O FIM DO MEDO

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Giuseppe Butera

O fim do medo romance


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Giuseppe Butera

O fim do medo romance

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A vida ĂŠ a arte arte do encontro VinĂ­cius de Moraes

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.1 O PRIMEIRO MUNDO

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FRANÇOIS acordou na cama de Lucienne, sem saber que era segunda-feira, que às sete horas tinha começado já sua aula de Anatomia e até que ele era um calouro de Medicina e se chamava François De la Roche. — Quem é você? — perguntou pra Lucienne, pensando estar se vendo no espelho. Tinha conhecido a garota no metrô, a noite anterior, pouco antes de começar a embaçar as idéias com a fumaça do seu cigarro de haxixe e de uma quantidade imprecisada de apreciável Bourgogne, já no quarto da moça. — Sou Lucienne, não esta lembrado? — respondeu a garota, com uma voz que ricocheteou entre seus neurônios, feito bolinha de fliperama, até acomodar-se na maciez aconchegante da mesma caçapa crepuscular, que a tinha lançado. — Ah, bom — suspirou o estudante, borbulhando mais palavras e frases desconexas, para mergulhar, logo a seguir, naquela lama onírica, decantada de quaisquer sonhos ou lembranças. — Acorda, François. Parbleu! — gritou-lhe nos ouvidos a menina. — Meus pais vão chegar logo. Vá embora, ou estarei perdida. Arrastou-o até a beira da cama e foi aí que o autômato conseguiu finalmente erguer-se de pé revelando toda a nudez esplendorosa dos seus dezoito anos, muito bem alimentados, à base de queijos, leite, ovos, galinhas, bifes, batatas, cenouras, alface, couve, couve-flor, pâté-de-foiegras, salsichas, presuntos, azeitonas, azeite de oliva, vinho caseiro... tudo natural, produzido no próprio sítio AllonsEnfants dos De la Roche de Aix-en-Provence. Lucienne foi obrigada a aplacar sua pressa incontida, a fim de poder contemplar, durante longos instantes, aquele

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animal majestoso, sem véus nem amarras, despertando dos amores recentes. Os músculos do pescoço formavam uma verdadeira pirâmide de sustentação para um crânio perfeitamente torneado e envolto na volumosa cabeleira alourada, que se esfiapava em uma cascata casual, sobre as planícies simétricas dos largos ombros. Os olhos, de um azul pungente, que insistia em tornarse cinza, a cada flutuar da cortina de renda provençal. O nariz e a boca copiados da capa de seu livro de história da arte grega, que reproduzia, de corpo inteiro, a estátua do Apolo de Praxíteles. Se conseguisse enxergar sua própria imagem, projetada nos olhos apurados da parceira, o aprendiz de feiticeiro teria podido verificar todas suas recentes noções de Myologie, reconhecendo, um por um, os grupos musculares de seu corpo, que modelavam as faixas aponeuróticas e a epiderme intacta, esculpindo-a, de dentro pra fora, e plasmando, ao seu redor, a própria redoma de ar aquecido do quarto-de-boneca da garota. Lucienne era filha de monsieur Jean Blanchard, um pacato funcionário da receita municipal. Com sua esposa Clarisse e o filho pequeno Antoine, de doze anos, tinha-se concedido um raro fim-de-semana no campo, em casa dos parentes de Fontainebleau. Tinha deixado sozinha Lucienne, após muitas hesitações, pois, de outra forma, ela não chegaria em tempo para sua aula de pintura barroca, na escola de belas artes Coset-te D’Artimagnac. E, além do mais, teria sempre a prima dela, Mariette, que poderia pousar à noite junto, ajudando-a, inclusive, a custodiar a casa. Lucienne tinha namorado bastante desde os catorze anos. Mas até o ano anterior, não tinha passado de

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algumas carícias, sempre com garotos de sua idade, e, com os mais atrevidos, tinha arriscado até alguns beijos na boca. Continuava muito tímida e guardava seus segredos em um diário que começara no dia da sua primeira comunhão, numa linguagem propositadamente hermética, a fim de confundir eventuais penetras. Os assuntos vinham-se adequando ao evoluir das situações e das mudanças em sua personalidade adolescente, refletindo todas as nuances de uma vida sentimental em plena efervescência. As paredes do seu quarto resumiam seus gostos e preferências dos últimos dez anos. A boneca Frou-frou que ganhara em seu nono aniversário, era ainda muito vistosa. Lá estava o pôster com seu retrato aos doze anos de idade, bem no meio dos cartazes dos Beatles e dos Rolling Stones, que ganhara por ocasião dos respectivos shows realizados o ano anterior, no Bois de Boulogne.Ela tinha ido junto à turminha do colégio e tinha vibrado, chorado e desmaiado, em francês, pelas estripulias daquelas bandas de moleques talentosos, que despertavam tantas paixões, ao enrolarem a língua barbárica sob uma tempestade de milhares de megawatts. Projetado naquele pano-de-fundo de símbolos, souvenirs e ídolos de papel, François brilhava como uma alegoria de todos os seus valores e sonhos juvenis. E justo agora, ela devia se desfazer, muito a contragosto e o mais rápido possível, de todo aquele concentrado de beleza e de energia, que lhe fizera experimentar o prazer desconhecido, no frenesi mais intenso. Um banho de espuma devolveu a memória e os movimentos àquele robô macio, que as mãos da fada solícita se detinham em acariciar, deslizando, ainda mais um pouco, sobre o filme de sabão perfumado, à revelia da

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urgência inexorável. Foi quando a pressa contagiou, finalmente, o deus incômodo, o qual precisou apenas de três minutos de relógio para sua fulminante saída de cena, antes mesmo de se preocupar com a identificação definitiva da companheira. Lucienne ficou com o rosto de uma vidente, no fim de uma revelação sobrenatural, e, às duras penas, conseguiu voltar em si mesma, para terminar de arrumar, limpar e liberar a casa de qualquer rastro da visita imprevista e, enfim, sentar uns momentos, a registrar algo das inúmeras sensações que haviam composto o acontecimento. “Hoje conheci o sentido da palavra abismo. Não é tão profundo quanto a imensidão da voragem que ela indica. É, todavia, mais concreto que tantos outros nomes de coisas, que existem só na cabeça da gente: amor, pátria, liberdade... François é apenas um apelido." A campainha tocou e ela nem ouvira quaisquer ruídos de carro chegando ou as vozes festivas de crianças ou adultos retornando de viagem. Preparou o sorriso mais alegre para recepcionar seus pais e o irmãozinho. Atrás da porta, estavam, ao invés, dois agentes com o uniforme da Sûreté. — Mademoiselle Blanchard? Somos da segurança pública. A senhorita conhece François De la Roche? — François é apelido — pensou a garota. — Quem é François De la Roche? — perguntou, com ar inocente. O olhar cortês, porém severo do gendarme, rechaçou com firmeza a ironia mal disfarçada da moça. — Não sei se o conheço — respondeu, afinal. — Mas tenho certeza de que ele nem sabe quem sou eu — concluiu, só pra si mesma.

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François estava sendo procurado por ter aparecido no meio dos manifestantes, durante uma passeata nos Champs-Élysées, de alguns dias antes. Sua cara tinha sido filmada em super-8 por um amador, que tinha vendido a fita à polícia e agora os líderes do protesto estavam todos marcados. Bem que ele tinha preparado algumas faixas, junto com uma turminha do primeiro ano, a convite do coordenador de cultura do grêmio, mas ainda não conhecia muito bem todas as instâncias e menos ainda o alcance daquelas primeiras greves de estudantes, que acabariam desencadeando um verdadeiro movimento cultural, de grandes conseqüências para toda a civilização ocidental. — Não podemos continuar a tolerar esse sistema feudal, que se arrasta desde a fundação da Sorbonne. Estamos cheios da prepotência dos barões, que loteiam as cadeiras, os currículos, as bibliotecas, os estágios, os laboratórios. Tudo sob o poder de vida e de morte desses medalhões preguiçosos, que só promovem puxa-sacos e grã-finos — explicara, em tom professoral, Alfred Carel, que tentava pela quinta vez o exame de Clínica Cirúrgica com o professor Latarjet Neto. François tinha escutado, em silêncio, todas as intervenções de novatos e de veteranos, que se exercitavam em repetir os chavões mais surrados, ou mesmo as idéias mais delirantes, como se se tratasse das descobertas mais originais e recentes. — Eu acho que devemos proclamar o advento da anarquia, como o único sistema de governo viável na República francesa — disparara Leonard Rubin, que começava o terceiro ano e nem sequer tinha conseguido ainda visitar uma enfermaria de hospital.

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— Na minha opinião — falou Jean-Luc Camdessus, freqüentador da mesma mesa do restaurante universitário e hospedado na Casa do Estudante Provençal, como François, — deveríamos acabar com os padres e as freiras para ver se não vamos dar um jeito neste país. — Nem sabia que estava apenas repetindo uma das teses mais bem fundamentadas dos últimos duzentos anos de enciclopedismo. François pensou em seu pai e como ele teria arrepiado se escutasse tantas bobagens e, principalmente, se visse seu próprio filho numa reunião daquelas. Sua família era uma das mais tradicionais da região e seus pais se destacavam em qualquer manifestação religiosa ou cívica, que exigisse alguma demonstração do mais incondicional nacionalismo. A vontade de se enturmar, todavia, prevalecera. Vestiu seu jaleco e foi se postar na frente do Parlamento, no dia marcado. Uma multidão foi logo se juntando e ocupando todos os arredores, até o fundo da Praça dos Invalides. O cenário da praça se tornou um único borrão surrealista, não fossem as milhares de cabecinhas pululando sobre o pano-de-fundo dos jalecos, da neve recente e do mármore antigo das fachadas neoclássicas. Slogans e canções atravessavam a esplanada de um canto a outro, enquanto um grupo de maoístas repetia, à exaustão, as palavras de ordem do mestre, tal qual teriam feito seus coleguinhas de olhos puxados, na praça Tian-anmem, em Pequim. Os livrinhos vermelhos que agitavam, eram os únicos pingos de cor e de movimento, além das letras das faixas e cartazes, que mapeavam as várias tendências políticas, e do grande tricolor, que cortava um pedaço do céu cinzento, no topo da cúpula do Parlamento.

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Daí a pouco a mancha começou a formar um imenso riacho branco-sujo, que cruzou a Sena e desaguou logo na Praça de la Concorde, virando, em seguida, para os Champs Élysées. Apesar da subida, a multidão chegou ao Arc de Triomphe, parecendo a ponta de uma flecha incendiaria ou a ogiva de um foguete atingindo a atmosfera, de volta do espaço. Lá os esperava, porém, uma verdadeira parede de policiais armados de cassetete e protegidos por capacetes e escudos de fibra transparente. Surpreendentemente, não houve choques, mas logo os jalecos brancos se espalharam por toda a extensão da Place de l'Étoile e ficaram aí durante horas, sentados a gritar seus slogans e a agitar suas faixas e cartazes. Enquanto ao megafone se sucediam vários defensores improvisados da reforma universitária, François teve todo o tempo para pensar em si mesmo, em seu futuro e em seu passado. Sabia muito bem que gostava mesmo não era de política, nem de Medicina, e sim de arte e de literatura. Tivera, todavia, que seguir as ordens do pai, o qual, como todos em casa, sonhava com um docteur na família. E nem pudera alegar qualquer objeção, pois seu desempenho no exame de baccalauréat tinha sido brilhante sob todos os aspectos. Os membros da comissão da área de Ciências Biológicas e Exatas tinham ficado tão impressionados quanto os da área de Letras e Filosofia. Ele era, sem dúvida, um sujeito notável, que poderia se dar muito bem em qualquer campo da atividade profissional. O que o orgulhava mais, todavia, tinha sido o exame de grego, quando pôde esnobar seu domínio dos clássicos, sem sequer precisar abrir um livro. Deixou o examinador boquiaberto, quando começou a recitar no original, com sentimento e ênfase, o prólogo da Alceste de Eurípedes e

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trechos do coro, que o professor se divertia em citar aleatoriamente. O jovem pronunciou impecavelmente o texto, deu a versão em francês, conjugou os verbos, destrinçou os complicados nexos sintáticos e até os artifícios da métrica jônica. Pra ele não foi tão difícil, pois já tinha realizado tal façanha na aula da professora Marguerite Dieulafoi, em um recital que ele mesmo tinha organizado, com sua turma. Ele sentiu, na ocasião, as garotas da classe vibrando, ao vê-lo entrar em cena, nos trajes reduzidos de um jovem Apolo, que retornava à casa do rei Admeto, para consolálo, pois sua esposa iria morrer em seu lugar, vítima voluntária da vingança dos deuses e de seu próprio amor pelo marido. Ὦ δώματ᾿ Ἀδμήτει᾿, ἐν οἷς ἔτλην ἐγὼ θῆσσαν τράπεζαν αἰνέσαι, θεός περ ὤν.

Ó casas de Admeto, onde tive que sentar a uma mesa servil mesmo sendo um deus... A peça fora um sucesso e as meninas cobriram-no de mil elogios, como os professores também, mas ele sumira logo da escola, para ir festejar na cama de Rosemarie, com a qual tinha ensaiado, durante muito tempo e que tinha acabado de interpretar uma deliciosa Alceste. — Ó sol, ó luz do dia, ó nuvens errantes pelo céu — exordiara aquela Rosemarie-Alceste, enquanto François ia desabotoando sua blusa. — O sol vê nos dois, que sofremos terrivelmente — sussurrava no seu ouvido Apolo, que agora personificava o esposo Admeto, — embora nunca tenhamos ofendido os deuses, ao ponto de você merecer a morte. — Ó terra natal, ó casa paterna, onde estava meu quarto virginal, em Iolco — a garota já estava debaixo dos 16


cobertores, com o deus-esposo totalmente despido, ao seu lado. — Reanime-se, coitadinha! Não me abandone — ronronava François, de olhos fechados, menos para lembrar o texto, do que para sentir até o último milímetro quadrado de sua pele, o contato magico com aquele pêssego suave, que deslizava prazerosamente debaixo de seu corpo. — Reza para que os Deuses poderosos tenham piedade de nós. — Me deixem, já me deixem; me deitem por terra, pois não posso mais sustentar-me de pé — gritava agora uma Alceste ensandecida, enquanto Admeto perdia também o nexo entre o drama e a apoteose, entre a felicidade e a morte. — O Ades se aproxima e as trevas cobrem meus olhos. Filhos, meus filhos, a mãe não mais existe. Vivam felizes. Adeus... Uma escaramuça estava agora acontecendo lá perto. Um grupinho de neofascistas gritava séries de impropérios contra os exaltados de livrinho vermelho. Logo começou a briga e a polícia aproveitou para avançar, espancando a esmo e disparando seus petardos de gás lacrimogêneo. Aí, virou um campo de batalha mesmo. François conseguiu escapulir, nem soube como, entre a ala dos pretos e a dos vermelhos, pouco antes que um enxame de uniformes bleu-nuit se despejasse sobre o canteiro, que o tinha deixado pensar sossegado na sua vida, até aquele momento. Quando entrou no metrô, de volta da casa dos Blanchard, em Les Sablons, François já sabia que havia perdido a aula sobre a vascularização do encéfalo e que deveria redobrar seu esforço e o tempo de estudo dedicado à lição, para evitar surpresas depois. Mas não resistiu ao 17


seu hobby preferido. Por isso, em vez de pegar a baldeação para a cidade universitária, parou na estação do Louvre e foi direto para o museu. Pensou em Lucienne, só quando estava na sala dos grandes afrescos da época napoleônica, contemplando o mural da coroação do imperador. Lá estava o jovem Bonaparte, de estatura majorada pelo olhar cortesão do artista, enquanto o papa, doente e contrariado, engolia o desapontamento, procurando casuísmos, por aí, para justificar o comportamento inédito do novo dono-do-mundo. A recém-ungida Joséphine, com sua atitude compenetrada de imperatriz-por-acaso, cedeu o lugar ao rosto igualmente enigmático de Lucienne, no momento de seu despertar, poucas horas antes. O que François achou mais engraçado foi o fato de se ver a si mesmo, lá no meio dos potentados da corte, vestido com uma farda desproporcional, que dava um toque de humor a mais aos seus devaneios. Viu também Rosemarie, com seu ar de monja devassa, Marie Ménuet, sua primeira namorada em Aix, e Stéphanie Lacan, a empregada que lhe tinha revelado os primeiros segredos do sexo, todas com seus trajes de brocado e de linho, acotoveladas no grupo de matronas do início de mil e oitocentos. Viu Léonard, Jean-Luc, Alfred, no meio dos cadetes da tropa de elite, com seus uniformes de gala. Antoine Rouanet, um de seus antigos colegas de colégio, era ainda um garotinho que fungia de valete, a serviço da professora Marguerite, elegantíssima em seu traje de seda bordada com fios de ouro. Entre os padres, sua imaginação ouriçada pusera vários amigos de seu pai, monsieur Philippe Pantin, o açougueiro, o padeiro Paul Riquet, o sapateiro Jacques Bonsergent,

