagens representarem, de certa forma, naquele momento histórico, o autoritarismo do regime militar. Augusto Pinto (2010) considerou que: “o figurino colorido das personagens era uma grande atração pra plateia”. O boi e a burrinha também exerciam papel fundamental para cativar o público, mas, o momento de maior empatia do espetáculo era quando a personagem Rosita Rabo Quente entrava em cena vestida de Carmem Miranda, surrando o Porrote vestido de Tio Sam. Mendes (2008: 6) afirma que “a catarse operada no cômico depende também de uma semiadesão emocional à personagem”. O trivial e o ridículo exposto no texto foram explorados pela encenação visando uma maior adesão por parte da plateia, dada suas possibilidades de teatralidade. Pois, segundo Hugo (1988: 33): O belo tem somente um tipo; o feio tem mil. É que o belo, para falar humanamente, não é senão a forma considerada na sua mais simples relação, na sua mais absoluta simetria, na sua mais íntima harmonia com nossa organização. Portanto, oferece-nos sempre um conjunto, mas restrito como nós. O que chamamos o feio, ao contrário, é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o homem, mas com toda a criação. É por isso que ele nos apresenta, sem cessar, aspectos novos, mas incompletos.

O cômico e o grotesco assumiram importante papel no teatro feito pela Companhia Escarcéu quer seja pela descontração ou reflexão provocada pelo riso, pelo jeito curto e rápido de abordar problemas e soluções cotidianas e por intermédio dos contrates expostos pelo grotesco em relação ao belo. Afinal, o grotesco é, segundo Hugo, (1988: 31), “a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte”. O espetáculo A Árvore dos Mamulengos representou uma transgressão na forma de se fazer teatro na cidade de Mossoró/RN não somente pela ruptura com o espaço fechado dos auditórios, mas, sobretudo, pela busca de uma estética que pudesse diferenciar o seu trabalho teatral daquele que vinha sendo realizado há tempos pelos grupos de teatro da cidade de Mossoró/RN. O resultado do seu trabalho ao ser analisado pelo sociólogo Aécio C. de Sousa (1989: 1), recebeu o seguinte comentário: A companhia Escarcéu inaugura em Mossoró um tipo de espetáculo que, a meu ver, refaz o percurso do teatro: o teatro de rua, aquele que ao invés de esperar o espectador nas salas, muitas vezes inacessíveis à intimidação do espectador popular, vai encontrar-se com ele num espaço neutro, porque é espaço de ninguém, o palco da rua.

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A Companhia Escarcéu, pela sua atuação, contribuiu significativamente para conquista de espaços para se fazer arte e espetáculos na cidade de Mossoró/ RN. Sua forma de administrar cooperativamente o grupo e de gerir seu trabalho cênico influenciou diretamente na criação de outros grupos e conquistou para o teatro de rua o respeito da cidade. Quando se manteve em atividade teatral numa época em que o teatro na cidade de Mossoró/RN estava quase sem nenhuma atividade, quer por falta de espaço adequado para abrigar as produções dos grupos ou pela falta de organização destes coletivos teatrais, ou ainda, pela ausência de políticas culturais, a temporada do espetáculo A Árvore dos Mamulengos trouxe para o teatro local significativas modificações, sobretudo, na relação entre atores e diretores no que se refere ao processo de construção dramatúrgica da cena. Ao adotar como metodologia de trabalho o processo colaborativo e ao estabelecer a ponte entre o estudar teatro e relacioná-lo a prática da encenação, a Companhia Escarcéu contribuiu para despertar nos artistas da cidade uma atitude mais responsável em relação ao fazer teatral. Podemos observar que a partir da experiência vivenciada pela Escarcéu com o espetáculo A Árvore dos Mamulengos o tempo de permanência, em cartaz, dos espetáculos na cidade alterou-se, até mesmo, aqueles que eram realizados em casa fechada, passou de duas apresentações em um único final de semana, para temporadas que duravam em média três meses. Grupos que não faziam teatro de rua começaram a experimentar esta modalidade e os que atuavam em outras linguagens começaram a demonstrar mais cuidado com suas produções, até mesmo para evidenciar que havia várias possibilidades de fazer teatro na cidade, o que, ao nosso ver, representou um avanço para o movimento teatral da cidade. O período de realização da temporada foi de grande produtividade não apenas para Escarcéu, mas para todos os grupos de teatro da cidade de Mossoró/RN e as influências foram mútuas e múltiplas, inclusive pelo embate de ideias acerca da produção teatral e sua função na sociedade local.

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Os atores das ruas: caminhos entre risos e riscos. Osvanilton de Jesus Conceição74 Lá vem a força Lá vem a magia que me incendeia o corpo de alegria Lá vem a santa, maldita euforia que me alucina, me joga e me rodopia Lá vem o canto, o berro de fera Lá vem a voz de qualquer primavera Lá vem a unha rasgando a garganta A fome, a fúria e o sangue que já se levanta De onde vem essa coisa tão minha, que me aquece e me faz carinho? De onde vem essa coisa tão crua, que me acorda e me põe no meio da rua?75 Milton Nascimento e Fernando Brant Este trecho da epígrafe aponta para uma das questões que pode ser observada nos atores inseridos no teatro de rua de todas as épocas e contextos, ou seja, a vontade que nos move e nos direciona para a realização da prática teatral na rua. Sabemos da vontade de estabelecer uma comunicação mais próxima com o público e do objetivo de realizar uma ação sociopolítica direta como um impulso que nos leva à atuação no teatro de rua. Mas, de onde vem esse impulso? “De onde vem essa coisa tão crua” que nos leva a atuar nos espaços da rua? Não tenho respostas exatas ou mesmo pertinentes, mas, defendo que essa “força”, essa “magia” ou essa energia, que “incendeia o corpo de alegria” e nos movimenta na escolha da rua como um local propício ao desempenho do nosso ofício de atores, pode ser observada nos atores de diferentes tempos. Neste sentido, entendo que, esse impulso existirá nos atores mesmo que mudem os contextos, as estéticas, o entendimento do público, os meios de formação e os modos de produção do teatro de rua. A “força” que move os atores para a rua pode ser observada tanto nos ritos Ator, Diretor e Professor de Teatro, Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, Mestre em artes pelo Instituto de Artes da UNICAMP (2011). Atuou na Companhia de Teatro Popular da Bahia (1999-2006). Foi membro fundador da Companhia de Teatro Popular Cirandarte no Estado da Bahia (2000-2002). Atualmente estuda processos criativos e formação de atores para a atuação no teatro de rua e desenvolve pesquisas em Contato Improvisação e de danças populares brasileiras como Coco, Ciranda, Jongo e Cavalo Marinho. E-mail: osvaniltonconceicao@yahoo.com.br

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Letra da Música Raça, composta por Fernando Brant e Milton Nascimento, lançada no Álbum Encontros e Despedidas no ano de 1985. 75

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que, nos primórdios da humanidade deram passagem para as primeiras manifestações teatrais em campos abertos; tanto no teatro catequético desenvolvido pelos jesuítas e apresentado publicamente nos séculos iniciais da formação da identidade teatral brasileira quanto no teatro de rua tradicional, cuja estética potencializa a possibilidade do riso e no teatro de rua com poética de ruptura no qual os atores estão imersos entre provocação e risco; e, por fim, também está presente na atmosfera de festa que é identificada no teatro de rua com estética popular. Por isso, não tentarei traduzir em palavras um impulso que, mesmo sendo deliberadamente corporificado pelos atores e, facilmente, percebido pelo público, possui uma profunda e complexa dimensão. Essa tarefa requer um profundo e criterioso trabalho de investigação que, além de tê-lo como objeto de estudo, precisaria estabelecer um olhar multidisciplinar a partir de suportes teórico-metodológicos recolhidos em áreas do conhecimento como: história, sociologia, etnocenologia, antropologia, filosofia e nas próprias artes da cena. No tocante aos atores do teatro de rua no contexto brasileiro, faço descrições e teço reflexões a partir de um material concreto, ou seja, o que está exposto nos corpos e nos comportamentos dos atores em que, a energia que impulsiona os mesmos, permeia completamente suas ações na apropriação dos espaços da rua. Assim, para acessar os comportamentos dos atores, além de desenvolver as minhas próprias práticas teatrais, também observei espetáculos, participei de oficinas, acionei registros e relatos de diversos coletivos teatrais brasileiros dentre os quais cito: A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz de Porto Alegre, RS; O Grupo Galpão de Belo Horizonte, MG; O Grupo Tá na Rua da Cidade do Rio de Janeiro; O Grupo Imbuaça de Aracaju, SE; O Grupo Quem Tem Boca é Pra Gritar de João Pessoa, PB e O Grupo Buraco d’ Oráculo de São Paulo. Dentre outras coisas, a especificidade de cada um desses grupos passa pela forma como fomentaram a formação dos seus integrantes, como construíram suas estéticas teatrais e como desenvolveram seus modos de produção e encenação. A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz desenvolve, desde 1978, uma linguagem teatral com foco na experiência autoral do ator, a quem chama “atuador”. Dedicado a desenvolver um teatro com forte contestação social, este grupo vem concretizando encenações em locais fechados, a exemplo de sua sede chamada Terreira da Tribo e também, nos espaços abertos como praças e ruas. O Grupo Galpão também atua em diferentes contextos teatrais e, desde 1982, vem construindo uma trajetória teatral com encenações de teatro de rua e - 111 -


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encenações em prédios teatrais. Partindo de textos clássicos, utilizando a linguagem clownesca e revisitando o cancioneiro popular mineiro, com cantos realizados e tocados pelos próprios atores, este grupo se tornou uma das referencias desta modalidade teatral no país. Também tem uma significativa popularidade no contexto nacional, O Grupo Tá na Rua criado em 1980 a partir da junção de artistas advindos de outros coletivos e oficinas teatrais. Nesse grupo, os atores sem personagens criam e atuam a partir da ideia de carnavalização76 do teatro. Com uma metodologia peculiar, este grupo vem mobilizando um pensamento que dilui em três aspectos a rigidez que, comumente, pode ser observada no fazer teatral. Ou seja: no tocante ao texto dramático, difunde uma “dramaturgia sem literatura”; na relação com o espaço, “teatro sem arquitetura”; e, no tocante aos atores, declara, “ator sem papel”. O Grupo Imbuaça foi fundado em 1977, criando encenações que também foram apresentadas em palcos de prédios teatrais, escolheu a rua como seu principal campo de atuação, reflexão e produção teatral. Neste grupo, os atores criam cenas a partir de elementos presentes na cultura popular nordestina e traz para a encenação, a literatura de cordel, a cantoria e as romarias, desenvolvendo assim, um teatro de rua brasileiro com estética popular regional. O Grupo Quem Tem Boca é Pra Gritar nasceu em 1987 a partir de uma oficina de teatro e desde então, vem desenvolvendo uma linguagem teatral que utiliza na base do treinamento de seus atores, os ritmos, as movimentações e a energia encontrada nos dançadores de algumas danças populares regionais como o Maracatu, o Coco e o Cavalo Marinho. Os atores não se ocupam em reproduzir essas danças em cena, utilizam os ritmos, a sonoridade e as movimentações como um modo de construção de um enraizamento para atuar no teatro de rua. O Buraco d’ Oráculo é o mais jovem dentre os grupos aqui listados, foi inaugurado no ano de 1998 já deliberando a rua como o seu espaço de investigação, difusão e prática teatral. Entretanto, esse grupo já soma uma consistente trajetória artística que soma circulação de espetáculos em diferentes regiões do país, promoção de formação de atores e participação de debates aceca do teatro de rua nacional. A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, O Grupo Galpão, O Grupo Tá na 76 Termo utilizado por Amir Haddad, ator e diretor fundador do Grupo Tá Na Rua. Amir incita os atores a dançarem e interagirem a partir de uma grande festa, segundo ele “os atores para serem livres precisam devolver ao teatro o sentido de festa, de partilhamento e de comunhão e, neste teatro em festa, carnavalizado, a vida teatral flui”. Assim declarou em palestra realizada no dia 20 de setembro de 2011 no Centro Cultural do Banco do Brasil de São Paulo.

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Rua e O Grupo Imbuaça, possuem mais de três décadas de existência e experiência com o teatro de rua, e além de serem referências para diferentes artistas e pesquisadores, também têm influenciado o surgimento e a formação de outros coletivos teatrais em diversas regiões do país; O Grupo Quem Tem Boca é Pra Gritar soma quase três décadas de atividades no teatro de rua; O Grupo Buraco d’ Oráculo acumula quase duas décadas de ação sociocultural e atuação teatral junto aos centros e bairros populares do Estado de São Paulo. Estes grupos têm em comum, dada às especificas proporções, a confluência de linguagens artísticas no desenvolvimento de modos de formação de seus atores e nos processos de construção de seus espetáculos. Assim, ao acessar os relatos e registros de alguns processos criativos destes e de outros coletivos teatrais brasileiros, pode-se observar a utilização de diferentes elementos da cultura popular brasileira no processo de formação de seus atores e na construção de suas encenações. Nesse caminho, também cito como exemplo O Teatro União e Olho Vivo, um grupo de teatro que, nascido em 1966, já soma quase cinco décadas de existência, resistência e produção teatral voltada para o publico de bairros populares e periféricos do Estado de São Paulo. Este grupo tem como matriz o teatro comunitário, aquele voltado para a apreciação, reflexão e garantia de acesso das pessoas das comunidades: operários, estudantes donas de casas e etc. Entretanto, este grupo também desenvolve espetáculos de teatro de rua e por isso, igualmente serve como um exemplo de um dos grupos brasileiros que utiliza elementos da cultura popular brasileira no processo de formação de seus atores e na construção de suas encenações. A partir dos exemplos desses grupos, novamente se apresenta a diversidade do teatro de rua no contexto brasileiro. E, isso pode nos levar a refletir o seguinte: se o teatro de rua no contexto brasileiro é bastante diversificado, o que dizer dos atores inseridos nesta modalidade teatral? Aqui no país, os atores têm os mais variados perfis em decorrência das diferentes práticas teatrais que realizam e com relação às estéticas que fomentam. Neste sentido, também não se pode deixar de observar a natureza que cada ator possui, ou seja, as aptidões e habilidades que desenvolvem em meio a um fazer teatral que possibilita o amalgamento de diferentes linguagens artísticas. Considerando a diversidade do teatro de rua no Brasil, descrevo o trabalho dos atores a partir dos referenciais e das demandas que são comuns a todos aqueles que atuam no espaço aberto das ruas e, com trajetórias tecidas entre risos e riscos, continuam propondo e difundindo a prática do teatro de rua no país. São os atores das ruas, veículos vivos que movem a encenação e dão vida aos arcabouços ceno- 113 -


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técnicos, as histórias e personagens às vezes criadas por autores, outras vezes, por eles mesmos inventadas. Na concretização da atividade teatral, tudo passa pelos corpos dos atores que se fundem aos demais elementos da cena para constituir a encenação. Assim, reflexões de diferentes épocas da história da humanidade, atravessam os corpos dos atores e chegam ao público. É através do seu entendimento e do seu trabalho corporal que todas as informações propostas para a cena ganham volume e função até chegar aos sentidos do público que, através dos corpos dos atores, reconhece a finalidade de todos os procedimentos técnicos expostos na encenação. Por estas e outras questões, nota-se que o trabalho dos atores das ruas é bastante árduo e, por trabalhar com a expressividade e a exposição total de seus corpos, todos precisam desenvolver um bom condicionamento físico para atender as demandas próprias dessa modalidade teatral. Assim, quando inseridos no teatro de rua, os atores precisam, primeiramente, entender a dinâmica da rua. Isto é, entender e reconhecer que, por ser desenvolvido fora da tutela de construtos arquitetônicos, o teatro de rua é desenvolvido simultaneamente a diversos acontecimentos comuns às ruas e, igualmente, devem entender que, trata-se de uma atividade teatral vulnerável e, por isso, pode ser interrompida a qualquer momento. O teatro de rua encontra-se sujeito às intempéries e outras condições climáticas que, sem licença e sem pudor, podem favorecer o acontecimento de suas encenações e, da mesma forma, podem impedi-las. Cito os finais de tardes dos ensolarados dias de verão e as noites de lua cheia e céu estrelado como naturais fontes de iluminação e que envolvem as encenações com uma esfera mágica em que é possível apreciar cenas e situações que potencializam a capacidade de reconhecimento e identificação do público com a atividade teatral. E, no sentido contrário ao êxito das encenações do teatro de rua, cito as chuvas e ventanias, que deixam nos atores uma aparente preocupação e conferem ao espetáculo um indesejado aspecto de tensão. Por serem realizadas fora da tutela do prédio teatral, as encenações do teatro de rua estão completamente expostas. E por isso, as intervenções podem ser desde um vento forte, que carrega adereços e desarruma os figurinos por um rápido tempo; uma repentina chuva de verão, que promove a dispersão do público e a interrupção da encenação; as inesperadas interpelações de alguns espectadores frenéticos, de grupos de jovens, de crianças curiosas, de bêbados e de pessoas com desvios mentais em situação de rua, estes dois últimos, sem nenhum pudor se expressam em alto e bom tom, ocasionando efêmeros desvios nas falas e nas movi- 114 -


