Relacões etnicoraciais

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Ao final deste módulo, você deverá:

- Compreender a ação do movimento negro em prol do estabelecimento por parte do Estado, de políticas de ação afirmativa. - Reconhecer as pesquisas que marcaram os estudos sobre relações raciais no Brasil. - Conhecer as diferentes formas de resistência da população negra no período da escravização no Brasil. - Identificar a trajetória de dificuldades e resistências das mulheres negras desde a colonização do Brasil até os dias atuais. - Compreender o percurso das religiões afro-brasileiras e a interlocução estabelecida com outras religiões no Brasil. - Conhecer os principais elementos balizadores das religiões afro brasileiras com vistas ao combate da intolerância religiosa.

MÓDULO IV

SOCIOLOGIA DOS GRUPOS RACIAIS NO BRASIL E REFLEXÕES ANTROPOLÓGICAS SOBRE RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

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Mpatapow

Um nó de reconciliação de paz. Representa um complexo ou um nó da sabedoria. Símbolo da reconciliação, pacificação e negociação de paz.

AS PRODUÇÕES ACADÊMICAS SOBRE O “MITO DA DEMOCRACIA RACIAL” E AS DESIGUALDADES RACIAIS NO PLANO ESTRUTURAL: CONCEITOS, HISTÓRICO E ANÁLISE DAS AÇÕES AFIRMATIVAS José Antonio Marçal

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A década de 2000 no Brasil foi marcada por polêmico debate, na sociedade civil e no Estado, sobre a implantação de ação afirmativa para negros (pretos e pardos). A reivindicação destas medidas decorre de mudanças políticosociais no âmbito internacional e nacional. Neste contexto é que as ações afirmativas ganham força e entram na agenda política do governo brasileiro. Contudo, é preciso ressaltar que este tipo de política pública preferencial é resultado, além desse contexto político internacional e nacional, também de um histórico protagonismo do Movimento Social Negro brasileiro.

Mestre em Política Educacional pela UFPR, especialista em Temas Filosóficos pela UFMG e em Gestão Sistêmica baseada em valores humanos pela FDA. Atuou como professor de filosofia e sociologia na rede pública estadual de Minas Gerais. 1

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A entrada na agenda dessas políticas públicas evidencia a existência de um contexto social racista em nossa sociedade que há muito vem sendo denunciado pelos ativistas negros e negras.Tal contexto revela uma contradição histórica: apesar de representar 49,5% da população brasileira (IPEA, 2008), os negros permanecem sub-representados nos campos econômico, político e social.

PARA REFLETIR Pensar os desafios e possibilidades de implementação de políticas de ações afirmativas nos coloca o seguinte questionamento: passados mais de 100 anos da abolição da escravidão, por que a população negra brasileira permanece ainda hoje com dificuldade de mobilidade social?

A constatação da persistente desigualdade racial e da reação de setores da sociedade brasileira contrários à implementação de políticas públicas preferenciais para negros dão indícios da existência de uma cultura racista, mais especificamente, de um imaginário coletivo racista que opera naturalizando uma hierarquia entre brancos e negros (IPEA, 2008). Ou seja, a desigualdade entre os dois grupos, além dos seus aspectos socioeconômicos têm também os seus aspectos histórico-culturais. Neste último aspecto não é possível desconsiderar o papel histórico da elite intelectual e do Estado na formulação de ideias e de políticas raciais em prejuízo da população negra ao longo da história, sobretudo no período compreendido entre as últimas décadas do século XIX e os anos de 1930 do século XX. Para refletirmos sobre políticas de ação afirmativa (PAAs) no Brasil parece ser pertinente lançar mão da abordagem histórico-dialética. Ou seja, precisamos colocar a discussão dentro da história da sociedade brasileira. Sem desconsiderar as várias modalidades de PAAs, nosso foco, nesse texto, será a reserva de vagas (cotas) para negros no ensino superior público, pois dentre todas as medidas, esta é a que tem gerado maior polêmica no Brasil.

1. AS PRODUÇÕES ACADÊMICAS SOBRE O “MITO DA DEMOCRACIA RACIAL”

Sobre esse período, você pode conhecer mais lendo o artigo “O projeto UNESCO e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50”, disponível em: http://www. scielo.br/scielo. php?pid=S0102 -69091999 000300 009&scrip t=sci_ arttext

Ao longo do século XX, os estudos sobre desigualdades raciais evoluíram em termos de metodologia e perspectiva de análise. E esses estudos contribuíram muito para a formatação de novas compreensões das relações raciais, bem como para as ações do movimento social negro organizado. Tomando os estudos que questionam a ideia da “democracia racial” formulado a partir dos estudos de Gilberto Freyre, nos anos de 1930, podemos identificar três fases no que diz respeito aos estudos sobre relações raciais no Brasil. A primeira fase teve o sociólogo Florestan Fernandes como expoente. A partir de uma abordagem de classe social, o estudo de Fernandes e outros pesquisadores, realizado nos anos de 1950 foi encomendado pela UNESCO. O objetivo desta instituição era descobrir por que as relações raciais eram mais harmoniosas no Brasil que em outros países, como EUA e África do Sul. O resultado das pesquisas contrariou as expectativas, pois se descobriu que existia uma supremacia branca no Brasil e que a “polidez cerimoniosa” da elite branca, como descreveu Fernandes, não passava de uma tolerância dos brancos em relação aos 56


negros. A suposta harmonia não correspondia a uma igualdade de fato entre negros e brancos. A relevância desses estudos está no fato de ter sido o primeiro a analisar o vínculo entre raça e classe no processo de desenvolvimento socioeconômico brasileiro a partir de uma abordagem sociológica (HANCHARD, 2001). E também porque constituiu a primeira crítica sistemática à chamada “democracia racial”. Ao enfocar “as grandes distâncias entre brancos e negros”, esses estudiosos ajudaram a evidenciar tanto as oportunidades desiguais como a discriminação racial (SILVA, 2008). Assim, foi com os estudos de Fernandes que o contexto de relações raciais no Brasil passou a ser denominado “mito da democracia racial”. A segunda fase de estudos sobre desigualdades raciais no Brasil tem como principais expoentes Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva nos anos de 1970. Partindo de uma abordagem socioestrutural, esses autores analisaram dados censitários e, através de estudos conjuntos e individuais, procuraram não dissociar as categorias raça e classe. Assim, esses autores situaram a desigualdade racial no centro das relações econômicas. O foco desses estudos era evidenciar como a categoria “raça” operava no mercado de trabalho e na sociedade brasileira. O estudo de Hasenbalg, por exemplo, vai sustentar que a discriminação racial perpetua a desigualdade socioeconômica entre negros e brancos e “complementa funcionalmente o mercado de trabalho” na economia brasileira, distribuindo desigualmente as oportunidades em termos de educação, de emprego e até das escolhas matrimoniais (HANCHARD, 2001). A terceira fase dos estudos sobre desigualdades raciais tem como principais expoentes Michael G. Hanchard (2001) e Edward Telles (2003). Hanchard (2001) desenvolve uma análise política do racismo brasileiro. Sem desconsiderar os aspectos sociais e econômicos das desigualdades raciais, este autor procura enfatizar também os aspectos políticos e culturais na consolidação e manutenção das desigualdades entre brancos e negros. Assim, ele interpreta as relações raciais no Brasil como um caso de hegemonia racial branca, ou seja, como uma relação de supremacia dos brancos e de subordinação dos negros. A cultura, sedimentada pelas ideologias racistas (a ideologia do branqueamento e a ideologia da democracia racial), nesse caso, ganha importância na estruturação da desigualdade. Ela passa a significar mais um “parafuso das engrenagens de um processo hegemônico que distribui privilégios econômicos, políticos e culturais de acordo com a raça” (HANCHARD, 2001, p. 62). O estudo de Telles (2003) também procura dar conta tanto do aspecto cultural quanto do aspecto político que envolve as desigualdades raciais no Brasil. Partindo de uma perspectiva sociológica, o autor faz uma abordagem socioeconômica sem perder as implicações do papel do Estado e da cultura na estruturação da desigualdade racial. Para tanto,Telles estabeleceu um quadro bastante abrangente de investigação, procurando mostrar que as desvantagens sociais dos negros foram acumuladas historicamente e que a explicação delas deve levar em consideração a relação entre a elite branca e o Estado, bem como as ideologias racistas que estão na base do imaginário coletivo brasileiro. Nesta perspectiva, o autor procura constatar a operacionalidade dos “mecanismos informais de discriminação racial” no contexto sociorracial brasileiro. Assim, o desenvolvimento dos estudos sobre desigualdade racial no Brasil ajudou a revelar o contexto dessa desigualdade na sociedade brasileira. Grosso modo, parece ter existido ao longo do século XX uma apropriação pelo movimento social negro da produção científica sobre desigualdade racial. Assim, a começar por Fernandes, Hasenbalg e Silva até Hanchard e Telles, as ciências sociais parecem ter subsidiado a luta antirracista no Brasil. A histórica ação política dos negros/as parece ser caracterizada por dois momentos distintos e complementares: a luta pela denúncia e combate ao racismo e a luta pela promoção da igualdade racial. A marca deste último momento é a exigência de medidas concretas por parte do Estado e da sociedade, o que coloca a implementação de políticas públicas preferenciais na agenda política brasileira. 57

Kabengele Munanga propõe um debate específico sobre o mito da democracia racial. Acesse: “Consciência negra: o mito da democracia racial”, disponível em: http://www. fpabramo.org.br/ blog/conscienc ia-negra-o-mito-dademocracia-racialpor- kabengelemunanga

No artigo “Políticas Públicas, Relações Raciais e Educação: Reflexões sobre a implantação das políticas de ações afirmativas no Estado Brasileiro”, você tem mais informações sobre essa fase. Acesse: http://www. editoraufjf.com.br/ revista/index .php/ csonline/article/ viewFile/386/359

O conceito de hegemonia foi desenvolvido pelo filósofo Antonio Gramsci. Na análise de Hanchard das relações raciais no Brasil, o conceito de hegemonia foi compreendido como uma superioridade moral e intelectual dos brancos conquistada e mantida através do consentimento dos negros (HANCHARD, 2001, p. 36).


2. POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA: CONCEITO, HISTÓRICO E ABORDAGEM Ação afirmativa, ação positiva, discriminação positiva ou política compensatória são terminologias usadas para definir as ações (governamentais ou privadas) que visam oferecer um “tratamento diferenciado” a grupos e/ou indivíduos que tenham sido historicamente discriminados e excluídos socialmente. Política de ação afirmativa se caracteriza como política pública específica ou política preferencial, ou seja, uma ação pública do Estado em favor de grupos sociais específicos. Ação afirmativa representa, na prática, um leque amplo de medidas compensatórias tais como leis, incentivos governamentais e privados, reserva de vagas (cotas) no mercado de trabalho e na educação, concessão de bolsas e bonificações em concursos, dentre outras. Embora não tenha uma grande diferença de conteúdo, aqui estabeleceremos uma distinção entre ação afirmativa (AA) e política de ação afirmativa (PAA). Por AA, compreendemos as iniciativas da sociedade civil e setor privado, implementadas no Brasil desde a década de 1990 como, por exemplo, os cursos pré-vestibulares para negros e carentes. Já por PAA, compreendemos as iniciativas estritamente estatais, implementadas no país a partir do início da década de 2000, a exemplo das reservas de vagas (cotas) nas universidades públicas. Alguns estudiosos concebem PAA como políticas de reparação e reconhecimento de minorias discriminadas no passado e no presente. Assim, podemos considerar a seguinte definição:

Políticas de reparações e de reconhecimento formarão programas de ações afirmativas, isto é, conjunto de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para a oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória (BRASIL, 2004, p. 12, destaque do autor).

Este argumento pode ser ilustrado pelo estudo de Marcelo Paixão (2005). O autor calculou o IDH de brancos e negros brasileiros separadamente, em 2002, chegando aos seguintes Índices e Rankng: Brasil (0, 790; 63a), brancos (0, 839; 42a) e negros (0, 727; 102a). O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é usado pela ONU para medir a qualidade de vida de países, regiões e grupos de pessoas. Quanto mais próximo de (1) um for o Índice melhor será a qualidade vida e quanto mais próximo de zero (0) pior será a qualidade de vida.

Esta noção, no conteúdo, contempla os três tipos de argumentos justificadores de PAAs. João Feres Junior (2006, p. 46-55), ao analisar as Políticas de Ações Afirmativas nos Estados Unidos, ressalta a reparação, a justiça distributiva e a diversidade como os argumentos justificadores na história de tais políticas naquele país. Para o autor, diferente dos Estados Unidos em que os argumentos justificadores tiveram uma evolução ao longo do tempo, no Brasil eles apareceram quase que ao mesmo tempo. Para Feres Jr., os argumentos da reparação e da diversidade puramente encontrariam problemas para justificar as PAAs no contexto brasileiro. No caso da reparação, porque existe dificuldade de se identificar as vítimas diretas, pois a reparação tem como foco o indivíduo como “recipiente de direito”, por exemplo, as vítimas da ditadura militar. Em outras palavras, isso é difícil no Brasil devido ao grau de miscigenação biológica da população e ao distanciamento temporal com o período escravocrata. Já o argumento da diversidade exige do indivíduo maior identificação com relação a sua etnia, ou seja, a partir da identificação étnica melhor definida de um grupo social um Estado poderia implantar políticas apoiadas em concepções identitárias étnico-raciais, se não essencialistas no mínimo pragmáticas. Tal situação também pode ser difícil de constatar no contexto brasileiro já que os beneficiados das PAAs não têm uma identidade étnico-racial bem definida. Então, para Feres Jr. (2006), o argumento justificador da justiça social seguido do argumento da reparação “como fonte de direito difuso”, constitui o mais adequado para justificar a implantação de PAAs 58


no Brasil. Segundo afirma, PAAs em benefício de pretos e pardos encontra sua legitimidade “em três fatos sociológicos [...]: 1) o perfil socioeconômico daqueles que se identificam como pretos e pardos é similar e, por seu turno, 2) significativamente inferior aos dos brancos; 3) juntas essas frações totalizam quase 50% da população brasileira” (FERES JR., 2006, p. 58). Concordando com Feres Jr., é possível considerarmos o argumento da justiça social combinado com o argumento da reparação, enquanto “direito difuso”, como mais pertinentes para justificar a implantação de PAAs no contexto brasileiro. Pois a justiça social combate a desigualdade do presente, sem considerar desvantagens arraigadas ao longo da história por um determinado grupo social. No caso da população negra brasileira, estas desvantagens, além de socioeconômicas (precariedade no mercado de trabalho, educação deficitária e local de moradia socialmente vulnerável, entre outras), podem significar também a ausência de um patrimônio cultural e simbólico (dificuldade de acessar bens culturais produzidos pela sociedade, ausência de modelos positivos socialmente reconhecidos, desconhecimento das realizações históricas do seu povo, predominância de uma “estética da brancura”, entre outras coisas). Desta forma, torna-se importante pensar as PAAs projetando os seus resultados, inclusive com a necessidade de garantia de reconhecimento da diversidade étnico-racial da população brasileira. Assim, o argumento da diversidade poderá ser relevante no futuro como indicador de uma equidade nas posições de decisão e de comando, já que a população negra encontra-se sub-representada nessas posições, enquanto a população branca apresenta-se sobre-representada. Esta necessidade foi apontada pela própria ONU. Zoninsein e Feres Jr. (2006) comentando o “Relatório do Desenvolvimento Humano 2004 das Nações Unidas” – que recomendava aos Estados a adoção de políticas que reconhecessem explicitamente “diferenças culturais” – concluem que:

Há fortes evidências de que o crescimento econômico per se não promove automaticamente a superação da discriminação racial. A expansão universal de programas e oportunidades sociais, mesmo no paradigma do Estado de Bem-Estar Social, não eliminou a desigualdade racial e étnica. Portanto, são necessárias políticas multiculturais que reconheçam de maneira explícita a exclusão étnica e racial (ZONINSEIN E FERES JR, 2006, p. 11, destaque dos autores).