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junto com seus vizinhos de quarto, Louis Laumière, Michel Charenton, Richard Lachaise e Fabien Goncourt. Era uma multidão que ia aumentando progressivamente, lotando a nau de Nôtre-Dame e transformando-a em outra Praça de l'Étoile, enquanto ecoava música de órgão e canto gregoriano misturando-se com a gritaria dos guardas vermelhos e dos vários grupos de manifestantes de alguns dias antes. Escutava os estouros das bombas de gás lacrimogêneo, os gritos dos espancados, os cascos dos cavalos pisando no asfalto e alguém repetindo seu nome em voz baixa. — François De la Roche. François. Era uma senhora anciã, que parecia estar falando sozinha, enquanto, sentada ao seu lado, no banco debaixo da janela, e também absorta na observação da pintura, repetia, uma infinidade de vezes, o nome do jovem e um recado: — Há um amigo de Ramsés II que lhe está esperando lá embaixo. François levantou-se de imediato e a multidão do quadro ficou empurrando-o para baixo, em direção ao ponto do encontro marcado por estranhos, ao qual ele sentia que seria melhor faltar. Desceu lentamente pela escadaria barroca, como se estivesse buscando a primeira saída pra bem longe daí, nem que fosse para se fechar no seu anfiteatro de dissecação anatômica, cheirando formol e destrinçando artérias em pedaços de coxas de cadáver. Foi direto, ao invés, para o imenso porão, que abrigava o setor de Egiptologia e mais parecia um cemitério de faraós. Havia sarcófago que não acabava mais. De todos os tamanhos. Alguns abertos, mostrando as múmias desconhecidas, totalmente encobertas em suas mortalhas esfarrapadas ou

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revelando parte do rosto encarquilhado ou a ponta dos pés antigos. Só havia mortos, no porão do Louvre. Ramsés II o estava esperando, fazia muito tempo mesmo, em seu cantinho escolhido pelos arqueólogos de Napoleão, após as fúrias cleptomaníacas da campanha egípcia e posto em destaque discreto pelos iluminadores de De Gaulle. Sob o olhar dourado do faraó, havia um sujeito mergulhado em um cone de sombra e imóvel como mais uma múmia, só que sentado em cadeira de rodas e exibindo um rosto bem nutrido acima de um terno impecável, que ocultava o corpo obeso junto com as pernas inúteis. — Tenho uma encomenda para lhe confiar — falou, com sua voz de além-túmulo. — Quem é você? — tremeu François. — Pode me chamar de Ramsés. Só que não vai precisar fazê-lo jamais. Haverá outras pessoas, que lhe indicarão, cada dia, o que fazer. Você deverá apenas obedecer às ordens. — A voz do aleijado soava a imposição, muito embora não houvesse qualquer razão para François se sentir obrigado a nada. — Por quê deveria obedecer às ordens de quem quer que seja? — Você esta sendo procurado pela polícia. — François empalideceu, mas o Ramsés paraplégico nem via o rosto dele e prosseguiu com sua voz monótona. — Neste momento, eles estão procurando-o na Casa do Estudante. Sua tarefa será de deixar as coisas acontecerem. Na prisão, alguém lhe dirá o que fazer. Não se preocupe. Alguém providenciará também sua soltura. Siga as ordens e vai se dar bem.

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— Estou preocupado, sim — conseguiu ainda retrucar o jovem, com um resíduo de firmeza. — Sou apenas um estudante de medicina. Não quero me meter em coisas que não sei fazer. — Sabemos tudo de você. Conhecemos suas qualidades e seus pontos fracos. Se recusar, sua ficha completa estará nas mãos da Sûreté e irá queimar também Lucienne, Rosemarie, Stéphanie, Emmanuelle, Lorette... A cadeira de rodas se movimentou, num zumbido de abelha solitária, deixando o novo adepto na frente da múmia, imobilizado pelo terror do desconhecido, mais do que pelo medo da morte, abalroado pelas ameaças indefinidas, que sacudiam sua espinha com calafrios mais intensos do que os produzidos pelo ambiente macabro. Foi levado pra cadeia, sem estardalhaço, logo que chegou à Casa do Estudante. Os companheiros ficaram todos no saguão e bastaria uma senha qualquer, por parte de François, para que se desencadeasse um confronto com os gendarmes. Mas sabiam que a polícia estava prendendo muitos estudantes, apenas para interrogá-los, e a atitude tranqüila de François, de outro lado, suscitara mais um frisson de admiração do que veleidades belicosas, principalmente entre os colegas provençais. Ficou numa cela lotada de presos de todos os tipos: o ar estava repleto do cheiro daquele sumo da escória dos subúrbios parisienses. Ficou de pé durante duas horas, ao lado de um grandalhão barbudo, que liberava uma eructação barulhenta, de cinco em cinco minutos, com a mesma liberdade de um náufrago em uma ilhota deserta. François pensou, por um instante, na hipótese de um médico maluco ter prescrito a liberação periódica de gases ao energúmeno, como medida de escape para os maus pensamentos, gerados por aquele ambiente depressivo. A

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idéia proporcionou, a ele também, algum alívio da profunda frustração em que estava mergulhado. Sentado num canto estava um homem de meia idade, que devia ter sido preso também de recente, pois permanecia todo encolhido em seu sobretudo à la Humphrey Bogart e com um chapéu de abas largas, que parecia estar saindo da seqüência final de Casablanca. Seu rosto longo, marcado por sulcos profundos e os olhos esbugalhados, com os quais o fitava silenciosamente, conferiam-lhe uma expressão dolorosa, principalmente quando tentava esboçar um sorriso. Enquanto os demais continuavam conversando ou pensando em si próprios, o estranho personagem começou abruptamente a recitar um poema de Jules Laforgue, Riguer à nulle autre pareilles, que François reconheceu imediatamente, pois tivera que decorá-lo na oitava série. Dans un album, Mourait fossil Un géranium Cueillit aux Îles. É uma interpretação fantasiosa daquilo que estaria falando uma estatueta de marfim, representando um trovador, a um gerânio colhido nas encostas, que morria fóssil num álbum. Un fin jongleur En vieil ivoire Rallait la fleur Et ses histoires.

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O trovador, na imaginação do poeta simbolista, estaria ridicularizando a flor, que pretendia ter muitas histórias pra contar. A flor lhe pede paz mas o trovador impiedoso lhe prevê uma eterna inquietude. — "Un réquiem!" Demandait-elle. — "Vous n´aurez rien, Mademoiselle!.." De quatre en quatre, Les premières six. Quarante quatre, Mieux qu´obéisses. Às dez horas, chegou a ordem de sair para o banho de sol. Era o recreio dos presos, no grande pátio da penitenciária. François enfileirou-se com os demais companheiros desconhecidos e começou a repetir mentalmente, ele também, o poema de Laforgue, que o improvisado locutor havia terminado de declamar. — De quatre en quatre, les premières six — refletiu. O que é isso? Essa frase não existe no poema. — Sorriu ao lembrar a maneira com que o sujeito esquisito o olhara: tinha a cara de uma cobra naja, querendo-o cegar. — De quatro em quatro, as primeiras seis — repetiu. — Quatro o quê? E o resto da frase? De repente começou a contar as letras do poema e logo se deu conta de que a cobra queria transmitir uma mensagem, cuja chave era aquela frase descabida. E o destinatário era ele próprio. As letras formavam a palavra d.u.b.o.i.s., e quarenta e quatro devia ser o número da rua, com certeza perto do 23


Bois de Boulogne, onde deveria encontrar alguém ou alguma coisa. E era melhor que obedecesse, acrescentava o estranho poema. Voltou à cela abatido e confuso como um verdadeiro condenado. Tinha perdido o domínio de sua própria vida. Sentia-se todo enroscado numa repentina armadilha e o sentimento de culpa, que começava a apoderar-se dele, impedia-lhe até de poder responsabilizar a outrem. O hábito da maconha, inocente em sua aparência inicial, impusera-se à sua capacidade de querer, tornandose uma necessidade imprescindível para calmar suas ansiedades e fornecer-lhe uma constante percepção de autoconfiança. E a própria atração pela caça às belas mulheres, que constituía motivo de orgulho igual ou maior do que seus sucessos escolares, transformava-se agora em motivo de desapontamento e de remorso. Passou o resto do tempo na prisão, remoendo sua revolta silenciosa contra a injustiça que estavam lhe infligindo, privando-o até da capacidade de se defender. Teve a clara dimensão do bueiro em que tinha caído, todavia, somente quando o diretor da penitenciária o mandou chamar para interrogá-lo. — François De la Roche, por que foi se meter com todos aqueles arruaceiros? Não tinha coisas mais importantes pra fazer? Você, um estudante sempre brilhante e esforçado — começou em tom paternal o senhor Laparrette, folheando o que devia ser sua ficha individual. Foi um sermão e tanto, com todos os ingredientes da admoestação, da sedução e até da mais ostensiva intimidação.

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— Por que será que, de repente, todo mundo parece tão interessado na minha vida? Será que alguém não se deu ao trabalho de publicar até o relatório diário de meus pensamentos? — pensou o jovem. — O que é que deu no pessoal? — reagiu, finalmente, com mal-dissimulada calma. — Seus pais certamente ficarão desapontados, ao conhecer essa sua atitude — continuara o velho careca. — Eles são gente ordeira e patriótica. Nunca imaginariam que um filho tão inteligente e estudioso se metesse na baderna desses inimigos da pátria. — Velho calhorda — grunhiu baixinho o jovem, olhando de frente o pateta pálido e desconcertado. — Está me jogando na cara até a mãe dele. O que é a pátria? — continuou contestando silenciosamente, mas com os olhos faiscantes de revolta e de fadiga. — É essa nata-da-nata de lixo humano, que conseguiram juntar em um só lugar? Ou aquelas múmias roubadas de cemitérios alienígenas? Ou, quem sabe, esses traficantes de merde, aos quais nem interessa saber se é francês ou jamaicano ou turco, que vai consumir suas mercadorias dos diabos? Eu gostaria de acreditar, como meu pai, em uma terra rica de cultura, de arte, de bens e de poder, por que não? E olha o que eles me oferecem! O velho calhorda continuara sua reprimenda, terminando, finalmente, com a soltura do jovem. — Graças a seu parentesco e a uns amigos que tem por aí, vejo-me obrigado a deixá-lo em liberdade, inclusive por ser réu primário. Tome cuidado, porém, pois poderia voltar a qualquer momento e seria tratado, então, com todo o rigor da lei. — Vá pro inferno — pensou François. E saiu, pensando nos belos amigos que tinha arrumado.

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Na Casa do Estudante foi recebido como herói, mas procurou abafar logo o entusiasmo dos colegas, com o pretexto do estudo adicional que o esperava, para compensar os dias perdidos. — Quem falou que vai ter exames, este ano? — adiantou-se Jean-Luc. — Está tudo parado e ninguém seria capaz de apostar nada, quanto ao retorno às aulas. Quinta-feira, 21 de março de 1968. Hoje começa a primavera, mas ainda faz muito frio em Paris. As nevascas parece que nunca terminam. E eu que devo sair todos os dias às sete horas, pra pegar o metrô até a estação de Montmartre e enfrentar um rol de professores, um mais chato que os outros. Mas adoro as matérias que eles dão. Por que será que os bons professores devem ser tão insuportáveis? A arte deveria tornar as pessoas mais compreensivas e calmas. Ao contrário, eles se tornam todos neuróticos e arrogantes, como se os dons que receberam da natureza lhes outorgassem o direito de se impor aos alunos com os maus tratos. Sexta-feira, 22 de março de 1968. Faz quinze dias que a Sûreté bateu à minha porta. Meus pais esqueceram um pouco o escarcéu, que o commissaire Targut montou em cima do episódio. Meus colegas estavam comentando que o segundo grau também está se mobilizando a favor da reforma do ensino superior. A mãe está muito ansiosa por ter escutado também esses comentários e meu pai parece a ponto de estourar a cada

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instante, por causa da incerteza sobre eu terminar o ano. Afinal, terei que prestar meu exame de baccalauréat. Sábado, 23 de março de l968. Estou pisando nas nuvens. Jeannette me deu notícias do Abismo. Fiquei um pouco triste ao saber que o detiveram por alguns dias, na delegacia de Île-de-la-Cité, mas foi solto sem maiores complicações. Não vejo a hora de encontrar-me com ele. Será que ele vai se lembrar de mim? Como seria bom se ele me curtisse de verdade. Eu seria a garota mais feliz do mundo. Ele foi visto aqui por perto. Será que estava procurando a minha casa e não lembrava mais do endereço certo? François tinha perdido uma tarde inteira à procura do número 44 da Rua du Bois. Por isso percorrera todo o bairro dos Sablons, mas tinha evitado, de propósito, passar diante da casa dos Blanchard, para não correr o risco de ver Lucienne, da qual agora, por sinal, se lembrava muito bem. Jeannette era a colega e vizinha, que estava junto com Lucienne, no metrô, quando essa conheceu François e tinha sido ela quem telefonara para a prima de Lucienne, Mariette, que não precisaria vir pra casa dela, pois as duas ficariam estudando juntas, a noite inteira. Essa versão cúmplice da amiga conseguira poupar a garota de um constrangimento maior, quando o inspetor Targut quisera ir mais a fundo no relacionamento de Lucienne com François. Fora a própria Jeannette, inclusive, que tranqüilizara o senhor Blanchard, jurando que François não passava de um antigo colega da escola, sem maiores implicações nos acontecimentos que motivaram a investigação da polícia.