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mentações dos atores. Tratando-se das intervenções dos comuns ocupantes da rua, saliento que, existem também os cachorros que, geralmente latem, irritados com as virtuosas movimentações dos atores e com o acúmulo de pessoas no local e os fiscais das prefeituras, guardas municipais e policiais que, habitualmente tratam os artistas de rua como se estes fossem meliantes em conflitos com a lei. Estes desconhecem que a prática artística em locais públicos é um direito do cidadão brasileiro e, por isso, descumprem a Constituição Brasileira que, no Inciso IX do Artigo 5º do Capítulo I Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, no Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais, diz “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Em função dessa compreensão equivocada os artistas de rua são frequentemente coagidos em diversas regiões do país. Essa situação de impedimento só não acontece quando o desenvolvimento da arte acontece dentro de algum evento tutelado por alguma instituição ou empresa de grande porte. Pautado nas questões até aqui apresentadas, afirmo que: antes de se aventurar com a atuação no teatro de rua, os atores devem buscar identificar e compreender a dinâmica das ruas e igualmente devem aprender a se beneficiar com as múltiplas relações que se estabelecem neste dinâmico e imprevisível espaço público. A encenação realizada na rua é permeada por falas de diferentes públicos que se sentem livres para expressar suas diversas opiniões acerca do que estão vendo e, por isso, de forma espontânea, dialogam com os acontecimentos teatrais. Existem ainda na rua, as buzinas de carros, os anúncios de vendedores ambulantes e outros sons comumente encontrados nas vias públicas. Não medimos a intensidade das ações e acontecimentos que se desenvolvem nas ruas simultaneamente à atuação dos atores, pois, elas podem passar despercebidas, podem servir de subsidio para uma improvisação, podem desviar a atenção do público por um momento e podem forçar uma interrupção da encenação. Localizando as encenações que são organizadas em roda com o público no mesmo nível que a encenação, pode-se observar que os atores são, constantemente, atravessados pelo tempo que realiza as ações; pela forma que desenvolvem seus discursos; e, pelo público que pode ser predominantemente infantil, ou adulto, ou formado por apreciadores de teatro ou ainda, por profissionais das artes. E, nesta perspectiva é certo pensar que os atores também são atravessados pela dinâmica da rua. Por isso, enquanto olham para frente, seus ouvidos e sentidos devem perma- 115 -


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necer atentos para o que acontece ao seu redor. Os atores devem entender que as suas ações acontecem no tempo presente urgente, pois, não há nenhuma garantia que as ações iniciadas por eles serão terminadas como foram premeditadas. E, isso se deve, como já foi dito, à grande possibilidade das encenações do teatro de rua sofrerem intervenções de diversas ordens. Nessa modalidade teatral, os atores são habitualmente submetidos ao jogo proposto pelo acaso, precisando assim, treinar suas habilidades corporais, seu potencial criativo e sua capacidade de articulação entre risos e riscos.

A invisibilidade como estratégia: entrelaçamentos entre o Teatro Invisível de Augusto Boal e o Teatro do Invisível do ERRO Grupo Pedro Bennaton77 Existem entrelaçamentos entre as ideias de Augusto Boal e seu Teatro Invisível e as estratégias utilizadas nas intervenções urbanas e no teatro de rua do ERRO Grupo78 (denominadas aqui, ironicamente, de Teatro do Invisível, um erro comumente cometido) que possibilitam a análise da qualidade da invisibilidade das ações de rua como procedimento operacional de deslocamento e invasão para a construção de intervenções nas cidades atuais. Em entrevista a Michael Taussig e Richard Schechner, Augusto Boal ressalta que realiza suas práticas não pela importância do acontecimento teatral, mas para preparar as pessoas para alguma ação real que todo o coletivo irá realizar. O teórico da performance, Schechner, complementa que essa é uma tática utilizada há séculos por exércitos, pela noção de jogos de guerra influenciada pelo teatro, mas que Boal delega aos soldados, os espectadores, o pensamento criativo, mas não os procedimentos estratégicos. O objetivo de Boal é mudar a natureza das relações 77 Pedro Bennaton é pesquisador, diretor teatral e dramaturgo do ERRO Grupo desde sua fundação em 2001, é graduado em Artes Cênicas (2003) com a monografia “Rua: Invasão e Confiança” e tem mestrado em Teatro (2009), “Deslocamento e Invasão: estratégias para a construção de situações de intervenção urbana”, ambos pela Universidade do Estado de Santa Catarina.

O ERRO Grupo, fundado no dia 13 de março de 2001 em Florianópolis/SC, pesquisa a união das linguagens artísticas e a intervenção da arte no cotidiano das pessoas e da cidade. Para mais informações sobre o grupo consulte: www.errogrupo.com.br.

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sociais, o tecido da sociedade, enquanto jogos militares usam conhecimento social para sustentar e reforçar sistemas preestabelecidos. Schechner afirma que algumas ideias de Boal se chocam com as de Victor Turner, teórico oriundo da antropologia, ao propor rigidez na participação das pessoas em um ritual, ao individualizar a identidade em detrimento a uma identidade coletiva. (1994:24, 28). Na década de 70, Augusto Boal, que esteve exilado durante a ditadura militar brasileira, começa a difundir o seu Teatro do Oprimido no qual tem como uma das vertentes o Teatro Invisível. A problemática e importância que o Teatro Invisível de Boal representa é a sua ruptura completa com o espaço cênico e a convenção teatral. Segundo Boal, o Teatro Invisível “consiste na representação de uma cena em um ambiente que não seja o teatro, e diante de pessoas que não sejam espectadores”, evidenciando que essa estratégia pressupõe a permeabilidade e a capacidade de intervenção nos espaços e na realidade das pessoas. (1980:218, 219). Os espaços de ação do Teatro Invisível não podem estar carregados de convenção artística, pois tais ambientes poderiam contaminar a invisibilidade da cena. Na Sociedade do Espetáculo, segundo Guy Debord, até os espaços, que são elencados por Boal para o Teatro Invisível, como “um restaurante, uma fila, uma rua, um mercado, um, trem, etc.”, atualmente, possuem uma convenção espetacular pré-estabelecida devido aos inúmeros aparatos do capital para seduzir as pessoas ao consumo, como a publicidade, e para o esvaziamento das relações entre as pessoas que dialogam apenas através das leis de mercado. Portanto, cada vez mais, é necessário que as ações invisíveis estejam preparadas para que, como pretendeu Boal, as pessoas sequer desconfiem “de que se trata de um espetáculo, pois se assim fossem, imediatamente se transformariam em ‘espectadores’”. (1980:218). Com o objetivo de que as ações invisíveis possam “‘explodir’ em um determinado local de grande afluência de pessoas”, de algum modo, os atores do Teatro Invisível devem se preparar para incorporar as interferências que, segundo Boal, “deverão ser previstas na medida do possível, durante os ensaios, e formarão uma espécie de texto optativo.” (1980:219). É quase senso comum que a arte do teatro se dá através da criação de uma convenção cênica, onde o público é colocado diante de uma cena teatral. No Teatro Invisível, Boal nos coloca diante de uma ruptura apresentada pelas vanguardas dadaístas, levada a cabo pela performance-art, extrapolando-a ao utilizar-se do naturalismo para se infiltrar, manipular e apresentar a realidade, inserindo-se sem sinais artísticos, em uma aproximação direta com a vida que remete aos objetivos revolucionários da Internacional Situacionista. - 117 -


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Contudo, diferentemente dos Situacionistas, o Teatro Invisível discute a pouca eficácia política de um teatro ligado a uma convenção e espaços teatrais específicos, e que ao romper com essas formas rígidas provou praticamente que há a possibilidade de agir diretamente na realidade através de uma ação que em primeiro momento se constrói como ficcional. Não é só pela libertação da arte enquanto produto que a rua se torna imprescindível atualmente para ações artísticas, mas é pelo potencial da ação em um território comum a todos que produz a possibilidade de transformação pelas zonas fronteiriças entre ficção e realidade que a rua possui. Nesse caso, o Teatro Invisível é uma estratégia eficaz ao propor que “todas as pessoas próximas devem estar envolvidas pela explosão, e os efeitos desta muitas vezes perduram até depois de muito tempo de terminada a cena”. (1980:219). A ação de um teatro de rua que rompa com as fronteiras da realidade e da ficção é o início para possibilidades de inserção do teatro nas camadas de vigilância e controle que utilizam a invisibilidade para invadirem as nossas vidas, os nossos espaços privados e públicos. O teatro de rua pode gerar um tipo de licença poética em sua ficção para a transformação não ficcional do espaço e das pessoas que o habitam. O Teatro Invisível provoca “a interpenetração da ficção na realidade e a da realidade na ficção: todos os presentes podem intervir a qualquer momento na busca de soluções para os problemas tratados”. Nessa licença reside o potencial transformador do teatro, que pode pertencer aos atores e ao público, que no ato da ação podem se transformar em participantes. (1980:20, 21). Segundo o teórico Fredric Jameson, “um conhecimento do que se costuma chamar de ‘rua’ pode ser útil à sobrevivência nos espaços inimagináveis das decisões corporativas e burocráticas”, mesmo no cenário de pós-modernismo o espaço da rua ainda mantém sua importância e a possibilidade do anonimato. Nos dias atuais, a rua representa o espaço da vida diária, da rotina, “um signo de rompimento do privado e do pessoal, quanto da emergência do consumo e da mercantilização” em contraste com os variados espaços públicos, denominado pelo teórico de “espaço do trabalho”, que está “mais possuído por indivíduos particulares” (1997:158, 159). A partir da relação com o espaço urbano, como afirma Schechner, durante a intervenção, ao “permitir que as pessoas se encontrem nas ruas será sempre flertar com a possibilidade da improvisação – que o inesperado possa acontecer”. As manifestações teatrais carregam consigo a potência de possibilitar a transfor- 118 -


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mação, quando utilizam o inesperado no espaço urbano, expandindo horizontes e rompendo fronteiras espaciais, territoriais e simbólicas. Tais manifestações teatrais urbanas, que possuem a característica de romper relações controladas e vigiadas pelo sistema, evidenciam a possibilidade de se “conseguir o máximo de pessoas possível para superar o medo pela ação” (Radical Street Performance, 1998:197). As estratégias de ação no espaço urbano, como o Teatro Invisível, permitem expandir as incertezas, surpresas, metamorfoses frequentes e transformações deste espaço e elaborar formas de expandir essas explosões instantâneas de caos decorrentes da coragem dos participantes de uma ação ao utilizá-las. Algumas estratégias principais, em termos de questionamento de teatralidade, além da opção de utilizar as roupas cotidianas, são as relações estabelecidas com o transeunte, os espectadores potenciais participantes. Tais estratégias se assemelham em termos operacionais ao Teatro Invisível e pressupõem a utilização do limite entre realidade e ficção nas ações de intervenção urbana para potencializar o nível de transformação da própria ação na cidade. Essas estratégias de ação urbana também são absorvidas em grande escala pelos mecanismos de mercado, como a publicidade com seu marketing viral e invisível, e pelo sistema de controle, como câmeras e policiais nas ruas, portanto, não há impedimento em serem utilizadas pela arte que pretende a transformação social e política. No que tange ao Teatro Invisível, essas estratégias do mercado, talvez, só podem ser combatidas e reveladas através de uma ação teatral que manipule a invisibilidade com a mesma, ou maior eficácia do que o mercado. O Teatro Invisível contribui para uma diversidade de procedimentos estratégicos de ação urbana, através do exercício de crítica e autocrítica em relação direta e instantânea com as sensações e relações que as situações invisíveis construídas provocam para construir a participação das pessoas nos espaços urbanos a realizarem espécies de deslocamentos sob a forma de encontros e propostas de resolução de problemas sociais e políticos que dizem respeito ao coletivo dos cidadãos. No Teatro Invisível, segundo Boal, “atores e espectadores encontram-se no mesmo nível de diálogo e de poder, não existe antagonismo entre a sala e a cena, existe superposição”, portanto, quando as intervenções urbanas são operadas sob a estratégia da invisibilidade, podem construir situações que possuem uma gama de possibilidades para que as condições determinantes dos fluxos urbanos sejam modificadas criando ambientes de transformações sociais e políticas em plena rua e no instante da ação. (1980:21). - 119 -


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Através de alguns procedimentos operacionais oriundos do Teatro Invisível, como a própria invisibilidade dos atores, e o distanciamento das convenções que amarram as linguagens artísticas e seus formalismos, o ERRO Grupo construiu sua poética em diálogo direto com as pessoas e a rua, utilizando a noção de invisibilidade em sua atuação, em seu Teatro do Invisível. O ERRO opta em suas obras, como Enfim um Líder (2007), HASARD (2012) e IRRUPÇÃO: muda depende do tamanho da cova para criar raiz (2015), por tornar invisível, ou ao menos borrar, a noção de que sua ação é um ato artístico para fomentar a possibilidade de interferência e participação das pessoas, fazendo com que os atores desenvolvam um vasto vocabulário para improvisações. Dessa forma, provocase uma espécie de ebulição ao redor da situação proposta pela intervenção urbana, o que eleva as possibilidades de transformação, de abertura para o imprevisível. É a interação, ou melhor, a reação, integrada ao teatro do ERRO Grupo, que gera seu texto cênico que se realiza instantaneamente no diálogo entre o público e os atores. Em todos os projetos do ERRO a fronteira entre realidade e ficção é explorada, seja pela evidência ou pela supressão da teatralidade. O grupo opera com estratégias do Teatro Invisível para fazer um teatro de rua mais amplo na cidade em termos de seu deslocamento, ocupação e invasão para a modificação do ambiente urbano. Nos moldes do Teatro Invisível de Boal, que consiste em transformar as pessoas em agentes transformadores da realidade de modo a deslocar a ideia de espectador para o conceito de participação, ou como denomina Boal “espect-ator”, no ERRO realizam-se ações que interferem nas estruturas de poder da cidade em um cultivo situacional do local específico, que aumenta a expectativa ao redor da ação no espaço urbano. Para Boal, “o espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário o reumanizar, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude” (1980:180). Partindo do pressuposto da Internacional Situacionista de que o imaginário de uns pode-se tornar real para outros, o ERRO busca inserir-se e transformar o espaço urbano e discutir a superficialidade de ideologias vigentes (midiáticas, políticas, religiosas, capitalistas e científicas). As ações do ERRO operam com as estratégias baseadas em matrizes abertas à intervenção do público, e que, de certa forma, depende de como acontece a intervenção do público. Essa situação está baseada na fronteira entre a ação artística e a ação na realidade e remete, conceitualmente, às divergências teóricas entre Boal, Kirby e Schechner, que refletem similarmente sobre o fenômeno do teatro, da per- 120 -