O debate sobre PAAs, sobretudo para negros, iniciou no Brasil a partir da década de 2000. Contudo, desde meados do século XX, vários países no mundo vêm adotando estas medidas como forma de promoção da equidade junto às suas populações, dentre outros destacamos: Índia, Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, Malásia e África do Sul. Tomando as duas experiências mais citadas no debate sobre PAAs no Brasil, Índia (1950) e Estados Unidos (1960), podemos compreender as possibilidades e os desafios dessas políticas no contexto brasileiro. Considerando as diferenças de contextos socioculturais, o indiano marcado por uma milenar cultura de estratificação social rígida (sistemas de castas) e o estadunidense com o predomínio da cultura de mobilidade social, do desejo de participação no “sonho americano”, parece que o Brasil, no tocante a implementação de PAAs, evidencia características mais próximas do contexto indiano. Na Índia, os primeiros beneficiados das PAAs foram “os intocáveis” (Dalits) e os “grupos tribais” (Adivasis) e depois foram incluídos outros segmentos da população. Nos Estados Unidos, os primeiros 59

Sobre as desvantagens arraigadas, ver SEN, Amartya Kumar. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001.


beneficiados foram os negros e, na década de 1970, foram incluídos os hispânicos e indígenas. Contudo, parece que a dinâmica sociocultural pode ter marcado a formatação das PAAs nesses dois países. Enquanto na Índia estas políticas tomaram a forma de “reservas de posições ou de assentos”, as vagas são reservadas segundo a proporcionalidade do grupo social beneficiado em relação à população geral e a implantação ficou, predominantemente, a cargo do governo, limitando-se basicamente ao setor público (serviços, ensino superior, cargos eletivos). Nos Estados Unidos, as PAAs tomaram a forma de “vantagem adicional” (boost) e a implementação e ampliação delas contou com a participação da sociedade civil (organizações não-governamentais e setor privado) (WEISSKOPF, 2008). Outra questão que chama a atenção nos estudos sobre Índia e Estados Unidos é que as PAAs, como toda política pública, têm benefícios sociais (maior integração dos beneficiários nas profissões de elite; distribuição mais igual do capital social; maior motivação dos estudantes; e redistribuição parcial de renda) e também custos sociais (aumento das divisões étnicas e de casta; desempenho acadêmico relativamente baixo dos cotistas; desvalorização do sucesso obtido pelos beneficiados; questionamentos sobre eficiência da PAA; e a persistência das desigualdades tanto no acesso quanto na conclusão à educação universitária entre os estudantes de minorias). Assim, cabe ao Estado e à sociedade potencializar os benefícios e minimizar os custos sociais das PAAs. Acreditamos que aqui não cabe uma postura tipo “bem ou mal”, ou seja, aceitamos ou negamos as PAAs, pois o que está em jogo é o destino do Brasil como país próspero ou não. Assim, passados quase uma década de PAAs no Brasil, o que é possível inferir a partir das informações sobre a experiência da Índia e dos Estados Unidos? É possível considerar que o contexto sociocultural brasileiro, apesar de impregnado dos valores liberais estadunidense, preserva fortes marcas culturais de valores aristocráticos. Aqui a origem dos indivíduos é ainda determinante para o sucesso socioeconômico e os grupos sociais mais excluídos são fortemente estigmatizados, sobretudo negros e indígenas. No Brasil e na Índia parece-nos que estas políticas aparentemente têm como foco grupos preferenciais socialmente paralisados.Tal imobilismo estruturou-se historicamente, por um lado, pela divisão do trabalho excludente e o impedimento a bens sociais e, por outro, pela difusão de uma cultura racista. Nesse sentido é que no debate sobre PAAs no Brasil torna-se preponderante considerarmos fatores socioculturais, econômicos e políticos. Pelas características históricas e sociais, as PAAs no Brasil têm um caráter abrangente. Os beneficiados dessas políticas constituem um grande contingente populacional: somando negros, indígenas e brancos pobres, o percentual ultrapassa os 50% da população. Contudo, como na Índia e nos Estados Unidos, no Brasil a implementação dessas políticas não está totalmente livre de alguma tensão social (WEISSKOPF, 2008).

3. MOVIMENTO SOCIAL E A LEGITIMIDADE LEGAL DAS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA A reivindicação do movimento social negro por políticas públicas preferenciais, sobretudo pelo direito à educação formal, não é recente, remete- nos ao início do século XX. O Brasil, ao longo do século passado, teve uma conturbada trajetória política, marcada por ditaduras, golpes e corrupção. Contudo, no tocante à política racial, o Estado brasileiro se mostrou alinhado ao projeto de supremacia racial branca (TELLES, 2003; HANCHARD, 2001). Mesmo assim, desde os anos de 1940, as organizações negras, especialmente o Teatro Experimental do Negro (TEN), vinham apresentando sua pauta de reivindicação ao Estado. Em 1946, a Convenção Nacional do Negro Brasileiro, realizada em São Paulo e no Rio de Janeiro, nos anos de 1945 e 1946, respectivamente, apresentou um “Manifesto à Nação Brasileira” a todos 60


os partidos políticos, já que em 1946 aconteceria uma Assembléia Nacional Constituinte para a elaboração de uma nova Constituição. Entre as seis reivindicações do manifesto, a quarta era sobre educação:

Enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos brasileiros negros, como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos estabelecimentos militares (SANTOS, 2009, p. 128).

No período da redemocratização, após o fim da ditadura militar, as reivindicações por educação continuaram junto ao Estado. Ao retornar do exílio e ser eleito, o então deputado federal Abdias do Nascimento (1983-1987) tornou-se o porta-voz das reivindicações negras no parlamento brasileiro. Em 1983, apresentou o Projeto de Lei (PL) no 1.332. No que se refere à educação, nesse documento destacamos os seguintes artigos:

Art. 7o- Serão concedidas a estudantes negros bolsas de estudo de caráter compensatório.Art. 8o- O Ministério de Educação e Cultura [...] conjuntamente com representantes das entidades negras e com intelectuais negros comprovadamente engajados no estudo da matéria, estudarão e implementarão modificações nos currículos escolares e acadêmicos, em todos os níveis [...] (DIARIO DO CONGRESSO NACIONAL, 1983, p. 5163).

Cabe ressaltar, entretanto, que a presença de Abdias do Nascimento e de outros militantes negros na Câmara dos Deputados teve um significado não só para o momento, mas para o futuro, pois o ambiente político era de uma nova Assembléia Nacional Constituinte para elaboração da Constituição de 1988. Como porta-voz do movimento social negro, Abdias também apresentou suas propostas aos constituintes de 1987 (SANTOS, 2009). Entretanto, somente a partir de meados dos anos 1990 é que as demandas dos negros começaram a entrar, concretamente, na agenda do governo brasileiro. Em 1995, o movimento social negro organizou a “Marcha Zumbi Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida” que levou a Brasília milhares de militantes de todo país e entregou um documento ao presidente da república. No ano seguinte, em 1996, o Ministério da Justiça realizou um seminário em Brasília para discutir políticas voltadas para grupos discriminados racialmente e, na ocasião, o presidente da república assumiu publicamente que o racismo era uma realidade no Brasil. Mas o momento mais significativo foi a mobilização em torno da preparação e da participação na III Conferência da ONU contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas na cidade de Durban, África do Sul, em setembro de 2001. Além da histórica pauta do movimento social negro, o IPEA divulgou dados sobre desigualdade racial, a Fundação Palmares organizou um ciclo de debates e o governo promoveu uma Conferência Nacional Preparatória (HERINGER, 2006). O documento apresentado pelo governo brasileiro nessa Conferência da ONU refletiu um intenso debate. Dentre as 23 propostas destinadas à promoção dos direitos da população negra estava, por exemplo, a “adoção de medidas reparatórias às vítimas do racismo”, com ênfase na educação e no trabalho e a recomendação de “adoção de cotas nas universidades e outras medidas afirmativas de acesso de negros às universidades públicas” (HERINGER, 2006, p. 81). 61


O período pós-conferência de Durban coincidiu com um novo contexto político nacional estabelecido pela eleição de Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT) para presidente da república. Assim pudemos constatar um deslocamento do governo para questões mais sociais, bem como uma pressão nos agentes político-administrativos a apoiarem concretamente as reivindicações negras, já que o PT sempre esteve alinhado com os movimentos sociais, entre esses o movimento negro. Em oposição a esse novo contexto sócio- político, desde 2003, um setor da elite conservadora brasileira vem reagindo com veemência contra a implementação de PAAs para negros, sobretudo contra a política de cotas nas universidades públicas.

Leia a notícia “Grupo protesta no Congresso contra cotas para negros” (Folha online em 29/06/2006). Disponível em: http://www1. folha.uol.com.br/ folha/educac ao/ ult305u18764. shtml

O texto completo desse manifesto em favor das cotas está disponível em https:// www.geledes. org.br/artigossobre- cotas/ confira-a-integrado-manifesto-afavor-das-cotas. html

ADI 3.330, contra o Prouni. Disponível em www.conectas.org/ stfemfoco/anexo/ read/ac oes/153. E também a ADI 3.197 contra o sistema de cotas nas universidades do Estado do Rio de Janeiro.

Esse manifesto está disponível em: http://revistaepoca. globo.com/ Revista/Epoc a/1,,EDG834666014,00.html

Algo talvez inédito no Brasil tenha sido “os Manifestos” contrários a políticas de cotas entregues no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal (STF), respectivamente em 2006 e 2008. No momento que começaram a tramitar o projeto de “Lei de Cotas” (PL 73/1999) e o Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) em junho de 2006, um manifesto assinado por 144 intelectuais, artistas e ativistas foi entregue aos presidentes do Senado e da Câmara contra os referidos Projetos de Lei. Segundo o texto, esses projetos eram uma ameaça de extinção do “princípio da igualdade política e jurídica”, já que implantavam “uma classificação racial” e passavam a “definir direitos das pessoas [...] com base na tonalidade da sua pele”. Também lembrava que políticas dirigidas a grupos “„raciais estanques” poderia produzir “o acirramento do conflito e da intolerância”. Por fim, apontava como “caminho para o combate à exclusão social”: a existência de “serviços públicos universais de qualidade”. Em oposição, em julho do mesmo ano foi entregue outro manifesto. Esse “em favor da lei de cotas e do estatuto da igualdade racial”, assinado e apoiado por mais de 500 intelectuais, artistas e ativistas. O texto lembrava que a “desigualdade racial tem fortes raízes históricas” não sendo possível a sua superação sem adoção de “políticas públicas específicas”. Fazia referência à Constituição de 1891 e ao “racismo estatal” no século XX como fatores que contribuíram para o aprofundamento da desigualdade entre negros e brancos. Apontava as mudanças nos últimos governos como “resposta” do Estado aos “instrumentos jurídicos internacionais”. Denunciava o “quadro de exclusão racial no ensino superior” como um dos “mais extremos do mundo”. Contra o “panorama alarmista” de que a inclusão de estudantes negros por cotas provocaria “conflitos raciais nas universidades”, argumentava que “os casos de racismo” estavam sendo resolvidos pelas próprias “comunidades acadêmicas” e que as cotas contribuíram para “combater o clima de impunidade diante da discriminação racial no meio universitário”. Em 2008, diante da preocupação com o julgamento de duas ações diretas de inconstitucionalidade pelo STF, um manifesto contra a política de cotas foi entregue também ao presidente do Supremo. Chamado de “Manifesto Cento e Treze Cidadãos Anti-Racionais contra Leis Raciais”, o argumento dos manifestantes era que cotas raciais não reduziriam as desigualdades e sim acabariam ocultando os verdadeiros problemas sociais, bem com gerariam outros. Questionava o que, para eles, era a racialização do debate e reafirmava que o acesso ao ensino superior era limitado pela diferença de renda e não de cor. Portanto, segundo os manifestantes, “as cotas raciais [eram] „a face mais visível de uma racialização oficial das relações sociais que ameaça a coesão nacional.” (PAULA, 2008, p. 231-232). Em resposta a esta manifestação, foi entregue ao presidente do STF outro manifesto em defesa da política de cotas. Este, “assinado por mais de mil pessoas [...]”, argumentava que as cotas cumpriam sim “o papel de compensar a histórica exclusão dos negros das universidades [...]”. Ainda sobre o uso do critério de raça para definir os beneficiados, questionava que “os aspectos culturais e históricos de uma raça podem ser usados para fins de discriminação [...] mas também permitem que se faça uma reflexão sobre a adoção de políticas de inclusão [...]” (PAULA, 2008, p. 233). Desde o início da discussão sobre PAAs no Brasil, vários argumentos têm sido difundidos pelos 62


opositores destas políticas. Os principais argumentos catalogados contra a reserva de vagas para negros, não cronologicamente, são os seguintes: a) cotas não podem usar o critério racial, pois há dificuldades para definir quem é negro no Brasil; b) cotas vão degradar a qualidade das universidades públicas; c) cotas são inconstitucionais, pois ferem o princípio da igualdade legal; d) cotas subvertem o princípio do mérito acadêmico; e) cotas para negros representam uma injustiça contra brancos pobres e contra índios; f) cotas não ajudam a reduzir a discriminação, como mostra os Estados Unidos; g) cotas vão atingir o orgulho e a auto-estima dos negros; h) cotas podem gerar conflitos e hostilidade racial, ou seja, podem racializar o Brasil (MUNANGA, 2007). Contudo, a literatura sobre a experiência brasileira de PAAs tem ajudado a declinar tais argumentos contrários. Com relação à identificação dos beneficiados, apesar de problemas registrados em algumas universidades, pode-se dizer que o critério da autodeclaração conjugado (ou não) com algum tipo de controle social tem sido positivo. Com relação ao mérito e à degradação da qualidade do ensino superior, a experiência mostrou que o vestibular não é a única e nem a melhor forma de acesso, pois tem evidenciado que os melhores classificados no vestibular nem sempre são os melhores durante os cursos. Também as PAAs não constituem uma injustiça para os brancos pobres e índios, pois as políticas de cotas implementadas têm contemplado também esses dois grupos excluídos em quase todas as universidades, assim como não têm afetado negativamente a auto-estima dos negros. No que se refere à redução da discriminação, sabemos que, de fato, estas políticas não mudarão valores e comportamentos, mas elas podem ajudar na promoção da equidade e diversidade nos campi. Com relação ao argumento da racialização tão difundido pelos detratores das PAAs, Munanga (2007) nos lembra que o racismo já existe, desde sempre no Brasil, porém sempre se manteve silenciado e encoberto pelo mito da democracia racial.

PARA REFLETIR Até o momento, não existe registro de significativos conflitos raciais por motivos da integração nas universidades brasileiras. Assim, precisamos perguntar de onde viriam as hostilidades: dos brancos pobres, dos índios ou das classes rica e média branca? (MUNANGA, 2007).

Sobre a inconstitucionalidade, evidências apontam que a legislação autoriza a discriminação positiva para fins de promoção da igualdade substantiva. Entre os estudiosos da matéria, predomina o entendimento da existência de um respaldo legal para as PAAs no ordenamento jurídico brasileiro (BERTÚLIO, 2008; SILVA JR., 2003). Tal respaldo legal para as PAAs, segundo os juristas, encontra-se na Carta Constitucional de 1988, bem como nos documentos internacionais (Declarações, Convenções e Tratados) dos quais o Brasil é signatário e que também são considerados parte do ordenamento jurídico brasileiro (BERTÚLIO, 2008). Ao longo do século XX, temos registros de intervenções do Estado brasileiro para proteger trabalhadores e produtores rurais (o governo Vargas em 1930 decretou a “Lei dos 2/3” e o governo militar em 1968 promulgou a “Lei do Boi”). Contudo, é a Constituição de 1988 que estabelece aquilo que chamamos de “intervenção positiva”. Esta Constituição representou um marco jurídico do processo 63

Em 2006, o Programa Políticas de Cor na educação brasileira catalogou e publicou dez argumentos contrários às cotas. Cf. “Dez mitos sobre as cotas” (PPCOR/ LPP/UERJ). Leia-os acessando o link: http://www.ufmg. br/ inclusaosocial/ ?p=53


de democratização da sociedade brasileira depois de um longo período de ditadura militar (SILVA JR, 2003). Assim, não é de espantar que o texto resultante da constituinte de 1987/1988 refletisse os anseios de uma sociedade mais justa e igualitária. A Carta de 1988 refletiu a participação das entidades populares no processo constituinte e, diante da constatação do grave quadro de desigualdade social, “consagrou um amplo leque de enunciados destinados à repressão da discriminação e à promoção da igualdade de oportunidade e de tratamento” (SILVA JR, 2003, p. 104). Assim, a sociedade brasileira passa a reivindicar o dispositivo da discriminação positiva presente no ordenamento jurídico para a promoção da igualdade. Ou seja, diante da desigualdade social, utiliza o princípio do “tratar desigualmente os desiguais”. Nesse sentido, a Constituição brasileira permite a discriminação positiva e a implementação de políticas de promoção da igualdade para indivíduos e/ou grupos, bem como atribui este dever ao Estado. Desde sua promulgação, passos importantes têm sido dados neste sentido. Como exemplo, destacamos a proteção às mulheres no mercado de trabalho (art. 7o, XX) e aos portadores de deficiência física no serviço público (art. 37o, VIII). Além da discriminação positiva, a Constituição reconhece também a pluralidade étnica e cultural do Brasil (arts. 215o; 216o). Pode-se concluir, dessa forma, que a implementação de PAAs vinculam- se a um projeto social e democrático de nação. Isso se evidencia quando se lê os objetivos do Estado brasileiro expressos no artigo 3o da Constituição:

Art. 3o. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade livre, justa e solidária; II- garantir o desenvolvimento nacional; III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV- promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1999).