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Quando já ia desistir, ao anoitecer, François estava ainda na Praça de L' Atre de Tassigny, bem na frente de uma das entradas do parque, justo na hora em que as lojas, ao redor da praça, iluminavam seus letreiros e suas fachadas à espera de numerosos bohémiens e turistas. Aí entendeu realmente a mensagem do Humphrey Bogart da penitenciária. Bem na frente dele estava, de fato, o Restaurant du Bois, piscando pro parque, com centenas de luzes coloridas. Foi direto, à procura da mesa de número 44, com a certeza e o receio de quem vai ao encontro de seu próprio destino. O restaurante estava vazio, enquanto três garçons se entretinham em tirar a poeira das dezenas de garrafas de vinho deitadas na prateleira ao lado do caixa. O restaurante não era de luxo, mas não lhe faltava nada daquele ar acolhedor e bonachão das cantinas genuinamente francesas, que encanta tanto os turistas estrangeiros e os faz sentir em casa, tal como qualquer interiorano. Encontrou-a, debaixo de uma parreira de plástico, com uvas verdes e roxas, grandes folhas e formas de queijos penduradas com graça camponesa. A mesa estava forrada, como as demais, com toalhas bordadas com motivos florais, igual às cadeiras, que se pareciam mais com tronos reais, contrastando grotescamente com a rusticidade da decoração do ambiente. O caixa devia ser o dono, pois não vestia o traje de veludo bordeaux dos garçons, que os caracterizaria como camponeses de mil e setecentos, com sua boina do mesmo veludo encimada por um pompon, vermelho como o foulard da cintura e que mais os assemelhava, ao invés, com um pelotão de marinheiros. Ele estava sentado atrás da escrivaninha de nogueira, com uma centenária caixaregistradora pomposamente acomodada ao seu lado, como

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se fosse mais um monumento, do que apenas um exemplar dessa mesma invenção, tão genuinamente francesa quanto a culinária, que ajudava a administrar. Logo que François sentou, o dono — ou gerente? — do restaurante fez um sóbrio sinal a um dos garçons, que percebeu imediatamente a presença do primeiro comensal da noite e foi logo lhe estender na frente o volumoso ménu em couro ricamente trabalhado. — Bienvenu, monsieur — rompeu o gelo o magruço, pródigo em remelexos. — Boa noite — cortou seco o jovem cliente. — Apenas um copo d'água, s' il-vous-plâit. A silhueta flexuosa e longilínea do camareiro se enrijeceu qual imenso ponto de exclamação, antes de desagrilhoar-se em uma sinuosa interrogação, duplamente pontuada pelos olhos arregalados. — Sou François De la Roche — perfurou-o com seu olhar direto e sereno, o outro, afogando, em um eflúvio azulado, a perplexidade persistente do interlocutor. O caixa, junto com os demais garçons, de longe, tinha acompanhado a cena e logo, como teria feito o dono da casa, levantou-se da escrivaninha e veio se posicionar bem na frente do freguês, revelando um risível avental, alinhavado ao terno preto, com alfinetes de fralda de criança. Não fosse a extrema seriedade da intenção, François teria desabado numa gargalhada clamorosa. — Pardon, monsieur — desculpou-se o anfitrião, afastando, sem muitas cerimônias mais, o empregado perdidão. — O senhor poderá escolher, a vontade, os pratos que mais lhe aprouverem. É uma oferta da casa — e substituiu, em um passe de mágica, o cardápio que o garçom tinha oferecido, por outro, bem mais modesto na

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aparência, com capa de cartolina revestida de celofane. — Este, o senhor poderá levar pra casa — justificou. Desta vez, quem ficou encabulado foi François, enquanto os garçons começavam a cochichar entre si, procurando desviar os olhares, quando se descobriam observados pelo patrão. O rosto tenso do jovem homenageado perdia suas rugas artefactas, conforme progredia na leitura do calhamaço, sem, todavia, se livrar daquele ar sério, iluminado pela moldura dourada da cabeleira. O cardápio mais era uma agenda, que previa cada momento de sua vida, nos próximos cinco anos:

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Ménu Beverages: Aperitifs:

Scotch - Gin - Campari - Vodka.

Continuar normalmente os estudos. Abandonar a política e o vício. Namorar Lucienne Blanchard. Pedi-la em casamento próximo dia de São Valentim.

Vins: Rouge/blanc - Bière - Liqueurs - Cognac. Destacar-se nas atividades tradicionais de sua cidade. Viagem cultural, durante as férias acadêmicas: com Lucienne, interior da França e Itália.Correspondência sempre pela caixa postal 3247 do correio do Opéra.

Couvert:

Petit Pain - Beurre.

Viagem só de Lucienne: Grécia, Egito e Israel. Só de François: Turquia, Irã, Cingapura e Tailândia.

Hors-d'Oeuvre:

Terrine de Saumon et Sole. Casamento em maio de 1974. Lua de mel no Canadá. Formação de equipes para a produção e distribuição da mercadoria, em Toronto, Montreal e Niagara Falls.

Entrée:

Suprême de Poulet Crecy – Haricots Verts au Beurre – Riz au Safran. Organização da importação da América meridional. Viagens para Chile, Peru, Bolívia e Colômbia.

Dessert: Tarte au chocolat - Café du Brésil. Organização da rede de Nova York. Intercâmbio com as redes de Detroit e de Los Angeles.

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François decidira levar a organização a sério, sem mais fazer perguntas ou reclamações. Tinha mudado até seu estilo pessoal, no relacionamento com seus colegas e amigos. Agora ele era reservado e pensativo. Fugia de qualquer polêmica e desviava o assunto, quando alguém o provocava com colocações de cunho político. Assim mesmo ele aparentava muita serenidade. Isso tudo tinha contribuído para torná-lo ainda mais admirado e disputado, tanto para o estudo em grupo, como para o lazer. Por ocasião da Semana Santa, ele aproveitou para visitar os pais e o sítio virou o centro das festividades de toda a aldeia. François foi mimado, não apenas pela mãe, Dona Généviève, como também por todos os parentes e conhecidos, sem distinção. E devia admitir, consigo mesmo, que ele gostava de tudo aquilo, principalmente depois de uma experiência tão marcante, que o tinha posto diante de um novo plano de vida, totalmente alheio a seus sonhos e ideais. Ele gostava de longas andanças pelos campos de trigo, ainda verde, mas já bastante crescido e, às vezes, ficava a contemplá-lo ondulando, sob a brisa do entardecer, com seu reflexos mutantes acompanhando submissos o chiado do vento. E logo o pensamento divagava numa incursão caprichosa pelas lembranças da infância ou nas brumas do futuro hipotético, já esboçado por outrem. As sombras das oliveiras esparsas se espraiavam vagarosamente, como saias acinzentadas, sobre as ondas dos trigais de seu domínio, até esvaecer-se numa única mancha, enquanto François procurava delinear, com traços menos nebulosos, os eventos, os rostos e as coisas que povoavam seu mundo imaginário do nunca acontecido.

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Por instantes, se encontrava a conversar com uma mulher de traços andinos, como tinha visto em alguma ilustração de enciclopédia. Ela levava no dorso uma criança, que, pendurada num daqueles panos típicos, multicoloridos, fixava-o, de olhos arregalados, por cima do ombro da mãe. Esta falava uma língua estranha, mas ele conseguia colher, surpreendentemente, o sentido do que ela queria lhe dizer. — A voz do vento não será escrita em livros, pois o fogo a queimaria e a chuva a molharia — falava a índia, mostrando as restaurações em ouro e vários dentes cariados. Tinha o chapéu de feltro e a roupagem das habitantes dos altiplanos andinos. — Mas o vento pode apagar o fogo e enxugar a água — interpelava-a François, como se seguisse sua própria linha de raciocínio. — Quem é mais forte vence. — Ninguém pode vencer a si mesmo. Seria como brigar com sua própria mãe — continuou, rindo, a índia; e o resto da conversa foi um monólogo, que convenceu François de estar diante de suas próprias reminiscências dos sonetos de Pablo Neruda. — Ninguém detém o rio da aurora. Ninguém detém o rio de tuas mãos, os olhos de teu sonho. Você é tremor do tempo que transcorre entre luz vertical e sol sombrio... Com Antoine Rouanet, que tinha reencontrado, ele também de visita, por ocasião das festividades da páscoa, tinha organizado uma pequena farra, quase uma despedida de solteiro, na chácara de Henriette Vendôme, a jovem dona da única mercearia do povoado. François ficou com Marie Ménuet, que não via desde que deixara a casa paterna para fazer seu liceu em Grenoble. Devastaram a adega centenária, escorropichando inúmeras garrafas de safras imemoráveis. Correram a

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cavalo pelos campos, sob o luar pascal, já quase ofuscante. Dançaram e cantaram até não poder mais e finalmente foram pra cama, numa euforia só. François estava entusiasmado por aquela revivescência de seu primeiro amor. Encontrou a garota, totalmente igual a antigamente, e as muitas experiências com mulheres de várias idades, que tinha tido depois, não haviam apagado nada daquela imagem meiga e, ao mesmo tempo maliciosa, que tinha curtido com seus primeiros ardores juvenis. Aquela noite de quarta-feira santa, ninguém dormiu na chácara de Henriette Vendôme e o exército de galos campestres, que anunciaram a aurora por toda a vizinhança, conseguiu, com muita dificuldade, encobertar os sussurros e gritos que continuavam inundando o faxinal, madrugada adentro. Foi assim que a turma desconheceu totalmente aquela quinta-feira santa, 11 de abril de 1968, mas esteve presente, sóbria e pontual, à cerimônia da via-sacra, na tarde da sexta-feira. Antoine, inclusive, tinha assumido o compromisso de representar Jesus Cristo na crucificação e François fizera questão de lavar a alma, participando, sério e compenetrado, daquela cerimônia comovedora, apesar do conflito interno, que sua incipiente descrença e sua arraigada libertinagem lhe pudessem acarretar. Antoine foi extremamente convincente em sua atuação e chegou a arrancar lágrimas sinceras, não apenas das mulheres, inclusive das participantes da farra recente, mas principalmente dos homens de todas as idades, que acompanhavam o auto. A comoção geral, todavia, se tornou consternação e horror, quando ao final da encenação, os circunstantes perceberam que Antoine estava jorrando sangue de

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verdade, pela ferida que a lança do centurião teria forjado no peito de Jesus Cristo. François ficou uma estátua de gelo, quando reconheceu o rosto daquele soldado romano, que logo se evaporou no mesmo nada do qual tinha saído minutos antes: era igualzinho ao rosto de cobra naja, que o transfixara na prisão, disfarçado de Humphrey Bogart. Só que agora ele era o assassino de seu melhor amigo. Quinta-feira, 30 de maio de 1968. Dificilmente vou poder completar meu curso de segundo grau. Vou querer aproveitar para visitar a exposição das obras gráficas de Marc Chagall no Musée d'Art Moderne e de qualquer novidade que apareça por aí. As manifestações estudantis estão se intensificando e, dias atrás eu também participei de uma passeata, junto com minha classe, nos Champs Élysées. Gritei e cantei a Marseilleuse, ao lado de Jean-Paul Sartre e de outros intelectuais, que aderiram ao movimento estudantil. Não tive medo de ser presa, como aconteceu com o Abismo. Sexta-feira, 31 de maio de 1968. Já estava disposta a recomeçar a estudar, mesmo na incerteza de poder fazer os exames de Baccalauréat. Mas aconteceu o imprevisto mais desejado de minha vida: O Abismo voltou. Não é incrível? Ele voltou pra mim. Agora sei o que é felicidade. Mas estou aprendendo, a minhas custas, o que é a incerteza e a ansiedade, também. Por que será que tudo o que é bom deve acabar?

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Quero, assim mesmo, entrar de cabeça nesta aventura emocionante e perigosa. Pois sei que vale a pena. Sábado, 1º de junho de 1968. Não sei qual é a dele. Ele me surpreende a cada momento. De tão atrevido e fogoso que me pareceu a primeira vez, tornou-se silencioso e recatado. Diria — quase circunspecto. E me fala que pretende afastar-se completamente de qualquer atividade política e pensar exclusivamente nos estudos. E que eu também devo me preocupar com os livros e os exames. E se eu tive alguma má impressão dele, quando o vi fumando maconha, posso ter certeza de que isso não vai acontecer nunca mais. Eu, ao contrário, estou me tornando sempre mais ousada e acho que logo vou perder a cabeça. Tenho até medo que ele me julgue uma devassa. Só quero abraçá-lo e beijá-lo sem parar. Não sei mais onde me esconder, para que meus pais ou minhas amigas não percebam. Não penso mais em outra coisa. E ele sabe como me fazer subir pelas paredes. Ele chega, volta e meia, na casa de Jeannette, que mora com uma colega, aluna da Medicina também. Eu vou, com o pretexto de estudar com Jeannette, e assim posso aproveitar para passar algumas horas com ele, todos os dias. Domingo, 2 de junho de 1968. Hoje, fiquei mais tempo estudando com Jeannette. O Abismo veio e conversamos longamente sobre política, arte, literatura, o passado e o futuro. Ele acha que vai acabar casando comigo. Já pensou? Ele acabou de

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completar dezenove anos e eu dezoito. Se depender dele, no próximo ano festejaremos nossos aniversários, com a aliança de noivos nos dedos. Que caretice! Eu, ao contrário, quero só é amá-lo. Nada mais. E como ele sabe me deixar doida! E eu quero e quero. A toda hora. Já vou até sem roupa íntima, ao seu encontro. Quero sentir minha pele nua, debaixo do vestido. E, além do mais, é primavera. E gosto de me impregnar do perfume do ar e das fragrâncias dos quintais, enquanto vou pela rua. E ele chega, querendo conversar. Macio e pousado, irradiando seu olhar azul, ofuscado pela coroa de ouro de seus cabelos. Não pode existir coisa mais linda e boa, no mundo inteiro. E quando suas mãos começam a me tocar, não importa onde, eu navego na quarta dimensão. E ele me beija e parece que a vida quer sair de mim, como um jato de intensa doçura. E meus seios enrijecem e meu coração os empurra em uma dança frenética. E ele me toca suavemente em cada recanto de meu corpo e me beija e me suga e me mordisca e sussurra no meu ouvido e me lambe e, enfim, entra fundo em minhas entranhas, para arrancar o que sobra de minhas forças e de minhas certezas e de minhas dúvidas, despejando tudo na turbulência de um luminoso nada. Como será o mundo, depois? O que será de nós? Quem vai responder pelo bem e pelo mal, no tribunal do tempo? Eu não, disso tenho certeza.