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formance e dos happenings. Os teóricos se assemelham em suas reflexões quanto à porosidade do real à ação artística no espaço urbano, porém, divergem quanto ao seu estado de composição da matriz da ação performática e sua interação com o ambiente e as pessoas. Similar aos modelos de teatro para o desenvolvimento de comunidade e as práticas do Teatro Invisível, porém, com ações mais diretamente influenciadas pelo dadaísmo e surrealismo, em detrimento ao realismo, o ERRO permite abrir seu discurso, sua matriz para as pessoas presentes no espaço e com isso potencializar a sua eficácia política e social. A diferenciação da prática do ERRO com as ideias de Boal, mesmo com a aproximação ao Teatro Invisível, ocorre no próprio uso das estratégias de invasão e de deslocamento que empreendem a noção de que a ação é uma experiência artística para ser vivenciada no mundo afetivo e social do cidadão, mas no seu plano inconsciente, simbólico e de compreensão do uso do espaço urbano e de suas lógicas. Durante as ações a ficção se desenvolve e é revelada aos poucos e a realidade é discutida como se fosse fundida em uma única experiência sem enganos ou debates pré-estabelecidos. Para mapear as problemáticas resultantes da utilização de procedimentos operacionais e estratégicos de deslocamento e invasão utilizados em intervenções urbanas através da invisibilidade é conhecido o conflito vivido por Augusto Boal com o Teatro Invisível por esta vertente de seu Teatro do Oprimido borrar completamente as fronteiras entre a realidade e a ficção, levando os atores e Boal em algumas ações invisíveis a serem obrigados a se desfazerem da invisibilidade para não arriscarem suas vidas (Radical Street Performance, 1998:14). Na intervenção urbana e no teatro de rua, o lúdico e o real podem possuir a mesma importância, e um não pode existir sem o outro, com o intuito de confundir os mecanismos do sistema que operam através de noções tradicionais de práticas de ruptura. Existem muitas discussões atualmente sobre o que é o real, com a força e a energia dos meios eletrônicos, não podemos pensar que a realidade é algo muito bem delineado. Debord nos esclarece que na realidade tudo é espetáculo, e isso pode significar que o real está em uma construção, portanto a ficção pode se tornar, algo metaficcional, e o teatro, metateatro, pois, ficamos cada vez mais sobreviventes no caos e do acaso da espetacularização de nosso cotidiano. Segundo Schechner, o termo historical reenactment poderia se relacionar com o conceito de reembodiment body behavior em performance, em que a ação não é apenas política, não está ligada apenas ao ideal, mas à experiência vivida, - 121 -


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para Boal, por exemplo, é importante que as pessoas participem da ação do Teatro Invisível, e é por essa razão que opera na invisibilidade. Nesse sentido, nas ideias de Schechner e Boal, existe tal semelhança pelos próprios procedimentos estratégicos, como a construção de uma ação de massa através de um drama no qual toda a cidade seria palco e toda a população performers, envolvendo todos na construção da realidade. No Environmental Theater de Schechner existem mecanismos de construção de ambientes e de técnicas de atuação para provocar a participação da plateia que estão relacionadas à criação de deslocamento e invasão como no Teatro do Oprimido de Boal, onde as estratégias do Teatro Invisível estão circunscritas para o desenvolvimento da participação das pessoas na ação. Boal distanciou-se das práticas de Teatro Invisível após o ocorrido no acampamento dos sem-terra, pois, seu grupo de atores se viu na obrigação de pegar em armas e teve que parar a ação invisível. Como um teatro de provocações, o Teatro Invisível opera através de propostas que levantam algum questionamento e participações por parte dos transeuntes que passam e estão no local da ação. A inquietação dos transeuntes que ocorre no Teatro Invisível e em outras práticas de intervenção urbana que operam na invisibilidade também pode ser observada nos jogos sociais que agitam as pessoas a uma participação diferente da passividade imposta pelas convenções artísticas. Através das técnicas do Teatro Invisível, as pessoas podem encontrar-se, conversar, contestar, criar, sugerir, e expressar suas reflexões durante a intervenção e, desse modo, provocar a ruptura com o estado mecanizado de suas relações. Boal explicita que o Teatro Invisível é teatro, pois os atores agem como se estivessem em uma peça tradicional, “representando para espect-atores tradicionais”, contudo, “quando o espetáculo estiver pronto, será representado em um lugar que não é um teatro e para espectadores que não têm conhecimento de que são espectadores”. (2008:11, 12). Este teatro é invisível, pois não se sabe se é teatro ou não, contudo sua presença e sua penetração no cotidiano evidenciam a possibilidade do encontro entre os seres humanos, o que é uma característica essencial do teatro. Se os atores podem representar a realidade, há a possibilidade das pessoas participarem da ação real, assim como da ação ficcional ao entrarem em contato com os outros, com as problemáticas do ambiente social e suas subjetividades com o fim de transformar a cidade e as relações humanas.

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Teatro de rua: imprevistos e improvisação Sandro de Cássio Dutra79 Ao se pensar sobre a história do teatro, é corriqueiro vir à mente a imagem do teatro grego antigo. Se o assunto for sua origem, Téspis pode se apresentar como fundador daquela arte. No entanto, independentemente de datas e nomes, o teatro pode ter surgido no ventre do povo, em suas manifestações religiosas ou profanas, pela vontade e/ou necessidade de imitar ou representar seres e deuses. Seguindo esta ideia, tal atividade nasce assim nos espaços públicos e abertos, até que, na Grécia clássica, será formalizado e encenado em local demarcado e o público, agora acomodado, terá seu lugar de onde se vê, o theatron. Após as tragédias e comédias gregas clássicas conhecer-se-ão as montagens romanas, as da igreja católica, a elizabetana, as clássicas francesas, as do palco italiano, dentre outras. Todavia, o teatro caracterizado pela informalidade e realizado no meio do povo, talvez tenha coexistido, de maneira secundária, com todas as variações cênicas acima apontadas. Exceção à regra, tem-se a Commedia dell’Arte, que foi um movimento que se deu, em boa parte, em espaços abertos e que construiu uma estrutura cênica particular, consolidando personagens e suas respectivas máscaras as quais, até hoje, são referências para muitos teatrólogos. Atualmente, no Brasil, percebe-se o predomínio das peças representadas nos “palcos italianos”, onde a programação divulgada pela mídia indica espetáculos que estão em cartaz em prédios fechados. O teatro de rua e o teatro não convencional, por não terem o mesmo espaço na mídia, estão à margem desse movimento artístico, sendo reconhecidos, na maioria das vezes, nos locais nos quais o contato ator/público é direto. Uma tentativa de mudança deste panorama vem sendo trabalhada, em nível nacional, por grupos de teatro de rua que estão se articulando, debatendo e lutando para garantir a vitalidade e crescimento das artes cênicas em espaços não convencionais. É oportuno destacar a criação da Rede Brasileira de Teatro de Rua (2007) que, segundo seus próprios fundadores, é dinâmica e sem restrições: 79 Sandro de Cássio Dutra formou-se em História na UNESP/Assis e ali também defendeu sua dissertação de mestrado. É doutor em teatro pela UNIRIO, defendendo a tese Linhagens e Noções Fundamentais de Improvisação Teatral no Brasil: leituras em Boal e Burnier. É editor do jornal de teatro de rua, RUARADA, e autor dos livros: O teatro amador em Assis: 1971/1980 (2004) e 1ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas: entrevistas e imagens (2010).

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...é um espaço físico e virtual de organização horizontal, sem hierarquia, democrático e inclusivo. Todos os artistas e grupos pertencentes a ela podem e devem ser seus articuladores para, assim, ampliar e capitalizar, cada vez mais, suas ações e pensamentos. (http://mtrsaopaulo.blogspot.com/2008/04/ rede-brasileira-de-teatro-de-rua.html)

Rede.

O mesmo grupo de artistas também definiu quais seriam os objetivos da A MISSÃO da Rede Brasileira de Teatro de Rua é lutar por políticas públicas de cultura com investimento direto do estado em todas as instâncias: municípios, estados e União; divulgação do teatro popular de rua e de seus fazedores e agregar o maior número de articuladores por todo país. (http://mtrsaopaulo.blogspot.com/2008/04/rede-brasileira-de-teatro-de-rua.html)

A partir disso, representantes de quase todos os estados brasileiros puderam estar interligados pela internet e, desse modo, alimentar o diálogo acerca dos assuntos relacionados ao Teatro de Rua. Hoje, 2015, a situação já é bem diferente, pois, ao se contabilizar as várias mostras de teatro de rua, bem como os Encontros Nacionais já realizados, ao registrar as ocorrências de seminários, debates e as mais variadas publicações, ao conseguir a inclusão do gênero “Teatro de Rua” em editais públicos, deve-se reconhecer que o movimento obteve resultados consideráveis. É importante destacar ainda que a Rede Brasileira, em sua origem, não se preocupou em definir e apontar quais seriam as artes de rua que estaria representando, mas optou por reunir forças em favor da arte não convencional do que fragmentar-se ao tentar definir o que seja “teatro de rua”. Lembrar as palavras do professor Rubens Brito, em sua tese Teatro de rua – princípios, elementos e procedimentos: a contribuição do Grupo de Teatro Mambembe (SP) (2004), a respeito do teatro de rua é especificamente apropriado: o conceito “Teatro de Rua” está relacionado a qualquer montagem teatral que fora intencionalmente criada para ser encenada em espaços exteriores, como ruas e praças. Se tal definição é suficiente para se dar prosseguimento à discussão sobre o teatro de rua, por outro lado, a questão do ambiente físico merece algumas considerações. André Carrera faz a seguinte menção acerca do espaço público: ...no espaço aberto da rua e em comunidade, o sujeito urbano se sente mais capaz de atuar. Esse é um comportamento que facilita que na rua exista uma predisposição para o jogo e a participação espontânea. Participação espontâ-

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede • nea se refere aqui não necessariamente a uma inclusão do público na cena, mas na disponibilidade de se relacionar de múltiplas formas com o espetáculo, aceitando a invasão do espaço coletivo. (CARREIRA, 2001, pp.145/146)

Essa maior liberdade do cidadão em aceitar a invasão do “seu” espaço pela arte, pode criar uma série de relacionamentos com a obra artística, porém, chamamos a atenção para aqueles casos em que o cidadão/espectador se sente no direito de se ver incluído na cena. Essa situação caracteriza a apresentação de rua como um evento vulnerável. Desse modo, quer queira ou não as manifestações nos espaços públicos estão sujeitas à participação do espectador, ou melhor, do “ator urbano” pronto a jogar com aquele que lhe proporciona algo. Agora, pergunta-se: os grupos teatrais de rua aceitam a vulnerabilidade do espaço no qual atuam? Preparam-se para o imprevisto? Trabalham o improviso da mesma forma? Estão preparados para a improvisação? Têm a mesma concepção improvisacional? Tais questões conduzem a respostas que, mais do que caracterizar o tipo de improviso utilizado pelos grupos, revelam as suas expectativas e propostas ao optarem pelo fazer artístico em locais abertos. Ao se propor a pensar nas questões acima, recorremos aos próprios artistas de rua, através de seus depoimentos durante a I Mostra Lino Rojas de Teatro de Rua80, em São Paulo, no ano de 2006, quando foram indagados acerca da improvisação teatral. O ator da Cia. dos Inventivos, Marcos di Ferreira, nos disse que ...o espetáculo surgiu justamente disso, a partir de improvisos e depois disso surgiu uma dramaturgia. É... mas dentro da nossa dramaturgia, que são os textos do espetáculo, tem espaços para improvisos, porque tudo é de acordo com a plateia do dia, de acordo com o público do dia. Então tem que estar preparado sim para improvisar em cima do nosso roteiro...

Marcos di Ferreira se refere ao improviso enquanto uma ferramenta de construção da dramaturgia, ou seja, como uma técnica que o grupo se utiliza para compor um texto próprio. E também ressalta que o improviso é elementar para o artista, pois deverá estar preparado para usá-lo a qualquer momento da apresentação, e sempre com base no texto. O ator Carlos Biaggioli assim relata: 80 A I Mostra Lino Rojas de Teatro de Rua foi realizada na Praça do Patriarca, em São Paulo, no período de 25 a 30 de setembro de 2006, com apresentação de 20 grupos. Neste evento, foram gravadas entrevistas com a maioria dos elencos, as quais se encontram transcritas no livro 1ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas: entrevistas e imagens (2010).

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• TEATRO DE RUA • ...o público da rua quer se comunicar. Se você criou uma comunicação com o “cara” da rua, se você estabeleceu entre o personagem e ele essa onda, o seu espetáculo é criado ali na hora, é escrito a quatro mãos, no momento. E isso demanda o quê? Demanda uma bagagem pessoal de cada artista no poder da improvisação. Porque a improvisação, segundo que o Dario Fo fala, e eu acredito, a improvisação está intrinsecamente ligada com a bagagem pessoal do artista.

Biaggioli dá respaldo à ideia de que a rua é um espaço livre e que tudo pode acontecer e que o artista deve utilizar a liberdade em favor próprio, ou seja, criando o espetáculo no momento de sua realização, juntamente com o público. Também indica que o improviso depende da experiência pessoal de cada ator, conforme ressalta Dario Fo. Bem, os depoimentos acima não são contraditórios, ou melhor, se completam e dão margem a uma inquietação. Um dos entrevistados diz que é necessário se preparar para utilizar o improviso, enquanto o outro indica que o improviso é resultado da bagagem pessoal que o artista acumula. Então, como se preparar para possuir um repertório ou conhecimento que dê conta das mais variadas situações imprevistas nos locais abertos? O nome de Dario Fo foi lembrado por um dos atores – único autor mencionado nas entrevistas – e sua sugestão é a de que, para se improvisar uma história, é necessário a) revelar o argumento que se quer desenvolver; b) identificar o espaço cênico onde irá se desenvolver o fato dramático ou cômico; c) deixar evidente a situação e os motivos. Cabe apontar que, durante os exercícios de improvisação aplicados por Dario Fo, conforme consta do seu livro Manual Mínimo do Ator, este diretor participa da cena ativa e diretamente, interrompendo, sugerindo, explicando e pedindo para retomarem. São comuns interferências tais como: “Dario dá sugestões, colocandose às costas de cada um, dirigindo-se de cá para lá” (p. 297); “DARIO: (soprando ao pé do ouvido) Você deve chamar a polícia”. (p. 297); “DARIO: Não, não, por favor, é preciso desenvolver essa situação, não afundá-la. Uma revelação categórica como esta banaliza... é óbvia. Você deve negar de maneira parcial, para ser crível... você o conhece, mas não tem nenhuma relação com isso...” (p. 298) A proposta de Dario Fo, em relação ao improviso, aponta para uma prática frequente de criação racional das cenas, executadas pelos atores. E mais, observa-se um fato substancial: os exercícios desenvolvidos pelos artistas se deram com um - 126 -


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guia, ou melhor, com uma direção que orientava, instruía e indicava os passos no desbravamento do caminho virgem. Assim, se Dario Fo indica que o improviso terá uma qualidade proporcional à bagagem pessoal do ator, por outro lado, deixa transparecer a necessidade de um diretor ou de um coordenador no momento da construção cênica, alguém que possa e saiba acompanhar os exercícios, lapidando-os de forma que, ao fazê-los e refazê-los, os atores estariam enriquecendo seus repertórios e descobrindo um “método” para a improvisação. Mas será que os grupos de teatro de rua que aprovam a sugestão de Dario Fo ensaiam assiduamente cenas de improviso e, acrescenta-se, são assistidos por pessoas com conhecimentos no assunto? No momento, não se tem informações suficientes nem profundas para uma possível resposta à questão formulada. Porém, considerando-se os comentários colhidos nas entrevistas da I Mostra, os artistas levam a crer que o improviso, no momento da encenação, é pessoal e depende do talento, disponibilidade, capacidade e do repertório do ator, ou seja, resultado puramente de um autodidatismo. Nos depoimentos a seguir, os artistas demonstram conhecer os riscos das exibições culturais nos espaços abertos e afirmam que as interferências dos espectadores não devem ser desprezadas, despercebidas ou bloqueadas pelos atores, pois tais locais são públicos e todos são livres para nele se manifestarem. Acrescenta-se ainda de que é o teatro de rua que invade tal espaço:

Mas a gente tem que ter esse jogo de cintura. Às vezes atrapalha [a interferência do espectador] e mostrar para o público que o cara está atrapalhando mesmo e que a gente está tentando não ser mal-educado com ele, sabe? Que eu acho que... nós estamos na rua, ele fica aqui. A rua é pública, então assim, nós não podemos dizer em momento algum: ‘sai daqui que você está me atrapalhando’. Não. A gente tenta, no meio do espetáculo, falar pra ele: ‘Agora senta!’; ‘agora vem!’; ‘agora senta!’. A gente tenta trabalhar com isso, sem agredir, sem chamar a polícia, sem chamar a segurança, entendeu? Assim, atrapalhar, atrapalha. Desconcentrar, desconcentra. Mas faz parte do teatro de rua. (MARCOS PAVANELLI – Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo/SP)

...quando você vai trabalhar o teatro de rua, que começa a formar a roda, em primeiro lugar você tem que ter uma visão muito afinada em relação à roda, na questão de como você vai se relacionar com ela. Porque tanto ela pode te ajudar, como ela pode te acabar com o espetáculo também (...). É adaptar, às vezes, situações que acontecem no momento. Um bêbado que entrou lá - 127 -


• TEATRO DE RUA • e você têm que brincar com aquilo. Não dá pra você negar: ‘não bêbado, vai embora que eu não quero saber de você!’ Você deve fazer com que ele faça parte também disso. (PAULO – Pombas Urbanas/SP)

Como contraponto, pode-se indicar ocasiões que o espectador de rua é cerceado de sua liberdade de mobilização e manifestação, como se dá em alguns eventos musicais ou de blocos carnavalescos. Quem já não presenciou, em shows de música na rua, o palco, o camarim improvisado e todo o território em derredor do cantor estar cercado de seguranças e estes barrarem qualquer tipo de reação da plateia? Ou ainda, já não viram blocos carnavalescos que atravessavam ruas protegidos por cordas, as quais sinalizavam limites espaciais para diferentes tipos de público? Esta concepção de realização cultural ‘popular’, que evita, ou melhor, que se prepara estrategicamente para não deixar ocorrer imprevistos pode ser questionada, uma vez que o local, costumeiramente livre, torna-se, por algum tempo, privado e restrito. Seja em nome da segurança (do músico), seja pela questão econômica (aquele que pode pagar sua fantasia para entrar no bloco carnavalesco). Os atores de rua conhecem ou sabem da existência da democracia na rua. Além das entrevistas atrás mencionadas, que endossam essa afirmação, outro elemento dá respaldo à abertura na relação espetáculo/espectador: o cenário. Ao retomar a I Mostra de Teatro de Rua verifica-se que, no geral, a utilização do cenário pelos grupos participantes não era algo que buscava impor limites à mobilização da plateia. Não havia palco. Vários dos elencos fizeram uso de tapetes ou de cordas estendidas no chão que indicavam o espaço cênico. Houve grupos que não usaram nenhuma demarcação espacial. Não havia pessoas protegendo os atores nem o local do espetáculo, ou seja, esperavam que os espectadores tivessem bom senso para compreender que naquela praça iria ocorrer um espetáculo. Se fosse do gosto das pessoas, elas se aproximariam do local e aguardariam o início do evento ou, caso contrário, continuariam o trajeto para os seus destinos. No entanto, houve apresentações na I Mostra que sofreram interferências radicais de espectadores. Numa delas, um bêbado invadiu o espaço cênico e passou a exclamar ditados populares. O espetáculo tratava-se de um sarau, coordenado por um casal de artistas. Quanto mais estes falavam com o manifestante, mais gosto ele tomava pela situação e “roubava” a cena. O público se divertia, pois o diálogo era engraçado e envolvente. Com relação à passagem acima, é válido ressaltar o depoimento de Amir - 128 -


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Haddad, do grupo Tá na rua, do Rio de Janeiro, que teve que reformular seu conceito em relação ao público da rua, após conhecê-lo melhor.

Depois que a gente começou a fazer teatro de rua, veio uma avalanche de informações, muito maior do que a gente pensava que fosse ter. Essas informações nos levaram a pensar na qualidade do espetáculo, na natureza do espectador, o que é saber, o que é ignorância. Porque a gente achava que uma plateia de burgueses, de classe média, era melhor informada que o público de rua e de repente o público de rua dava respostas como quem tinha assistido teatro há milênios. (Teatro de Rua, 1999, p. 147)

Outra interferência do espectador, durante a I Mostra, foi de um rapaz, aparentemente com limitações mentais que, ao presenciar o momento em que os palhaços disputavam a bailarina, entrou em cena para ajudar um deles. Os atores tentaram dar continuidade, mas o rapaz insistia, agarrando o palhaço. A cena foi paralisada até o palhaço convencer o rapaz a sentar-se. Em ambas as participações imprevistas do público, acima descritas, não houve a colaboração de terceiros para a retirada dos “invasores” nem segurança ou contrarregras que também tivessem simulado alguma ajuda. A solução do impasse ficou exclusivamente nas mãos dos artistas. Vale lembrar que nos dois casos o espetáculo foi suspenso por um período razoavelmente longo. Pode-se perceber que não só os atores reconheceram a liberdade de manifestação do público, como já assinalado, como também o restante do elenco (músicos, técnicos, contrarregras) e, ainda, o próprio público. Se o artista se sujeita a realizar uma encenação na rua, ele deve estar preparado para qualquer imprevisto, pois a plateia não se sente obrigada a socorrê-lo. Aliás, ao contrário, quase sempre ela se diverte quando um espectador invade uma encenação. Uma questão pode ser aqui instigada: um grupo de teatro ao chegar na rua ou numa praça, é comum desejarem que os passantes assistam a sua montagem teatral. Se considerarmos as intervenções dos espectadores, principalmente aquelas nas quais os atores não conseguem se livrar do “invasor”, como o grupo deveria agir? Insistir até que a cena possa ser retomada ou procurar integrar o espectador na apresentação construindo, assim, um texto improvisado e criando um novo quadro cênico dentro da totalidade do espetáculo? Para que a segunda opção fosse acatada pelos grupos teatrais, isto é, a de incluírem o espectador na cena, seria necessário haver um treinamento dos atores e uma flexibilidade no texto e no contexto da montagem, a ponto de manter a - 129 -


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encenação viva. Porém, esta não é a decisão mais frequente dos grupos, uma vez que há, no mínimo, um roteiro a ser seguido. Assim, o improviso parece ser mais utilizado enquanto “instrumento”, servindo para elaborar personagens ou textos e, em menor escala, para resolver “problemas” ou interferências imprevistas durante o espetáculo. Alguns atores de rua, quanto indagados acerca de suas referências cênicas, mencionam os ambulantes que divulgam seus produtos em praças públicas de forma espetacular, contando causos e dialogando com os espectadores, principalmente aqueles vendedores de pomada “milagrosa”, que tudo cura. Tais pessoas construíram seus repertórios no dia-a-dia, no fazer e refazer constante, na labuta diária, na necessidade e urgência de ganhar algum dinheiro com o produto. Os artistas parecem, assim, acreditar nessa força do convencimento e da retórica que se dá com a experiência e a prática cotidiana. Nesse sentido, a rápida ligação com a Commedia dell’Arte se faz presente, quando acreditamos que os cômicos daquela época desenvolviam um constante aprendizado durante as próprias apresentações cênicas, ou seja, na prática, sem que tivessem um método pré-ensaiado, que lhes garantisse improvisar no momento da encenação. No entanto, essa ideia estaria equivocada. Acreditamos que os vendedores ambulantes devem se preparar antes de “entrar em cena” e, temos certeza, de que os atores da dell’Arte se preparavam intensamente para seus espetáculos. Sem dúvida havia ensaios focando a expressão corporal, o roteiro do texto, o jogo de cenas e a improvisação. Há que se ressaltar que a formação da maioria dos atores de rua, de São Paulo especificamente, foi fundamentada na interpretação realizada na caixa preta, a qual, geralmente, inibe, ou mesmo exclui a relação ator e espectador. Outro ponto ainda a se destacar é a dramaturgia fechada com que alguns grupos trabalham, não dando margem para interferências com o público. Segundo depoimentos, vários artistas de teatro de rua declararam que se encontram em processo de pesquisa cênica. Nesta busca de conhecimentos e descobertas talvez pudessem se aproximar de um artista que, em muitos locais, já está integrado com o movimento de teatro de rua, que é o palhaço de rua. A construção desta figura, que é diversa da do ator, pode fornecer uma vasta gama de informações e experiências quanto à maneira de se instalar na rua, de utilizar os acontecimentos e as reações do público no espetáculo, de sempre estar pronto para a improvisação – tendo, inclusive, um repertório de improvisos –, do olhar no olho do espectador, - 130 -


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do recurso cômico, etc. Palhaços saíram debaixo da lona, deixaram o circo e foram realizar seus espetáculos na rua, não encontrando, talvez, grandes dificuldades neste novo espaço, uma vez que o foco principal continuava sendo o contato direto com o espectador. Situação oposta ao dos grupos de teatro de rua que, ao saírem debaixo de suas “lonas” tiveram que rearranjar suas montagens cênicas e adequá-las no recente local diferenciado e incógnito. A antiga caixa preta, limitada espacialmente e que reproduzia uma determinada arquitetura por meio do cenário, é substituída pela esfera, a qual é ilimitada e contém tudo o que está entre o céu e a terra. O teatro de rua tem que considerar e dialogar com tudo isso agora. O artista que não compreende a divergência do quadrado do palco italiano com a esfera dos espaços abertos poderá ter dificuldades em encenar. Na opção de escolher a rua, de realizar uma arte popular e/ou de resistência, de levar o teatro para o cidadão que não tem acesso aos teatros fechados, de democratização da cultura, os grupos podem cometer equívocos se não estiverem preparados para dialogar com o mundo e responder aos imprevistos do espaço. André Carreira salienta: Para permanecer neste espaço que é a rua é necessário uma atitude e a técnica, as duas coisas têm que existir. É também uma atitude política, é uma decisão. Fazer teatro de rua pra mim é uma forma de diálogo plurivalente com a vida e isso eu não faço no palco. (Revista Núcleo Pavanelli, 2008, p. 12)

Daí que as formas como os grupos de rua incorporam o improviso pode corresponder aos seguintes pontos: a maneira como concebem o teatro de rua; o que esperam de suas apresentações e o que significa fazer este tipo de teatro. O estudo do improviso ainda poderá resultar na própria caracterização do teatro de rua, uma vez que está presente na encenação, como também na dramaturgia, no espaço físico, na plateia. Enfim, o improviso é um elemento inerente ao teatro e, tratandose de teatro de rua, sua manifestação não pode ser ignorada, ou melhor, ele poderá até revelar peculiaridades gerais do teatro de rua.

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A porta da rua é a serventia da escola: intervenções teatrais de rua na academia Toni Edson81 A proposta de uma escola cidadã parte da ideia de uma escola articulada a um projeto de criação de uma sociedade justa e democrática. Uma proposta dessa natureza pressupõe, antes de tudo, a compreensão do caráter contraditório da instituição escolar, que, ao mesmo tempo, estabelece e legitima formas de conduta, tipos de conhecimento e valores sociais, bem como oferece o espaço para a mudança. É no espaço de mudança que a pedagogia crítica se articula, transformando a realidade escolar. (FLORENTINO, 2009 161) O Teatro de Rua tem seu caráter transgressor por natureza, diante do teatro feito em lugares fechados. O teatro feito em edifícios alcança lugar de hegemonia. A inserção de conteúdos pensados para espaços abertos na grade curricular dos cursos de Licenciatura ou Bacharelado em Teatro propõe uma mudança no “urdimento” dessas estruturas. Essa mudança corrobora com a proposta de uma pedagogia crítica que reverbera por conta das ideias libertárias de Paulo Freire. Adilson Florentino, argumentando sobre a emergência de uma postura “crítico-emancipatória” para o ensino de teatro, nos diz que “A educação para a cidadania diz respeito a uma proposta educacional inserida em um projeto de mudança, voltado para a organização e radicalização dos movimentos populares contra qualquer tipo de subordinação, exploração e exclusão social” (FLORENTINO, 2009, 162). O teatro praticado nas ruas é uma forma de “radicalização dos movimentos populares” e, cada vez que levamos nossos estudantes a encarar o espaço urbano como fonte de dramaturgia e “berço” para cena, investimos no exercício de uma cidadania comprometida com a inclusão. Augusto Boal critica a postura fechada com a qual muitas vezes a universidade se comporta: 81 Toni Edson é um contador de histórias, negro e sergipano, Licenciado em Artes Cênicas pela UDESC (2002), Mestre em Literatura pela UFSC (2005) e doutorando do PPGAC da UFBA. Trabalha com Teatro de Rua desde 2003, atuando, dirigindo, e compondo canções em diversos grupos. Atualmente é professor da disciplina de Teatro de Rua da ETA/UFAL.

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• Discursos, Pensamentos e Memórias em Rede • A universidade às vezes tem a tendência de se transformar num claustro. Um lugar aonde as pessoas vão, ficando lá fechadas, estudando o mundo, mas como ela não participasse deste mundo – isolada da comunidade. (...) O pensamento não pode ser feito no claustro; ele tem que estar sempre na referência da realidade. A universidade empurra para o claustro porque guarda aqueles rituais da universidade. (BOAL, 2009, 174,175)

Nesse sentido, o ensino de Teatro de Rua na universidade precisa buscar outros rituais, outras fontes de saber, praticar e pensar, para poder dar conta da diversidade praticada no Brasil. A proposta de Teatro do Oprimido de Augusto Boal, apesar de não possuir uma metodologia voltada para a rua, entra em diálogo direto com os espaços em que acontece. Dessa forma, já provoca uma mudança significativa. Romper o claustro e ir ao encontro da população, é o que se faz com as atividades de extensão, mas pode ser exercitado em disciplinas da grade obrigatória. O Teatro de Rua é necessário na Academia. Concentração e escuta (de si, do grupo e do espaço) além de instigar a potência do trabalho com improvisação - quando esta se dispõe a interagir com o espaço - são importantes para a atriz/ ator e, também, para o professor de teatro. Nossos estudantes precisam enfrentar processos de investigação que possam transformar suas realidades e a da plateia. Para Larossa, com “a palavra investigação, refiro-me a todas aquelas práticas e todos aqueles discursos a que se propõem o conhecimento e a transformação da realidade educativa, em qualquer um de seus âmbitos ou de suas dimensões” (LAROSSA, 2008, 186). Há muito que se investigar na modalidade teatral que utiliza a rua com espaço cênico. Há muito o que se transformar. E as universidades, por conta dos “rituais” que citou Boal, tem receio quanto à transformação dessa realidade educativa. Em 2013, fui convidado para um debate sobre Teatro de Rua na Academia, na 4ª Temporada do Chapéu, organizada pelo grupo Imaginário Maracangalha de Campo Grande/MS. Dividi a mesa com os professores Licko Turle (RJ) e Roberta Ninin (MS), e sob mediação da professora Carin Louro (MS). Falamos sobre nossas experiências com Teatro de Rua na universidade, as possibilidades e como ainda é recente a prática de Teatro de Rua nos cursos de teatro do Brasil. Foram explanações com muitas dúvidas e poucas certezas. Esse fato foi destacado por Amir Haddad, que estava na plateia, depois que fizemos uma breve explanação e respondemos algumas questões do público. Amir disse: “ainda bem que a Academia tem dúvidas, mas nós, fazedores, precisamos continuar com a certeza do que fazemos”. Tentei responder ao grande mestre lembrando que ali, naquela mesa, mais do que - 133 -


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professores ou pesquisadores, havia ali, “fazedores” de Teatro de Rua. E essa postura de professor-artista, ou artista-docente, é algo que defendo e percebo como outra possibilidade de potencialização da mudança educacional. O professor Narciso Telles, citando Isabel Marques, vê o ...artista-docente como uma prática educacional de integração entre dois universos, muitas vezes postos como distintos. Ambos devem ser integrados na praxis de construção de um trabalho artístico-educativo, que, “não abandonando suas possibilidades de criar, interpretar, dirigir, tem também como função e busca explícita a educação em seu sentido amplo” [Marques, 2001, p.112] (TELLES, 2009, 130)

Essa educação, em sentido amplo, é melhor desenvolvida quando podemos ter uma diversidade maior de disciplinas na grade curricular. E a prática de artistadocente fortalece a universidade, nos pilares de ensino, pesquisa e extensão. A atividade como artista e como professor, no caso de Teatro de Rua, além de unir dois universos, extrapola as expectativas e se estabelece em comunicação com as pessoas que não frequentam a universidade. Essa prática é uma maneira de transgressão que precisamos assumir. Segundo Florentino: No contexto do ensino do teatro, a transgressão de tudo que temos como estabelecido é uma via a ser assumida; de certa forma, é preciso planejar a interação e romper com os modelos tradicionalmente postulados para a ação, a fim de estabelecer uma relação seguindo os parâmetros concretamente postos por cada novo grupo. Aqui não se trata de seguir passivamente os modelos acadêmicos proclamados como “corretos” por qualquer fórmula disciplinar. (FLORENTINO, 2009, 162).