Diante de um quadro social de desigualdade econômica e educacional entre brancos e negros, o Estado pode e deve implementar políticas públicas como instrumento de promoção de justiça social e histórica. A intervenção do Estado na promoção da igualdade de oportunidades para todos e cada um remete não a uma igualdade formal, de caráter liberal, mas uma igualdade substantiva, de caráter social, ou seja, igualdade que caminha na distribuição efetiva dos bens e da riqueza sociais entre todos/as. É preciso ressaltar ainda que o Estado brasileiro, além da sua Constituição, assumiu compromissos internacionais específicos sobre o combate da desigualdade racial e a discriminação racial. Podemos citar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 1968 e a Declaração e Plano de Ação de Durban, resultantes da III Conferência Mundial Contra o Racismo Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada na cidade de Durban, na África do Sul, das quais o Brasil se constitui signatário. Entre outras determinações, a Declaração de Durban incentiva os países a combaterem desigualdades sociais resultantes de racismo e da discriminação racial. Citaremos textualmente, entre outros, o item 99o do Plano de Ação:

99. Reconhece que o combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata é responsabilidade primordial dos Estados. Portanto, incentiva os Estados a desenvolverem e elaborarem planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, eqüidade, justiça social, igualdade de oportunidades e participação para todos. 64


Através, dentre outras coisas, de ações e de estratégias afirmativas ou positivas; esses planos devem visar a criação de condições necessárias para a participação efetiva de todos nas tomadas de decisão e o exercício dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais em todas as esferas da vida com base na nãodiscrimininação [...]. (DURBAN, 2001).

Como se pode ver, as ações que o Estado brasileiro vêm implementando a favor da sua população negra, além de estarem em conformidade com a Constituição também representam o cumprimento de compromissos internacionais, por exemplo, os firmados na Conferência da ONU, em Durban. Esses compromissos foram reafirmados em abril de 2009 pelo governo brasileiro na Conferência de Revisão do Plano de Durban, em Genebra, Suíça.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma análise superficial das PAAs no Brasil aponta uma tendência de concentração no setor público e na área da educação, permanecendo inexpressivas no setor privado e no mercado de trabalho. Segundo dados do Programa Políticas da Cor (LPP/UERJ), setenta e nove (79) instituições públicas de ensino adotam PAAs. Destas, trinta e cinco (35) adotam PAAs para negros, sendo que trinta e duas (32) adotam sistema de cotas e três (3) adotam o sistema de pontuação adicional. No âmbito da legislação, foi aprovado e promulgado o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) e o STF julgará em breve uma ADPF 186 (ação de inconstitucionalidade) contra a PAA na Universidade de Brasília que pode gerar jurisprudência sobre esta matéria. No mercado de trabalho existem informações de adoção de PAA por parte de governos, por exemplo, no Estado do Paraná, por meio da Lei 14.274/2003. No setor privado, parece haver pouco avanço: as poucas informações vêm de empresas multinacionais, porém sem muita relevância seja do ponto de vista simbólico ou estrutural.

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Jurisprudência é a coletânea das decisões proferidas pelos nossos tribunais.

A Lei 14.274 estabelece 10% das vagas em concursos públicos para pessoas afrodescendentes. Acesse-a em: http://www. legislacao.pr.gov. br/legislacao/ pesquisarAto. do?action= exibir&cod Ato=25 2&indice= 1&totalRegistros=1


REFERÊNCIAS

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ATIVIDADES

Para fazer todas as atividades aqui propostas, você precisará acessar vídeos disponíveis na internet sobre a Audiência Pública sobre Ações Afirmativas no Superior Tribunal Federal, realizada em 2010. 1. Para realizar essa atividade, você precisará acessar o endereço eletrônico abaixo e depois selecionar o trecho que inicia aos 15 minutos e termina aos 35 minutos do vídeo: http://www.youtube.com/watch? v=lBfsV3tH0T0&feature=related Após assistir à exposição de Deborah Duprat (Ministério Público Federal), discuta no fórum as mudanças promovidas pela Constituição de 1988 de um modelo de sociedade homogênea para um modelo de sociedade plural. 2. Acesse o link abaixo e selecione o trecho que inicia aos 3 minutos e termina aos 13 minutos do vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=Ug7VpRGbK9Q&feature=relmfu Depois de assisti-lo, produza um texto de uma lauda sobre o vídeo do professor Fábio Konder relacionando a necessidade de políticas afirmativas para os negros com a proteção legal dispensada a outros segmentos sociais como as mulheres e portadores de deficiência. Envie-a em arquivo único, no seguinte formato:

CURSO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA EM EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS – MEC/SECAD E CIPEAD/NEAB-UFPR NOME: _________________________________________________________ POLO: __________________________ TURMA: _______________________ MÓDULO: _____ ATIVIDADE: _____

Texto

3. Em outro link indicado a seguir, selecione o trecho que inicia aos 30 minutos e termina aos 45 minutos do vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=SVPeUYRNCNA Na exposição do professor João Feres Junior (IUPERJ) identifique os três raciocínios sociológicos desenvolvidos por ele sobre a legitimidade de políticas de ação afirmativa no Brasil. Discuta no fórum a relevância destes argumentos e se você concorda ou discorda. Não se esqueça de interagir com colegas. 68


SUGESTÃO DE LEITURA Sugestões de leituras, links e vídeos

Laeser http://www.laeser.ie.ufrj.br/

Laboratório de Políticas da Cor http://www.politicasdacor.net/

FONSECA, Dagoberto José da. Políticas públicas e ações afirmativas. São Paulo, Selo Negro, 2009.

Simples Raportagem - Proj. Quadro Negro nas escolas http://www.youtube.com/watch?v=qxb8NTajO7E

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Hwehwemudua Bastão de procura ou de medida Símbolo da excelência, da perfeição, do conhecimento e da qualidade superior.

O PAPEL DAS MULHERES NEGRAS NOS MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA Tania Aparecida Lopes1 Débora Oyayomi Cristina de Araujo2

Este texto tem como objetivo estabelecer algumas considerações e relações entre as diferentes formas de resistência da população negra, sobretudo das mulheres negras, contra o sistema escravocrata brasileiro, bem como as permanências diante das desigualdades raciais no Brasil que dificultam/ impedem a mobilidade social e aquisição de bens e serviços. Propomos uma maior evidência das mulheres negras por entendermos que diante das desigualdades de mobilidade social estas são as que se encontram em situação mais vulnerável. Além disso, historicamente a biografia de muitas das mulheres que marcaram a história do país foram suprimidas ou omitidas e merecem, diante da sua importância e representatividade, visibilização e reconhecimento.

Mestra em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Professora de história da rede estadual de educação do Paraná. Coordenadora do IPAD Brasil – Instituto de Pesquisa da Afrodescendência. 2 Doutoranda e mestra em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Professora de língua portuguesa da rede estadual do Paraná. 1

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1. INTRODUÇÃO

“Resistência: Qualidade de um corpo que resiste a ação de outro; recusa, oposição aos desígnios e vontades de outrem.” (Minidicionário Luft, 2002, p. 574)

Alguns estabelecimentos de ensino têm promovido atividades como conferências, palestras, seminários, oficinas, tendo como tema principal a Educação das Relações Étnico-Raciais e/ou História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que algumas vezes são ministradas por docentes negras/os. Nesses eventos, algumas/uns dessas/es docentes, quando são questionadas/os sobre as formas de resistência da população negra a escravização, costumam responder mais ou menos assim: “O Movimento Negro entende que desde a chegada forçada da primeira pessoa africana que pisou em solo brasileiro vinda do continente africano na condição de escravizada/o, buscou formas de resistência contra essa condição imposta a si e às/aos suas/seus”. Assim, sugerimos que o argumento apresentado anteriormente possa ser compreendido por você, cursista, a partir da ideia expressa na epígrafe desse texto. O objetivo é discutir as formas de resistências dos corpos e do pensamento de mulheres e homens negros ao processo de escravização, imposta por desígnios principalmente econômicos das/os escravizadoras/es. Assim, propomos que as informações e/ou reflexões sejam interpretadas de uma forma que possam contribuir para possíveis relações com as desigualdades raciais ainda presentes em nossa sociedade, que são evidenciadas nos índices de acesso à educação, ao mercado de trabalho, à saúde, à moradia, em comparação entre a população descendente de africanas/os escravizadas/os ou não e a população branca descendente de escravocratas ou não. E que possam, de alguma forma, colaborar com nossas práticas pedagógicas no sentido de elevar a autoestima de todas/os no espaço escolar. Procuramos evidenciar, sempre que for possível, a presença e as formas encontradas de resistência pelas mulheres negras durante o período escravocrata brasileiro, bem como as adversidades ainda impostas para a sua mobilidade social em virtude da dupla discriminação sofrida por elas, devido às desigualdades raciais e de gênero em nossa sociedade.

SAIBA MAIS Os resultados dos estudos realizados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômico (DIEESE), no período de 2004-2005, nas maiores regiões metropolitanas do país, apontam que as mulheres negras estão na base da pirâmide social, quando o assunto é mercado de trabalho. Elas são as mais pobres, em situações mais precárias de trabalho, recebem os menores salários, têm as maiores taxas de desemprego e contraditoriamente por dependência maior do trabalho para o sustento de suas famílias, são as com maior número dos índices da População Economicamente Ativa se comparadas às mulheres não negras. Você pode acessar o documento na íntegra no link: http://portal.mte.gov. br/data/files/FF8080812CB90335012CC6DC77186908/estpesq141 12005_ mulhernegra.pdf 72


2. CONCEITOS DE RESISTÊNCIA PARA O MOVIMENTO NEGRO Entendemos aqui todas as formas de resistência como resultado da opressão e sofrimento das/os escravizadas/os no Brasil, desde o momento em que foram arrancadas/os à força de suas famílias em terras africanas, do momento de sofrimento durante toda a travessia do Atlântico (quando muitas/os se jogavam ao mar na busca pela liberdade ou talvez com a esperança que pudessem retornar ao seu território) até o momento que aqui chegaram e foram vendidas/os como mercadorias. Entre as diferentes formas encontradas pela população negra de resistência contra o sistema escravocrata no Brasil, os Quilombos são apontados por pesquisadoras/es sobre o tema como sendo a primeira e principal forma de resistência organizada por africanas/os e suas descendências. E nesse tipo de organização as mulheres exerceram importante influência. Por entendermos que a forma de organização dos quilombos é bastante complexa, já que seu conceito tem sido historicamente modificado para atender às especificidades de auto-identificação, pertencimento e autodeclaração, a nossa opção é de nos atermos ao seu significado relacionado à ideia de resistência. Para Maria de Lourde Siqueira (s/d, p. 3),

[o]s Quilombos representam uma das maiores expressões de luta organizada no Brasil, em resistência ao sistema colonial-escravista, atuando sobre questões estruturais, em diferentes momentos histórico-culturais do país, sob a inspiração, liderança e orientação político ideológica de [africanas e] africanos [escravizadas e] escravizados e de [suas e]seus descendentes de [africanas e] africanos [nascidas e] nascidos no Brasil.

SAIBA MAIS Quilombos no Paraná De acordo com o Decreto nº 4887 de 20 de novembro de 2003, que Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. § 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. § 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. § 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. De acordo com “Quilombos do Paraná Relatório 2005-2010”, elaborado pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura, no Paraná existem: Trinta e seis Comunidades Remanescentes de Quilombolas já certificadas pela Fundação Cultural Palmares; vinte Comunidades Negras Tradicionais e trinta e duas Comunidades com indicativos, mas ainda não classificadas.

Você pode acessar o Decreto no 4887 através do link: http://www.cpisp. org.br/htm/ leis/ fed14.ht m

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Para mais informações sobre a formação dos Quilombos no continente africano e suas relações com as formações desses no Brasil, leia de Kabengele Munanga o texto “Origem e histórico do Quilombo na África”. Texto disponível no link: http:// www.4shared.com/ get/EL7TF YxJ /Kabengele_ Munanga__Origem_e_ H.html;jsessionid= 8F6FFB1 125F67A74 A4857F B8D680F5 26.dc209. Também, informações sobre a importância da República de Palmares, no texto de Maria de Lourdes Siqueira, “Quilombos no Brasil e a singularidades de Palmares”, estão disponíveis em: http://www.smec. salvador.ba.gov. br/ documentos/ quilombos-nobrasil.pdf

De acordo com Kabengele Munanga (1995/1996) para compreendermos o sentido da formação dos quilombos no Brasil, necessitamos antes entender a história do surgimento desses, entre o século XVI e XVII na África. Para o Munanga, a palavra quilombo é de origem dos povos de língua Bantu. Seu conteúdo, para o autor, diz respeito a uma história complexa de organização político, social, econômica e militar da união de grupos de diferentes origens étnicas, das regiões do Zaire e Angola por disputas de poder no continente africano. Nesse momento, não podemos nos aprofundar nas especificidades e complexidades das diferentes formas de organização dos mesmos no continente africano. Mas considerando a ideia de quilombo associada à resistência, temos como exemplo de personalidade histórica que mostrou força e estratégia: trata-se de Rainha Nzinga, apontada como exemplo de resistência à invasão portuguesa, durante o século XVII, na região que hoje é conhecida como Angola. Nzinga é reconhecida historicamente como grande estrategista e guerreira e, devido a sua força como chefe militar, retardou a invasão de Angola pelos portugueses que só foi possível após uma negociação com a mesma.

PARA REFLETIR Leia essa citação de Selma Pantoja (2010, p. 320): A historiografia africana tem desenvolvido uma pequena, porém ativa, produção sobre a atuação das mulheres na história do continente. Apesar dos grandes avanços hoje da historiografia sobre a história das mulheres, infelizmente o lugar da mulher na economia do período escravista, por exemplo, como investidora, consumidora e, sobretudo como transmissora de processos sócio- ideológicos, tem tido uma tendência a ser ignorada pelos historiadores e estudiosos em geral. Existe uma grande dificuldade em desvelar trajetórias de mulheres, em todas as regiões, e não só nas regiões africanas. Em geral, a documentação de caráter mais oficial da época nada diz sobre essas personagens, a marca maior tem sido o silêncio. Um testemunho direto se torna mais raro ainda. De modo completamente diferente, apresenta-se o caso da trajetória da Nzinga Mbandi: há uma abundância de testemunhos escritos essencialmente na época ou em décadas seguintes. Daí a importância e os cuidados com as fontes. Como bem aponta a autora, a biografia da Rainha Nzinga é uma exceção dentre tantas outras biografias e trajetórias de mulheres que tiveram importância essencial para a história de seu país, reino ou nação. Por que, na sua opinião, isso acontece?

Sobre a resistência de Angola contra a invasão portuguesa, leia mais no texto “Independência de Angola: concessão ou conquista”, de Juvenal de Carvalho. Disponível em: http://www.uesb. br/anpuhba/ anais_e letronicos/ Juvenal%20de%20 Carvalho. pdf

3. ESCRAVIZADAS/OS DE GANHO, AMAS DE LEITE E SUICÍDIO Forçadas/os a trabalhos pesados nas lavouras de cana-de-açúcar, de café e na mineração, participando efetivamente na economia interna e de exportação do período colonial, as/os escravizadas/ os eram também, sobretudo as mulheres, responsáveis pelos afazeres domésticos, como arrumadeiras, cozinheiras, quituteiras e também como escravizadas de ganho.

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SAIBA MAIS De acordo com Henrique Cunha Jr. (2007), são diversas as profissões ocupadas por pessoas escravizadas no período colonial no Brasil. Além dos escravizados das grandes propriedades existiram diversas outras maneiras de ser escravizado. Mesmo músicos, artistas e intelectuais foram escravizados. Muitos escravizados foram médicos, enfermeiros e farmacêuticos práticos. Muitos oficialmente reconhecidos pelo poder público, apesar de escravizados (KARASCH, 2000). Profissionais e artistas da área de construção de igrejas e monumentos foram escravizados (GUTIEREZ, 1999). Disponível: <http://www.espacoacademico.com.br/069/69cunhajr.htm>

Como “amas de leite”, algumas escravizadas de ganho mantiveram o ócio de suas/seus escravizadoras/es. Mas, se eram exploradas como amas de leite, como amamentavam suas/seus filhas/os? Quais os cuidados com as/os recém nascidas/os? Não podemos excluir da discussão as possíveis relações de afeto e amor entre escravizadas/os e escravizadoras/os, como nos aponta Mary Del Priore (2000, p. 26): Negras e brancas foram igualmente perseguidas ao praticar a „sodomia foeminarum’, nome dado pelos inquisidores portugueses, nas várias visitas que fizeram ao Brasil entre os séculos XVI e XVII, aos amores entre mulheres. Praticado entre raparigas brancas e suas escravas negras, mulheres casadas, por opção homoerótica ou “afeição carnal” [...] (Destaques da autora). E continua a autora, afirmando que “[é] óbvio que houve casos de amor como o que unia Xica da Silva ao contratador de diamantes, João Fernandes, em Minas Gerais no século XVIII [...]” (DEL PRIORE, 2000, p. 26). No entanto, muitas mulheres negras escravizadas foram submetidas às vontades sexuais das escravizadoras/es durante o período colonial, quando era “[...] hábito disseminado entre homens, casados ou solteiros, ricos ou pobres, de fazer uso das suas negras” (DEL PRIORE, 2000, p. 26). Dessas relações forçadas ou não, podiam engravidar. E como cuidar de suas/seus filhas/os que também seriam escravizadas/os? Observe, por exemplo, o relato retirado do Catálogo seletivo de documentos referentes aos africanos e afrodescendentes livres e escravos produzido pelo Arquivo Público do Paraná: em 12 de abril de 1855, Caetano Manuel de Faria e Albuquerque, Major Comandante Interino do Quartel do Corpo Provisório da província do Paraná, envia correspondência ao Alferes João Guilherme Marietto, Ajudante de Ordens da Presidência para “[r]elata[r] a queixa de Izabel Maurícia da Silva contra o cabo Ignácio Pessoa da Motta, que teria entrado em sua casa para seduzir sua escrava de nome Manoela [...]” (PARANÁ, 2005, verbete 0053, p. 40).