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.2 A CHACINA

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FOI avisado da data e da hora, pelo Condorito. Ele tinha-lhe fornecido a senha também. Toda vez que se despedia dele, Roberto ficava se perguntando, durante alguns instantes, como podia escapar, de uma polícia tão olhuda, um indivíduo tão marcante e singular. Seria mérito daquele sorriso, mistura de tristeza e de jovialidade, perenemente pendurado no imenso nariz? Ou o andar desajeitado, mais de camelo do que de lhama, o tornaria menos suspeito, pela deixa de despreocupação que permanecia colada ao seu calcanhar, anunciando e apagando, logo em seguida, os sinais de sua própria passagem? A rua era uma serpentina de lascas de basalto, que lhe conferiam um aspecto de dinossauro estendido ao sol andino, durante milênios. O ar gélido enfaixava o rosto de Roberto com fitas de agulhas, deixando à vontade os raios solares, para que continuassem a ressecar seus lábios e sua pele. A ladeira estava deserta até a curva, que ele conseguia entrever, por cima de suas sobrancelhas geladas. Foi de repente que percebeu a presença de uma menina parada na esquina, pois daquele amontoado de panos de cores gritante o alcançou uma voz de clarineta: — La puerta de sol, caballero? — O quê? Fora apenas o efeito da surpresa, sendo que, mesmo antes de virar os olhos pra ela, tinha associado suas palavras àquela que martelava o seu cérebro nas últimas doze horas. — Atahuallpa. É assim que vai responder — havia dito o Condorito, sem desfazer seu perene sorriso de Monalisa. — Atahuallpa — respondeu-lhe Roberto, e foi então que notou os olhos da garota. Só os olhos negros

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emergiam debaixo do chapéu de feltro, cópia perfeita dos milhares que já conhecia, fazia tempo: recortados na pele de terra, como olivas de porcelana, marcadas por cílios escuros e fortes. O restante do rosto e do corpo ondulava juntamente à saia, avental, e mantilha, que o guiavam até o lugar do encontro. Percorreu com ela o labirinto de becos e ruelas bizarras, que pareciam construídas de propósito para despistar qualquer curioso. Havia trechos que pareciam sem saída, mas logo surgia uma passagem inesperada ou uma escada de madeira ou simplesmente havia que dar um pulo de até meio metro ou superar uma mureta. Desde logo, Roberto desistira de gravar o trajeto em sua memória, confiando na previdência da organização, quanto ao caminho de volta. O próprio prédio em que penetraram, era um complicado quebra-cabeça de vãos, salas, escadas, tudo na escuridão e na umidade de uma construção inacabada. A cada instante devia esquivar uma tábua inclinada deixada aí para sustentar uma viga ou uma laje. De repente, uma ponta de ferro sobressaía de um bloco de concreto armado, que uma fenda providencial lhe denunciava em tempo, com sua luz doentia, para evitar a perda de um olho ou uma ferida na testa. A cholita deslizava sem uma palavra ou qualquer ruído, naquele ziguezague de sombras e luzes e entradas e saídas sem fim. Quando menos esperava, uma porta de tábuas rústicas lhes abria a passagem para uma sala, cujas paredes estavam revestidas por papel de estampa antiga, empoeirada durante anos, com um pulvísculo impalpável e pegajoso, que dava às cores dos arranjos florais uma aparência cansada.

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O prédio inacabado, evidentemente, estava encostado à construção antiga, cuja entrada tinha sido eliminada, enquanto o caminho que tinham terminado de percorrer era a única via de acesso aos apartamentos altos do casarão de adobe, que os iria proteger de olhos indiscretos, durante duas horas aproximadamente. A sala possuía uma decoração modesta, com um sofá antiquado encostado a uma janela de madeira, protegida por uma cortina de plástico, que gostaria de imitar uma renda branca. A janela estava pregada com tábuas, que pretendiam segurar também a rachadura mal disfarçada pelas juntas do papel de parede, ao longo do lado esquerdo da moldura. Visto do lado da rua, o prédio devia parecer um castelo mal assombrado, com o velho reboco descascado mostrando as feridas dos blocos de adobe, amontoados durante séculos pelos antepassados, donos de uma invejável sabedoria ao edificar casas e palácios, sem cimento nenhum. Atravessaram a sala, mudando da penumbra do living para a luz acanhada de dois bicos de gás, pendurados na parede oposta. Uma mesa coberta por um pano marrom estava no centro e as cadeiras ao seu redor estavam já todas ocupadas por homens e mulheres, que conversavam em voz baixa. Quando Roberto entrou na sala, o pequeno guia tinha desaparecido. Sua presença foi notada apenas por um jovem barbudo, que sentava bem na cabeceira da mesa, à sua frente. O mesmo levantou-se, enquanto, em tom alegre, mas sem estardalhaços, dava a volta para alcançá-lo de mão estendida e o chamava com a intimidade de um velho amigo: — Olá viejo, qué tal?

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— Bién, no más. E você? — Tinha-o reconhecido. Era Álvaro, da União dos estudantes de segundo grau de Pucaranga. — O que é que deu em Pucaranga? Sei que a Armada Secundarista não gostaria que você a representasse. — Num primeiro momento apenas. Eles achavam que o ramo político da União amoleceria diante das propostas demagógicas do ministro da educação e romperia com o ramo armado, fazendo o jogo do governo. Mas o mal entendido foi já esclarecido e tudo vai de vento em popa. Agora estamos aqui, pra ver se sai a greve geral. — Você sabe o que pensam as comunidades de base, em particular os camponeses da zona sul: não querem nem saber de derramar sangue de irmão. Já estão cansados de ver a violência tomar conta de nossos bairros. Um governo violento desses não vai sentir nem cócegas pelos cacarejos de nossas metralhadoras. Enquanto falava, ele tinha dado uma olhada ao seu redor e tinha visto o grande afresco da parede, acima da porta de entrada. Era mais um exemplar dessas obras de arte popular, que enfeitavam a maioria dos muros e muitas fachadas de edifícios do centro e da periferia das cidades, surgindo, como por mágica, ao amanhecer dos últimos dias, com tal freqüência e rapidez, que a cal da prefeitura não dava conta de apagá-las. Ou talvez a beleza expressiva de todos aqueles rostos e ombros e gestos solenes, aquelas nervuras das mãos ciclópicas que seguravam armas e letras, ou aquela aura mística irradiada das próprias frases inscritas na pedra, por militantes inspirados, não deixassem os próprios executores de tal destruição cumprir as ordens do poder superior? "O silêncio dos oprimidos retumba mais estrondosamente que os alto-falantes dos poderosos",

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estava escrito em letras monumentais, nos ombros de homens e mulheres, que extravasavam imensa revolta pelas rugas de seus rostos angulosos. "Nos chamam de subversivos porque queremos acabar com a balbúrdia de suas orgias", diziam jovens ordeiramente enfileirados em grupos, carregando livros e flores. — É o despertar da consciência coletiva, após a anestesia da ditadura — sentenciou Álvaro em tom pacato. — Mas ainda há muita coisa pra acontecer, antes que os adolescentes se tornem a verdadeira linha de frente que sempre foram nesta nação. — A ditadura não acabou ainda — lembrou-lhe Roberto. — Parece, por sinal, mais truculenta que antes. — Estamos aqui pra enfrentá-la — quem falou foi o seu vizinho da esquerda. Barbudo ele também, só que seu rosto ascético se perdia num emaranhado de cabelos mais vermelhos do que loiros, enquanto o azul aguado dos olhos se salvava, às duras penas, daquele naufrágio, graças ao navegar ausente dos óculos bojudos. Seu espanhol arrastado traía a origem estrangeira e Roberto ficou espantado ao saber que era justamente ele o presidente nacional do sindicato dos professores universitários. Como podia ter chegado a ocupar tal cargo, a despeito da xenofobia oficial e da rejeição dos próprios quadros sindicais? Álvaro teve tempo apenas de apresentar sucintamente os demais membros da reunião, quando o presidente da mesa começou a falar. Roberto ouviu os preâmbulos e logo as lembranças mais prementes o levaram aos tempos da revolta de Pucaranga. 

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Estavam indo, ele e mais três companheiros, à procura de alguns amigos que tinham ficado bloqueados na estrada para Santa Fé. Quando chegaram à represa, os soldados os obrigaram a parar e os avisaram de que daí a quinhentos metros estavam os campesinos bloqueando a estrada, bêbados e armados de facões e escopetas. Um carro blindado estacionava à beira da estrada e um soldadinho de uniforme mimético novo em folha repousava seu bazooka irreal na borda da mureta que ladeava o dique. Ouviam-se rajadas roucas de metralhadoras repentinas, retrucando a impertinência de esparsos disparos sem destino definido. A vontade de não-estar-mais-aí pairava nos olhares erráticos e nos rostos interrogativos da turma, tentando a inútil façanha de adivinhar a procedência e orientação das próximas balas. Os ombros encolhidos e os músculos tensos não contribuíam nem um pouco para aliviar a certeza do desamparo do tamanho persistente. Os guardas não os impediram de prosseguir mais adiante, naquela busca justificada dos amigos retardatários. Apenas lhes reiteraram que o risco era totalmente deles. O land-rover rodou devagar até avistarem os primeiros manifestantes. Roberto estava ao volante e logo que parou o jipe, a sombra de um machete lhe anunciou a presença de um campesino, manso e amistoso, encostado à janela do carro. Seu sorriso flutuava na onda de um mascar sossegado e aconchegante, intervalado por pontuais tragadas do sumo extraído pela saliva, do bolo de coca que avultava sua bochecha. Até a frieza ameaçadora e metálica do facão transformara-se em um

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elemento de composição pictórica, de uma neutralidade doméstica. O ar cotidiano do vale de Pucaranga não tinha perdido nada de sua transparência matinal e a excepcionalidade dos eventos não mostrava ter subtraído qualquer matiz da frescura esverdeada que envolvia os contornos da paisagem e os traços marcantes dos rostos índios, atenuados apenas pela maciez familiar do sotaque quéchua. — Não tem trânsito, senhor. Está tudo bloqueado por causa da greve. Outros camponeses tinham-se aproximado sem pressa e o amigo Gerardo tinha descido do carro e já conversava com alguns deles, procurando e fornecendo notícias. Os jornais publicados em Pucaranga transmitiam informações tranquilizadoras sobre os acontecimentos, mas sabia-se muito bem, na cidade, que a retórica oficial escondia sempre os fatos e muitas vezes até desconhecia os dados reais. A própria calma festiva dos revoltosos, de outro lado, pareceria confirmar a versão minimista da imprensa e o tom pacificador da paisagem. Tiveram que esperar alguns dias para começar a ter uma idéia daquilo que estava acontecendo naqueles momentos. Os helicópteros do governo, que declarava estar procurando a união nacional e a harmonia dos espíritos, estavam dizimando, a pouco mais de dois quilômetros daí e nas outras três saídas da cidade, os manifestantes aglomerados nas estradas de rodagem, armados apenas de alguns facões e pedaços de pau. Quando o general Vargas-Dória conseguiu uma trégua, como intermediário aceito pelos rebeldes, mais de quatrocentas pessoas haviam morrido com balas e com bombas de verdade.

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Mas, naquele momento, nem os próprios atores daquela cena tinham noção do porte do massacre. Assim mesmo, os grevistas conseguiram convencer o grupo que era mais prudente desistir do plano de proceder, no meio daquela confusão. Já de volta, pela estrada da cidade, porém, Roberto teria mais um sobressalto, que marcaria aquele dia com traços de sangue e de morte, por presenciar e protagonizar um acidente, de aparência banal, mas com todas as características de um presságio. Bem na entrada da cidade, um cachorro estava atravessando a pista, quando resolveu repentinamente voltar atrás e acabou esmagado pelas rodas do land-rover, em um impacto surdo de um instante apenas. Sentimentos de compaixão e de culpa arrastavam-se ainda na memória de Roberto, amenizados, apenas em parte, pela racionalização e pelas incrustações do esquecimento, mas resistindo ao tempo, talvez por mérito da própria comparação com o cinismo dos carniceiros de Pucaranga.  Uma sensação de impotência forrava sua imaginação, quando voltou a prestar atenção ao discurso do presidente da mesa. Tinha-o reconhecido desde o primeiro momento e talvez o fato de ele também ser de Pucaranga tinha sido o gatilho que desencadeara aquela lembrança. Ele morava no bairro mais miserável da cidade, embora tivesse chegado a ministro de estado, durante o primeiro governo de Lutz-Vega. Ele pessoalmente tinha contado a Roberto vários detalhes de sua vida, como quando tivera que vender sua biblioteca para os Jesuítas, por ocasião de seu casamento ou quando tinha tido que 48


vestir um terno alugado, a fim de presenciar à tomada de posse de seu gabinete ministerial. Naquela época, agüentara apenas poucos meses os confortáveis aposentos de ministro do trabalho, tempo suficiente para ficar a par e espantar-se com as mazelas inerentes ao exercício do poder. Renunciara e retirara-se na modéstia de uma vida anônima, a qual, de outro lado, o salvara, até então, das inexoráveis represálias de seus adversários políticos. Quando Roberto o conheceu, o ex-ministro era um camponês urbanizado, que morava em sua casa de adobe, chão de terra e paredes sem reboco, como milhares de outros descendentes dos nobres Incas. Sandálias de tiras de pneu, roupa escura surrada, o orgulho dos ancestrais encerrado nos traços imóveis do rosto de terra, na fala doce e segura, no olhar ogival que transfixa e foge. A sabedoria milenar de seu povo e o sumo da cultura ocidental mais atualizada vinham à tona, como num mostruário, em seu linguajar essencial e objetivo, que não deixava de ser refinado e elegante. Sua exposição era transparente e dispensava ulteriores elucidações. Chegou-se assim, rapidamente, às propostas alternativas, que viriam a ser votadas. Decidiu-se pela greve geral, com poucas objeções, provenientes principalmente dos representantes católicos. A irmã Olga fora a mais expressiva, ao manifestar a preocupação com eventuais reações da truculência policial, que poderia desencadear uma incontrolável intervenção da resistência armada. Lembrara a todos fatos do passado, como o próprio massacre de Pucaranga, embora se considerasse pessoalmente pouco intimidada pelas recentes declarações feitas diante das câmeras, pelo jovem histrião que ocupava o cargo de ministro do interior:

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— Os inimigos do governo, ao sair de casa, podem levar seu testamento debaixo do braço, pois em hipótese alguma deixaremos subverter a ordem e desestabilizar o nosso poder. Bem vestido, bem nutrido, escondia seu cinismo detrás de uma jovialidade vulgar, com ares de um sorridente animador de auditório. Mas todos que assistiram àquelas declarações sabiam que a fachada serena do personagem não diminuía em nada a gravidade das ameaças mais assustadoras. Estava decidida a greve, portanto. E todos os presentes estavam começando a se levantar para se despedir, confortados pela linha de ação afinal tomada, aliviados até, pela força da solidariedade personificada em tantos patriotas, confiantes e todavia assoberbados pelo peso das conseqüências, vislumbradas apenas, mas nem por isso menos angustiantes e desoladoras. Foi quando começou a chacina. Portas e janelas inexistentes se arregalaram num estrondo só, explodindo rajadas e gritos e fogo e poeira e empilhando corpos inertes e roncos e estertores e últimos suspiros em uma encenação fulminante, que apagou num instante sonhos e desejos e sombras contorcidas nos olhos dos espectadores ofuscados. Roberto caiu junto com os demais, com as cadeiras e mesas e as balas rasgando e descansando em sua carne de repente dolorida e gritante e logo mansa e torporosa e resignada. As figuras austeras das paredes e todas as palavras volumosas, curvavam-se sobre ele, apavoradas e solícitas, enquanto os rostos dos algozes permaneciam na penumbra anônima, espelhando-se nos olhares sobreviventes dos demais, sem perguntas nem dúvidas.