Em vez de seguir os “modelos acadêmicos” que dizem pouco sobre a nossa diversidade cultural, os artistas de rua continuam transgredindo. E nesse caso, “transgredir” pode ser buscar um retorno às lembranças sobre manifestações populares, como foi o meu caso. Eu, em Florianópolis, tinha muitas lembranças do teatro que era feito no nordeste, em Sergipe. Como sergipano, vi e ouvi fatos e espetáculos do grupo Imbuaça, mas só ao ingressar no curso de Artes Cênicas em SC, tive noção da importância do grupo para o Teatro de Rua no Brasil. Numa aula de dramaturgia, a professora Eliane Lisboa, falando sobre dramaturgia e espaço, destaca o grupo Imbuaça como um bom exemplo de dramaturgia popular e afirma que o grupo é um dos mais respeitados dentro - 134 -


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dessa modalidade no Brasil. Eu o vi ainda muito novo, e já gostava muito da estética, do jogo, da dramaturgia, mas não possuía a dimensão da influência desse grupo e de como sua trajetória era conhecida no país. Quando comentei que era de Aracaju, a professora pediu que quando eu fosse à minha terra natal tentasse visitar o grupo, conversar com eles e se possível, levar programas e folders para o semestre seguinte. Fui a Aracaju depois de alguns meses, visitei o Imbuaça e fui muito bem recebido, conheci a sede, conversamos sobre teatro, principalmente sobre o que faziam nas ruas e a vontade de estudar e praticar essa modalidade teatral cresceu ainda mais. Durante minha graduação tive algumas experiências em espaços abertos, principalmente num projeto de extensão em que atuei como voluntário chamado AFRICATARINA. No projeto, as crianças tinham aula de percussão, dança afro, capoeira e teatro e realizávamos espetáculos na rua com cerca de sessenta pessoas. Passei a investigar mais seriamente o Teatro de Rua assim que concluí minha Licenciatura. Convidado por um grupo de disciplina na graduação, ministrada pelo professor Dr. André Carreira, realizamos a montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, na rua. Apesar de não haver uma disciplina específica Teatro de Rua, o professor e pesquisador André Carreira solicitou que os estudantes da disciplina Encenação I (direção) realizassem a montagem de esquetes ou peças em espaços abertos. Eu havia acabado de me formar e fui convidado por algumas amigas para atuar na montagem da disciplina. Nessa ocasião, eu fazia cinco personagens: O primeiro cliente, o intelectual Pinote, o Americano, um narrador que criamos e Totó-fruta-doconde. Essa oportunidade me propiciou uma agilidade e uma percepção de espaço ímpar. Ou eu estava em cena com um corpo e voz diferenciada (em relação às outras personagens) ou estava trocando o figurino - todas as trocas ocorriam na rua. Posso dizer que fazer esse espetáculo dessa maneira foi um verdadeiro batismo e me trouxe uma paixão por encenações em espaços abertos. Concluída a disciplina, ficamos com o trabalho por mais um ano e meio, entre 2003 e 2005. Durante a execução do texto de Oswald, ingressei no mestrado e comecei a ministrar aulas na UDESC. O ano era 2004, e dirigi um projeto de contação de histórias chamado História ao pé da Rua, em que atrizes contavam na rua, contos feministas e/ou escritos por mulheres. Em seguida, praticamente com o mesmo grupo, montamos um texto meu escrito para a rua, Mulher de Corpo em Cheiro, noutra disciplina de Encenação, ministrada pelo professor Dr. José Ronaldo Faleiro. Essa disciplina não indicava que - 135 -


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estudantes/diretores deveriam realizar as encenações na rua, mas não limitava o resultado a espaços fechados. O texto Mulher de Corpo em Cheiro foi escrito a partir de uma imagem: um peido de uma personagem em plena rua, com direito a muito barulho e fumaça, um artifício usado no teatro popular do nordeste que não saía de minha cabeça. Todas as personagens foram inspiradas na Commedia dell’Arte. Num curso sobre com a professora Drª Neide Veneziano, comentei sobre o texto que queria escrever e ela lembrou um fator importante entre patrões e empregados, os subalternos normalmente não sabem ler. Esse fato alterou a trama e a tornou mais complexa. O texto conta a história de um patrão, inspirado na personagem do “Doutor”, o Teotônio; um empregado inspirado no “Arlequim”, o Quino; um marido inspirado no “Capitão”, o matador de aluguel Cabra-doido e uma esposa baseada na serva “Ragonda”. Toda a ação e os quiprocós ocorrem por conta de mal entendidos relacionados a bilhetes e cartas. Nessa montagem fiz a personagem Cabra-doido, sobre pernas de pau. Depois de terminada a disciplina, apresentamos, entre 2005 e 2007. Entre 2006 e 2007, nas disciplinas de Encenação I e Encenação II, ministradas pela professora Drª Maria Brígida de Miranda, estive envolvido em outras duas montagens de rua. Essas disciplinas também não exigiam que o resultado final acontecesse na rua, mas também não excluíam a possibilidade. Com alguns acadêmicos da turma de graduação, montamos ainda outro texto meu, Drama Turgot, na rua. Nesse texto um dramaturgo visitava suas vidas passadas a fim de restabelecer a glória que teve em muitas gerações. Todo esse espetáculo foi feito em pernasde-pau. Concomitantemente, eu escrevia uma adaptação de Roda Viva, de Chico Buarque, para um aluno da mesma turma. Infelizmente, a adaptação de Roda Viva durou pouco mais de um semestre, porque sendo uma adaptação, incorremos em problemas com direitos autorais, não liberados por Chico Buarque de Holanda. Ficamos quase dois anos apresentando o Drama Turgot. Tanto o espetáculo Mulher de corpo em Cheiro quanto o Drama Turgot, encerradas as obrigações das disciplinas e com cerca de um ano se apresentando, fizeram apresentações na Mostra de Teatro de Rua do Festival de Curitiba em 2007. O primeiro espetáculo ainda participou da Mostra de Teatro de Rua do Festival Nacional Isnard Azevedo em 2007. Como professor substituto da UDESC, em 2007, fui convocado para ministrar as disciplinas de Montagem Teatral I e II, para as 7ª e 8º fases do curso (currículo antigo, hoje essas disciplinas estão nas 5ª e 6ª fases). Eram duas disciplinas de 180h cada, e a proposta era montar um espetáculo em uma delas e circular durante - 136 -


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o período letivo seguinte. Resolvo propor para a turma a montagem de À Direita de Deus Pai – uma Mogiganga Brasileira, adaptação do texto de Buenaventura, para a rua. Em 2006, eu havia dirigido uma leitura dramática do texto de Enrique Buenaventura, junto à Traço Cia de Teatro, com alguns ex-alunos e outros parceiros de cena na rua. A mesma turma de 7ª e 8ª fases pôde escolher se faria uma montagem de Teatro de Rua comigo ou uma montagem para espaço fechado com a professora Maria Brígida. Para essa montagem, recorri aos estudos de Augusto Boal sobre teatro popular, e aliei à pesquisa sobre Teatro de Rua, os dos professores André Carreira e Narciso Telles. Fiz questão de que os acadêmicos se sentissem responsáveis pela montagem, todos atuavam, mas ainda assim estavam em grupos de trabalho para a concepção de elementos da cena. Dialogando com o método de criação coletiva, cada membro da equipe ficou responsável por um aspecto do fazer teatral como: cenário, figurino, objetos de cena, adereços, máscaras, sonoplastia, musicalização e produção, além da interpretação. No final de 2007 fizemos ensaios abertos junto ao público, e em 2008/1 foram realizadas as apresentações “oficiais”. No segundo semestre de 2008, fui convocado para ministrar outras disciplinas de Montagem para as 7ª e 8ª fases do curso. Dessa vez, a turma podia escolher se queria fazer uma montagem na rua comigo, ou se gostariam de realizar o processo em espaço fechado com o professor André Carreira. Dessa vez propus para os acadêmicos, dois textos, para uma montagem na rua, Vem buscar-me que ainda sou teu, de Carlos Alberto Sofredini e a Farsa do Panelada, de José Mapurunga. Foi escolhido o segundo texto. Os procedimentos foram semelhantes aos das disciplinas anteriores, um semestre para montar e outro para circular, baseado em referenciais muito próximos. Uma das diferenças foi que pude utilizar na bibliografia e nos seminários, textos recentes de grupos que trabalham com Teatro de Rua, como o Tá Na Rua, Ói Nóis Aqui Travêiz, Buraco d’ Oráculo, Teatro União e Olho Vivo e Imbuaça. O objetivo era levar às ruas um espetáculo de autor brasileiro premiado, que tratasse de temas atuais, como as relações com a fé e a sonegação de impostos. Desenvolver os acadêmicos através da máscara e da criação coletiva, em que os integrantes do grupo adquirissem noções da construção do espetáculo teatral em todas as suas dimensões (interpretação, cenografia, sonoplastia, assistência de direção e dramaturgia) como forma de entretenimento e reflexão, eram as premissas. Nas duas montagens, as máscaras foram confeccionadas depois que os acadêmicos - 137 -


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construíram um “mapa” do corpo da personagem que fariam. Teatro de rua é jogo. É através dessa modalidade teatral que assumimos o confronto direto de atrizes e atores com as influências do espaço e do público. Esse confronto requer maestria nas atitudes e domínio de suas personagens. A Academia precisa transpor seus muros. Por esse motivo procuramos apresentar a segunda montagem, a Farsa do Panelada, muito mais fora da universidade do que protegidos pelo campus. Houve uma época em que as discussões de grupos de Teatro de Rua se tornaram frequentes. Em 2007 recebemos a visita de articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), e começamos uma discussão mais frequente sobre essa modalidade. Juntamente com membros do ERRO Grupo, do Grupo Teatro em Trâmite e a Trupe Popular Parrua, principalmente, fundamos o M.A.R., Movimento de Artistas de Rua de Florianópolis. Em 2008 surge na cidade um novo curso de teatro na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Motivado pela movimentação que fazíamos (acredito eu), oferecia uma disciplina curricular no curso de Bacharelado em Teatro chamada Carnavalização e Teatro de Rua. Em 2009 e 2010, fui professor substituto da UFSC e ministrei essa disciplina, em sua primeira edição com a professora Janína Trassel Martins e num segundo momento, sozinho. Depois que voltei ao nordeste para ingressar no doutorado, a disciplina foi ministrada mais duas vezes (uma por ano). Infelizmente, mais tarde foi retirada do currículo do curso. Em 2009/1, ministrei aulas na UFSC e na UDESC como professor substituto. O processo seletivo na UFSC foi para a disciplina Carnavalização e Teatro de Rua. Havia nessa disciplina, ministrada em parceria com a professora Janaína Martins, uma vontade dos acadêmicos de escrever o texto, mas era uma disciplina de apenas 72h. Fizemos os exercícios práticos, chegamos a fixar um roteiro em que os estudantes completariam com diálogos e sequências de ações. Em função de muitos contratempos (greves de ônibus, calendário acadêmico apertado), não conseguimos finalizar a disciplina com um resultado cênico pronto para ser apresentado, mas conquistamos algo importante: boa parte das aulas foram ministradas em espaços abertos. Essa foi uma conquista que procurei manter em 2010/1, em que ministrei novamente a disciplina na UFSC e me deparei com uma turma em que ninguém havia nascido em Florianópolis. Resolvemos trabalhar com figuras de migrantes e marcamos “intervenções” desde o primeiro mês. As primeiras “saídas” aconte- 138 -


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ceram dentro do campus, a maioria do período letivo foi ministrado em espaço aberto. Conseguimos finalizar o semestre com apresentações da invasão Migrante Carcará. Segundo o professor André Carreira, discorrendo sobre a invasão:

A cidade invadida não é cenário. Ela não contém a cena. Ela modula a técnica e condiciona a percepção do público, (...) a silhueta urbana é propriedade do público e porta um plano de significação prévio à intervenção teatral. Este plano será sempre uma força forte que é a que justamente interfere na própria performance do ator. (CARREIRA, 2005, 30).

Nesse trabalho, procuro juntar algumas possibilidades para apresentações de teatro de rua. A invasão já citada, a roda e o cortejo. Migrante Carcará começava como um cortejo, em que vinte acadêmicos saíam de um ponto, cantando. A canção de abertura do exercício performático falava de migrações e a letra que eu compus começava assim: “Quando eu deixei minha terra/ Lá tempo vai/ Deixou saudade a virtude que lá deixei/ Na perdição desse mundo é que a casa cai/ Busquei na andança outra dança de que não sei/ Quem inventou não sei/ Estou aqui, cheguei/ Teatro que sina é essa, transformada em lei/ Minha lei seu teatro é uma só / Catar o pingo d’água e dar um nó.” Depois da canção, com alguns dos exercícios praticados, os estudantes invadiam o espaço, buscando pontos altos e baixos, o interior de lojas, interação com a plateia, até que uma acadêmica, que buscava o ponto mais alto para estar em relação com os outros, vocifera um trecho da canção “Violeira” de Chico Buarque de Holanda (1983)82, que diz: “E não tem tira / Nem doutor, nem ziguizira / Quero ver que é que tira / Nós aqui desse lugar”. Assim a intervenção passa do cortejo à roda e da roda retorna ao cortejo, mas, ainda com a lógica de canções nas transições, pequenas cenas de Ariano Suassuna e João Cabral de Melo Neto são realizadas. Parte-se dos exercícios na rua para criar uma relação em arena em que cenas em dupla do Suassuna, de no máximo 4 minutos, são executadas e depois o cortejo retorna, Amir Haddad, numa publicação do Nucleo Pavanelli nos fala sobre o cortejo:

E, hoje, o cortejo é uma forma de dramaturgia do meu trabalho. É a forma mais moderna e mais antiga. E sempre essa ideia de encarar a ancestralidade do ser humano, romper com as barreiras de classe e tentar entrar mais profundamente na historia do ser humano, passando por cima das ideologias. Se começa a enxergar que tudo é muito novo e tudo é muito velho.(...)Você não

Para saber mais sobre a canção: https://terradegigantes65.wordpress.com/2012/12/04/a-violeira-uma-mulher-nordestina-e-sonhadora-nos-versos-de-tom-jobim-e-chico-buarque/ 82

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• TEATRO DE RUA • pode pensar em contemporaneidade, sem pensar em ancestralidade. Para nós que fazemos teatro, ancestralidade é uma coisa viva e, diariamente, nós estamos lidando com a ancestralidade. Isso que nós fazemos e o ser humano fez desde sempre. A ancestralidade é nossa companheira, e é quem nos dá noção da contemporaneidade. E se eu perco o contato com a ancestralidade, e fico fixo só em um momento histórico, eu fico sem saída.” (PAVANELLI & PAVANELLI, 2011, 111).