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Escravizadas/os de ganho, diz-se daquelas/es que comercializavam de suas habilidades, como alfaiates, quituteiras, músicas/os entre outras profissões e parte do seu ganho iam para as mãos das/dos escravizadoras/ es, a partir de um acordo informal entre as partes. Sobre o assunto, leia o texto “As Ganhadeiras: mulher e resistência em Salvador no século XIX”, de Cecília Moreira Soares. Disponível: http:// www.afroasia. ufba.br/pdf/afro asia_n17_p57.pdf “Em 04 de maio de 1855, João Caetano da Silva, Inspetor Interino da tesouraria da fazenda da província do Paraná, envia correspondência para Zacarias de Góes e Vasconcellos, Presidente da província do Paraná, quando “Comunica solicitação de Francisco de Paula Xavier, Inspetor da estrada de Campo Largo até São Luiz, de que fossem pagas as férias dos escravos que estavam trabalhando na referida estrada” (ARQIVO PÚBLICO DO PARANÁ, 2005, verbete 0014, pag. 26).


O “Catálogo seletivo de documentos referentes aos africanos e afrodescendentes livres e escravos” pode ser acessado na íntegra pelo link: http://www. arquivopublico. pr.gov.br/arqui vos/ File/pdf/catalogo_ afro.pdf

Como resistência, algumas mulheres negras, para não verem suas/seus filhas/os na condição de escravizadas/os, cometiam o infanticídio ou deixavam as/os filhas/os nas chamadas “Casa do enjeitadas/ os”, “Casa das/os expostas/os”, “Casa da Roda”, ou simplesmente “ Roda”.

PARA REFLETIR A partir da promulgação da Lei Rio Branco, mais conhecida como “Lei do Ventre Livre”, em 28 de setembro de 1871, as crianças filhas de escravizadas eram livres. No entanto, poderiam ficar sob tutela da/o escravocrata até completarem vinte e um anos de idade ou serem entregues por estas/es ao Estado, a partir do recebimento de uma indenização. Sobre este assunto, podemos refletir sobre o surgimento de uma preocupação ainda atual da nossa sociedade: o da criança abandonada. Em que medida é possível estabelecer uma correlação entre esse período histórico e o atual contingente de crianças abandonadas, sobretudo negras nos dias de hoje?

Para saber mais sobre as “Rodas”, leia o texto “O cuidado às crianças pequenas no Brasil escravista”, de Maria Vittoria Pardal Civiletti. Disponível em: http://www.fcc. org.br/pesquisa/ publi cacoes/cp/ arquivos/848.pdf

Outras, devido aos abusos cometidos contra suas mentes e corpos preferiram o suicídio como forma de resistência à escravização. Um exemplo é o relatado no verbete 045 do documento já citado anteriormente: em 27 de fevereiro de 1855, João Ladislau Japi-Assú de Figueiredo Mello, Juiz de Direito interino, envia correspondência a Zacarias de Góes e Vasconcellos, Presidente da província do Paraná, informando “[...] o sumiço da escrava Delfina, supondo que esta cometeu suicídio, atirando- se no rio da cidade, a fim de fugir dos castigos de sua senhora” (PARANÁ, 2005, verbete 0045, p. 37). Essas formas de resistência não devem ser “julgadas” ou avaliadas de modo anacrônico, ou seja, com o nosso olhar de hoje, já que correspondem a um período que só se sabe a real intensidade do sofrimento quem o viveu. Além disso, o suicídio era(é) atitude que representa(va) resistência por parte de diversos povos, grupos ou religiões. Um exemplo bastante conhecido é o harakiri, ritual suicida bastante difundido no período medieval entre samurais, guerreiros japoneses. Outras formas de resistência foram registradas na história e, invariavelmente, são as que temos mais acesso e informações. A seguir, portanto, você conhecerá algumas dessas histórias.

4. MULHERES NEGRAS NO BRASIL: HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIAS É inevitável, quando propomos apresentar uma “relação” de mulheres negras que marcaram a história do Brasil ou são representações de resistência, deixarmos de apresentar outras tantas que também têm/tiveram importância histórica em sua comunidade. Portanto, pretendemos que esse texto, além de apresentar trajetórias de luta e resistência de algumas mulheres, sirva como uma homenagem a todas as mulheres negras, igualmente fortes e guerreiras.

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AQUALTUNE De acordo com o texto “C ontando o conto sem retirar um ponto: a mulher africana e a colonização brasileira”, a princesa Aqualtune era uma líder política em sua nação de origem, Congo, e, comandando um exército de 10 mil soldados que lutava contra a invasão de seu território, ela foi derrotada e aprisionada. Posteriormente foi trazida ao Brasil e vendida como escravizada com a função de reprodutora. Grávida, e tendo notícias do quilombo de Palmares, ela organizou, nos últimos meses de gravidez, uma fuga do engenho de Porto Calvo (AL) para esse quilombo. Aqualtune teve vários filhas/os, dentre elas/eles Ganga Zumba, Gana Zona e Sabrina – mãe de Zumbi dos Palmares. Além de ser identificada pela historiografia como a mãe de Ganga Zumba e avó de Zumbi, Aqualtune teve uma importância política para Palmares devido aos seus conhecimentos e estratégias de guerra, elementos que foram fundamentais para o estabelecimento e consolidação da República de Palmares.

ACOTIRENE Identificada como sacerdotisa, Acotirene exerceu grande influência nos dois principais líderes de Palmares: Zumbi e Ganga Zumba. Viveu em um quilombo de nome Aqualtune, localizado em Palmares. É reconhecida como uma das primeiras lideranças femininas nos anos iniciais do quilombo de Palmares. Embora haja poucas informações sobre sua biografia, a importância de Acotirene refere-se, principalmente, a sua relação com a religiosidade e sua capacidade de organização e orientação para as guerreiras e guerreiros do seu quilombo, além de colaborar na elaboração dos planos de guerra dos líderes de Palmares.

DANDARA Na história oficial de Palmares, Dandara é reconhecida como a companheira de Zumbi, tendo lutado ao seu lado em todas as batalhas até sua morte que, aliás, apresenta duas versões: a) diante da iminente derrota de Palmares e temendo voltar à condição de escravizada, Dandara teria se suicidado, jogando-se da pedreira mais alta de Palmares, que ficava nos fundos do principal mocambo; b) ela teria sido assassinada, com outros palmarinos, em 6 de fevereiro de 1694, após a destruição da Cerca Real dos Macacos, que fazia parte do Quilombo dos Palmares.

LUÍZA MAHIN Embora haja divergências sobre a vida de Luíza Mahin, a nossa opção é de apresentar dados sobre os vestígios históricos de sua existência, sobretudo o principal deles: seu filho, Luiz Gama. Em uma carta a Lúcio de Mendonça, ele assim afirma: Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa da Mina (nagô de nação) de nome Luiza Mahim, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.

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Esse texto foi apresentado no curso Produção Intelectual de Mulheres Negras na História do Brasil, desenvolvido pela Associação Mulheres de Odun, em modalidade a distância, do qual uma das autoras desse artigo foi cursista.


Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito. Há versões distintas sobre as origens de Luíza Mahin. Alguns estudos apontam para seu nascimento na Bahia, como mulher negra livre, por volta de 1812. Outros indicam como sendo originária da etnia nagô-jeje, da nação Mahin (daí seu sobrenome), nação originária do Golfo do Benin, noroeste africano que, no final do século XVIII foi dominada pelos muçulmanos, vindos do Oriente Médio. Teria sido trazida na condição de escravizada para o Brasil. A sua participação na Revolta dos Malês foi de grande destaque e, tendo escapado da morte, fontes diversas apontam para a sua atuação também no levante da Balaiada, no Maranhão, em 1838, e na revolta de escravizados/as no Rio de Janeiro no mesmo ano. Após esse ano não se tem mais informações de Luíza Mahin, havendo apenas a hipótese de que ela foi presa e deportada para a África.

MARIANA CRIOULA Sua história se passa no interior do Rio de Janeiro, região do Vale da Paraíba, na fazenda Freguesia, e converge com a história da Revolta de Vassoras, considerada a maior revolta negra do meio rural brasileiro, onde aproximadamente 500 escravizadas/os organizaram um movimento de resistência. Mariana era escravizada e trabalhava como costureira e mucama de Francisca Elisa Xavier, esposa do capitão-mor Manuel Francisco Xavier e dono da fazenda Freguesia. Mariana era casada com um escravizado de nome José. Porém, com a fuga em massa de escravizados de fazendas vizinhas, sobretudo da fazenda Maravilha sob a liderança de Manuel Congo, Mariana juntou-se ao grupo e uniu-se a esse líder, atuando intensamente nessa revolta. Passou a ser considerada como a rainha do quilombo. Ao ser atacado, o grupo resistiu bravamente, sob a liderança de Mariana, conforme aponta um relato do coronel Lacerda Vernek, em um de seus memorandos: [...] “sentimos golpes de machado e falar gente. Tinham localizado um primeiro grupo de escravo. Estes se deram conta da presença dos perseguidores, porém.” Fizeram uma linha, mobilizaram suas armas, umas de fogo, outras cortantes, e gritaram: “Atira caboclo, atira diabos.” Este insulto foi seguido de uma descarga que matou dois dos nossos e feriu outros dois. Quão caro lhes custou!Vinte e tantos rolaram pelo morro abaixo à nossa primeira descarga, uns mortos e outros gravemente feridos, então se tornou geral o tiroteio, deram cobardemente costas, largando parte das armas; foram perseguidos e espingardeados em retirada e em completa debandada.[...]” Notei que nem um só fez alto quando se mandava parar, sendo preciso espingardeá-los, pelas pernas. Uma crioula de estimação de Dona Francisca Xavier não se entregou senão a cacete, e gritava:‘morrer sim, entregar não’! (TOLEDO, 1996 apudWEB, 2010, destaques nossos). No processo de julgamento das pessoas envolvidas diretamente nessa revolta, 16 homens escravizados foram indiciados, 7 foram condenados a “650 açoites a cada um, dados a cinqüenta por dia, na forma da lei”, e a “três anos com gonzo de ferro ao pescoço” e Mariana e as outras mulheres foram absolvidas. Porém Mariana, antes de retornar à vida na fazenda, foi obrigada a assistir à execução do único condenado à morte, Manuel do Congo, seu companheiro.

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MARIA FIRMINA DOS REIS Nascida em 11 de outubro de 1825, no bairro de São Pantaleão, na Ilha de São Luís, capital da província do Maranhão, Maria Firmina dos Reis era uma mulher autodidata: além do hábito de leitura, escrevia e lia em francês fluentemente. Foi professora primária até 1881, quando se aposentou. Em 1880, fundou a primeira escola mista do Maranhão. Quando foi aprovada em primeiro lugar e tornando-se a primeira professora concursada do município de Guimarães, sua família, com o intuito de homenageá-la, providenciou um palanquim (cadeira carregada por escravizados) para que Maria fosse conduzida até a cerimônia de entrega do ato de nomeação. Maria Firmina exclamou que “ia a pé porque negro não era animal para andar montado em cima dele” (MORAES FILHO, 1975 apud MENDES, 2006). É considerada a primeira escritora abolicionista ao publicar, mesmo com dificuldades, a obra Úrsula, em 1859. “Maria Firmina dos Reis, com essa obra, deu ao negro configuração até então negada: a de ser humano privilegiado, portador de sentimentos, memória e alma” (MENDES, 2006, p. 98).

LÉLIA GONZALES Mineira de Belo Horizonte, Lélia teve sua trajetória marcada pela atuação em prol da população afro-brasileira, sobretudo das mulheres negras. Como intelectual dos estudos de relações raciais e gênero, Lélia foi uma das principais pensadoras brasileiras a pautar, nos movimentos feminista e negro, as especificidades da mulher negra. É identificada como uma das principais articuladoras do Movimento Negro Unificado (MNU), do Grupo Olodum, do Instituto de Pesquisas da Cultura Negra (IPCN) e foi membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.Teve atuação política de destaque, além de ter grande inserção no campo da cultura e do futebol, entendendo este último como elemento do campo da cultura.

ENEDINA ALVES MARQUES, A “PIONEIRA DA ENGENHARIA” Nascida em Curitiba no dia 05/01/1913, Enedina Alves Marques era de família pobre e desde cedo trabalhou para auxiliar no seu sustento. Após a separação de seu pai e sua mãe, Enedina e seus irmãos foram separados e entregues a membros da família. Trabalhando como babá, ela começou seus estudos e, em 1931, concluiu a Escola Normal Secundária. Lecionou no Grupo Escolar de São Mateus do Sul, de Cerro Azul, Rio Negro, Passaúna e Juvevê, em Curitiba. Como seu objetivo sempre foi de se tornar engenheira, Enedina frequentou cursos preparatórios no Colégio Novo Ateneu e Colégio Estadual do Paraná. Em 1940 ingressou no curso de engenharia da Universidade Federal do Paraná e dali em diante, trilhou uma caminhada árdua mas que lhe dariam frutos como exímia profissional. Como a primeira engenheira do estado do Paraná, Enedina teve de superar dois grandes obstáculos: o fato de ser mulher em uma profissão tradicionalmente masculina e de ser negra em uma sociedade racista. Atuou no levantamento topográfico da Usina Capivari-Cachoeira, além da antiga Secretaria de Viação e Obras Públicas. Também foi chefe do Serviço de Engenharia da Secretaria de Educação e Cultura.

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Sobre esse assunto, acesse o artigo de Sueli Carneiro, Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Disponível em: http://www. unifem.org.br/ sites/700/710/0 0000690.pdf

A dissertação de mestrado de Benedito Guilherme F. Farias apresenta uma breve biografia de Enedina, indicando grandes dificuldades enfrentadas pelas quais ela passou. Uma delas relaciona-se à perseguição explícita que Enedina sofria por parte de um então professor que depois se tornaria reitor da UFPR e ministro da Educação. Além disso, por não ter dinheiro para comprar muitos dos livros do curso de engenharia, ela passava as noites copiando os assuntos mais importantes. Ver mais informações acessando o texto na íntegra: http://www. ppgte.cefetpr.br/ dissertacoes/ 2007/ beneditoguilherme. pdf (páginas 3436).


O nosso desejo seria de apresentar muitas outras trajetórias de mulheres negras que marcaram a história de nosso país. Com esses exemplos pudemos apenas construir um breve panorama, em nível nacional e estadual, de mulheres em áreas diversas que marcaram a história por seu exemplo de força e, acima de tudo, resistência. Assim, diferentemente de muitos artigos que apresentam as considerações finais de modo formal e sistemático obedecendo um rigor acadêmico, nesse texto encerramos com um poema de Esmeralda Ribeiro sobre a luta, força e garra de mulheres que resistiram e resistem diariamente ao racismo, ao sexismo, à lesbofobia e às desigualdades de outras variadas formas.

Ressurgir das cinzas Sou forte, sou guerreira, Tenho nas veias sangue de ancestrais. Levo a vida num ritmo de poema-canção, Mesmo que haja versos assimétricos, Mesmo que rabisquem, às vezes, A poesia do meu ser, Mesmo assim, tenho este mantra em meu coração: “Nunca me verás caída ao chão.” [...] Sou guerreira como Luiza Mahin,

Sou inteligente como Lélia Gonzáles, Sou entusiasta como Carolina Maria de Jesus, Sou contemporânea como Firmina dos Reis Sou herança de tantas outras ancestrais. [...] Me abraço todos os dias, me beijo, me faço carinho, digo que me amo, enfim, sou vaidosa espiritual, mesmo com mágoas sedimentadas no peito, mesmo que riam da minha cara ou tirem sarro do meu jeito, mesmo assim tenho esse mantra em meu coração: “Nunca me verás caída ao chão”. Esmeralda Ribeiro (2004)

Complementarmente, apresentamos um calendário elaborado com momentos da história que são importantes para as mulheres, sobretudo negras, momentos bons e ruins mas que foram responsáveis por alterações significativas.