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Roberto estava entretido em aceitar a morte, enquanto pipocavam lembranças agudas, que a lucidez cínica da saudade não conseguia segurar um instante sequer, em seu afã de satisfazer a memória faminta.  Aquele dia, Roberto tinha engolido de pressa seu almoço, inventado piadinhas sem graça, para esconder os motivos reais do mal disfarçado nervosismo e tinha saído. O jipe servia a Jonas, assim teve que correr até a esquina da praça, pra pegar o coletivo. Saboreava com a fantasia fervendo, os momentos do encontro que o aguardava. Ela teria chegado com o coletivo seguinte, emergindo do poeirão, com seus passos suspensos no ritmo das mãos, entretidas em acariciar o halo de ar que lhe enfaixava o corpo. O encanto dos pensamentos gravados naquele rosto oprimido por uma paz preocupada. Sua figura miúda caracoleando, sempre mais próxima. Dele. Ela vem. Roberto sentia-se mesmo em plena forma. Por isso tentou a descida do ônibus em movimento, como mil vezes tinha visto a garotada fazer, reduzindo, em três ou quatro passinhos, a velocidade já insignificante. — Desço? Não desço? Tudo, pra parar exatamente diante da entrada do centro social. Lançou-se, finalmente, pondo em prática o roteiro apressadamente recapitulado um minuto antes. Caiu de bruços, presa fácil da força insuspeita da inércia. Que inércia?!  51


A noite baixara rápida a recolher os últimos beijos, distribuídos com o ritmo desordenadamente harmonioso do pintor, o qual insiste em retocar o quadro, que o cliente apressadinho quase lhe arranca das mãos. Na realidade, não tinha sido nada mais do que o esboço adorável de uma verdadeira obra de arte. Os cumprimentos os tinham engolido junto com o bolo de doçura intensa que a espera, objetivada naquele instante de encanto, tinha conglobado na garganta. — Qué tal? — disse ela, decolando em direção àqueles lábios cristalizados pela felicidade, em um hiperurânico sorriso de glória. — Bién, entra — expirou Roberto. E entrepôs ainda algum tempo entre as palavras, querendo dar o justo ritmo à ondulação macia daquele primeiro beijo, que ultrapassava irrevogavelmente o limiar de sua história. Entraram, mas não sentaram, por quanto estremecessem, já lenhosas, as pernas de ambos. Só se apoiaram sobre as respectivas polpas dos dedos e seus espíritos fundiram-se ao passar o contato para as palmas das mãos. Foi um choque indolor e rápido como o piscar unânime dos olhos, que acompanhou o evento. Suas almas roçaram, balançando e se apaziguaram enfim, na espuma maleável de um segundo beijo sem fôlego nem tempo. Sua boca era doce. Será uma bala ou um batom quase imperceptível? A sucessiva convivência reconheceria o justo mérito ao chiclete, quando ela seria a primeira a zombar de si mesma, por considerá-lo, como todos, um mau hábito, que deveria tentar, inutilmente, erradicar. Mas a ternura do epitélio de seus lábios era autêntico e inalienável. Roberto o saboreou com a contemplação do

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entendido, mais que com a volúpia do faminto. Prevalecia nele, afinal, o louro da sublimação. — Te quiero — falou, quando o permitiu a respiração, diretora incontestada da cena. Palavras óbvias, mas insubstituíveis e indispensáveis. Seguiram-se outras frases e movimentos, desenrolando-se ordenadamente com ritmo e lógica interna, mas brotando de uma originalidade primordial, que conferia ao ritual o toque da invenção estética. — Não vai me esganar, espero. Já outras vezes tinha-o suplicado desse jeito, em tom de brincadeira, em alguma das intermináveis conversas telefônicas, quando começava a fantasiar sobre os primeiros dias de casamento. — Eu vou ser uma diabinha — tinha assegurado, fazendo alusões às noites que passariam juntos, — e você vai perder o sono. Agora ela estava soltando gargalhadas dentro de uma nuvem de cabelos, suspensa no ar para uma fácil prova de vôo simulado. Ele a tinha abraçado com força, procurando naquele êxtase pênsil a boca palpitante, imersa no vácuo dos olhos fechados. — Vamos pra cozinha — a surpreendeu de repente, — devo lhe oferecer o café preparado com minha cafeteira italiana. As fendas das cortinas tinham atraído sua atenção, trazendo-o de volta à realidade, embora não houvesse a menor sombra de escrúpulos nos seus cuidados em evitar olhares indiscretos. A convicção de não estar fazendo nada de reprovável havia-se formado nele somente às custas de uma laboriosa gestação de poucos, intermináveis meses.

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Tinha-se sobreposto insensivelmente ao seu ser, como uma camada de liquens sobre o tronco de uma árvore grande. Ele crescera reto e arisco, em ambientes salvaguardados e, ao mesmo tempo, abertos a todo tipo de influências. O pudor era a casca criada ao redor da sua espinha, pela doçura de sua mãe e espessada sempre mais, debaixo da robusta ação do exuberante moralismo das freiras do orfanato. E quando, finalmente seu precoce amor à vida aliara-se ao favor das circunstâncias, para devolver-lhe o hálito fortificante de uma infância verdadeira, fora paradoxalmente a poesia que o agarrara novamente entre as espirais da norma.  Era uma tarde de primavera, com seu retalho de céu azul de sempre, esticado com cuidado e aplicado perfeitamente nos complicados contornos da fachada da prefeitura de sua cidade natal. Os ninhos de andorinha desenhavam uma renda de barro cinzento, combinado sabiamente com as erodidas guarnições, em um elaborado jogo de arquitetônica antigüidade. Nunca mais Roberto esqueceria a teia de vôos trançados e logo apagados pelas andorinhas, ousadas ao evitar o labirinto de varas, improvisado para seus vôos baixos, pelos moleques, e decididas em exercer seu papel de maternais heroínas. Seus pequenos aguardavam piando. Havia uns expostos pelas fendas a observar a exibição das mães e renovar sua ansiedade a cada intervalo entre seus breves regressos. O ar aguado do crepúsculo embaçava seus pensamentos, junto com as imagens das pessoas, destacadas de sua própria impessoalidade para fixar-se 54


na tela da lembrança sem mais seu rosto, mas vivas pela plasticidade coral de sua presença. Ele usava ainda calças curtas, como todos os garotos de sua idade e quando se tinha arriscado a aparecer na escola com indumentária de adulto, tinha tido que agüentar os gracejos dos colegas, reservados a todos os estreantes desse tipo de traje. Afinal, só tinha dez anos, embora freqüentasse a sexta série com meninos todos maiores que ele. Já tinha feito amizade com Ângelo Presti, logo famoso por ser o estudante mais preguiçoso da turma, o qual tinha aprendido imediatamente a improvisar suas tarefas em cima de uma rápida cola do colega, aceitando o papel de honesta incompetência invariavelmente exibido por ocasião das argüições em classe. Agora ele tinha-se tornado um excelente profissional da administração bancária, mas naquela época ele era um verdadeiro professor da arte de saber viver, ministrando a Roberto generosas aulas sobre assuntos variados, durante as longas pernadas pela surrada topografia da cidade. Foi assim que Roberto aprendera que as meninas, aos treze anos de idade, viram moças, pois de suas mamas já formadas saem algumas gotas de sangue e confirmara as noções, que recusava ainda acreditar, provenientes das conversas ociosas dos jovens companheiros de brinquedo, nas suadas tardes de verão, de que as crianças nascem pela aberturazinha que as mulheres possuem entre as coxas e pra puxá-las o médico usa um enorme alicate e que todos os garotos devem ter uma namorada e que, se ainda ele não a tivesse, podia escolher aquela moreninha que freqüentava uma classe atrás da deles. Uma vez que Roberto era mais jovem de um ano, podia portanto ficar

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com Letícia, da quarta, enquanto o próprio Ângelo podia curtir Liliana, a loirinha bem crescidinha da quinta série. Por isso Roberto teve que brigar de socos, pela primeira vez em sua jovem vida, com o gorducho caolho, da mesma turma de Liliana, o qual, incentivado pela patota de seus coleguinhas, havia escolhido, sem saber, a mesma Letícia para cortejar. O grave da história, inclusive, tinha sido a revelação repugnante do amigo, de que a turminha de safados havia tentado abaixar as calcinhas da gata. Era um abuso que já era seu dever vingar. Não é que tivesse entendido muito bem a malícia do rival, mas era taxativa a urgência de entrar na luta. Nunca tinha experimentado antes qualquer tipo de boxe, mas já tinha chegado a hora de exibir o seu amor incondicional por aquele rostinho sempre disposto ao sorriso, emoldurado por duas tranças de seda negra. Letícia era deveras graciosa e Roberto tinha a certeza de estar perdidamente apaixonado por ela, embora não tivesse ainda achado a ocasião de expressar-lhe tanto amor. Aquele dia também, tinha ido esperá-la na saída da escola, mas não parece que as meninas percebessem o duelo que os apaixonados pretendentes estavam travando por causa de uma delas. Foi uma luta breve e inócua. Uma escaramuça de nada, logo sustada pelos próprios torcedores do adversário, interessados em algo, talvez, mais urgente pra eles, mas foi o bastante para poder tecer ao redor, toda uma retórica de grandes ocasiões, ao repetir mil vezes a história para os amigos ausentes. Todos vencedores, todos satisfeitos. 

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Durava ainda aquela tarde, o fantasioso namoro de Roberto com Letícia e havia passado já mais de um ano do duelo. Como é longo um ano pra quem só tem onze. Ainda não conseguira sequer uma conversa a sós com a sua namorada, mesmo sendo impossível que ela não tivesse notado a constante corte do pequeno pretendente. Ele sempre com Ângelo ao seu lado, no intervalo entre a saída da escola dela e a entrada dos dois, continuava a segui-la, com perseverança e toda vez que se encontrava daquelas bandas, não deixava de dar uma olhada lá encima, até a sacada do último andar da última quadra da Rua Garibaldi. Um dia Aldo, o irmão maior, viu Roberto de longe e ficou investigando-o em casa. Roberto ficou vermelho, enquanto tentava absorver com isenção, os sorrisinhos e sarrinhos da mãe e da irmã, que fingiam estar escandalizadas pela precocidade do pequeno conquistador. Aquela tarde Ângelo não estava na turminha de colegas da escola, que tinha demorado na praça da prefeitura, sem uma meta bem determinada. E o próprio Roberto não sabia como tinha se encontrado à vontade no meio daqueles amigos ocasionais. O que sempre lembraria, porém, foi o convite repentino de um deles, logo a permanência naquele lugar tinha perdido qualquer atrativo: — Vamos ao Dom Bosco? Roberto foi junto, enquanto ouvia relatos entusiastas de alguns deles, que descreviam o lugar como um país das maravilhas, habitado por garotos e padres joviais e sorridentes. Já conhecia o lugar, pois tinha ido uma vez, no ano anterior, mas devia estar tudo diferente, como ele mesmo estava mudado, que da quarta tinha pulado direto prà

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sexta série e sua família da Rua Santa Sofia prà Rua Monte dei Pegni. Mas as brincadeiras movimentadas não o atraíam muito. Tinha, assim mesmo, se aproximado algumas vezes daquele grupinho animado por aquele padreco, com o qual todos riam tanto por qualquer coisa, ninguém sabia porque. E tinha observado de lá de cima alguns daqueles pores-de-sol que ainda hoje se estragam diante da apatia dos moradores da parte alta da velha cidade. O sol, quando chegaram, estava se esmerando em mais uma de suas variações sobre o mesmo tema, o mesmo que deve ter inspirado, na ., algum rude colono grego também, elevando-o às sublimes considerações estéticas, que o tempo se encarregou de estilizar em escassos resíduos arqueológicos. O céu de carneirinhos reverberava ao infinito o efeito mágico do globo de fogo que o dorso poeirento do Monserrato tinha apenas acabado de ocultar. O sol não estava mais lá, mas poderias apostar que naquele momento ele devia estar rindo baixinho ao te ver de nariz empinado em direção à fuga de nuvens habilmente pigmentadas em uma seqüência lentamente mutável de vermelhos e roxos. O barulho dos garotos parecia uma fanfarra despreocupada acompanhando aquele quotidiano amaina-bandeira atmosférico. Impressionante, sem dúvida, aquela imitação de bonde, que ia e voltava sem cansar, sobre o acimentado do imenso pátio, deslizando ruidosamente em seus robustos roleimans, sustentando o rudimental caixote feito com tábuas de embalagens e os seis vociferadores amontoados dentro dele. Roberto também experimentara a sensação rara de viajar naquele veículo fantástico, de olhos fechados e de garganta arregalada:

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— Aaaaaaaggggghhhrrrbbbrrrhhhooouuaaagghhhhhh. Ao final de cada corrida, desciam, nem sempre de bom grado, os ocupantes, que se dispunham a empurrar o objeto, onde se acomodavam os mesmos que até então o tinham movimentado. O prazer era idêntico tanto ao arrastá-lo, como ao viajar dentro dele. E até os espectadores se sentiam envolvidos naquele turbilhão de vozes e de encanto, feito de inocência e de saúde. Foi assim que Roberto se deixara levar pelo fascínio exercido por aquele ambiente feliz e estreitara sempre mais os laços da amizade com o jovem padre que mandava naquela deliciosa algazarra. Começou a se dedicar à religião e à literatura, encorajado por ele, que observava ambas as paixões despertando no garoto. Era o juiz e o corretor de seus poeminhas, sério e tolerante, dispensando-lhe inúmeros preciosos conselhos como faria um verdadeiro crítico literário. Roberto acabou, dessa forma, se afastando daquela vida de namorador e se entregando totalmente ao misticismo. Ao entrar na oitava série, já estava no seminário, cheio de arrependimentos quanto aos últimos anos de boemia, agigantando tanto a culpa como o remorso, mediante sua imaginação de criança.  Agora não era mais uma criança, mas a mesma onda de sentimentos estava sendo resgatada do fundo da memória e tomava conta do Roberto adulto, sem que todos aqueles anos de adesão radical ao celibato interferissem minimamente, sequer. Ele estava amando. Livre e inocente como naquele carrinho de roleimans. 59


— O café é muito bom. E você é bom. E lindo. Amo você. — Estou apaixonado e feliz. Por que tão tarde te conheci? Por que tão tarde te amei? A frase de Santo Agostinho soava a blasfêmia. Purificada, no entanto, pela pureza da descoberta desse novo mundo interior, insurgia como expressão original e urgente, a traduzir toda a magnificência e serenidade daquela experiência emocional, igualmente mística e intensamente irrepetível. Afinal, ele era ainda um padre. Dezoito anos tinham-se passado entre seminários e atividades de igreja, desde aquele dia em que conhecera os salesianos. Por eles tinha aceito de ir pra missão na América Latina, destacado para uma paróquia da periferia miserável de Pucaranga. E era exatamente na copa de sua casa paroquial, que estava agora namorando uma garota de dezoito anos. Como podia ter chegado até aquele ponto? Não era, entretanto, o momento de fazer aquele tipo de perguntas. Só sabia que estava abraçando o paraíso inteiro e que os tormentos de tantas dúvidas se desfaziam naquela certeza macia e vibrante, com rosto de anjo e boca de mulher, chamada Suzy. — Suzy, pode ser que isso venha um dia a te atrapalhar e passe a sentir vergonha de mim ou amaldiçoar o dia em que me conheceu, mas não posso deixar de reconhecer que te amo. E nada mais me importa neste mundo, o meu passado, meus ideais, minhas crenças, minhas convicções morais, compromissos e planos de vida. O que importa é você. 