Infelizmente essa intervenção foi apresentada apenas duas vezes, no centro de Florianópolis e no bairro Lagoa da Conceição. Para ocupar de formas diversas o espaço público, pudemos experimentar um pouco do treinamento voltado para a rua. Na grande maioria das disciplinas práticas que ministro, insisto na valorização do autor brasileiro, como propõe o professor Armindo Bião (BIÃO, 2009, 321-356), e por isso propus, naquele momento, que os estudantes escolhessem cenas para os exercícios finais, que reuniam a roda, “a forma de organização cênico encontrada pela maioria dos grupos que trabalham com Teatro de Rua” (SILVA, 2007,138); e cortejo, partindo de textos de Ariano Suassuna. Para as cenas finais foram selecionadas nove cenas, oito de textos de Ariano Suassuna e uma de um texto de João Cabral de Melo Neto. Os acadêmicos estavam livres para escolher, ou não, trabalhar com o autor que propus, mas desde que inserissem seu trabalho na premissa de exercitar a cena de um autor brasileiro publicado. Eles trabalharam cenas de textos bem conhecidos como Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, O Uma mulher vestida de Sol, Santo e a Porca, O Auto da Compadecida, A farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna. Boa parte da disciplina foi livremente inspirada em oficinas para o trabalho na rua ministradas por Ricardo Pucetti do LUME e em oficinas de Commedia dell’Arte e máscaras ministradas por Tiche Viana. Fiz, com esses dois profissionais, seis oficinas de pelo menos 20 horas cada e grande parte da escolha dos jogos e exercícios vieram de suas pesquisas. Segundo Narciso Telles, “a investigação do espaço é o ponto inicial e fundamental para os atores que irão atuar nos espaços urbanos” (SILVA, 2007, 135). Concomitante ao trabalho com jogos de triangulação e percepção do espaço, muitos jogos coletivos foram realizados e alguns levados para cena. Narciso defende que os jogos coletivos “são fundamentais para uma atuação no espaço urbano, pois tais exercícios propiciam preparar o ator para o jogo em relação aos espaços com grandes dimensões”, o que pode significar “uma força e uma presença que reverbera no trabalho atorial”, através da “ampliação de movimentos, - 140 -


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variação de ritmos, a projeção das palavras”, num misto entre “liberdade de jogo e investigação”, ampliando também o repertório pessoal dos participantes (SILVA, 2007, 135, 157). Durante o processo de criação da intervenção urbana e a construção das cenas, os estudantes apresentaram alguns seminários com diferentes graus de exigência, inicialmente leram críticas de espetáculos de rua em trios ou quartetos para apresentar alguns detalhes dos espetáculos e o ponto de vista abordado na crítica. As críticas foram retiradas de uma das edições da Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo. Em grupos de seis pessoas, foi recomendado que lessem TCCs defendidos na UDESC. Um deles, orientei, o de Veruska Haber, sobre criação coletiva no grupo gaúcho Ói Nóis Aqui Traveiz e Tá na rua; e outros dois em que estive na banca, o de Mário César, sobre o Teatro de Rua em Florianópolis e o de Gisele Cordeiro, sobre o figurino no grupo Tá Na Rua. O último seminário foi organizado em grupos de quatro acadêmicos e discutiu sobre publicações recentes de grupos de teatro de rua, no último dia de aula, seguido da avaliação da disciplina. Os grupos estudados foram: Tá na Rua (RJ); Ói Nóis Aqui Traveiz (RS); Imbuaça(SE); Buraco d’Oráculo (SP); Pombas Urbanas (SP). É importante frisar que entrei em contato com essas publicações através dos encontros presenciais da Rede Brasileira de Teatro de Rua. Os livros foram publicados e distribuídos para os articuladores de vários estados. Um material rico, de experiências e possibilidades para o Teatro de Rua, bibliografia necessária para uma disciplina como essa. Por mais que o Teatro de Rua possua uma tradição milenar, sua prática e reflexão na Academia ainda é incipiente e disciplinas como essa potencializam a relação entre teatro e cidade, além de oferecer para os estudantes maiores possibilidades de articulação e um trabalho de atuação também diferenciado. Como lembra Narciso Telles: “a função do professor é de um provocador/estimulador, quando estamos tratando de um momento no qual o estudante trabalha suas potencialidades criativas”, abrindo portas para “uma nova construção de sentidos e significados de sua prática.” (SILVA, 2007, 149). Durante essa disciplina, em 2010, pude participar do 7º Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua em Canoas, RS. E conversando com professores e pesquisadores de todo o Brasil, percebi que eu era, talvez, um dos primeiros professores de uma disciplina voltada para Teatro de Rua na grade curricular obrigatória de um curso superior numa universidade federal do Brasil. Depois da disciplina, quatro garotas se juntaram e montaram um grupo de Teatro de Rua chamado RESTANÒIS CIA

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LIVRE DE TEATRO83, elas têm participado dos encontros da RBTR e tive a oportunidade de dirigi-las em seu primeiro espetáculo, Conto de Fadas, trabalho que contou com o patrocínio da FUNARTE, através do prêmio Funarte Artes Cênicas nas Ruas 2011. Com esse trabalho, a RESTANÓIS ganhou o prêmio Miryam Muniz em 2013 para circulação do espetáculo por sete cidades de Minas Gerais e sete cidades de Goiás. Em 2014 o grupo e eu ganhamos novamente o prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua para a remontagem do primeiro trabalho em que as dirigi durante a disciplina, o Migrante Carcará. Esse prêmio gerou um novo espetáculo, bem diferente do primeiro, um trabalho feito com dramaturgia e direção coletiva, boa parte do processo passado no nordeste, mais especificamente em Maceió. Aprofundamos a pesquisa relativa à vida e obra de Ariano Suassuna e conversamos com familiares do mestre em Taperoá e Recife. O trabalho teve sua estreia dia 11 de dezembro de 2015, sob o título Migrante Carcará no Circo das Cabras Molhadas. Muitas vezes, no teatro de rua os transeuntes apenas passam, ou permanecem por alguns minutos junto ao espaço reconstruído da encenação, então é importante que as relações estabelecidas sejam percebidas de imediato pelo espectador. Até como forma de atraí-lo para este ou outro espetáculo em que possa permanecer mais tempo. Ir até o público é, de certa forma, “invadir” sua casa, seu cotidiano, sua rotina e ao mesmo tempo assumir que a rua é também o lugar de espetáculos e que a cultura não é algo encerrado em espaços fechados. Ir à rua é também estar pronto para escutar o que o espaço oferece e perceber como a realidade e a materialidade da situação podem dialogar com o processo artístico. Ir à rua é trocar, é co-encenar e é isso que instigo, em todas as disciplinas que buscamos realizar, com graça, alegria, reconstrução de realidade e muita reflexão. Em 2013, prestei concurso para professor efetivo na Universidade Federal de Alagoas; o concurso era para Teatro de Rua e Encenação, e a vaga lotada no Curso Técnico em Arte Dramática da Escola Técnica de Artes (ETA/UFAL).

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Para saber mais sobre o grupo: http://restanois.blogspot.com.br/ e https://www.facebook.com/restanois

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Trajetória de um teatro de rua: o percurso para criação e a atuação do grupo Teatro de Caretas na cidade de Fortaleza Vanéssia Gomes Na história do teatro cearense, há registros de grupos e artistas que nos anos 70 realizaram incursões à rua. Um dos mais significativos (que atuou em diversos espaços, além dos palcos), foi o GRITA - Grupo Independente de Teatro Amador (,1973 a 1993Erotilde Honório, integrante do grupo, em seu livro “O fazer teatral: forma de resistência”, descreve, em um dado momento, a preparação de uma comunidade para receber o espetáculo Reino da Luminura, na Favela da Muriçoca, periferia de Fortaleza, em 1977: O terreiro devidamente preparado, bandoleiras a vista de quem quisesse atravessar o capinzal. Noite. Lampiões a gás acesos enfeitando a noite (...). O povo sentado no chão, pelos bancos trazidos das cozinhas, pelos muros pequenos que cercam o terreno em frente à escola do lugar. (HONÓRIO, 1977)

Este é um precioso relato, dentre outros, onde identificamos o olhar do grupo sobre o espaço da rua, como espaço para apresentação. Em diversas passagens de seu livro, a autora descreve ainda como se dava a relação com a plateia das comunidades, o porquê das escolhas dos textos e até mesmo o formato de processo de criação do grupo. O GRITA foi fundado e dirigido, nos primeiros 10 anos, por José Carlos Matos. Este grupo percorreu a periferia da cidade de Fortaleza em cima de caminhões, montando tendas improvisadas e fazendo temporadas em circos. De 1983 a 1993, Oswald Barroso, até então dramaturgo e ator do grupo, assume o lugar de sua direção. Com o fim dos trabalhos coletivos, em 1993, seus integrantes tomaram diversos rumos, criando grupos e multiplicando seus conhecimentos. Podemos dizer que esta é a raiz do teatro de rua do Ceará. Identificamos que, a partir dos anos 90, o Teatro de Rua do Ceará tem como um de seus representantes, em Fortaleza, a Trupe Caba de Chegar de Teatro. Aqui o relato do ator Haroldo Aragão realizado na Mostra de Teatro de Rua do Ceará, em 2010, sobre o início do grupo84: A Mostra Ceará de teatro de rua foi realizada no Centro Cultural Dragão do Mar pelo Grupo Teatro de Caretas. A programação foi composta por apresentação de espetáculos de teatro de rua, exibição de vídeos, relatos de 84

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• TEATRO DE RUA • A Trupe Caba de Chegar de Teatro foi criada a partir de uma oficina realizada por Amir Haddad, diretor do Grupo carioca Tá na Rua, esta oficina aconteceu em Fortaleza, em 1989, por motivo da reinauguração do Teatro José de Alencar. Dentre os participantes estavam, o ator e diretor, Paulo Ess que nos mobilizou, logo após o encerramento da oficina onde todos do futuro grupo estavam presentes. Éramos Ana Marlene, Pedro Domingues, Claudio Jaboramdi e eu, e assim criamos o grupo.

Em meados dos anos 90, surge no Ceará, o projeto “Teatro de rua contra a AIDS” , coordenado por Ranulfo Cardoso86. Este período foi determinante para o teatro de Rua do Ceará por ter conseguido agregar o poder público, através do Ministério da Saúde, e instituições de financiamento internacional87. Este projeto de teatro de rua tem como objetivo atuar na prevenção e articulação de ações artísticas que gerem debates no campo da saúde sexual em específico sobre o uso da camisinha. Há todo um esforço em torno da promoção de espetáculos teatrais, seminários para artistas, formação para radialistas, criação de livros, incentivo para criação de novos dramaturgos, gravação de cd’s e incentivo a diversas outras artes em torno do tema da prevenção. No trecho a seguir do livro “AIDS e teatro: 15 dramaturgias de prevenção” têm revelada essa simpatia ao teatro de rua, texto de Daniel Souza e Marta Porto (2004): O teatro de rua voltado para a prevenção foi uma das reações da sociedade civil frente à epidemia, que se multiplicou e se desenvolveu de tal maneira que o poder público encontrou nessa forma de expressão um parceiro para a difusão de informações e campanhas de conscientização. (SOUZA, PORTO, 2004, p. 9). O projeto foi o impulsionador da criação de mais de 50 (cinquenta) grupos de rua em todo o Estado do Ceará. A partir do texto “O auto da camisinha”, de José Mapurunga (SOUZA, PORTO, 2004)88. Em 1996 inicia-se a circulação com a 85

experiências dos grupos e roda de conversas. Estavam presentes os grupos Garajal (Maracanaú), Arte Jucá (Arneiroz), Nóis de Teatro (Fortaleza), Trupe Caba de Chegar de Teatro (Fortaleza), Taipa de Teatro de Rua (Taiba) e o próprio grupo Teatro de Caretas (Fortaleza). Em setembro de 2010. O instituto de saúde e desenvolvimento social (ISDS) foi a instituição responsável pelos projetos “Projeto teatro de rua contra a aids” e “Radialistas contra a aids”. O Projeto deu início em 1996, finalizando suas atividades por volta do final de 2004.

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Médico em Saúde Pública; coordenador do Projeto e funcionário da Secretaria de Saúde do Ceará.

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A Fundação McArthur foi a responsável por diversas parcerias junto ao ISDS.

José Maria Mapurunga nasceu em Viçosa, Ceará, 1951, e atualmente mora em Fortaleza. É dramaturgo, roteirista de audiovisual, contista, poeta, cordelista e letrista de música popular. Alguns títulos para o teatro: “Auto da Camisinha”, “Comédia da Fome”, “Retrato na Parede”, “O Sertão segundo Patativa”, entre outros. 88

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Trupe Caba de Chegar, uma série de 40 (quarenta) apresentações em feiras, praças, locais alternativos, hospitais, postos de saúde, escolas e também teatros, pois, como diz Augusto Boal 89, teatro também é possível de se fazer “em qualquer lugar... até mesmo dentro dos teatros” (BOAL, 2006, p. IX)90. Com a ampliação do projeto, outros grupos são acionados com a proposta de realizar o mesmo texto de Mapurunga, mas com o objetivo de que resultassem em diversos formatos de encenação. E foi o que aconteceu. Esta ação significou uma onda de investigações na rua com diversas estéticas e propostas de resoluções cênicas para um mesmo texto. Muitos diretores do Ceará começaram neste momento a refletir sobre essa modalidade de teatro, o teatro de rua. Assim como, diversos atores se formam neste período através destas investigações de possibilidades do fazer teatral em espaços a céu aberto. O “Projeto teatro de rua contra a AIDS” foi certamente o responsável pela consolidação de muitos grupos de teatro de rua do Ceará, já que dava condições de estabilidade, diante da não interrupção das ações, através da permanente solicitação de apresentações e da criação dos diversos espaços de escoamento para os grupos circularem. Esta alavanca para a multiplicação de informações preventivas e tranquilizadoras junto aos artistas e à população sobre as DST/AIDS tinha objetivos claros como: Enfrentando a interiorização dos casos de DST/AIDS [...], ações educativas buscando atingir, sobretudo a população mais desprivilegiada social e educacionalmente, inclusive os analfabetos, com a informação correta, a linguagem usual, simples e a mensagem solidária e tranquilizadora, através de uma forma lúdica, atraente e com grande força mobilizadora91.

Em todos esses processos formativos a condução estava voltada para encenações de rua. Eles dirigiam espetáculos tendo como participante o público adolescente. Em todos os casos a finalização dos processos era organizada pelo ISDS nas escolas onde ensaiavam ou no Centro Cultural Dragão do Mar, nos espaços abertos ou no palco. Tratar sobre o Grupo Independente de Teatro Amador – GRITA, a Trupe Augusto Pinto Boal (1931-2009). Diretor, autor e teórico. Por ser um dos únicos homens de teatro a escrever sobre sua prática, formulando teorias a respeito de seu trabalho, torna-se uma referência do teatro brasileiro. Principal liderança do Teatro de Arena de São Paulo nos anos 1960. Criador do teatro do oprimido, metodologia internacionalmente conhecida que alia teatro a ação social. 89

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Augusto Boal sempre colocava que o espaço do teatro seria em qualquer lugar.