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Fonte: Adaptado de: http://www.palmares.gov.br/?p=8766#mes9 http://www.quilombhoje.com.br/calendario/calendario.htm http://ubmsp.blogspot.com/ http://ospiti.peacelink.it/zumbi/afro/calend/home.html

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REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Disponível em: <http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00000690.pdf>. Acesso em: 20/02/2011. CIVILETTI, Maria Vittoria Pardal. O cuidado às crianças pequenas no Brasil escravista. Cadernos de Pesquisa, São Paulo (76), fev./1991, p. 31-40. Disponível em: <http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/cp/arquivos/848.pdf>. Acesso em: 20/02/2011. CONCEIÇÃO, Juvenal de Carvalho. A independência de Angola: concessão ou conquista? IV Encontro Estadual de História - ANPUH-BA – História: sujeitos, saberes e práticas. 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008. Vitória da Conquista - BA. Disponível em: <http://www.uesb.br/anpuhba/anais_ eletronicos/Juvenal%20de%20Carvalh o.pdf>. Acesso em: 07/03/2011. CUNHA JR., Henrique. Os negros não se deixaram escravizar: temas para as aulas de história dos afrodescendentes. Revista Espaço Acadêmico, n. 69, fev/2007, mensal, ano VI. Disponível em: <http:// www.espacoacademico.com.br/069/69cunhajr.htm>. Acesso em: 20/02/2011. DEL PRIORE, Mary. Mulheres no Brasil colonial. São Paulo: Contexto, 2000. DIEESE. A mulher negra no mercado de trabalho metropolitano: inserção marcada pela dupla discriminação. Estudos e pesquisas. Ano II, n. 14, nov./2005. Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/ data/files/FF8080812CB90335012CC6DC77186908/ estpesq14112005_mulhernegra.pdf>. Acesso em: 20/02/2011. MENDES, Algemira Macêdo. Amélia Beviláqua e Maria Firmina dos Reis na história da literatura: representação, imagens e memórias nos séculos XIX e XX. Tese (doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2006. MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do Quilombo na África. In: Revista USP, São Paulo (28): 56-63, Dezembro/Fevereiro 95/96. Disponível em: <http://www.4shared.com/get/EL7TFYxJ/ Kabengele_Munanga_-_Origem_e_H.html;jsessionid=8F6FFB1125F67A74A4857FB8D680F526. dc209>. Acesso em: 20/02/2011. PANTOJA, Selma A. O ensino da história africana: metodologias e mitos, o estudo de caso da rainha Nzinga. Cerrados (UnB. Impresso), v. 19, p. 315-328, 2010. PARANÁ, Arquivo Público. Catálogo seletivo de documentos referentes aos africanos e afrodescendentes livres e escravos. (Coleção Pontos de Acesso v. 2). Curitiba, 2005. SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Quilombos no Brasil e a singularidade de Palmares. Disponível em: <http://www.smec.salvador.ba.gov.br/documentos/quilombos-no-brasil.pdf> Acesso em: 20/02/2011. SOARES, Cecília Moreira. As Ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX. Disponível em: <http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n17_p57.pdf>. Acesso em: 20/02/2011. TOLEDO, Roberto Pompeu. À sombra da escravidão. Revista Veja, ed. Abril, ed. 1.444, de 15/05/1996.

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ATIVIDADES

1. Pesquise a trajetória de uma ou mais mulheres negras que marcaram a história de sua cidade, do Paraná ou do Brasil. As biografias não precisam necessariamente ser de intelectuais ou artistas; o objetivo é que você identifique e conheça histórias que podem ter sido omitidas ou invisibilizadas na História oficial. Envie sua pesquisa em arquivo único, no seguinte formato: CURSO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA EM EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS – MEC/SECAD E CIPEAD/NEAB-UFPR NOME: _________________________________________________________ POLO: __________________________ TURMA: _______________________ MÓDULO: _____ ATIVIDADE: _____

Texto 2. Diante da leitura desse texto, você pôde ter acesso a informações sobre o processo escravagista brasileiro e a condição das mulheres escravizadas. Algumas reflexões ao longo do texto devem ser agora problematizadas e debatidas por você no fórum. - O que representou, para as crianças “libertas” e suas mães escravizadas, a Lei do Ventre Livre? - E para os idosos “beneficiados” pela Lei do Sexagenário?

3. Analise a condição de vida das mulheres negras correlacionadas aos temas discutidos nesse artigo: a função de ama-de-leite, de amante, bem como o estupro sofrido, o suicídio, o infanticídio, entre outros. Elabore um texto de uma lauda e poste em arquivo único, no seguinte formato: CURSO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA EM EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS – MEC/SECAD E CIPEAD/NEAB-UFPR NOME: _________________________________________________________ POLO: __________________________ TURMA: _______________________ MÓDULO: _____ ATIVIDADE: _____ Texto 85


SUGESTÃO DE LEITURA Sugestões de leituras e links

SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Erico Vital. Mulheres negras do Brasil. São Paulo: Editora Senac, 2007.

RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituo Kuanza, 2006.

http://www.criola.org.br/nnh.htm http://www.geledes.org.br/portal/questoes-de-genero.html

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Kuntunkantan Orgulho inflado. Símbolo do orgulho do Estado e advertência contra o orgulho inflado e egocentrismo.

RELIGIOSIDADES AFRO-BRASILEIRAS: RESISTÊNCIA, INTERLOCUÇÕES E IDENTIDADE Elena Maria Andrei1

Este texto tem como objetivo apresentar os principais elementos que caracterizam as Religiosidades Afro-Brasileiras, buscando explicar a sua origem, sua adaptação no Brasil e fazer algumas considerações sobre a inclusão deste tema nos conteúdos relacionados à história e à cultura afrobrasileira no âmbito curricular, nos estabelecimentos de ensino do Brasil. Esta inclusão é absolutamente necessária uma vez que foi e ainda é que, nas chamadas comunidades-terreiro, grande parte da memória africana pode ser preservada e que as mais antigas e profundas formas de resistência puderam encontrar abrigo e espaço. Assim sendo, esse reconhecimento das características e da importância dos cultos de matriz africana deve ser entendido dentro do interior das lutas dos movimentos sociais que buscam combater o racismo, a discriminação e o preconceito, defendendo a dignidade e a memória da população afrodescendente – bem como deve ser percebido como uma intenção de restabelecer a verdade mais ampla sobre a própria identidade do Brasil.

Doutora em Antropologia, docente da Universidade Estadual de Londrina e pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos – NEAA; coordenadora dos Projetos de Extensão “Coleção Itan – Material Didático Alternativo”, que está produzindo um material específico para a Lei 10.639/03 e “Boi de Mamão”, com o qual tem trabalhado junto à Comunidade-terreiro Ylê Axé Òpó Omin, dirigida pela Mãe Omin. 1

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1. RELIGIOSIDADES AFRO-BRASILEIRAS: ORIGENS E IDENTIDADE A Religião é uma manifestação histórica, cultural, social e pessoal que acontece em todos os grupos humanos. Estudos antropológicos nunca encontraram nenhum grupo humano que não acreditasse numa dimensão sobrenatural, caracterizada pelo culto a Divindades e Mitos que explicassem o mundo e seu funcionamento, e Rituais que estabelecessem a organização social e as passagens pela qual a vida humana atravessa: nascimento, crescimento, maturidade e morte. Todas as Religiões do mundo têm como objetivos principais consolar os seres humanos nas suas perdas e aflições e construir um sentido para o mundo e para a existência – mas o fazem de acordo com suas histórias e culturas particulares e diversas. Então, se todas as Religiões têm um objetivo comum, por que existe tanta violência, no Brasil, em relação às expressões religiosas de matriz africana que são, até mesmo por muitos grupos, demonizadas? Existem dois níveis de respostas: 1) porque vemos em tudo que nos veio da Europa, inclusive a Religião, a única marca possível de civilização; e 2) porque as populações africanas que foram sequestradas e trazidas para o Brasil, para serem escravizadas, foram consideradas como bárbaras, selvagens e, até, como nãohumanas. E, dessa forma são violentamente discriminadas: essa discriminação se sustenta na memória da escravização, como se este fato definisse a essência de todas as pessoas negras e, pior, prende-se às marcas da aparência (cor da pele, textura dos cabelos e feições) transformando-as em sinais “raciais” e, portanto, naturalizando a diferença e conferindo valor de inferioridade “natural” aos que trazem estes sinais no corpo. Nilma Lino Gomes, antropóloga da UFMG, analisando a influência da discriminação racial na escola, diz claramente:

Durante séculos de escravidão, a perversidade do regime escravista materializou-se na forma como o corpo negro era visto e tratado. A diferença impressa nesse mesmo corpo pela cor da pele e pelos demais sinais diacríticos serviu como mais um argumento para justificar a colonização e encobrir intencionalidades econômicas e políticas. Foi a comparação dos sinais do corpo negro (como o nariz, a boca, a cor da pele e o tipo de cabelo) com os do branco europeu e colonizador que, naquele contexto, serviu de argumento para a formulação de um padrão de beleza e de fealdade que nos persegue até os dias atuais. (GOMES, 2002, p. 3).

No entanto, as populações negras tinham uma rica e longa história (o ser humano surgiu na África e o Egito Antigo foi uma das bases da civilização humana), culturas diversificas e, é claro, várias Religiões desenvolvidas.

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SAIBA MAIS José Jorge de Carvalho (s/d) é um dos mais contundentes críticos do racismo e no seu texto Racismo fenotípico e estéticas da segunda pele, ele rebate claramente a afirmação de que a população negra não tem história ou cultura: Cheik Anta Diop foi provavelmente, em todo o século vinte, o maior autor individual que conseguiu desmontar cientificamente o mito racista ocidental da superioridade da civilização grega, como se essa representasse um milagre singular e irrepetível da inteligência, da moral, da política e da beleza – e, fator essencial na luta pela descolonização, como se os europeus modernos fossem herdeiros diretos dessa suposta superioridade civilizatória grega. Diop dedicou-se a mostrar que uma grande parte das supostas descobertas que caracterizaram o que aprendemos nas escolas como “milagre grego” foram, na verdade, não muito mais do que cópias explícitas (e reconhecidas, inclusive, pelos mesmos autores gregos da era clássica) de descobertas feitas pelos egípcios muitos séculos antes. Diop demoliu a hierarquização fenotípica dos seres produzida pelos imperialismos europeus ao demonstrar duas verdades paralelas e complementares: primeiro, que os egípcios eram negros e, ao contrário do que pregava a ideologia imperialista, foi então um conjunto de povos negros que formularam uma das bases do que chamamos de “civilização”.(CARVALHO, s/d, p. 4).

As Religiões que existiam na África que os portugueses invadiram, no século XVI eram tantas quantos eram os países deste largo continente: existiam Religiões cuja Teologia era ligada aos ritmos da terra e aos antepassados, outras refletiam crenças aristocráticas de poderosas cidades-estado, outras ainda tinham os aspectos ou filosóficos ou guerreiros mais enfatizados e, desde o século VII, o Islamismo exercia profunda influência no norte e no oriente da África e, cruzando as rotas do Saara, buscava conquistar fiéis nos reinos Bantos da África Central e nas cidades do Golfo de Benin. Claudia Lima (s/d), analisando a presença do Islã no continente afirma que:

A ideia muçulmana da existência de um Deus único supremo, não era desconhecida dos africanos. E, a lei do Alcorão não conflitava, basicamente, com os costumes das tribos. O setor das crenças e práticas religiosas dos nativos da Nigéria oferece uma clara ilustração da unidade latente que caracteriza as tradições dos diversos grupos étnicos do país.Todos os povos da Nigéria acreditam na existência de um Ser Supremo, conhecido por Olorum ou Olodumaré entre os Yorubás, Osenabua entre os Idos, Chineke entre os Ibos, Obasi entre os Efiks, Ogheges entre os Isokos, Oritses entre os Itsekiris e Awundus entre os Tivs, para citar alguns exemplos. (LIMA, s/d).

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Alguns elementos comuns se revelavam na religiosidade de todos os povos africanos: a crença num Deus criador mas que cede a “administração” do mundo a divindades tutelares ou a antepassados mais próximas dos seres humanos e da natureza (os Yorubás os chamam Orixás; os Bantus de Congo e Angola, Inkisses; os Daomedanos ou Jêjes, os chamam Voduns); a devoção aos mais velhos, que constituem a memória viva dos grupos; o respeito às mulheres, consideradas como muito poderosas; as idades e fases da vida marcadas por iniciações sagradas; a percepção da sociedade como um conjunto, no qual a ação coletiva é mais importante do que o individualismo egoísta; a crença de que a natureza não pertence ao homem, mas que é sua parceira e amiga constante fornecendo-lhe o alimento, o remédio, a caçada, o pasto dos animais, a água dos rios e dos mares – e que, portanto, deve ser protegida e cuidada. O livro de Juana Elbein dos Santos: Os Nagô e a Morte (Petrópolis: Ed. Vozes, 1986) é um dos textos mais importantes da bibliografia brasileira para compreendermos o conceito de Axé, bem como os principais aspectos da religiosidade africana.

Ethos é o conjunto de fatores que embasam a identidade de um povo, como ele se vê e se afirma. Um livro interessante para se trabalhar na sala de aula e que discute esta imposição do Cristianismo e os resultados sobre as crianças negras é “Tramas da Cor: enfrentando o preconceito no dia-a-dia escolar”, de Rachel de Oliveira – São Paulo: Selo Negro, 2005.

Esses elementos estão todos articulados ao ponto central da religiosidade africana: todas as coisas do mundo, o passado, o presente e o futuro, a vida e a morte, a alegria e a dor – tudo é manifestação de uma Força Vital, um fluxo de energia que percorre e faz existir tudo o que existe, que está presente em tudo (os Bantos chamam esta força, Nguzo e os Yorubás e Jêjes, Axé), que pode aumentar ou diminuir, conforme as escolhas que fazemos para nós, para a comunidade e para o mundo. Portanto, o mundo, os seres humanos e as divindades fazem parte de um universo só, são partes de uma trama de gestos, orações, oferendas e rituais que nos unem, a todos nós, num grande circuito de Força Vital.

2. AS RELIGIOSIDADES INTERLOCUÇÕES

AFRICANAS

NO

BRASIL

RESISTÊNCIA

E

Os povos africanos que foram sequestrados e trazidos para o Brasil para trabalharem na condição de escravizados nas fazendas e nas cidades trouxeram consigo sua história, sua cultura e sua religião. Mas, como o regime escravista buscava destruir toda e qualquer identidade como uma forma de controle e dominação, a história e a cultura africanas foram completamente ignoradas e negadas como expressão de humanidade e o corpo do negro foi considerado como um objeto e uma máquina sem alma e sem espírito. Para tornar mais completa a aniquilação do ethos africano, aos negros era imposto o Cristianismo católico, justificando-se o sofrimento e as torturas como uma forma de penitência para apagar as “crenças hereges e demoníacas” que traziam da África, ganhar uma alma “branca e pura” e, dessa forma, alcançar o Paraíso.

PARA REFLETIR Percebemos que a inferiorização do negro durante os períodos da Colônia, do Império e, até da Primeira República, é devido a uma discriminação racial explícita, pois sabemos que foi a mão e o engenho negros que produziram quase toda a riqueza do Brasil. Dessa forma, é preciso refletir sobre o sentido e a carga preconceituosa de expressões “normais” como: “negro de alma branca”, “cabelo ruim”, “serviço de preto”, “macumba é coisa do diabo” e outras tantas que sedimentam o racismo no nível do imaginário social.

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No entanto, os negros e negras conseguiram manter as suas religiões através de várias interlocuções com as religiões dos africanos de outras nações, buscando fortalecer as semelhanças das crenças e adaptar os rituais à sua situação de penúria e violência. Outras interlocuções foram realizadas ao longo dos quase 400 anos de escravização com o próprio Catolicismo, aproximando os Orixás, Inkisses e Voduns dos santos católicos, buscando semelhanças nos mitos e nas características formais; as próprias figuras de Jesus e da Virgem Maria também foram identificadas com algumas divindades de origem africana em função da variedade de denominações que traziam: Senhor do Bonfim, Menino Jesus de Praga, N. Sra. da Glória, N. Sra. Aparecida e outras. Na verdade, as atuais pesquisas antropológicas e históricas mostram que as relações entre as crenças de matriz africana e as crenças católicas foram muito além do que um simples sincretismo de defesa e ocultamento: para esconder a devoção a Oxalá, os africanos faziam festas para o Senhor do Bonfim, Oxossi era identificado com São Sebastião e Yansã era adorada por debaixo da imagem de Sta. Bárbara. Hoje, analisando o desenvolvimento dos símbolos e dos cultos religiosos, sabemos que o fenômeno não foi tão simples, que os vários povos africanos e indígenas viveram uma relativa integração com as crenças dos portugueses e que se influenciaram mutuamente, preservando, no entanto, seus aspectos essenciais. As igrejas barrocas de Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e Salvador, construídas por arquitetos, mestres-de-obras e artistas negros guardam, por exemplo, complexas simbologias africanas nas suas esculturas e pinturas; os Quilombos, como o de Palmares, mantinham cultos sincréticos, contemplando todos os seus habitantes. Nei Lopes (2004), na sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, uma publicação indispensável em todas as escolas, mostra a abrangência da experiência quilombola:

A experiência palmarina foi a maior e mais longa contestação à ordem escravista em todo o mundo e em todos os tempos. Por extensão – e mesmo por ter sido Palmares um reduto que abrigava negros, índios e brancos pobres – a saga de Zumbi constitui um rico episódio da luta contra o racismo. Por essa razão, o dia do seu martírio, 20 de novembro, foi escolhido como “Dia Nacional da Consciência Negra”. (LOPES, 2004, p. 511).