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Foi com essa sensação de prazer intenso, quase doído, que despertou, submerso ainda naquela trança de braços e pernas, ensopado de sangue próprio e alheio, impassível e atônito. Percebera logo que estava no meio dos seus amigos mortos, sendo levado direto para algum daqueles cemitérios clandestinos, que todo mundo sabia que existiam em algum lugar, mas que as autoridades militares continuavam desmentindo. O caminhão, em cuja caçamba tinham sido jogados, vibrava e balançava conforme os mínimos acidentes da estrada. Por uma fresta deixada pela roupa dos companheiros empilhados por cima dele, só entrevia o céu limpo e igual, que o vento do altiplano varre incansável com suas rajadas horizontais. Deviam estar indo rumo a Capicurana. Confirmou sua suposição, quando conseguiu emergir do meio dos cadáveres e enxergar, lá de longe, a figura monumental do Illampu revestido de neve perene. Roberto já tinha feito aquela viagem antes, só que em um dia de festa, junto com uma comitiva de romeiros, que iam homenagear Nossa Senhora de Capicurana, em três de maio. Havia gente de todos os cantos do país. Muitos com seus trajes folclóricos, que exibiam no desfile de danças típicas, pela praça do santuário da virgencita. Participara da alegria daquele povo humilde, que se esmerava em seus trajes coloridos, distribuindo comida e bebida e ostentando sua pratearia e enfeites baratos na carroceria dos caminhões e automóveis. Já apreciara o sabor acídulo da chicha, a bebida caseira profusa em homenagem à santa e à pacha-mama. O sincretismo religioso impregnava aquele sentimento popular que regula o calendário e o dia-a-dia de todo um povo. Já

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mascara até umas folhas de coca ou tinha tomado o chá desse vegetal e tecera conversas em quéchua com aquela gente simples, que protegia sua cultura milenar apenas repetindo suas tradições, a despeito da invasão da tecnologia e do dinheiro estrangeiros. Agora ele estava participando de outro passeio, absurdo e macabro, como protagonista de uma derrota, que faria a festa de uns poucos, totalmente despreocupados com a sorte de seu próprio povo e ávidos apenas do poder e da aprovação de sua casta. Quando o caminhão parou, já era de noite e Roberto sentiu a própria caçamba erguer-se e logo seu corpo escorregar em uma longa queda na escuridão.  ...Sancte Petre... Ora pro nobis... Sancte Paule... Ora pro nobis... Ele estava lá, prostrado no grande tapete, diante do altar-mor da catedral de Messina, enquanto Monsenhor Faina beliscava a ladainha, entregando uma imploração de cada vez à igreja lotada, em um sonoro vai-e-vem de invocações, parecido com uma partida de tênis, em que o público, além de balançar a cabeça, participasse ativamente, retrucando em massa a bola de incompreensíveis expressões latinas. Roberto estava apaziguado. Nos últimos tempos vivera se perguntando e respondendo a quantos o cutucavam com a mesma pergunta de sempre:

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— Por que você quis ser padre? Por que está querendo chegar até o fim? — Talvez, porque não consegui encontrar ainda motivos suficientes para desistir. Sim é isso aí. E alguém, afinal, deve assumir esse papel. Ele sabia muito bem, na verdade, que estava apenas começando, para ele, uma fase diferente de sua vida, em que se encontraria sozinho, no meio de uma multidão dependente dele, às vezes até hostil, raras vezes cordial. Sentia, naquele instante, um grande vazio ao seu redor, e a mesma vertigem que se apoderara dele, dez anos antes, quando estivera na orla da cratera central do Etna, após seis horas de marcha, em um deserto de cinzas vulcânicas, no Pian del Lago. ...A subitanea et improvisa morte... Libera nos Domine... Um vento crepuscular se formava das planícies nebulosas do interior da ilha e das brisas do Mediterrâneo, já quase invisível lá de longe, lá de baixo, fustigando os ouvidos da turma de noviços, que viera respirar o ar rarefeito, mesclado com as fumaças negras da margem nordeste da cratera central. Calmo e um tanto apagado, Roberto recebia agora as baforadas de rezas ondulantes, que golpeavam seu corpo revestido de branco, debruçado no centro do presbitério, no meio de uma fileira de jovens, que logo se tornariam padres. Magnificat anima mea Dominum, et exultavit spiritus meus in Deo Salvatori meo...

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Angustiado, tentava emergir daquela inércia anódina. Com força inacreditável, num corpo tão entorpecido e sangrante, conseguira se libertar do monte de cadáveres conhecidos e ignotos, inspirando finalmente o mesmo ar do topo do Etna, lá no altiplano andino. A voz maternal de Monsenhor Faina não parara de ressoar na noite sulamericana, mas o vento é que respondia à ladainha, volteando invisível, enquanto lançava no rosto de Roberto punhados de poeira impalpável. Roberto começou logo a se arrastar na direção do nada, ainda embalado pela congérie de recordações e anestesiado pela sucessão de abalos imediatos e remotos, que acabavam de vez até com a lembrança de sua vida de santo assumido. Não via guardas ou operários, nem casas, nem luzes. Só sabia que devia andar e andar. Parou quando a voz de Monsenhor Faina desistiu de nomear a lista interminável de santos e de anjos. Aí, ele não era mais padre, nem falava mais latim, nem pensava mais em Susy, nem lhe doía mais nada.  Quando acordou, uma cholita cantava baixinho um takirari cheio de traições e de ciúmes, enquanto fervia no fogão a lenha, um emplastro com cheiro de eucaliptos e oleandros. O quarto era de adobe como os de todas as casas de seu bairro, lá em Pucaranga. Sem acabamento nenhum, com tampas de papelão nos ocos das janelas. A porta de madeira rústica maciça era o único vão pelo qual passava uma luz direta e cortante, retalhando a penumbra do ambiente, em fatias triangulares. O chão, da mesma argila das paredes e da cor das telhas, visível sobre

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caibros cinzentos, irreais, mais uma cama e uma mesa grosseira, com caixotes por assentos. A cholita era Rosa, a menina que o guiara até o local da reunião, em Labareda. Era a filha de Sílvia, líder do movimento campesino do bairro de Mirador. A jovem percebeu que Roberto havia aberto os olhos e foi logo avisar a mãe dela. Sílvia apareceu, com o rosto de índia modelado pelos traços repetitivos da herança inca e afinado por luzes próprias, emanadas pela longa vivência intelectual e pelas recentes angústias geradas pelo massacre em Labareda. Álvaro era irmão dela e o rancor contra os algozes governamentais, às duras penas permanecia contido e oculto, atrás daquela dignidade milenária, que Sílvia encarnava. O luto humilde e rigoroso exaltava as linhas do corpo emagrecido e os sulcos e a palidez morena da face, avivada um pouco, pela presença intempestiva do cloasma. Notava-se, no franzir de suas sobrancelhas, a ansiedade por informações sobre o acontecido, em particular sobre a morte do irmão, e, ao mesmo tempo, o cuidado para não apressar demasiadamente o tão desejado despertar do único sobrevivente. — Que bueno, chango. Enfim voltou? — Que bom a ver de novo — suspirou Roberto, em tom quase inaudível. — Tive um pesadelo muito feio. — Quero que me conte o seu sonho — interveio Sílvia, saindo do limiar da porta e indo rápida sentar na borda da cama. Sílvia já conhecia muitos detalhes daquele sonho. Só que agora queria se inteirar da veracidade de suas

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suspeitas mais assombrosas, pronta para confirmar seus temores e dar vazão a todas suas mágoas. A morte de Álvaro e de todos os participantes da reunião em Labareda estava gravada com todos seus detalhes macabros, na lembrança de Roberto, como um pesadelo nebuloso. Precisava porém, discriminar os acontecimentos que a memória torporosa facilmente embaralhava, sobrepondo suas várias repartições e produzindo uma congérie de fatos, de rostos, de palavras e de sons, que o deixavam atordoado. As longas pausas entre uma narração e outra, que Sílvia atribuía à fraqueza da convalescência, se deviam, pelo contrário, ao íntimo embate que o juízo dele devia constantemente travar, na escolha entre o recente e o remoto, entre o real e o fictício, entre o desejável e o possível. Toda sua história de amor com a Suzy e sua infância e adolescência voltavam novamente à tona, com urgência impertinente e ele devia expurgá-las drasticamente, pois criavam estranhas combinações quiméricas, confundindo a ordem cronológica dos eventos ou mesmo a prioridade de seus desejos ou sua hierarquia de valores.  Era como se estivesse passando no meio da multidão, durante a festa principal de sua cidade, quando era garoto. Eram risos, gritos, estouros de fogos de artifícios, ao seu redor. E o calor do pleno verão, que o fazia transpirar violentamente. E de repente, o rosto sorridente da pequena Letícia, que acenava com a mão de longe e sumia atrás de milhares de outros rostos. Aí vinham, um atrás do outro, seus colegas da escola média, em uma algazarra só. Não apenas Ângelo Presti, 66


como também Giácomo Graci, Gerlando Palamenghi, Filippo Agozzino, Giovanni Musumeci, Carmelo Di Grázia, Giuseppe Onorato, Francesco Di Marco e tantos outros, dos quais nem lembrava mais o nome. E junto vinha o professor Pietro Arâncio, com o rosto do Condorito, acompanhando-os em uma visita arqueológica exclusiva, à sua própria cidade natal, como Roberto o tinha observado inúmeras vezes fazer com as comitivas de turistas. Seu chapéu de abas largas, seus óculos de fundo-de-garrafa, seu banquinho de campanha militar, de uma perna só, que levava debaixo do braço como um guarda-chuva, para fincá-lo no chão, a qualquer hora e ficar equilibrando-se no pequeno assento, usando as pernas de contrapeso, enquanto ciceroneava. Sempre começava com a frase de Goethe: Não regozijaremos nunca mais, pelo resto de nossas vidas, por um quadro de primavera tão maravilhoso como esse que se oferece aos nossos olhos. E não se cansava de elogiar a encantadora posição da cidade, pousada na colina que se ergue sobre o estupendo vale dos Templos, virente de amendoeiras e de oliveiras. O Mediterrâneo azul com sua costa plana e dourada de fina areia. O incomparável clima, eternamente primaveril A proverbial hospitalidade dos habitantes e, finalmente, os restos milenares de numerosos templos dóricos. — Divinamente bela e risonha é esta cidade, cercada de muros e de rochas amarelas, entre as quais se elevam, como a continuá-las e delas brotando, as colunas dos templos — declamava com verdadeira paixão. E andava pelos campos como se estivesse folheando as páginas de

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um livro diante dos olhos da meninada, aparentemente distraída, mas que absorvia até pelos poros da pele jovem, os perfumes da cultura grega, junto com as investidas do vento do vale. Percorriam o cinturão de pedra onde estão enfileirados os templos de Juno, da Concórdia e de Hércules, escutando todas as estórias e as lendas que os antepassados mesclavam numa mitologia povoada de deuses muito humanos e de super-homens caricatos demais. Entravam na escuridão do templo de Demetra e se equilibravam sobre os restos gigantescos do telamônio que sobrava, ainda, do maior templo da antigüidade, o de Júpiter Olímpico. Acompanhavam, dai, as bordas do Hypsas, o riacho que levava até o Kaos, o sítio de Luigi Pirandello, que o descrevera em um raro soneto, como exposto ao mar africano, sobre um esporão de argilas azuis. Aí entrava em cena o próprio Pirandello, com aquele seu sorriso recatado, que Roberto conhecia por fotografia, sentado na mureta da cisterna, na frente de sua casa, segurando uma criança no colo, ou na sessão de entrega do prêmio Nobel de literatura de 1934, em Estocolmo, ou ao lado da atriz Marta Abba, durante uma tournée na Argentina. — Desta pequena senda entre oliveiras, por hortelã e por salva perfumada, fui pelo mundo afora, atrás de um sonho — recitava seu soneto o dramaturgo já famoso, para a garotada atenta. — E tanta percorri, ó flores rasteiras desta erma sebe, tanta e tanta estrada, pra voltar, afinal, velho e tristonho. Roberto não conseguira formular a seu ilustre conterrâneo qualquer uma das perguntas que povoavam sua curiosidade sem limites, e já se encontrava a visitar o

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museu da catedral. Aí o impressionara a carta do diabo, guardada desde o dia 11 de agosto de 1676, em que Satanás a escrevera, com letra indecifrável e em uma língua desconhecida, pelas mãos da ex-princesa Isabella Tomasi di Lampedusa (antepassada do autor do Gattopardo). Ela havia-se tornado monja carmelita do monastério de Palma de Montechiaro, após uma vida atribulada como nobre da corte do reino das Duas Sicílias. E logo Roberto via-se sentado na concha da ábside da catedral, a conversar em voz baixa, com a própria freira postada na porta principal da nau, desfrutando do curioso efeito acústico que o divertia tanto quando menino. — Os povos cristãos estão sendo imbecilizados pelo álcool e sua juventude está embrutecida pelos estudos clássicos e pela devassidão precoce — cochichava a 85 metros de distância a freira, sem atrapalhar a reza dos poucos fiéis ajoelhados em vários pontos da igreja. — A religião existe exatamente para ajudar os homens a superar as misérias que os afligem e a moderar as paixões que os corrompem — respondia Roberto, de seu assento, como se estivesse se entretendo num debate acadêmico com seu professor de Filosofia e não com o próprio príncipe das trevas, disfarçado de freira. — Os homens de maus instintos sempre serão mais numerosos que os de bons instintos — sussurrava do seu canto a irmã Maria Crocefissa — e poucos estão dispostos a sacrificar seu próprio bem, para proteger o bem comum. Por isso não adiantam nada as boas palavras. O direito reside na força. — A violência gera violência — retrucava Roberto — e os governos opressores estão fadados à destruição, pois os homens aspiram constantemente à liberdade.