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Texto: “O teatro de rua”, retirado do site www.isds.org.br

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Caba de Chegar e sobre o “Projeto Teatro De Rua Contra A AIDS” é parte da busca por estabelecer os princípios do Grupo Teatro de Caretas. Somos sujeitos da história do teatro cearense, resultado de muitos grupos e pessoas que entendem a arte teatral de rua como o sentido de sua existência. A trajetória do grupo Teatro de Caretas está repleta de questões relacionadas ao que se compreende por teatro de rua, teatro de grupo e movimentos artísticos culturais. Estas terminologias são repensadas e reconstruídas por fazedores e pesquisadores de teatro de rua do Brasil com bastante fluidez desde os anos 90. Temos como diretriz os estudos realizados na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), através dos professores doutores André Carreira, Narciso Telles e Licko Turle, e em diversos núcleos que investigam e multiplicam pesquisas nesta área. Segundo André Carreira (2007), podemos definir as modalidades teatrais, a partir do espaço cênico que o espetáculo teatral ocupa. O teatro de rua associa-se então as diversas possibilidades de ocupação do espaço cênico a céu aberto podendo estar localizado numa praça, rua, esquina, terreiro, quadra, entre outros diversos espaços. A terminologia teatro de rua já está presente em diversos estudos e pesquisas sobre o teatro. Hoje na Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas existe o GT de Artes Cênicas na Rua. Esta inclusão das artes cênicas de rua neste ambiente acadêmico faz reforçar sua importância. Estabelecendo a consolidação de uma arte que tem poucos registros históricos, no Brasil. Até bem pouco tempo a história do teatro brasileiro era observada somente através dos registros dramatúrgicos, e também somente alguns poucos autores que escreviam para o palco conseguiam publicar. Hoje as publicações de textos dramatúrgicos não aumentaram substancialmente, mas a internet trouxe outro espaço para trocas e divulgação de escritos. Para o teatro de rua os registros são uma questão ainda hoje. Diante do fato de que muitos espetáculos não fazem temporadas e sim circulam por praças, espaços alternativos ou terreiros de acordo com os processos de cada grupo. Então vem a questão: como ter o registro destes locais? Caso o grupo esteja em um centro cul- 146 -


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tural ou mesmo se apresentando em um festival, ainda consegue este registro físico, através de folders, programações ou catálogos, mas e se estiver por conta própria? Também podemos refletir qual é o papel do teatro de rua na cidade para a população. Existem aqueles que entendem que teatro de rua é o teatro do acesso à arte que muitos são impossibilitados, seja por uma questão social ou na maior parte das vezes econômica. Tentando trazer outro ângulo de visão poderíamos pensar que na verdade, a rua é a rua. O teatro que é feito na rua em nada tem a ver com o teatro de palco, diante das questões técnicas, estéticas, dos procedimentos dos atores. Então quem somente vê teatro de palco na verdade está sem o alcance da amplitude que a arte cênica tem, já que essa se expressa de uma forma no palco e de outra completamente diferente na rua. Existe também a defesa de que o teatro de rua é um posicionamento político. De que este que escolhe a rua para atuar, já vem carregado de um conteúdo político por não optar pelas circunstâncias burguesas que impregnam os edifícios teatrais. Entendendo que estes se tornam elitista, por requerer um espectador que tem uma determinada postura, diferenciada no momento da convocatória. Entendendo que só se vai a um teatro de palco se o espectador acompanhar uma programação impressa, seja de um jornal ou as programações dos teatros, o espectador necessita de uma vestimenta específica para ir a este espaço. Além disso, a ocupação espacial lhe coloca de uma forma subjugada. Esta forma está associada ao fato de que a plateia não falará no momento que quiser, só saíra do espetáculo no momento que este encerrar e terá toda uma postura para estar neste espaço. Todos estes elementos são completamente diferentes na rua. Visto que a plateia contribui durante o espetáculo, e se quiser; estará de uma forma completamente à vontade para interferir no espetáculo, sendo que, caso não goste do que vê, sairá sem nenhum constrangimento. Algo que muito determina a cena do teatro de rua é o formato de convocação da plateia. Pensar que todos estão como transeuntes nas ruas, praças e esquinas e são seduzidos a parar, observar uma cena e “convencidos” a ficar até o final de um espetáculo é o que em grande parte, realmente, define um espetáculo de rua. Por mais que tenhamos a divulgação de um espetáculo, através dos jornais e mídias sociais, mais de 90% de uma plateia de rua comumente é incidental. O ator de teatro de rua aprende e apreende diversas técnicas de como mobilizar uma plateia. Comumente são executados cortejos de abertura, ações que percorrem um determinado espaço e funcionam como anúncio dos espetáculos. Claro - 147 -


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que esta não é a única forma, mas é um bom exemplo de como este chamamento é feito. Mas quais os elementos que poderíamos observar e indicar como definidores de um teatro de rua? O Grupo Teatro de Caretas participa desde 2007 da Rede Brasileira de teatro de rua. Este contato foi determinante para estabelecer a aproximação com outros grupos do Brasil e assim conhecer outros fazeres e pensamentos. Conceitos e práticas de teatro de rua, teatro de grupo e movimento artístico – cultural foram importantes para nossa formação porque constroem e reconstroem nossas escolhas. Estas questões são fundadoras de nossos pensamentos e ações. Indicando também o que escolhemos como pesquisa estética já que nos coloca em cheque sobre de quais pontos partiremos para as escolhas das pesquisas, dos textos, das músicas e da forma que trabalharemos na montagem dos espetáculos. O grupo Teatro de Caretas iniciou seus trabalhos em 1998 em Fortaleza atuando com intervenções e esquetes educativas junto a movimentos sociais e instituições do terceiro setor. Anos depois, em uma nova fase, investiga a rua sob a perspectiva dos artistas populares, e nestes experimentos, o grupo avança em produções que, potencializando seu olhar crítico sobre a sociedade, tendo como formato de processo artístico para seus espetáculos, a criação coletiva em grupo. Inicia em 2010 um aprofundado processo de pesquisa através de viagens e experimentos sobre máscaras, o que resulta na criação um espetáculo ritual. Este estudo percorrerá seus espetáculos para desenhar o panorama do grupo. O marco inicial para a criação do grupo efetivamente foi a realização de um trabalho para a Diocese de Fortaleza, com a intenção de se apresentar para o Fórum das Áreas de Risco da Cidade, com um texto a partir da música “Saudosa Maloca”, autoria de Adoniran Barbosa. A letra da música trata sobre três trabalhadores que moravam em uma casa e foram desalojados para a criação de um prédio. Estes contam a ação do despejo. Logo após este trabalho se fundem o grupo Pé no Chão com a Cia de Teatro Abacaxi, que até então apresentava um dos espetáculos do Projeto Teatro De Rua Contra A AIDS, e daí surge o Teatro de Caretas. Constroem, inicialmente, intervenções, depois textos dramatúrgicos em formato colaborativo. Os textos do grupo são, em maior parte, até hoje, autorais. Certamente a participação no Projeto Teatro De Rua Contra A AIDS (início em 1996), coordenado por Ranulfo Cardoso, veio a ser o estopim para a formação e o aprofundamento do grupo nos diversos procedimentos possíveis para a rua. Já que, como dito anteriormente, no projeto compartilhavam experiências com diversos - 148 -


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outros grupos de rua, além de processos formativos e de experimentação. O Teatro de Caretas tem em sua trajetória espetáculos, esquetes, intervenções, leituras dramáticas, participação de filmes (curta e longa metragem), realização de aulas–espetáculos, demonstrações técnicas, cortejos, além de ministrar oficinas e cursos. Podemos dividir sua história em 03 (três) etapas, não é uma divisão estanque, até porque uma ainda perpassa a outra, mas são claros os marcos históricos, através das experimentações, que conduzem suas experimentações teatrais. I - Intervenções e pequenas cenas: atuação na militância popular e nas ONGs Este primeiro período é marcado pela presença de alguns dos seus integrantes em projetos sociais. Desde seu início até aproximadamente o ano de 2004, o grupo recebia solicitações de trabalhos, ou seja, um contratante tinha um tema e passava para o grupo. Este montava uma esquete de acordo com o que era solicitado e apresentava em determinado evento. Normalmente, a cena só acontecia uma vez, naquele determinado evento ou no máximo duas vezes. Eram trabalhos realizados junto principalmente a movimentos sociais, ONGs ou universidades. Como exemplo, temos a cena, citada anteriormente, apresentada ao Movimento das Áreas de Risco de Fortaleza: E agora José, com direção de Francisco Wellington. O processo de construção da cena se deu através de improvisos com a música Saudosa Maloca. Um traço importante deste período também é que o grupo ainda oscilava em apresentações realizadas em auditórios ou pátios. Ainda não tinha a opção clara pelo espaço a céu aberto. Sempre na busca da desconstrução destes espaços fechados criava situações que alteravam os locais da cena. Podendo ser no meio da plateia ou em suas laterais. II - Espetáculos educativos e políticos Nesta etapa, se passa das esquetes para os espetáculos educativos. Esta transição já está mais relacionada à necessidade dos integrantes do grupo de aplicar seu aprendizado como atores, diretores e dramaturgos. Há uma busca de referências no cotidiano, para criações teatrais, através de um olhar político incutido nos espetáculos. O Grupo apresentava seus espetáculos de teatro de rua, aliando arte e política, tendo como orientação o reforço a movimentos sociais pertinentes e dire- 149 -


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cionados à transformação humana em sociedade. Esta definição percorreu durante muitos anos o trabalho do grupo. A ideia de mobilizador social através do teatro era um forte vetor de trabalho. III - A farsa do pão e circo (2007) Em 2006, diante de seus estudos e aprendizados, o grupo decide aprofundar o olhar político de sua criação artística. Decide pesquisar um texto que trate sobre as pequenas corrupções de nosso cotidiano, isso a partir do texto “Auto da Lusitânia”, de Gil Vicente, e dos filmes de Sergio Bianchi. Neste momento, decide também requalificar sua forma de trabalho teatral. Começa então a realizar um trabalho de criação coletiva para o espetáculo A Farsa do Pão e Circo. Para este processo de criação foram realizadas diversas leituras em grupo, com o intuito de consolidar uma pesquisa teórica. Em especial foram lidos Augusto Boal e Eugenio Barba, e na área social deu-se uma maior atenção à antropologia urbana, sobre as formas de apropriação e uso do espaço urbano. A compreensão do homem em sociedade trouxe subsídios para as construções cênicas que conduziram o grupo a reflexões significativas sobre as situações de opressão, violência e apatia às quais homens e mulheres são induzidos nesta sociedade capitalista e excludente que vivemos. O Grupo afirma que sua opção pela rua é política e estética. IV - Cortejo de caretas (2010) Em 2010 deu-se início a um conjunto de procedimentos para a consolidação do Projeto “Riso brincante do Nordeste” uma investigação sobre as máscaras tradicionais populares e a performance do ator de rua. Através de diversas viagens pelo Nordeste, a pesquisa teve como trajetória o encontro com o reisado de Ipueira da Vaca - cidade de Canindé/Ceará, a festa dos Karetas - cidade de Jardim/Ceará, o Cavalo Marinho Estrela de Ouro - cidade de Condado/Pernambuco e o Boi-Bumbá - Cidade Viana/Baixada Maranhense – Maranhão. O processo compreendeu o encontro do Grupo Teatro de Caretas com os grupos tradicionais em suas localidades. Em cada encontro tivemos a interação estética do grupo com a manifestação, através de entrevistas, da participação no momento da brincadeira e em oficinas de máscaras com mestres ou pessoas de referência das manifestações. A ação teatral foi composta por pesquisas in loco, apresentações de intervenções nas ruas, demonstrações técnicas, trocas de saberes entre o Grupo Teatro - 150 -


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de Caretas e os mestres e artistas populares. Foram criados dois espetáculos teatrais: Uma Casa Solta no Ar e o Cortejo de Caretas. A fundamentação principal para este trabalho está pautada no pensamento de Oswald Barroso, que indica que as máscaras acompanham os seres humanos desde suas mais remotas origens. Nos rituais das religiões populares como faces visíveis dos deuses, portais de abertura para o sagrado, filtros para a incorporação do divino, manifestações do invisível, umbrais de transcendência, enfim, como objetos possibilitadores da comunicação entre seres humanos e deuses. Nos rituais festivos dos povos, as máscaras são ainda móveis de encantamento, veículos de incorporação de arquétipos e figuras (tipos humanos, bichos e entidades fantásticas). Para o grupo toda essa vivência trouxe um arsenal de imagens, ideias e possibilidades que ainda reverbera no Grupo, com amplas possibilidades de investigação. V - Final da Tarde (2014) O grupo através de um projeto realizado pela Escola Porto Iracema das Artes consegue construir um projeto para que o diretor André Carreira realize a tutoria da pesquisa A Cidade como Dramaturgia – uma experiência de atuação na rua. Neste mesmo processo encontramos com Miguel Rubio – Grupo Cultural Yuyaschkani ( Lima Peru) e com o professor Ernani Maletta (UFMG). O projeto acontece por seis meses e resultou no espetáculo FINAL DA TARDE. O espetáculo se baseia numa experiência diferente de teatro de rua, tanto na relação entre ator e público como na relação com a cidade. Esta é, além de cenário, a própria dramaturgia do espetáculo, já que a história foi construída a partir de experimentações do grupo a partir de performances nas ruas. Final da Tarde propõe uma experiência de atuação cênica baseada no detalhe da interpretação, onde proximidade e intimidade entre transeuntes e atores são os elementos centrais. Um aspecto importante é que os transeuntes não são previamente informados da peça. Segundo, o diretor do espetáculo, André Carreira: (...) propor alguns parâmetros com o fim de pensar uma delimitação do conceito de teatro de rua. Para isso é preciso identificar: a) a relação entre as linguagens do espetáculo e o espaço cênico; b) as características da convocação e do tipo de público concorrente. (CARREIRA, 2007, p. 44)

Partindo deste conceito, compreendemos que o Grupo Teatro de Caretas construiu seu caminho em direção ao espaço cênico da rua. Quando convocado, - 151 -


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logo no início de sua história, para espaços alternativos de apresentação, desconstruía o formato de palco italiano, isso demonstrado no formato com que apresentava suas intervenções, fazendo repensar a apropriação do espaço que se ocupava em cena. Em auditórios, optávamos sempre pela chegada em cortejo e por realizar a cena ao lado do público ou propondo formas de criação de cenas que intercalavam a presença do ator no palco ou na plateia. Desde o início do Grupo Teatro de Caretas, a matriz estética das manifestações tradicionais está presente nas pesquisas e por consequência nos espetáculos. Dela se construiu o formato de convocação do público, ou seja, foi a partir de investigações sobre as diversas possibilidades de expressão das manifestações populares que construíram o seu “estar” na rua. Vão ao encontro com o público, nas praças, feiras, esquinas, ruas, passarelas, mercados e Todos os demais diversos espaços abertos. Percebe-se que a formação na área social de alguns dos integrantes, no momento da criação do grupo, direcionou as escolhas de temáticas sociais e da participação política. Já a escolha por teatro de rua foi se construindo ao longo do percurso da história enquanto artistas, individual e coletivamente. Hoje o Grupo Teatro de Caretas se relaciona com diversos grupos de teatro de rua e de palco; artistas que trabalham com performances ou mesmo os circenses. Constrói a cada passo uma trajetória de dedicação as diversas investigações possíveis para o teatro. A arte e a política estão cada vez mais próximas do grupo por suas escolhas dramatúrgicas, musicais, de encenação e de pesquisa. Apropria-se do espaço urbano entendendo que a arte pública de rua está calcada em espaços de compartilhamento de ideias e desejos, sobretudo por espaços de trocas de experiências e pelo bem comum.