Nas fazendas, engenhos e cidades, festas de origem cristã como as dos Santos Reis ou a Festa do Divino sofreram uma profunda transformação para se tornarem Congadas, Moçambiques e Maracatus, nos quais as realezas negras e a história da famosa rainha Nzinga de Matamba (atual Angola) são celebradas em meio a cânticos para N. Sra. do Rosário, São Benedito e Sta. Efigênia – santos negros que os jesuítas usavam para catequizar os africanos e que eles reinterpretaram, recontando suas histórias e milagres, tornando-os uma manifestação da resistência e da poética negra. Talvez as mais impressionantes provas desse processo de resistência, no qual os africanos reinterpretaram os folguedos e crenças de origem europeia e católica, impondo a sua própria visão de mundo, criticando expressamente a violência da escravização e afirmando sua humanidade, foram as Festas do Boi Bumbá que existem por todo o Brasil, e a famosa Festa da Senhora da Boa Morte, na cidade de Cachoeira, na Bahia. O Dr. Acácio Sidnei Almeida dos Santos (1996), pesquisador do instituto Casa das Áfricas, em seu texto Irmãs da Boa Morte, Senhoras do Segredo, diz que:

A estreita relação existente entre as irmãs da Boa Morte e o Candomblé foi constatada por diversos pesquisadores. Segundo Verger, em Salvador, “várias mulheres enérgicas e voluntariosas originárias de Keto, antigas escravas libertas, pertencentes à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, teriam 91

A integração entre as culturas indígenas e negras com a cultura portuguesa, apesar de ter acontecido em larga escala, precisa ser contextualizada dentro da desigualdade profunda e cruel que existia entre a cultura do dominador e as culturas dos dominados e escravizados. Esta desigualdade é uma das principais causas da invisibilidade e da negação das culturas negras e indígenas – o que justifica a necessidade das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008.

A pesquisa coordenada pelo artista negro Emanoel Araújo resgata a presença negra qualificada nas artes brasileiras. Veja: ARAÚJO, Emanoel. A mão afro- brasileira: significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge, 1988.


A Casa das Áfricas disponibiliza livremente dezenas de textos, da maior qualidade acadêmica, sobre a história e cultura da África e dos afrobrasileiros. Acesse: http://www. casadasafricas. org.br/site /index. php?id=banco_de_ textos

tomado iniciativa de criar um terreiro de candomblé chamado Iya Omi Asé Aira Intile,” (VERGER, 1981b) conhecida hoje por Casa Branca. Em Cachoeira, o movimento parece ter sido inverso. Lá, a organização da Irmandade da Boa Morte ocorreu dentro de uma casa de fundamento, a Casa Estrela, apontada como centro aglutinador e de decisões sociais, políticas e religiosas de negros africanos e crioulos. [...] Atrevemo-nos a sugerir a hipótese de que o sigilo e o tabu que cercam o culto à Nossa Senhora da Boa Morte ocultam, na verdade, uma prática coletiva assentada numa visão de mundo que muito embora impactada pelo catolicismo, preserva importantes elementos dos valores civilizatórios negro-africanos. (SANTOS, 1996, p. 10).

Nos batuques, vistos pelos senhores como um “folclore”, os africanos escravizados expressavam as danças nas quais honravam a fertilidade, a caça, a guerra, a justiça, a doença e a cura; nas cabulas e calundus, os nbandas (sacerdotes, mágicos e curandeiros dos povos bantos) faziam suas magias e remédios para todos, brancos e negros, pois a noção de uma religião marcada pela intercessão e manipulação mágica era comum aos africanos e aos portugueses, cujo cristianismo era marcadamente rural. No século XVII, os Jêjes (Ewe-Fon) foram trazidos para a Bahia e para o Maranhão e os Yorubás ou Nagôs foram trazidos para o Nordeste no final do século XVIII – estes povos, provenientes do Golfo de Benin se organizavam no formato de cidades-estado nas quais o Vodun ou Orixá era o patrono e, geralmente, o antepassado sagrado da família reinante, donde os seus cultos principais eram marcados pelo fausto dos palácios ou aconteciam em grandes templos, muito bem organizados.

SAIBA MAIS O magnífico complexo do templo de Oxum, divindade das águas doces e, consequentemente, da vida, da beleza e do amor, localiza-se na cidade de Oshogbo, na Nigéria e foi tombado pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade. Osogbò ou Oshogbo é a capital e a maior cidade do estado de Osun, na Nigéria. A população de Osogbo pertence ao grupo étnico Yorubá, e a cidade é um importante centro de comércio de agricultura de inhame, mandioca, milho e tabaco; o algodão é cultivado e usado para tecer os famosos panos desta região. Tem também várias indústrias como a Nigeria Machine Tools, a Osogbo Steel Rolling Company, a Sanitary Pad and allied products e outras. Em Oshogbo há a Ladoke Akintola University e, em função do turismo, estão se desenvolvendo bastante a hotelaria e as redes de rádio e televisão. Consulte o endereço: http://whc.unesco.org/en/list/1118, no qual está a descrição do templo. Este templo é muito famoso e várias imagens do mesmo podem ser acessadas facilmente no Google imagens escrevendo: Osun Shrine Oshgbo ou Oshun Temple Oshogbo.

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Dessa forma, o formato dos cultos de origem banto (dos povos provenientes de Angola, Congo e Moçambique), mais ligados à natureza e aos antepassados familiares e o formato dos cultos Jêjes e Nagôs, de cunho mais palaciano, integraram-se com cultos indígenas para dar origem ao Candomblé brasileiro (com suas várias Nações), à Umbanda e às Pajelanças.

3. RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS: AS CASAS E TERREIROS As Religiões Afro-Brasileiras mantiveram no Brasil as principais características da religiosidade africana: são religiões profundamente marcadas pela vida coletiva, na qual o negro, privado de sua família e da sua identidade de grupo e nação, podia reconstruir um espaço de agregação e conforto, chamando seus sacerdotes de Pai e Mãe e seus companheiros de Irmãos, sendo que os mais velhos iniciados são sempre respeitados – este aspecto de família (o templo é chamado Terreiro ou Casa) foi extremamente importante para que a população negra, escravizada, liberta ou pós-abolição pudesse ter um espaço de reconhecimento, de valorização e de apoio, pois continuava num estado desesperador de penúria, abandono, violência e marginalidade.

SAIBA MAIS A Casa-de-Santo, também é chamada de Ylê Orixá, em Yorubá, de Querebentam, em Jêje, de Inzô, nos cultos de Nação Bantu, ou de Tenda ou Centro na Umbanda, pode ser rica e grande, ou pode ser bem pobre e apertada (como nas periferias), pode ser bem antiga e tombada pelo patrimônio ou ignorada numa esquina ou numa chácara distante – mas será sempre um lugar de acolhimento, uma Comunidade-terreiro, onde todos serão recebidos sempre, a qualquer hora, independente da sua classe social, religião, orientação sexual, idade ou cor. Esta disponibilidade tem permitido que algumas Iyalorixás ou alguns Babalorixás (Mães e Pais de Santo) se tornem importantes lideranças locais, organizando projetos de preservação e orgulho da cultura afro, programas de saúde, ações comunitárias e, muitas vezes, colaborando com as Universidades e/ou o Estado, trazendo consigo um saber tradicional que se conservou, transformado e dinâmico, através de séculos. Para saber mais, consulte o livro: SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro- brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

Os Terreiros já se organizavam, ainda que de forma precária, desde o início da colonização, visando responder à necessidade dos africanos encontrarem, nas próprias crenças e raízes, o consolo para seus infortúnios e a proteção e cura de seus corpos e almas, mas eram procurados também, ainda que de escondido, por homens e mulheres brancos e brancas, pois havia na Colônia um vazio religioso muito grande, sendo que as lindas igrejas barrocas, eram mais um lugar de rezas e novenas do que de missas

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Nei Lopes (2004), na sua “Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana”, define o Terreiro como: “designação genérica do espaço físico onde se sediam as comunidades religiosas afrobrasileiras” (p. 646). Este termo remete a um espaço maior, onde se cultivam as plantas usadas nos rituais, mesmo que ele se localize numa área urbana. O termo Casa é usado igualmente, pois o templo é a moradia das divindades africanas no Brasil e, por vezes, também, de iniciados; hoje se usa o termo Comunidadeterreiro numa concepção mais política, social e antropológica, que dá conta da abrangência maior das ações destas Casas.

Negros-de-ganho: “[...] escravos urbanos cuja modalidade de trabalho consistia, geralmente, em empregar seus serviços, remunerando seus senhores com parte de seus ganhos. [...] Para tanto, gozavam de autonomia e liberdade de locomoção e muitos só iam à casa de seus senhores para pagar, diária ou semanalmente, a remuneração estipulada” (LOPES, 2004, p. 293). Em Salvador e no Rio de Janeiro estes negros se reuniam em grupos chamados “cantos”, conforme sua etnia ou ocupação. Apesar das condições de vida mais livre do que os negros das fazendas, os negros-deganho sofriam com a constante vigilância e brutalidade da polícia quando estavam na rua.


O sacrifício ritual de animais no Candomblé é, por vezes, visto com estranheza e até, revolta – pois existe um equívoco de que este ritual é violento e cruel. Na verdade, o sacrifício é parte importante de quase todas as religiões: na Antiguidade, quando o homem dependia do animal ou das colheitas para sobreviver, oferecia-se à Divindade, em louvor ou para pedir Sua Graça, os animais mais belos e jovens do rebanho e a melhor parte da colheita. As religiões dos Egípcios, Gregos, Romanos, dos vários povos da Mesopotâmia, dos Hindus, dos Muçulmanos e dos Judeus tinham/têm no sacrifício, uma das pedras angulares das suas crenças (vejam, no Velho Testamento: Levítico 4). O sacrifício animal, no Candomblé, é praticado de maneira indolor para o animal, por um sacerdote especialmente iniciado (o Axogun) e o sangue é vertido, como no caso do sacrifício hebraico ou islâmico – do ponto de vista religioso e simbólico, o sangue é um dos mais fortes símbolos da vida e, do ponto de vista prático, o animal do qual se escorre todo o sangue, se conserva melhor e por mais tempo. Erisvaldo Pereira dos Santos afirma claramente: ”O sacrifício de animais no Candomblé é ritual, é sacralização; não é violência nem barbárie. (...) Os animais são sacralizados em contextos de rituais propiciatórios, seguindo um conjunto de preceitos e cuidados transmitidos pela tradição religiosa. “(SANTOS, 2010, p. 36). No livro já indicado “Tramas da Cor”, Rachel de Oliveira descreve de forma sensível e poética o que é o sacrifício no Candomblé, faz o paralelo com outras religiões e deixa bem claro como é ofensiva e dolorosa, a discriminação que o Povo-de-Santo sofre neste caso. (OLIVEIRA, 2005, p.46-48).

regulares – a Bíblia era escrita em latim, a maior parte da população era analfabeta e os padres eram poucos e mal preparados; na verdade, grande parte da piedade católica era baseada nas histórias dos santos, no relato dos milagres e no uso de promessas, bentinhos e encantamentos. No final do século XVIII, a escravidão já migrava para as cidades e os negros-de-ganho tornavam-se parte expressiva da paisagem urbana, organizando-se em “cantos” conforme sua etnia ou “Nação” e a sua profissão. A relativa autonomia dos negros-de-ganho somada à presença já secular das Confrarias e Irmandades, deu-lhes a oportunidade de organizarem seus lugares de cultos africanos adaptando-os à realidade brasileira. Vagner Gonçalves da Silva (2005), antropólogo das Religiões e da cultura afro-brasileira, em seu livro Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira, pensado para o uso didático em sala de aula, descreve este momento de configuração do modelo dos Candomblés:

[...] com o crescimento das cidades e o aumento do número de negros libertos, mulatos e escravos urbanos (que nelas circulavam com maior liberdade e autonomia em relação aos escravos das fazendas) as manifestações religiosas encontraram melhores condições para se desenvolverem. As moradias dessa população, localizadas nos velhos sobrados e nos casebres coletivos, tornaram-se pontos de encontro e de culto, relativamente resguardados da repressão policial. Nessas moradias pôde-se garantir, ainda que precariamente, a realização das festas religiosas com uma certa frequência e a construção e preservação dos altares com os recipientes consagrados dos deuses. (SILVA, 2005, p. 48).

Foram nestas Casas/Terreiros que se organizaram as insurreições, como a Revolta dos Malês (em 1835), que se realizavam os rituais de passagens e a sabedoria dos mais velhos foi conservada para as gerações futuras:

O terreiro associou-se, assim, ao protesto do negro contra as condições da escravidão, colocando tanto sua organização a favor da luta pela libertação como, no plano religioso, promovendo a crença na magia compartilhada por pessoas que tinham em comum, além da condição de subordinação, a esperança na transformação dessas condições. (SILVA, 2005, p. 50).

As Religiões de matriz africana espalharam-se e hoje existem por todo o território brasileiro adquirindo em cada lugar uma denominação específica, conforme a Nação ou etnia africana dominante, conforme os arranjos rituais ou a conjunção feita com outras crenças (cultos indígenas, Catolicismo popular, Espiritismo Kardecista e outras). Mas, apesar dessas adaptações inevitáveis, os elementos básicos da identidade africana perseveram: A crença na Força Vital (Axé ou Nguzo), que tudo permeia e que precisa ser cuidada, conservada e desenvolvida para que pessoas e comunidade possam prosperar – tudo, natureza, pessoas, sentimentos, desejos e objetos materiais, tudo está ligado entre si numa complexa rede de relações. É nesta concepção de Força Vital que se ancora o sacrifício de animais, o qual é sempre realizado com todo o respeito e sem qualquer sofrimento, pois, como ele visa atrair uma benção ou louvar a Divindade, deve ser o mais sereno possível, sendo que a maior parte da carne do animal imolado é distribuída e consumida numa refeição ritual; 94


A crença de que esta Força Vital pode e deve ser veiculada através dos gestos, das oferendas, da música, dos rituais e do corpo do iniciado. A chamada magia é a crença de que, como todas as coisas estão impregnadas de Força, é possível usá-las para mudar as condições da existência. No entanto, é preciso lembrar que toda a força produz uma reação: quem busca o bem, encontra felicidade; quem busca o mal, atrai a própria desgraça; A crença na importância do coletivo e do valor da hierarquia e da iniciação como elementos fundamentais na organização social – afirmando, assim, o respeito e a importância dos mais velhos e das crianças: sem o passado, o futuro não pode acontecer; A crença de que o sagrado presente nos Orixás, Inkisses ou Voduns, reflete a presença do Deus Criador, mas só pode se manifestar através da incorporação em algumas pessoas, especialmente escolhidas e iniciadas como sacerdotes/sacerdotisas – o sagrado atua no mundo e o vivifica através da ação e do comprometimento do ser humano consigo mesmo, com sua divindade tutelar e com a comunidade; A crença de que cada Orixá, Inkisse ou Vodun representa e governa determinado aspecto da natureza e/ou do trabalho, sendo considerado como um antepassado coletivo, um guardião pessoal e a encarnação de determinados fundamentos filosóficos e rituais; A crença de que a devoção é um ato total, envolvendo o corpo, a mente e as emoções no culto – donde o uso da dança, da música, de trajes belíssimos, das comidas mais apetitosas, para que o culto seja sempre uma Festa; A crença na responsabilidade do indivíduo na construção da sua vida e na busca da felicidade: para as Religiões de matriz africana, o erro maior que alguém pode cometer é não realizar um destino de prosperidade, dignidade e paz, pois Deus nos criou para isto e cada um de nós (iniciado ou não) recebe as capacidades de um Orixá, Inkisse ou Vodun para que possa se desenvolver e participar do desenvolvimento do Universo. Não é possível sermos felizes no egoísmo e na violência: a solidariedade e a reciprocidade são as bases da sabedoria e da prática.

4. RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS: CARACTERÍSTICAS FORMAIS As Religiões Afro-Brasileiras dividem-se em três grandes grupos: o Candomblé, a Umbanda e o Catimbó; cada um destes grupos subdivide-se em variantes conforme a região do país e as influências específicas. I. O Candomblé caracteriza-se por valorizar os elementos que vieram da África: a memória africana expressa nas línguas usadas nos rituais, nos toques dos atabaques, os nomes das divindades e os mitos narrados são considerados como relíquias provenientes do continente-mãe e considerados como a expressão da verdade e do poder religioso e mágico. As mais conhecidas vertentes do Candomblé são: 1. o Candomblé Ketu, Nagô ou Jêje-Nagô, no qual se usa a língua Yorubá, falada pelos povos da região da Nigéria, e que cultua os Orixás; ele e predominante na Bahia, no Rio de Janeiro, parte de Minas Gerais, Paraná e São Paulo; 2. o Xangô, que é uma variante do Candomblé Jêje-Nagô e é característico de Pernambuco;

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Existem inúmeros livros que falam sobre essas características da religiosidade de matriz africana, mas, na verdade, eu as aprendi nas pesquisas e na vivência nos Terreiros. Mesmo os mais famosos, como o Axé Òpó Afonjá ou o Bate- Folha, de Salvador, são muito simples e humildes; as Casas de Candomblé ou de Umbanda, no fundo dos bairros e periferias, geralmente são pobres e lutam com muitas dificuldades, mas são ricas em sabedoria, em generosidade e em coragem. Acolhem crianças e jovens, mulheres em sofrimento, guardam os remédios de ervas, realizam os preceitos para aliviar os males do corpo e da mente e, ainda, recebem com infinita paciência e dividem seus conhecimentos com os pesquisadores, com as ONGs e com a Universidade.


Atualmente existe uma re-valorização do Candomblé Congo-Angola: Sérgio Paulo Adolfo, no seu último livro (ADOLFO, Sérgio Paulo. Nkissi Tata Dia Nguzu: estudos sobre o candomblé Congo-Angola – Londrina: EDUEL, 2011) revela as especificidades deste culto e a riqueza da sua história.

Os Voduns são divindades originárias da África e são cultuadas no Brasil, no Haiti, nos Estados Unidos. O nome de “voodu” ou “vodu” como uma boneca na qual se opera uma espécie de magia de transferência, não tem absolutamente nada a ver com os Voduns, sendo apenas o resultado de uma invenção cinematográfica racista e ignorante. (LOPES, 2004).

3. o Batuque, que também é uma variante do Candomblé Jêje-Nagô mas não tem conexão histórica com o Nordeste, sendo característico do Rio Grande do Sul; 4. o Candomblé Congo-Angola, no qual se usa principalmente a língua Bakongo, com influências do Kimbundo e do Umbundo, línguas do tronco Bantu, faladas pelos povos da África Central que cultuam os Inkisses; 5. o Candomblé Jêje, onde se usa a língua Fon, falada pelos Ewe-Fon que vieram do Togo e do Daomé e que cultuam os Voduns, existem no Nordeste, Sudeste Sul, sendo que, no entanto, a Casa das Minas que só existe em São Luís do Maranhão é considerada como excepcional e única dentro desta Nação. Todas as variantes do Candomblé, apesar das suas diferenças, usam os atabaques como forma de abrir caminho para a manifestação das Divindades que são organizadas de forma hierárquica e, apesar de usarem trajes e paramentos que remetem aos trajes do Brasil colonial, os adereços, as cores, os objetos votivos e simbólicos (chamados de ferramentas pois as Divindades as usam para governar um certo aspecto do mundo ou da vida) são referendadas por tradições africanas. Nos últimos anos, esta preocupação com a autenticidade africana fortaleceu-se pois a internet e as pesquisas acadêmicas revigoraram os conhecimentos das Comunidades-terreiro e algumas estão buscando aprimorar os traços africanos, renegando várias tradições sincréticas, tais como a equivalência entre Divindades africanas e santos católicos, num movimento denominado re-africanização. II. A Umbanda, apesar de ser descendente direta das cabulas e calundus coloniais e de ter uma nítida marca de afinidade com os Candomblés Congo- Angola, surgiu de uma agregação entre crenças africanas nos ancestrais divinizados, culto dos Orixás, Catolicismo popular e o Espiritismo Kardecista de origem francesa. Esse amálgama resultou numa Religião de cunho urbano, voltada para as aflições dos negros da periferia, mas que logo atraiu também a baixa classe média dos subúrbios cariocas e paulistas. A Umbanda, apesar de cultuar os Orixás, não aceita a sua manifestação direta, considerada como demasiadamente poderosa para o mundo dos homens e, portanto, quem se manifesta no corpo dos iniciados são os chamados “Guias” que representam a “vibração” dos Orixás – a Teologia da Umbanda tem, a partir do Kardecismo, que surgiu no século XIX, a crença na reencarnação e no karma, originários do Hinduísmo, tendendo a usar uma linguagem marcada por termos esotéricos e místicos. Esta característica, no entanto, articula-se com as representações das Entidades que, divididas em “Falanges”, personificam o que há de mais real e pungente na sociedade brasileira: os “Guias” são os heróis de um mundo marginal, desvalorizado pela História oficial. São os escravos, os índios, os caboclos, os capoeiras, as prostitutas, são as crianças mortas – a Umbanda recupera e sacramenta todas as vítimas do sistema escravista, do capitalismo mais brutal, do abandono, da discriminação e da miséria, percebendo que é a partir do reconhecimento do valor dessas figuras humildes e humilhadas, que pode ser construída uma verdadeira superação do Brasil. No final do século XX, a Umbanda recebeu, no seu panteão, “Guias” orientais e incorporou ao seu corpo ritual, preceitos da Nova Era, como o uso de cristais, florais e mantras; apesar de se colocar como uma “Religião aberta”, a Umbanda conserva as marcas essenciais da religiosidade africana, não sendo possível estabelecer uma fronteira clara que a distinga do Candomblé. III. O Catimbó, também chamado de Candomblé de Caboclo ou de Pajelança conforme o lugar no Brasil, é o culto aos espíritos indígenas, chamados de Mestres, com a presença de línguas indígenas e do uso de ervas como a jurema e o tabaco para induzir ao transe. Reginaldo Prandi (2001) realizou extensa pesquisa sobre esta variante religiosa:

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Na Paraíba e em Pernambuco, os espíritos, que ali se chamam mestres podiam ser espíritos de índios, de brasileiros mestiços ou brancos, entre os quais se destacavam antigos líderes da própria religião já falecidos, os mestres, designação esta que acabou prevalecendo para designar todo e qualquer espírito desencarnado. Essas manifestações também herdaram das religiões indígenas o uso do tabaco, ali fumado com o cachimbo, usado nos ritos curativos, além da ingestão cerimonial de uma beberagem mágica preparada com a planta da jurema. Catimbó e jurema, os nomes pelos quais essa modalidade religiosa é conhecida resultam desses dois elementos. Catimbó é provavelmente uma deturpação da palavra cachimbo, e jurema, o nome da planta e da sua beberagem sagrada. (PRANDI, 2001, p. 4).

As Religiões de matriz africana, como todas as Religiões do mundo, são dinâmicas e precisam adaptarem-se às novas demandas de seus devotos – os quais, hoje, já não são exclusivamente afrodescendentes, mas encontramos em todos os graus da hierarquia, eurodescendentes e, mesmo, nipodescendentes: nascida como uma marca de resistência étnica, tornou-se, nos séculos XX e XXI, uma religião com características universais, tendo templos nas três Américas e na Europa. Esta capacidade de diálogo e de articulação não comprometeu, de forma alguma, a sua eficiência em se colocar como um dos eixos da identidade negra no Brasil, guardando mitos religiosos e narrativas históricas, formas de viver e concepções de mundo que permitem que os afrodescendentes não só se reconheçam, mas que se orgulhem da sua resistência e grandeza cultural.

5. RELIGIOSIDADES AFRO-BRASILEIRAS: ORIXÁS E ENTIDADES Não é possível, no espaço deste artigo, apresentar todas as características das Religiões AfroBrasileiras – por isso mostramos apenas as principais variantes e vamos descrever brevemente os Orixás do Candomblé Nagô e as principais classes de Entidades da Umbanda. No entanto, queremos deixar bem claro que as outras Nações do Candomblé ou os rituais do Catimbó ou Pajelança merecem o mesmo respeito e demandam igual interesse e pesquisa. Essa escolha reflete meramente os elementos que são mais conhecidos do grande público, pois aparecem nas músicas da MPB, nos sambas-enredos, nas novelas, nos meios de comunicação – muitas vezes, infelizmente, de forma distorcida, preconceituosa, ignorante e negativa. O conteúdo abaixo é uma parte do acervo da Coleção Itan, um Material Didático Alternativo que está sendo pesquisado e concluído no Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Estadual de Londrina, por alunos recém-formados e professores, com recursos do Programa Universidade sem Fronteiras. . Orixás do Candomblé Jêje-Nagô ou Ketu: Os Orixás são organizados na forma de Xiré, uma ordem lógica que encadeia as suas respectivas funções. De modo geral, os Orixás masculinos presidem, além de determinado aspecto da natureza, uma função do trabalho social e as Divindades femininas, denominadas Iyabás são, além de um aspecto das águas do mundo, as senhoras do ciclo da vida.

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Essas informações específicas foram pesquisadas por Carlos Guimarães, Luciano Matricardi e Miriam Alves, que estão elaborando, respectivamente, os “Módulos de Casas Africanas, Festas AfroBrasileiras e Trajes: da África ao Brasil”.


Exu: não se sabe ao certo a sua região de origem na África, pois em todos os reinos se presta culto a Exu. De acordo com os mitos, foi a primeira forma dotada de existência individual, sendo o Orixá mais controverso pois representa a multiplicidade e a transformação permanente da vida, bem como todos os caminhos que podemos seguir. Muitos são os equívocos relacionados com Exu e o pior deles é associá-lo à figura do diabo cristão, pois, para os africanos, o mal é relativo: o bem de um pode perfeitamente ser o mal de outro. Exu é o Orixá da comunicação e é o mensageiro dos deuses, sendo o guardião do mercado e das trocas. Orumilá: Orixá que é considerado a própria voz (ilá) do céu (Orun), manifesta-se apenas no Ifá, também conhecido como o Jogo de Búzios. Este Jogo é, na realidade, uma enciclopédia guardada na memória dos Babalaôs (“pais do segredo”, sacerdotes especialmente iniciados para o uso do Ifá), um livro sagrado conservado na oralidade e onde estão registrados os “fundamentos” do Candomblé. Orumilá é um Orixá que não se manifesta através da incorporação, sendo considerado como a garantia da ordem universal e social e, ao mesmo tempo, o recurso para que, conhecendo os caminhos do destino (odù), possamos melhorar nossa sorte. Ogum: é um Orixá importantíssimo na África e no Brasil, sendo, provavelmente, a primeira divindade cultuada pelos povos yorubá da África Ocidental. É o primeiro dos Orixás a descer do Orun (o céu), para o Aiye (a Terra), sendo considerado como o filho mais velho de Oduduwa, o fundador da cidade de Ifé. Na mitologia yorubá é o Orixá ferreiro, senhor dos metais, portanto, do progresso tecnológico, científico, artístico e bélico. Ogum forja as ferramentas, tanto para a caça, como para a agricultura, com a qual sacia a fome de seus fiéis e, também, para as artes. Como ensinou aos homens como forjar o ferro e o aço, é reconhecido como o protetor nas guerras e demandas. Oxóssi: o culto a Oxóssi é bastante difundido no Brasil, em Cuba e em outras partes da América onde a cultura yorubá prevaleceu. Seu habitat é a floresta, onde a caça assegura o sustento do seu povo. Oxóssi cumpre um papel civilizador importante, pois na condição de exímio caçador representa a busca incessante do homem por mecanismos que lhe possibilitem se sobressair no espaço da natureza e impor a sua marca no mundo. É aquele que busca ultrapassar seus limites, expandir seu campo de ação, enquanto a caça é uma metáfora para o conhecimento, portanto, a curiosidade, astúcia e inteligência são seus atributos. Logunedé: Orixá do sexo masculino, sua dualidade se dá em nível comportamental já que em determinadas ocasiões pode ser doce e benevolente como Oxum e em outras, sério e solitário como Oxóssi, de quem é filho. Logun Edé é um Orixá de contradições: nele, os opostos se alternam, é o deus da surpresa e do inesperado, da magia e do encantamento. Simultaneamente caçador e pescador, Logunedé caracteriza-se como um jovem herói civilizador. Omolú: conhecido também por Obaluaiê vem do território africano Mahi, na região nigeriana. Omolú está ligado ao solo e à colheita, bem como ao interior da terra (ninù ilé) e isso denota uma íntima ligação com o fogo dos vulcões, já que esse elemento relaciona-se com a febre e a convulsão provocadas por doenças, um de seus principais domínios. Carrega as doenças no seu xaxará e as curas nas cabacinhas presas nele. Filho de Nanã, mas criado por Iemanjá, Obaluaiê andou por todos os cantos dos continentes e é conhecido como o médico dos pobres, tendo relação profunda com a morte. Ossain: provém da região de Iraó, na Nigéria, Ossain é o detentor do axé (força e vitalidade) das folhas e ervas específicas das quais nem mesmo os Orixás podem privar-se e só ele conhece as palavras (ofó) que despertam o poder das plantas: nenhuma cerimônia pode ser realizada sem a sua interferência. O nome dessas folhas e o seu emprego é a parte mais secreta do ritual do culto dos Orixás. Sua morada é o 98


fundo da floresta das Grandes Mães, território do medo e do desconhecido, mas onde se encontram a cura e o conhecimento através da natureza. Oxumaré: originário de Mahi, no antigo Daomé, onde é conhecido como Dã (a Serpente), aquele que proporciona a riqueza aos homens. Oxumaré é um deus ambíguo, duplo, que pertence à água e à terra, expressando potencialidades masculinas e femininas. Ele exprime a união de opostos que se atraem, e proporciona a manutenção do universo e da vida através das duas serpentes que apontam em direções contrárias, simbolizando a causa e a consequência. Rege o princípio da multiplicidade da vida, transcurso de incontáveis destinos. Oxumaré é dono de todas as riquezas da terra, sejam elas físicas ou mentais, por isso é também dono da sabedoria, identificado como um grande Babalaó (sacerdote-advinho). Xangô: Como personagem histórico, Xangô teria sido o terceiro Alafin Oyó, “Rei de Oyó”. Esse Orixá, em seu aspecto divino, seria filho de Yemanjá e tem como esposa três divindades: Iansã, Oxum e Obá. Representa alegria, descendência, intensidade da vida, beleza masculina, paixão, inteligência e as riquezas. Porém como rei, além de desempenhar papel de proteção também mantém a ordem castigando os mentirosos e os malfeitores com seu machado de duas lâminas, representando o julgamento justo que pesa os dois lados do problema: da vítima e do culpado. O poder mágico de Xangô reside no raio, no fogo que corta o céu, e que destrói na Terra, mas que transforma e resguarda, iluminando o caminho. Xangô é um dos Orixás mais populares da Bahia e sua importância estende-se por todo Brasil, pois representa a síntese da liberdade, altivez e realeza dos dignatários africanos, sendo um símbolo de poder e superação para toda a população negra. Yansã: Oyá, mais conhecida no Brasil como Yansã, foi uma princesa real na cidade de Irá, na Nigéria. Conhecedora de todos os meandros da magia encantada, de caráter impetuoso, assertivo e atraente, nunca se deixou abater por guerras, problemas e disputas, e é conhecida como a Senhora dos ventos, raios e tempestades. Esta Iyabá carrega consigo um berrante de chifre de boi (animal no qual ela pode transformar-se) e um eruexim feito com o rabo do mesmo animal. Ambos são símbolos de liberdade, poder e coragem, sendo que o último ainda representa domínio real. O abano a ajuda a conduzir e controlar as almas dos mortos (eguns), e Oyá-Yansã é o único Orixá que os enfrenta, munida de seus raios, fogo e espada. Oxum: seu nome deriva do rio Osun, que corre na região nigeriana de Ijexá e Ijebu. Existem várias qualidades deste Orixá feminino (Iyabá) e é uma divindade protetora das crianças e das gestantes; Senhora das águas doces, superficialmente calmas porém com profundezas arredias, carrega emblemas como gotas, conchas e peixes, assim como o coração e a flor, símbolos da sensibilidade e do feminino fértil e maternal. Sua cor principal é o amarelo gema e branco, em alguns casos usando também azul e rosa claro. Seu metal é o ouro ou o latão dourado, material muito usado na confecção de seu abebé, objeto/símbolo referente ao ventre fecundo, geralmente com espelho redondo no centro. Euá: é a divindade do rio e da lagoa Yewà na Nigéria. Deusa das florestas, lagoas, neblinas e alvorada, portanto do incerto e do nascimento, é a deusa da virgindade. Seu símbolo é o Adô, cabacinha usada para conter elementos relacionados à criação, responsável pela multiplicação e crescimento dos seres da natureza, geralmente de madeira, encapado de tecido vermelho e enfeitado por palha e búzios. O nome de Euá significa beleza e graça mas é uma Iyabá guerreira, que carrega ofá e alfange, utilizados na guerra e na caça.Também a vidência foi lhe concedida por Orumilá, fato visível por muitas vezes carregar o brajá: longos fios de búzios que imitam as escamas de uma cobra e que são símbolo da sabedoria. Obá: é a divindade do Rio Obá ou rio Níger, terceira esposa de Xangô. Ela representa as mulheres 99