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— Essa é a visão ingênua dos liberalismos de sempre — interrompia-o a freira, com sarcasmo. — A liberdade é apenas uma palavra vazia e é irrealizável, pois ninguém sabe usá-la na justa medida. Os homens guiam-se exclusivamente por suas paixões mesquinhas, suas superstições, seus costumes, suas tradições e teorias sentimentais. Eles são escravos da discórdia entre os partidos e se opõem a qualquer harmonia racional. — Mas a maioria sempre erra menos que uma minoria opressora. — Nada disso. As multidões formam maiorias ocasionais e superficiais. Suas decisões são geradas pela ignorância da política e pelos interesses do momento. O que rege os governos é a lei do mais forte, de quem mais sabe e de quem mais persistentemente quer. — Ora, isso é imoral! — quase gritou Roberto, levantando-se de seu assento secular. A voz da freira, ao contrário, virou um sopro, pautada por longos silêncios, pousada e paciente. — Todo governo possui dois inimigos: um interno e outro externo. Se ele empregar todos seus recursos contra o inimigo externo, não estaria agindo moralmente? E por que deveria ser imoral lutar com todos os meios, contra o inimigo interno, que é muito pior, pois consegue arruinar a ordem social e a propriedade? A política não tem nada em comum com a moral. As grandes qualidades populares, a franqueza e a honestidade, na política são vícios. — Mas existem direitos naturais inalienáveis, que é preciso respeitar. — A palavra direito é apenas uma idéia abstrata como liberdade. Em um estado em que o poder está mal organizado, em que as leis e o governo se tornam impessoais, por causa dos inúmeros direitos que o

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liberalismo criou, veio um novo direito, o do mais forte se lançar contra todas as regras e a ordem estabelecida, derrubando-as; o de pôr a mão nas leis, remodelando as instituições e tornando-se senhor daqueles que abandonaram os direitos que lhes dava a sua força, renunciando a eles voluntariamente. Os resultados justificam os meios... Pietro Arâncio conduzia-o agora à porta skéa, construída como as de Tróia, celebradas por Homero em sua Ilíada. Roberto só a tinha visto em uma ilustração de livro e sabia muito bem que não existiam mais muralhas ou portas, em sua cidade, mas ele estava lá, assim mesmo, no meio dos inimigos invasores de dois mil anos atrás, transfixado pelas lanças e flechas arremessadas pelos defensores da cidade, postados no alto dos muros. Eles estavam em clara vantagem, graças à posição avançada de um lado da muralha, em relação à porta, o que lhes permitia dizimar os mais ousados, que por ventura tivessem conseguido alcançá-la... Ao seu lado estava a irmã Olga, com uma flecha cravada bem no meio do peito, parecendo Santa Teresa de Ávila durante o êxtase reproduzido no gesso de Bernini. E quase cobrindo-a por inteiro, o corpo de Francesco Guiscardi, o presidente dos docentes universitários, com seus óculos esmagados debaixo do cotovelo de Álvaro. Este último tinha a barba e a cabeleira encharcadas de sangue, como uma coroa emborrachada e os lábios entreabertos, como se tivessem interrompido, naquele instante, as derradeiras sugestões de sua jovem liderança.  O despertar, sem dúvida, trazia alívio a Roberto, enquanto o seu relatório trazia mais horror e revolta a 71


Sílvia e a Rosa, que escutavam com a morte estampada no rosto. Quando terminou, Roberto se convenceu de que não havia sonhado nada. Os olhares comovidos das duas mulheres revolviam-se nos soluços silenciosos, impregnando de certezas indesejáveis a consciência ainda entorpecida do sobrevivente. Ele estava vivo, mas envolto na mesma mortalha de compaixão indignada, que mãe e filha estendiam sobre a lembrança das vítimas, dizimadas pela brutalidade dos usurpadores, encastelados num governo que mais se parecia com uma gangue de matadores. Aí, apareceu Don Alonzo com sua esposa Dona Emília e os filhos adolescentes Juan, Bolívar e Alice. Os filhos ajudavam os pais a manter em ordem a biblioteca do centro comunitário do bairro, quando voltavam da escola. Os livros eram os objetos mais preciosos para toda aquela gente humilde e os primeiros a se aproveitarem daquele benefício eram eles, os membros da família dos bibliotecários. Atrás deles vieram Don José, o sapateiro e a esposa Dona Eleutéria. Os filhos maiores estudavam em Dunas e logo se tornariam um engenheiro e uma assistente social. Os mais pequenos, Walter, Sancho e Manuelito, tinham ficado em casa, brincando no quintal. Veio Dolores, a dona da chicheria, com a filha Matilde, trazendo uma cesta de alimentos. Veio Don Arturo, o marceneiro, com seus dois filhos, Olegário, de quinze anos, e Aureliano de doze. A casa ficou logo lotada de vizinhos, trazendo a Roberto a verdadeira dimensão de sua importância no meio daquele povo, que se transformara em sua família, sua proteção e o objeto e significado de tudo que fizera até então.

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.3 A FUGA

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O EXAME de formatura tinha sido uma apoteose, para François. Seu pai tinha escolhido pessoalmente o bezerro que faria parte dos principais pratos do banquete, antes de engalanar-se com o terno das grandes ocasiões e embarcar no trem, rumo a Paris. Dona Généviève tinha mobilizado toda a família e a vizinhança para deixar tudo preparado para quando voltassem da capital. Para sua tese de conclusão de curso, François tinha escolhido um tema de saúde pública: A prevenção das doenças endêmicas, mediante o uso da medicina natural. Apresentou, com voz pausada e firme, os principais itens de sua tese e respondeu com segurança às perguntas que cada um dos examinadores lhe fez. No final, recebeu elogios e afetuosidades de todos os lados, começando pelo diretor da faculdade. — Parabéns, docteur De la Roche. O senhor está desempenhando bem o seu papel — congratulou-se o professor Savigny, mostrando uma luminosa dentadura. François agradeceu, usando o mesmo sorriso que tinha acabado de abrir para a professora Dieulafoi. Mas o professor não ficou satisfeito e, segurando a mão que o novo doutor lhe havia oferecido, se espichou ao máximo, tentando alcançar o ouvido dele, e cochichando, com um sorriso de cumplicidade: — Ramsés está muito contente com o senhor. O recém-formado voltou a fixar o docente, com seus olhos de anil, agora carregados de surpresa e de perplexidade. Sempre tinha considerado aquele professor apenas como uma pessoa correta e educada, cheia de títulos que justificavam a posse da cadeira de Medicina Legal, na universidade mais importante da França. Tinha-o notado, embora quase escondido o tempo todo, lá à margem da

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banca examinadora, assistindo à cerimônia com o rosto visivelmente compenetrado e sempre mais radiante, como se a cada demonstração de conhecimento, por parte do examinando, estivesse obtendo uma vitória pessoal ele também. O recado inesperado, no entanto, estragara, no ato, a festa interna, à qual o sucesso autorizava François. Assim mesmo, ele teve que continuar a sorrir e a apertar a mão de todos os professores e colegas, que fizeram questão de homenagear seu talento e o resultado — já previsível — da summa cum laude. Aí passou a abraçar seus pais, seus irmãos, seus primos e primas, tios e tias e amigos e vizinhos, que tinham viajado em caravana até a capital, só para participar do evento. Por fim, abraçou Lucienne, durante um tempo sem instantes, que resgatava as mágoas de sua felicidade comprometida, ao mesmo tempo que a consciência de seus sentimentos usados por outrem o fazia fremir em sua revolta impotente. Tinha tornado oficial seu noivado, fazia quatro anos — como previsto nos planos de quem-sabe-quem — por ocasião da festa de São Valentim, durante seu segundo ano de medicina, em cerimônia muito simples, na casa dos Blanchard. O senhor Blanchard ficara lisonjeado ao saber que a filha estava se empenhando com um jovem, que começava a destacar-se no campo da ciência médica e que já demonstrava possuir todos os pressupostos para um futuro bem sucedido. E François acabara por apaixonar-se pela garota, a qual, por sinal, não ficava devendo nada a qualquer uma das tantas que o jovem galã conhecera antes. Era delicada e

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magra, com um rosto de madonna de Botticelli e possuía uma fonte inesgotável de afeto, que o envolvia e o levava ao êxtase, mesmo — ou principalmente — nos momentos de maior depressão e de desgosto. Ele se tornara logo um freqüentador assíduo da casa de Lucienne e havia cativado rapidamente a simpatia dos futuros sogros e do pequeno cunhado. Agora estava voltando para seu village, junto com a alegre comitiva, carregando inclusive a família da noiva por inteiro. Quando chegaram, na madrugada do dia 21 de outubro de 1973, os sinos da igreja tocaram, porque era domingo e também porque o filho do senhor De la Roche — um benemérito da igreja matriz — havia-se tornado médico. A festa durou o dia inteiro, começando com a missa solene, toda cantada em latim, durante a qual o pai do festejado teve o privilégio de tocar a campainha na hora da consagração e o jovem doutor teve que confessar e comungar, no centro das atenções de todos os moradores da vila. Quando começou a festa no sítio Allons-enfants, já havia um exército de empregados e de amigos, que terminavam de aprontar as mesas e cadeiras ao ar livre, aproveitando os dias de excepcional tempo bom, que poderia dispensar o apertado salão paroquial. O próprio François deu sinal verde à alegria geral, tirando o terno apertado e os sapatos novos, para vestir uma calça de brim bem folgada e calçar um par de botas bem amaciadas nas longas andanças de várias férias pregressas. Quis entrar na cozinha e cuidar pessoalmente da confecção de um prato, em que se considerava mais

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hábil, inclusive, do que na própria arte do médico, na qual recém ingressara. A mãe, que conhecia muito bem o hobby do filho, deixara meia dúzia de patos de reserva, já devidamente depenados e esfriados, para que seu extraordinário gourmet-doutor pudesse se esbaldar em sua própria — e bem merecida — festa de formatura. Aí, ele começou retirando as pontas das asas, o pescoço, os pés e as carcaças, e deixando-os picadinhos em uma vasilha a parte. Deixou esquentar o óleo em uma panela e colocou os patos a dourar dos dois lados, no óleo pipocando e retirando-os a seguir, para fazê-los descansar. — François, olha quem está aqui — lhe gritou Lucienne, da área espaçosa que sombreava a entrada da cozinha com uma imensa parreira. — É Jeannette com o namorado dela, que acabam de chegar. Naquele momento François estava tostando, na mesma panela em que os patos tinham sido dourados, as carcaças, os pés, as pontas das asas e os pescoços, mexendo com uma colher de pau, para que não queimassem. — Muito bem — vibrou o chefe-cuca amador, enquanto colocava junto com aquela mistura cebola, cenoura, alho poró, salsão, alho, louro, segurelha, alecrim e os talos da salsinha, deixando-os fritar para que adquirissem a cor marrom escura desejada. — Que bom que vocês vieram — festejava, enquanto ficava de olho no fogão a lenha, para que nada queimasse. Abraçou os amigos e apertou a mão deles, mas não esqueceu de mandar a velha Thérèze retirar tudo aquilo da panela, deixando somente os resíduos. Thérèze, que havia sido sua ama-de-leite, voltou a colocar os patos pra ferver, junto com os mesmos ingredientes, mais tomates inteiros, vinho tinto e água,

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durante cinco minutos, e levou tudo ao forno bem aquecido, para ficar durante 50 minutos, enquanto François recepcionava os recém-chegados e fazia o giro dos convidados. Na verdade, a vila inteira estava lá. E todo o mundo a vontade, os homens em grupos numerosos, cada um com seu copo de vinho na mão. As mulheres correndo atrás de seus pimpolhos ou sentadas em rodinhas, a cortar batatas e contar as novidades da vida alheia ou se postando diante dos músicos, que já executavam peças tradicionais, todos emperiquitados em seus trajes típicos. A velha ama, lisonjeada por mais esse privilégio, já retirara os patos do caldo e deixara a panela em fogo lento, enquanto as outras mulheres se revezavam para atiçar o fogo, cuidar das demais panelas, aparelhar as mesas e enxotar os moleques que se arriscavam a penetrar na cozinha. Aí, retirou meio copo de caldo, pra dissolver uma colher de farinha de trigo, despejando-a sobre o caldo da panela e mexendo levemente para não embolotar. Deixou reduzir até metade o líquido, mexendo, vez ou outra, para não queimar. Retirou do fogo e coou o molho, que voltou ao fogo para ferver por um minuto e para ser retirada toda a espuma a fim de ficar sem gordura. Quando François voltou, tudo estava pronto para seu toque final de verdadeiro mestre. Colocou o vinho branco em uma frigideira funda, junto com o molho e azeitonas pretas e verdes, deixando ferver durante sete minutos. Acrescentou creme de leite e mexeu levemente. Retirou a pele dos patos e todos os ossos, tendo cuidado para não quebrar os peitos. Colocou os patos dentro do molho e deixou esquentar até formar um molho homogêneo, porém leve.

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Todo o mundo tinha tomado lugar na mesa e havia até uma certa impaciência no ar, manifestada na inquietude das crianças, que começavam a mexer nos talheres, e nas mulheres, que sentavam e levantavam a toda hora, para ver se podiam já começar a servir. Finalmente François apareceu na área, levantando uma bandeja espetacular, com os canards aux olives vertes et noires, acompanhados com purê de batata e arroz ao açafrão. Foi recebido como se fosse um rei com toda sua corte. A bandinha tocou mais forte e solenemente do que uma orquestra real e todos ovacionaram com gritos e aplausos prolongados o ilustre festejado e cozinheiro e garçom ocasional. Atrás dele, vinha seu pai trazendo a leitoa à la romaine deitada confortavelmente na bandeja, irradiando alegria ela também, com sua folha de salsinha atrás da orelha e uma maçã na boca entreaberta. A mãe levava as misturas, acompanhada por Thérèze, com as tortas quiche lorraine e rocambole de espinafre com peru defumado. No cortejo, se insinuaram também os pais de Lucienne e ela mesma, levando mais pratos ao buffet, junto com a prima Mariette, e esbanjando sorrisos para todos os convidados, que já não enxergavam mais nada, de tanta fome e de tanto vinho. No meio do almoço o senhor De la Roche levantou seu copo e mandou todo mundo se calar. Os estômagos apaziguados haviam tornado os ouvidos também mais submissos. Foi assim que o orador improvisado conseguiu fazer seu breve discurso de circunstância e, após ter manifestado toda sua felicidade e orgulho pelo êxito do filho, deu a notícia que todos esperavam. — Mademoiselle Lucienne e meu filho, o docteur François, anunciam seu enlace matrimonial para o dia 4 de maio do próximo ano.

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Foi como se tivesse dado o sinal para reavivar a alegria, incentivada pelo conjuntinho de acordeão, viola e clarineta e pelo vigor remanescente dos jovens, que convidavam as garotas à dança e aos beijos. François abriu a primeira rodada, tecendo a valsa antiga, ao longo do grande pátio, com Lucienne trajando um vestido azul, leve e vaporosa, como o vôo rasante das andorinhas. Ela tinha-se tornado uma parceira adorável e François havia acabado pondo-a a par de todos seus segredos. Estava totalmente consciente de ter sido escolhida por vontade alheia. Mas não lhe importava muito a maneira nem os motivos que tinham levado seu noivo a ficar com ela. Amava-o. E isso era tudo o que importava. — Eu vou ter que descobrir quem matou e quem mandou matar Antoine — tinha confidenciado um dia a Lucienne, antes mesmo de pedir sua mão em casamento. — Entretanto, terei que fazer tudo que eles mandam. Pois essa é a única maneira de destrinçar esse maldito novelo. — Estarei sempre ao seu lado — assegurou a jovem, com uma determinação surpreendente. — É um lugar extremamente perigoso — advertiu-a François. — Você não sabe o risco que estará correndo, ficando perto de mim. E nem pode se afastar, de outro lado, pois você também faz parte do plano deles. — Ficaria com você de qualquer jeito. Eu amo você — insistiu a garota, fixando-o com seus olhos escuros mergulhados no encanto de sua paixão sem retorno. — Sinto muito por ter colocado você nessa fria — precisou esclarecer o jovem, visivelmente aflito. — Gostaria de ter voltado pra você espontaneamente e me custa muito aceitar o fato de tê-la procurado só por ordem

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desses maníacos, que se meteram nas nossas vidas, como nojentas sanguessugas. — A vida está cheia de surpresas. E dificilmente podemos prever o nosso futuro. Pra mim, esses patifes foram apenas a chance que me faltava, e que mil vezes desejei, de ficar com você. François afagou a garota, que demonstrava tanta coragem diante do destino, brotando de uma irredutível capacidade de amá-lo. Tornara-se sua confidente e sua conselheira e sua amiga e amante e companheira e até seu motivo para viver e para lutar. O ímpeto e a sensualidade dos primeiros tempos tinham-se transformado em um carinho profundo por aquela jovem, que tinha sido forçada a entrar na vida dele, mas agora virara uma fonte inesgotável de sentimentos bons. A mesma amargura e a revolta que dominavam o coração de François se distendiam em uma paz provisória, que fornecia fôlego e inspiração para continuar estudando e planejar sua revanche, com cálculo e relativa frieza. — Você é linda — reconheceu o jovem, com sua voz aveludada, que fazia tremer as fundações do ego da garota. — Terei o maior prazer em construir uma família com você, mesmo que fosse em cima de um depósito de pólvora. — Onde quer que seja — confirmou a namorada, afogada naquela onda de voluptuosidade, enquanto as mãos dele colhiam a aura de seu corpo, em um passeio vagaroso por todos seus canteiros, por quanto ocultos estivessem. As roupas tornavam-se, aos poucos, detalhes efêmeros de sua figura, aos serem depostas com o mesmo cuidado com que o soldado amaina sua bandeira. E a pele rosada se torneava ao sabor da penumbra do quarto de solteira, com todos seus relevos querendo prevalecer