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RBTR – 10 anos pelas ruas do Brasil Desde os anos de 2000, fervilhava entre os fazedores teatrais de rua um novo sopro de criatividade e autoconfiança a respeito de seus saberes acumulados, até então muito pouco sistematizados. A necessidade de criação de um espaço de compartilhamento de práticas estéticas e discussão política tornara-se uma demanda reprimida para os grupos teatrais brasileiros (fossem estes de rua ou não), cujo crescimento exponencial levou à criação do REDEMOINHO – Movimento Brasileiro de Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa, durante um encontro realizado no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte. Nessa ocasião, grupos de vários estados do país, liderados por Chico Pelúcio, do Grupo Galpão, fundaram uma rede nacional de discussão sobre políticas públicas em âmbito federal, voltada para o teatro de grupo. Quando iniciou, em 2004, o Movimento REDEMOINHO apresentava uma proposta que satisfazia, mesmo que parcialmente, às demandas dos “rueiros”. Participavam dele, porém, apenas os coletivos de rua que gozavam de maior expressividade e visibilidade no país e que possuíssem sedes, pois a entrada dava-se somente por meio de convite. A ideia de criação de uma rede virtual de comunicação ganhou cada vez mais força entre os fazedores de rua, de modo que, em 2007, surge a Rede Brasileira de Teatro de Rua – RBTR durante um evento em Salvador, em comemoração ao Dia do Circo e do Teatro. Quando foi criado por Marcelo Bones, do grupo andante de Belo Horizonte, um grupo virtual de comunicação na Internet: teatroderuanobrasil@gmail.com. Liderada, sobretudo, por artistas de rua que também participavam do Redemoinho, a proposta foi baseada em princípios semelhantes aos daquele movimento; suas ações, porém, se dirigiram para os interesses específicos do Teatro de Rua. O depoimento do articulador Adailtom Alves de São Paulo, foi considerado mais tarde o documento que registrou a criação da rede de teatristas de rua, um embrião do que se tornaria no ano seguinte a RBTR: Outro momento de encontro92 ocorreu ainda, no Recife, Pernambuco, antes que a RBTR se consolidasse como um “espaço físico, virtual e horizontal” norteado por princípios, objetivos e uma forma própria de organização interna, que delineasse com clareza o posicionamento ético-político de seus articuladores. Denominado “Encontro Nacional de Teatro de Rua”, o segundo encontro ocorreu nos dias 20 e 21 de outubro de 2007, no Espaço Cultural João Teimoso, como parte das atividades do V Festival de Teatro de Rua do Recife (PE).

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Assim, apenas a partir de seu terceiro encontro, novamente na Bahia, os participantes da Rede passaram a documentar aqueles pressupostos, a fim de expor de modo público e sistemático as reivindicações e ações a serem desenvolvidas nacional e/ou regionalmente, depois de deliberadas nas assembleias presenciais. Após cinco anos de intensa atividade (2004-2009) o Redemoinho foi abruptamente extinto93 em função de discordâncias internas, deixando uma lacuna em meio aos grupos teatrais que dele participavam. Nesse momento, porém, a RBTR já contava com dois anos de atividades ininterruptas e congregava centenas de artistas, companhias e grupos de rua de todos os estados brasileiros. Alguns indícios do rápido crescimento dessa rede apontam para as diretrizes definidas pelos seus integrantes O primeiro e principal pode ser verificado na forma de organização interna: a RBTR não adotou a hierarquia decorrente de uma estrutura funcional convencional (com atribuições de presidente, vice-presidente, secretário, tesoureiro etc), em favor de uma relação horizontal e igualitária entre os seus membros, denominados simplesmente como “articuladores”. Isso permitiu a criação de uma forma de participação aberta, sem funções ou obrigações previamente definidas, levando à supressão da figura do “representante” (de cada estado, região etc.), de modo que a participação em reuniões oficiais junto a órgãos públicos pudesse ocorrer conforme as possibilidades reais, financeiras e de tempo, de cada articulador individualmente. A inexistência de funções hierárquicas levou à adoção de uma dinâmica de rodízio entre os próprios articuladores, no cumprimento dessas ações. Apesar das inevitáveis dificuldades, com o tempo esse exercício de autogestão mostrou ser uma forma saudável de romper com as armadilhas do “clientelismo” que costumam rondar os grupamentos de finalidades políticas. O segundo ponto fundamental foi a inexistência de qualquer tipo de verba (“fundo”, “caixinha”, “dízimo”, “contribuição” etc) a ser administrada por um tesoureiro. Os articuladores presentes nas reuniões presenciais, realizadas a cada semestre, é quem definiriam, a partir das propostas ali apresentadas, os locais de realização do encontro seguinte, e grupos desse município e região se encarregariam de administrar os custos e a produção desse evento específico (passagens, hospedagem, alimentação etc). O quê fazer, quem fazer e como fazer (com os recursos 93 Em 2011 houve uma tentativa de reestruturação da proposta, sendo o Redemoinho rebatizado como “Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo”. Na Carta de Brasília, foi reafirmada a sua atuação na luta pela aprovação do Prêmio de Fomento ao Teatro Brasileiro, vinculado ao projeto de Lei ProCultura – que prevê um novo modelo de financiamento público para a produção teatral no país.

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disponíveis e/ou a serem obtidos) seria decidido presencialmente, pela assembleia de articuladores. Nos seus primeiros quatro anos de existência, a RBTR contou com o apoio financeiro da FUNARTE para a realização de seus Encontros Nacionais. A partir de 2011, contudo, isso não foi mais possível em função da obrigatoriedade da assinatura de convenio com os municípios-sede do encontro para o repasse de verbas. Depois da negativa da prefeitura de Arcoverde-PE, alegando problemas administrativos e um breve momento de reflexão, os articuladores decidiram realizar os encontros com recursos próprios. Ações solidárias, como disponibilizar hospedagem, buscar apoio com empresas, órgãos e instituições de ensino locais, dentre outras iniciativas, como a realização de mostras de teatro de rua (o que possibilita sempre a captação de recursos local) passaram a ser o modo de produção prioritário desde então. Todos os seus articuladores devem custear a sua própria passagem seja ela aérea, rodoviária ou de veículo particular. Muitas destas passagens são pagas por órgãos cooperativos, grupos, coletivos ou apoio de programa de intercâmbio e difusão dos municípios, estado e União, mas sempre por iniciativa de cada articulador. Essa dinâmica organizacional, pautada pelos princípios de autonomia e autogestão, foi o que permitiu à RBTR, se encontrar no mínimo duas vezes por ano presencialmente e dar continuidade ao projeto de lutar por políticas públicas de apoio ao Teatro de Rua no país com total independência ideológica. Cada encontro realizado sempre produziu, ao seu final, um documento nomeado de ‘Carta’, onde se registra as decisões por consenso aprovadas na reunião presencial. Este documento é, imediatamente, difundido e multiplicado em cada rincão do país e disponibilizado na rede mundial de computadores. A assembleia de articuladores da RBTR reunidos no Encontro de Sorocaba/2015 (SP) decidiu pela elaboração não de uma Carta, tal como vinha sendo feito até então, mas de um Manifesto através do qual expressam as angústias decorrentes desse processo de luta por políticas públicas que vêm travando ao longo de sua existência. O último encontro nacional ocorreu em Aquiraz, Fortaleza, CE e recebeu diferentes apoios como o da FUNARTE e do Governo do Estado do Ceará, através da Casa Civil, as atividades foram em conjunto com o Conselho Nova Vida (uma vez que a RBTR não possui personalidade jurídica, seguindo a estratégia do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). O consenso do conjunto dos articuladores presentes definiu que, em vez - 155 -


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de construírem a ‘Carta do Ceará’, deveriam ler o Manifesto de Sorocaba para os representantes da FUNARTE, que visitaram o evento no seu quinto e último dia. Os encontros nacionais da RBTR são, por onde passam, atos políticos que procuram fortalecer a luta por políticas públicas para as artes públicas e os enfrentamentos dos movimentos sociais locais. Daí, seus cortejos são temáticos buscando dar visibilidade a questões regionais e nacionais. A rede realiza, também, eventos nacionais articulados em uma mesma data, como forma de protesto e proposta para uma sociedade igualitária. E assim, finalizamos esta publicação apresentando dois textos de grande importância para a memória da RBTR: aquele que registra a sua criação em 2007 – “A Roda Girou em Salvador”; e o relato de seu mais recente evento: o XVII Encontro Nacional da RBTR, realizado em 2015 (Aquiraz, Ceará), momentos esses que documentam de forma pontual e inequívoca a trajetória de luta percorrida pelo coletivo de articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

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I ENCONTRO DA RBTR

– Salvador/Bahia – MARÇ

DOR A RODA GIROU EM SALVA

O/2007

co e do teatro, Salvador foi pal emoração ao dia do circo com esta em 7, uns alg 200 de de rua rço de ma Nos dias 26 e 27 de movimentos de teatro de es ant ent res nto rep eve u O ebe o. zad e, rec de um encontro important e não há movimento organi resentantes de grupos de ond , um regional, do estado da Bahia e um dos brasileiros, além de rep uns fór em questão” reuniu dois “A RODA – o teatro de rua antes da soSalvador, logo na entrada, nacional. na Câmara Legislativa de estavam de 00h or, 19: às vad 26 Sal de dia , no Rua foi da ra os A abertu mbros do Grupo Filh me : nte ide anto, seus inc ent No um u os. rre sm lenidade, porém oco mitir a entrada dos me per ria que não a io ande cas da índ o nça l que permite que bermuda e chinelo, a segura braram, existe uma lei federa lem e todo eles nto me eve for do s con e, ore ios zad integrantes são índ eram também organi s poi os, sm me sem dos ras o ent test pro se os índios não nu, se assim o quiser. Houve -BA) apoiou, afirmando que TR (M am. rar ano ent bai os Rua tod e de s tro igo o Movimento de Tea urança consultou os cód seg da fe che O . iam rar ent na casa, eles também não . a do povo não os recebe bem esentada uma perUma cabal prova que a cas grante do MTR-BA. Foi apr inte bém tam no, stia Cri s rco A abertura foi feita por Ma tro de Rua.” to, anfitrião da “Manual Básico para o Tea formance e lançado o livro o Vereador Everaldo Augus Plenário Cosme Farias pel do Movimento no s a nte feit nta foi rese ne rep sole ra por ta rtu A abe cia a mesa foi compos uen seq Na ailtom Alves), te. sen (Ad lo pre or Pau tro de Rua de São casa e único veread ka Matos), Movimento de Tea edes), Federação de Teatro do Espírito (Ku ia Bah da Rua de tro de Tea son Gu ular de Pernambuco (Ander cia), representante Movimento de Teatro Pop do Rio de Janeiro (André Gar Rua de tro MaTea de o ent vim e da Fundação Gregório de Santo (Telma Amaral), Mo po Andante) e a representant gru – es Bon elo os. arc etiv (M do teatro mineiro do encontro desses col em ressaltar a importância além dos representos. Todos foram unânimes de outras cidades baianas, e or vad Sal de stas arti ias, nár ple nas Estavam presentes anelli, de São Paulo. sobre políticas lista de Teatro e Núcleo Pav tantes da Cooperativa Pau re estes coletivos para debater ent ro ont enc um u rre oco , apresentações, rço de ma ada de rod 27 No dia seguinte, os. Iniciou-se com uma unt ass ros out e ão zaç ani al e de Representantes do Mo públicas, dificuldades de org dois grupos: Fórum Region em os idim div nos e , ade nome, grupo e cid TR duais: Marcos Cristiano (M vimento Nacional. antes dos Movimentos esta aent res Am rep ma Tel dos ), um /RJ Fór TR no (M Estavam presentes TR/SP), André Garcia (M es Alv on a ailt list Ad , Pau va PE) rati TPriano (Coope -BA), Anderson Guedes (M Renata Lemes e Clayton Ma lo to), rce San o Ma e írit ) Esp MG – do tro ana Tea Kab ral (Federação de uro Xavier (Grupo (Núcleo Pavanelli – SP), Ma de seus estados. de Teatro), Graça Cremon aram um histórico político traç tes sen pre os os Tod ). MG – te dan Bones (Grupo An foi curto. r os assuntos, pois o tempo entos espalhados Não foi possível aprofunda hecer melhor outros Movim con os em éss pud que ecíficas para o com esp fez s ro lica ont púb Esse primeiro enc o que não há políticas clar ou Fic ão. zaç ani org pelo Brasil e suas formas de estados ali presentes. a julho com maior tempo teatro de rua em nenhum dos pôs um novo encontro par pro se e ] ros nte me cial [ofi se ainda da ausência de out O encontro será registrado ofundar as discussões. FalouNo apr rá. os Cea sam e pos rte No que do ra nei nde de duração, de ma o Escambo do Rio Gra lo, mp exe por o com sil, Bra movimentos existentes no os. se reunir todos os moviment as ruas de Salvador em comemoração ao próximo encontro pretenderal pel teat tejo cor um u rre oco h Naquele mesmo dia às 15:00 dia do teatro e do circo.


XVII ENCONTRO DA RBTR – For

taleza/Aquiraz - 2015

O XVII Encontro Nacional da RBTR realizado, aqui, no Ceará contou com duzentos e dez participantes de vinte e três estados brasileiros, três países sul americanos (Bolívia, Chil e e Colômbia) e um país europeu (França). Seguindo a dinâmica e estrutura das últimas reuniões nas outras cidades, o encontro cearense foi construído para propiciar o debate polít ico livre, o compartilhamento de mod os de criação através de oficinas e apresentações de espetácu los teatrais entre os artistas das cinc o regiões brasileiras, com os artistas locais (muitos participando pela primeira vez neste tipo de orga nização político-artística) e destes com as comunidades de Fortaleza e Aquiraz. A população fortalezense pode part icipar de um cortejo artístico histórico pelas ruas do comercio central; presenciou intervenções nas praças José de Alencar, do Ferreira e dos Leões, onde assistiu a espetáculos de grupos cearenses. Já em Aquiraz, os pescadores jangadeiros e suas famílias, viram, no Centro das Rendeiras, uma overdose de apresentações de teatro, música, circo e dança com artistas de várias partes do Brasil. Em uma ação política direta junto aos gestores da pasta da cultura do Estado do Ceará, foi realizado o ato público de entrega de todas as cartas e documentos já construídos pela Rede RBTR. Todas estas ações foram perpassadas por plenárias ocorridas em nove turnos durante cinco dias consecutivos, numa pauta de discussão construída por todos. A imprensa e a mídia livre cobriram todo o evento. Ao final, foram quinze matérias em jorn ais e rádios de todo o Estado. A realização do um encontro da RBT R ultrapassa o território do pensar no âmbito da arte teatral e alcança questões sobre as políticas públ icas para as artes públicas. Nesta XVI I edição nacional que teve como sede o Ceará tivemos como grup o articulador o Grupo Teatro de Care tas. Agregando parceiros cearenses e de todo o Brasil que forta leceram a produção antes, durante e depois do encontro. A possibilidade de reativar articulações e fazer florescer novos enlaces principa lmente com os artistas do nordeste. O ano de 2015 foi notadamente sign ificativo para o pensamento sobre arte e a ação política no Estado do Ceará. Neste ano os artistas de Fort aleza realizaram o #ocupaçãosecultfo r. Uma ação resultado de uma série de tentativas de diálogos e articulações junto à prefeitura mun icipal, através de sua secretaria de cultura, que desembocaram ao longo de 3 anos em realizações pouc o significativas para os artistas e para a população em geral. A Secretaria de Cultura do Municípi o foi ocupada no dia 14 de outubro de 2015 por artistas de teatro, dança, música, circo, literatura, cine ma, artes visuais, vídeo, moda, fotografi a, das culturas tradicionais populares e muitas e muitas outr as linguagens. Durante 8 dias em um ato coletivo de indignação devido a inoperância da pasta da cultu ra em sua gestão municipal. Foram se agregando mais de 1.300 pessoas em torno do debate sobre com o a arte e a cultura devem ser tratadas pelos gestores públicos na cidade de Fortaleza. Foi colocada na pauta a arte pública e consolidada através desta ação que a experiência da participação popular aproxima e fortalece a todos. A ocupação desembocou em um proj eto de lei aprovado na Câmara do Vere adores do Município de Fortaleza que garantirá o Edital das Arte s instituído em lei com lançamento anua ca e previsão mínima de recurso na LOA l com verba específi(Lei orçamentária) para todas as lingu agens com assento no Conselho Municipal de Políticas Cult urais.


• TEATRO DE RUA • Bibliografia geral

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http://cteatrom.blogspot.com.br/

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1ª edição Fortaleza Aldeia Casa Viva 2016


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