mais velhas. Seus domínios são as águas turbulentas e revôltas, e possui qualidades como a integridade e a verdade, seu arquétipo é o de uma mulher consciente de seus direitos, ainda que injustiçada. Em toda a África, Obá era cultuada como a grande deusa protetora do poder feminino por ser uma mulher forte, que comandava as demais e desafiava o poder masculino. Seus mitos mais conhecidos a colocam em conflito com Xangô e com Ogum, dois dos mais aguerridos Orixás. Yemanjá: No Brasil, é a Senhora das águas do mar. O seu nome deriva da expressão YéYé Omó Ejá, que significa “mãe cujo filhos são peixes”. Seus domínios são a maternidade, a saúde mental e psicológica, além da formação da individualidade e da inteligência.Yemanjá é a mãe de todos e a dona de infinitas riquezas que distribui conforme seu próprio julgamento. Apesar de na África Yemanjá ter sua origem num rio africano que corre para o mar, no Brasil é cultuada nas águas salgadas, sendo festejada em três importantes festas nacionais onde é chamada de Rainha do Mar: na Bahia, no dia 2 fevereiro; em Pernambuco, no dia 8 de dezembro e durante o Ano Novo, no Rio de Janeiro. Nanã: Senhora de muitos búzios, Nanã Buruku sintetiza em si, a morte, a fecundidade e a riqueza, sendo, portanto, a Grande Ancestral, idosa e respeitável. É a mais velha mãe das águas e está relacionada à gênese, consequentemente à fertilidade e aos materiais da procriação, a “Mãe-Terra Primordial” dos grãos e dos mortos. Nanã, a deusa dos mistérios, é uma divindade de origem simultânea à criação do mundo, tendo a lama dos pântanos como seu maior fundamento. A existência do culto de Nanã Buruku é atribuída aos tempos remotos, anteriores à descoberta do ferro. Por isso, em seus rituais, não costumam ser utilizados objetos cortantes de metal. Senhora dos inícios, o juramento feito em seu nome é o mais sagrado e definitivo. Oxalá: o Patriarca dos Orixás representa a existência, o grande caminho que une a vida à morte. Por isso ele usa o branco, cor do esperma e do leite materno, portanto, cor da vida, mas, também, a cor da morte, pois é a cor dos ossos e da lividez do cadáver. Oxalá se manifesta como o jovem Oxaguiã que, através da mudança e do progresso, sustenta a existência e como o idoso, Oxalufã, que pacientemente reconhece e tece a existência. Oxaguiã: também chamado de Ajagunã, tem seu templo principal em Ejigbo, na África. Oxaguiã rege as inovações, a busca pelo aprimoramento, o inconformismo. É um Orixá relacionado com o sustento do dia a dia, com as inovações e invenções e criou o pilão para que pudesse saborear seu prato favorito, o inhame. Mas o inhame de Oxaguiã é mais do que apenas comida: representa a massa com a qual este Oxalá jovem constrói todos os seres do mundo, por isso o inhame é sagrado. Quem inventou a guerra foi Oxaguiã, mas sua guerra é o bom combate, representando, como todas as qualidades de Oxalá, a permanência e proteção da vida. Oxaguiã representa o aspecto dinâmico da existência, o movimento construtivo da cultura material. Oxalufã: Orixá africano cultuado em todo o Brasil pelas religiões afro-brasileiras, éconsiderado o mais velho e mais sábio dos Orixás que, curvado pelos anos, anda de forma paciente e vagarosa. É ele quem modela os seres humanos que, depois disso, recebem o sopro de vida de Olorum (deus Supremo). Oxalá apóia sua caminhada sobre um opaxorô, símbolo da totalidade, da diversidade e da permanência da vida. Considerado como o Orixá defensor da Paz, tudo que se refere à Oxalá é ligado à paciência e ao equilíbrio. Sua cor é o branco, seu dia da semana é a sexta-feira e, por respeito ao patriarca, todo povo-de-Santo usa branco nesse dia Entidades da Umbanda Segundo a Umbanda, as Entidades que são incorporadas pelos médiuns podem ser divididas entre “Linhas de direita”: Falangeiros dos Orixás, Pretos- Velhos, Caboclos, Boiadeiros, Mineiros, Crianças, 100


Marinheiros, Ciganos, Baianos, Orientais; e, “Linhas de esquerda”: Povo de rua (espíritos guardiões): Exus e Malandros. Nas sessões de consulta onde comumente podemos encontrar Pretos- Velhos, Caboclos, Ciganos, Exus e Pomba-Giras, as pessoas conversam com as Entidades a fim de obter ajuda e conselhos para suas vidas, curas, e para resolver problemas espirituais diversos. Zé Pelintra - Na Umbanda, o Exu assume diversas formas – como o Zé Pelintra, o Tranca-Ruas ou o Exu Veludo – e representam todas as figuras sociais ou imaginárias que existem na periferia da História e das cidades: os boêmios, os jagunços, os jogadores, os capoeiras, os cangaceiros, todos aqueles que, apesar de serem marginais, conservam a honra. São invocados para resolver as situações mais perigosas, pois são os mestres da palavra, da luta e da malandragem. Zé Pelintra é o malandro por excelência, vestido de capoeira, educado e elegante, lembra várias figuras do folclore brasileiro, como o Bôto, o Pedro Malazartes ou o Mateus. Zé Pelintra é muito respeitado pela sua engenhosidade e esperteza. Pombagira - Na Umbanda, Pombagira ou Bombogira é o espírito de uma mulher que em vida teria sido uma cortesã, uma cigana ou uma mendiga, mas de bom coração, inteligente, revoltada com as injustiças do mundo, capaz de dominar os homens pela sua beleza e valentia, amante do luxo, do dinheiro, e de todas as coisas elegantes e agradáveis. No Brasil, sobretudo entre as populações pobres urbanas, é comum chamá- la para resolver problemas relacionados à vida amorosa, além de inúmeros outros que envolvem situações de aflição. Dona Pombagira, como é chamada na Umbanda, possui vários aspectos e cada um deles diz respeito a uma atividade: o amor, a magia, a vida ou o dinheiro. Pretos e Pretas-Velhos(as): Pretos Velhos e Pretas Velhas são entidades que seapresentam como anciãos negros, conhecedores profundos da magia divina emanipulação de ervas, o qual aplicam frequentemente em sua atuação na Umbanda. São espíritos que representam velhos africanos que viveram nas senzalas, majoritariamente como escravos e morreram no tronco ou de velhice, e que adoram contar as histórias de seu tempo em vida. Eles representam força, sabedoria e paciência, doando-se em amor, fé e esperança aos aflitos. Sua força foi conquistada em vida pela resistência que tiveram ao suportar os sofrimentos da escravidão. São um ponto de referência para todos aqueles que necessitam de cura e ensinamento. Os Pretos e Pretas Velhas são como psicólogos, receitando auxílios, remédios e tratamentos caseiros para afastar os males do corpo e da alma, uma vez que muitos brasileiros não possuem acesso a tratamentos médicos de qualidade. Sua forma idosa representa a sabedoria, o conhecimento, a fé. A sua característica de ex-escravo passa a simplicidade, a humildade, a benevolência, mas a segurança de não esquecer o sofrimento da escravização para que ela não volte a acontecer jamais. Na Umbanda osPretos Velhos e Pretas Velhas são homenageados no dia 13 de maio, Dia Nacional Contra a Discriminação Racial. Caboclos: Os primeiros espíritos a “baixar” nos terreiros de Umbanda foram aqueles conhecidos como Caboclos e Pretos-velhos. Espíritos que se apresentam de forma forte, com voz vibrante e trazem o conhecimento da natureza e a sabedoria para o uso das ervas. E assim como as outras entidades da Umbanda, existem vários tipos de Caboclo, Caboclo de Pena, Cabocla Jurema, Caboclo Sete Flechas, etc. Ensinam aos fiéis a terem coragem na vida, lutando pelo que é justo e bom para todos. No que é possível, os Caboclos são os que ajudam a entrar na macaia (a mata que simboliza a vida), a cortar os cipós do caminho (vencer as dificuldades) e, se preciso, caçar os bichos do mato (vencer as interferências negativas e conseguir o sustento e o sucesso). Boiadeiro: Os Boiadeiros são entidades que representam a natureza desbravadora, romântica, simples e persistente do homem do sertão, “o caboclo sertanejo”. Conquistando a terra com seu trabalho e 101


luta, mas respeitando a natureza e aprendendo com o índio, o negro e o branco, representando o mestiço brasileiro. Usam de canções antigas que expressam o trabalho com o gado e a vida simples das fazendas, ensinando a força que o trabalho tem e passando, como ensinamento, que o principal elemento da sua magia é a força de vontade. São regidos por Oxossi e Yansã, tendo recebido a autoridade de conduzir os eguns da mesma forma que conduziam sua boiada quando encarnados. Crianças: As Crianças da Umbanda, também chamadas coletivamente de Ibejadas ou Erês, em sua maioria foram espíritos que morreram com pouca idade, por isso trazem características da sua vida, como o trejeito e a fala de criança, o gosto por brinquedos e doces. Descem nos terreiros simbolizando a pureza, a inocência e a singeleza, mas acima de tudo a esperança contida na inabalável alegria infantil. Como as crianças em geral, gostam de estar no meio de muita gente, de jogos e de festas. A grande cerimônia dedicada a estas entidades acontece de 27 de setembro a 25 de outubro, dia de São Cosme e Damião, quando comidas como caruru, vatapá, bolinhos, doces, balas são oferecidas tanto às entidades como aos frequentadores dos terreiros. Por conta de seu aspecto infantil, a sua força pode permanecer oculta, porém essa aparência engana pois são perspicazes e identificam muito rapidamente os erros e falhas humanas e, como as crianças carnais, as entidades infantis da Umbanda são essencialmente sinceras. Na Umbanda, a entidade das Crianças é extremamente importante, uma vez que esta é uma religião essencialmente brasileira e, portanto, voltada para sua população – população essa que é composta majoritariamente por pessoas pobres e em situações precárias de violência e anonimato, mas que apesar disso persistem em viver e progredir. Por isso, o maior símbolo de permanência da vida e superação das adversidades são as crianças que representam a esperança e a força do novo. Apesar de todas as interlocuções que foram realizadas entre as religiosidades de matriz africana e as outras Religiões, fica bem evidente, após esta brevíssima e bastante superficial apresentação dos Orixás do Candomblé e das Entidades da Umbanda, que este foi um processo para possibilitar que a identidade das populações negras resistisse ao longo de séculos de escravização, vivenciando e afirmando suas tradições religiosas nessa Diáspora que lhes foi imposta. Mas, apesar das diferenças que são a marca de uma história e uma cultura diversa, como todas as Religiões do mundo, as Religiões Afro-Brasileiras buscam ajudar e consolar o ser humano, buscam explicar o funcionamento do mundo e o sentido da vida e da morte e, acima de tudo, buscam afirmar que todos têm o direito a existir do seu próprio jeito, pois cada um de nós nasce “filho” de um Orixá, Inkisse ou Vodun, com características únicas, com qualidades e defeitos e com o direito de ter orgulho de si mesmo, de se realizar e de ser feliz.

Considerações Finais Erisvaldo Pereira dos Santos, doutor pela UFMG, docente da Universidade Federal de Ouro Preto, pesquisador do CNPq e Pai-de-Santo de Candomblé, desenvolve uma rica e árdua pesquisa sobre a problemática da intolerância contra as Religiões de matrizes africanas. Em 2010, lançou um pequeno e precioso livro que deveria estar em todas as escolas deste país: num texto simples, claro, respeitoso, inteligente e bem-humorado, torna-se mais uma das interlocuções que marcam o processo de resistência e de afirmação de identidade das Religiões Afro-Brasileiras e é com suas palavras que eu gostaria de encerrar este artigo:

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Enquanto as lideranças [religiosas] não chegam a um acordo em relação à necessidade de acolher e respeitar o outro, o campo de formação dos professores pode oferecer uma boa contribuição para construir um mundo mais humano e mais feliz, através do diálogo em favor de um currículo escolar que ofereça bases cognitivas e emocionais para a valorização e respeito à diversidade religiosa. O que foi explicitado nestas páginas diz respeito não à disciplina de Ensino Religioso, em específico, mas a todo o trabalho de implementação da Lei 10.639/03, no que se refere aos conteúdos da cultura afro-brasileira a serem valorizados na escola. O pressuposto é o de que, se não forem valorizados e respeitados os conteúdos das religiões brasileiras de matrizes africanas, o espírito da lei não prevalecerá. (SANTOS, 2010, p. 115-116).

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REFERÊNCIAS

ADOLFO, Sérgio Paulo. Nkissi Tata Dia Nguzu: estudos sobre o candomblé Congo-Angola. Londrina: EDUEL, 2011. ANDREI, Elena Maria; GUIMARÃES, Carlos Alexandre; MATRICARDI, Luciano de Freitas Pinto; ALVES, Miriam Elena Andrei Machado. Coleção Itan: material didático alternativo. Londrina: NEAA/ UEL, 2011 (em fase de conclusão). ARAÚJO, Emanoel. A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge, 1988. CARVALHO, José Jorge de. Racismo fenotípico e estéticas da segunda pele, s/d. Revista Cinética. Disponível em: <www.revistacinetica.com.br/cep/jose_jorge.pdf>. Acesso em: 03/04/2011. GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? Revista Brasileira de Educação: ANPEd, n. 21, 2002. Disponível em: <www. scielo.br/pdf/rbedu/n21/n21a03.pdf>. Acesso em: 03/04/2011. LIMA, Claudia. O Islamismo na África, s/d. Disponível em: <www.claudialima.com.br/pdf/O_ISLAMISMO_NA_AFRICA.pdf>. Acesso em: 03/04/2011. LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004. OLIVEIRA, Rachel de. Tramas da cor: enfrentando o preconceito no dia-a-dia escolar. São Paulo: Selo Negro, 2005. PRANDI, Reginaldo. A dança dos encantados, 2001 – disponível em: <www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/dancacab.htm>. ou Revista Usp, São Paulo, n. 50, p.46-65, 2001. SANTOS, Acácio Sidinei Almeida; REGINALDO, Lucilene. Irmãs da Boa Morte, senhoras do segredo. In: Anais do IV Congresso Afro Brasileiro Sincretismo Religioso: O ritual afro. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1996. SANTOS, Erisvaldo Pereira dos. Formação de professores e religiões de matrizes africanas: um diálogo necessário. Belo Horizonte: Nandyala, 2010 SILVA,Vagner Gonçalves da: Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2005. SODRÉ, Muniz: O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

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ATIVIDADES

1. No fórum de atividades, reflita sobre a discriminação em relação às religiões Afro-Brasileiras e discuta, baseado no artigo: SILVA,Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana, v. 13, n. 1, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/mana/v13n1/a08v13n1.pdf>. Acesso em: 03/04/2011. Poste sua reflexão e discuta com, pelo menos, dois colegas. 2. A partir das informações deste artigo e dos sites indicados, busque informações no seu bairro, cidade ou proximidade da escola, de uma Casa/Terreiro de Candomblé ou de Umbanda. Produza um texto (entre 1 e 2 laudas) apresentando suas considerações sobre o que você conhece a respeito desse espaço. Encaminhe, em arquivo único, no seguinte formato:

CURSO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA EM EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS – MEC/SECAD E CIPEAD/NEAB-UFPR NOME: _________________________________________________________ POLO: __________________________ TURMA: _______________________ MÓDULO: _____ ATIVIDADE: _____

Texto

3. Busque nos sites sugeridos informações sobre as relações entre as Religiões de matriz africana no Brasil e as artes plásticas, a música, a dança e a gastronomia. Produza um texto (no máximo duas laudas) ou slides (no máximo dez) e envie em arquivo único no seguinte formato.

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SUGESTÃO DE LEITURA Sugestões de leituras, links e vídeos

AMARAL, Rita. Xirê! O modo de crer e viver do candomblé – Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 2002. BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição para uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1989. LODY, Raul. Candomblé: religião e resistência cultural. São Paulo: Ática, 1987. ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Pedagogia da diferença. Belo Horizonte: Nandyala, 2009. SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte. Petrópolis: Ed. Vozes, 1986. SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu tempo é agora. São Paulo: Editora Oduduwa, 1993. VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. São Paulo: Corrupio, 1993. http://ocandomble.wordpress.com/ http://www.casadasafricas.org.br/site/index.php?id=banco_de_textos http://www.acordacultura.org.br/ http://www.neilopes.blogger.com.br/2009_10_01_archive.html Mojubá – Canal Futura: http://www.youtube.com/watch?v=BoFsnXqQ5sk&feature=related http://www.youtube.com/watch?v=NfZKjI9ylnk&feature=related http://www.youtube.com/watch?v=aeBlb-LhUsg&feature=related

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