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diante da atenção do amante, submerso na mesma inundação de prazer sem medida. Foi assim que os vários anos do curso de medicina foram se desenrolando, entre os gélidos invernos parisienses e os verões perfumados de sua terra. E no meio, as viagens programadas. O dinheiro suficiente, sempre na caixa postal 3247 da agência do correio do Opéra. Com Lucienne foi de trem pelo interior da França e da Itália, nas férias de verão do 1969, utilizando as passagens circulares que havia encontrado no malote, com todo o roteiro minuciosamente traçado. Tiveram que levar várias encomendas, em muitas cidades pelas quais passariam. Os pacotes estavam cuidadosamente selados e a missão consistia apenas em entregá-los pessoalmente ao destinatário. — É evidente que estão me usando como pombocorreio. Mas, por que quiseram que fôssemos juntos? Será que vão se contentar somente deste serviço? Ou vou ter que matar alguém, só pra satisfazer a vontade deles? E por que Antoine foi morto? — As dúvidas intermináveis ocupavam todos os intervalos entre as atividades normais do estudante e os momentos de diálogo amoroso com a companheira. — Vamos ter que pagar pra ver — tentava tranqüilizálo Lucienne, com modos maternais, enquanto ela mesma procurava razões para todo aquele emaranhado de perguntas soltas no ar. Viajaram durante o dia, desfrutando da visão agradável do interior da França, embora os campos estivessem, em sua maioria, amarelados pelo restolho da palha de trigo, onde extensos vinhedos não amenizassem a paisagem com suas manchas verdes. Vestiam roupas leves, ele de shorts e

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camiseta e ela com um vestido de algodão bem folgado, de alças, pois o calor era intenso e o ar abafado, principalmente quando o trem parava nas estações intermediárias: Sens, Joigny, Montbard, Dijon. Em Dijon ficaram quase meia hora, em uma estação muito movimentada, onde puderam se abastecer de água fresca, no bebedouro mais próximo. Muita gente desceu do trem e mais gente subiu. Os dois ficaram algum tempo a sós na cabina de segunda classe, com seus pertences, suas encomendas e o estoque de cartolina, para as anotações gráficas de Lucienne. Aproveitando para trocar carícias e palavras de amor, enquanto não vinham outros passageiros abarrotar a cabine. Chegaram a Lyon ao anoitecer e foram direto para o hotel Saint-Fons, perto da estação ferroviária. Os documentos encontrados junto com as passagens os declaravam sendo a senhora e o senhor Berliet. Não tiveram dificuldades, portanto, para ocupar um mesmo quarto de casal, com banho e até com ar condicionado. François encheu a banheira e foi logo se deleitar com a água morna cheia de espuma. Lucienne apareceu logo a seguir, no vão da porta. Nua e virginal como a Vênus de Botticelli. François permaneceu a admirá-la, fixando sua boca sutil, sua fronte ampla e sua moldura de cabelos acastanhados, finos e ondulados, caindo nos ombros exíguos. Sua pele clara revestindo os seios de ninfeta, com os mamilos protrusos sobre as aréolas rosadas. Os braços longos languidamente cruzados sobre o ventre, não deixando as mãos ocultar a púbis já adulta e os quadris graciosamente arredondados, como um elegante capitel de bordas alinhadas com as coxas roliças e os joelhos delicados e as pernas esbeltas, formando duas harmoniosas colunas fincadas nos pequenos pés.

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Mas o que mais o fascinava eram seus olhos. Serenos e seguros, sem arrogância nem timidez. Duas grandes olivas de marfim, marcadas pelas írises escuras, simétricas e harmoniosas debaixo dos supercílios altivos. — Vem e me ama — convidou-a simplesmente. E, logo, deixaram seus corpos dizer o restante, em uma dimensão feita de águas e de suspiros e de aconchego. As encomendas traziam o endereço escrito a mão, com uma caligrafia rebuscada que lembrava a letra de um amanuense da Idade Média, e François saiu, aquela mesma noite, para entregar o primeiro pacote. A rua estava localizada na velha Lyon e ele foi a pé, costeando a margem direita do rio Saône, e alcançando o conjunto de prédios medievais e da Renascença, que rodeiam a catedral. A Rua du Rhône era, na verdade, uma ruela pouco alumbrada, que dificilmente permitiria o trânsito a uma camionete. O piso era feito de pedras de rio, lisas e arredondadas, formando bizarros desenhos geométricos e com os interstícios preenchidos por uma argamassa grosseira, obra, com certeza, de pedreiros de 1200. François escutava o ruído de seus próprios passos, ressoando como se fossem propagados por um amplificador. E, a cada instante, esperava que saísse algum antigo morador de um daqueles portões comidos pelos cupins, indagando o que estaria fazendo um intruso, naquele resquício de um mundo só pertencente ao passado. Sua sombra se alongava e se encurtava, sempre aderente a todas as irregularidades do empedrado e às cantoneiras dos portais das casas, conforme ia-se afastando de um lustre ou se aproximando de outro, pendurado na fachada de um edifício, lá bem longe.

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Logo o invadiu um verdadeiro terror pânico, igual ao daquela noite em que tivera que voltar sozinho pra casa de Aix-en-Provence, após ter assistido a um filme de marcianos invadindo o planeta Terra, quando tinha onze anos de idade. Teve que conter-se e tocar a campainha ao lado de uma pequena etiqueta, onde custou pra ler o nome do morador, que, porém, por sorte, correspondia perfeitamente ao do malote: Mr. Claude Bourgelat. Aquele nome lhe provocou mais um frio na espinha, pois lhe lembrou o famoso fundador da primeira escola veterinária do mundo, que vivera naquelas imediações, lá pelo ano de 1762. — Quem está aí? — gritou uma voz feminina, pela fresta da veneziana que se abria bem em cima do portão. — Tenho uma encomenda para o senhor Bourgelat — criou coragem François. — Acabei de chegar e amanhã seguirei viagem — tentou justificar, sem ter sido solicitado. Aguardou cinco intermináveis minutos, antes que o pesado portão de madeira rangesse sobre suas dobradiças e aparecesse a figura de um homem alto, rosto longo e anguloso e cabelos recém-penteados, todos para trás, trajando uma robe de chambre de seda preta, com motivos florais copiados de antigos vasos chineses. — Quem mandou? — perguntou apenas a figura em contraluz, com voz cavernosa. — La vérité, l´âpre vérité — teve que dizer François, sem lógica nenhuma. Naquele momento, dizer a verdade, a dura verdade teria sido motivo bastante para indispor qualquer desconhecido, não fosse o tom impessoal emprestado à célebre frase de Danton, que alguém o obrigava a repetir.

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— Entre, a casa é sua — convidou-o, com inflexões improvisadamente cerimoniosas, o enorme fidalgo, sem qualquer sinal de complacência no rosto. François titubeou diante de seus próprios prós e contras, demonstrando para o anfitrião apenas a indecisão do convidado consciente de sua obrigação de recusar, enquanto o mesmo ritual lhe impõe a aceitação do convite. A dura verdade era que estava arrepiando todo por aquele salto solitário no passado remoto. O salão de séjour era amplo e austero como a sala de audiências de um tribunal de justiça. Claude Bourgelat indicara ao hóspede uma poltrona de cedro escurecido, no lado esquerdo da grande lareira, desde o momento em que recebera a encomenda, sem digná-la de um olhar. Um relógio dominava a parede do fundo da sala, ao lado de uma grande janela gótica formada por três arcos ogivais atrás de longas cortinas de renda. O vento da noite fazia dançar as cortinas em uma ondulação lenta e periódica, entrando por uma banda aberta, de madeira escura e avidraçada em pequenos quadrados como o resto da janela. O ruído do pêndulo media o tempo silencioso, que escorria pelos dedos rápidos de uma jovem bordadeira sentada na cadeira de cedro com respaldo alto, diante da poltrona em que François fora sentar. Um cocker ficava confortavelmente deitado bem no centro da sala, misturando seus longos pêlos caninos com a lã do grande tapete branco. A chegada do estranho merecera dele apenas um piscar de olhos, sem qualquer outro movimento do corpo preguiçoso. — Minha esposa Larisse — fez as apresentações o dono da casa. — O senhor... — não havia perguntado o nome. — Marcel Berliet, enchanté — continuou o visitante, sem qualquer hesitação, dirigindo-se à jovem senhora. As

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mãos dela não interromperam um só momento o trabalho meticuloso e veloz da agulha segura, como se estivessem com pressa para terminar a longa toalha de linho, que vinham cobrindo de ouros e de cores luminescentes. Usava uma touca branca com babado de renda, presa com um laço de seda sob seu queixo. Levantou apenas os olhos, verdes como algas marinhas, e concedeu uma imperceptível reverência com a cabeça, voltando imediatamente à ordem de seus pensamentos. O rosto regular e a boca composta assumiam a atitude conformada das antigas companheiras dos homens de negócios, dedicadas à função anônima de escudo e refúgio nas tempestades da vida. — Horret animus temporum nostrorum ruinas persequi. — iniciou a conversa o estranho dono da casa. Era o que faltava. Ter que conversar em latim com um dublê de fantasma. — Em qualquer época da história humana, a realidade do momento foi considerada, pelos contemporâneos, mais assustadora do que os tempos idos — tentou generalizar o jovem, demonstrando que entendera o sentido da frase de Gerônimo, e usando-a até como contra-argumentação, ao mesmo tempo em que permanecia encabulado pela irracionalidade dos fatos, muito mais do que pela ilogicidade dos discursos. — A vida nos impele, todavia, sempre na direção do possível, enquanto nos impõe a contingência do real — filosofou ainda, à la Boutroux, procurando, talvez, exorcizar aquele cerceamento de um passado tão distante. — Concordo com você — concedeu o outro, com voz que traía uma súbita, embora contrariada, admiração. — Nam quis iniquæ tam paciens urbis? diria Juvenal, ainda

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no primeiro século da era cristã. E hoje mesmo, quem agüenta esse povo? Parecem todos malucos! — Olha quem fala — pensou François; e aí lembrou quem, na antigüidade, devia se parecer com aquele sujeito singular. O imperador Calígula. E a referência a Juvenal lhe trouxe à memória outro trecho da primeira sátira, que lembrava o episódio do imperador louco, o qual obrigara os perdedores de um concurso de oratória, organizado exatamente na cidade de Lyon, a premiar os vencedores e a tecer seus louvores. Os piores, porém, deviam apagar seus escritos com a língua, se não quisessem se submeter ao chicote ou serem jogados no rio. — Accipiat sane mercedem sanguinis et sic palleat ut nudis pressit qui calcibus anguem aut Lugdunensem rethor dicturus ad aram. — citou sem titubear, diante dos olhos arregalados do anfitrião. François percebeu que, graças à sua erudição, ele pelo menos não passaria pelo vexame reservado aos antigos oradores medíocres, vítimas, talvez, do único ato sensato de quem tinha sido capaz de nomear seu próprio cavalo, senador da república. — Gostaria de mostrar-lhe minha biblioteca — surpreendeu-o aquele Bourgelat de última encarnação, após terem bebericado um chá de ervas inominadas, que tivera o mérito de acabar, finalmente, com a tensão do jovem. Foi até a lareira apagada e se curvou para apanhar um daqueles apetrechos que servem para movimentar os tições ardentes e avivar o fogo. Só que, estranhamente, introduziu a ponta de ferro, dentro de uma fenda que François não tinha notado antes. Ouviu-se o leve rolar de uma porta-de-correr e ao lado da lareira via-se abrir um vão na parede, como a boca de um túnel obscuro.

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Logo apareceu diante deles, uma grande sala fracamente iluminada. Parecia mais o laboratório de um alquimista do que uma verdadeira biblioteca, embora as paredes estivessem forradas por estantes de madeira, abarrotadas de livros. Entre uma estante e outra, havia diversos tipos de animais silvestres empalhados e pendurados em uma ordem confusa, sob a luz macilenta esparramada pelo abajur da imensa escrivaninha do centro da sala, que parecia querer reavivar seus movimentos ou devolver-lhes os olhares ferinos, mais com a crueza das sombras, do que com a modéstia de sua claridade. Sobre a mesa havia montes de papéis, alambiques e aparelhos rudimentares que deviam ter sido construídos e usados pelos donos da mansão, de várias gerações anteriores. Nos cantos da sala, algumas mesinhas com mais papéis e aparelhos. Em cima de uma delas, chamaram a atenção do visitante duas caveiras emparelhadas sob uma redoma de vidro, com as mandíbulas afastadas dos maxilares, como se estivessem soltando uma perene gargalhada. François estremeceu à visão macabra, embora estivesse já bastante conscientizado da previsibilidade de qualquer surpresa. Seu horror, todavia, transformou-se em encanto, quando o personagem singular apertou um interruptor próximo à mesa e a redoma foi inundada por radiações azuladas que percorriam seu interior, transfixando as órbitas e as bocas e os narizes das caveiras com seu brilho fátuo e caprichoso, mistura de uma alegria zombeteira e de uma misteriosidade sem pretensões. — Um de meus antepassados foi o precursor dos raios laser, que estão suscitando a maior sensação, nos melhores laboratórios de física da atualidade — explicou Bourgelat, logo após ter apertado algum ponto da parede, o que fez o

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vão pelo qual tinham passado pouco antes se fechar quase sem ruído. — As caveiras são de verdade? — interessou-se o jovem estudante de Anatomia. — Claro — completou o outro, enquanto ia-lhe mostrando mais coisas interessantes. — Foi o filho caçula do inventor que guardou aí os crânios dos pais. François estava totalmente pasmo e intrigado, mas a curiosidade tinha-se tornado sempre mais aguçada e queria ver tudo e quase implorava o cicerone para que lhe mostrasse e explicasse cada detalhe. — É simplesmente surpreendente a riqueza de nossa cultura e quantas coisas ainda falta descobrir ou tirar do esquecimento — vibrou, com ingênua espontaneidade, o moço, enquanto o dono da casa escolhia alguns volumes empoeirados das fartas prateleiras. — O ponto fraco de nossa cultura, todavia, reside no conceito de liberdade, que foi mal interpretado, desde a época da revolução — observou Bourgelat. — O senhor não acha que os últimos duzentos anos trouxeram um grande progresso, graças exatamente a esse conceito? — Claro que houve um enorme avanço da humanidade. E foi mérito de nosso povo. Mas D’Alambert, Diderot, Montesquieu e tantos intelectuais da época estariam tristes se vissem o que fizemos de seus ideais e de seus esforços. A maior parte de nossos males é obra de nós mesmos. — Quer dizer que não adianta nada querer melhorar a humanidade com os recursos da ciência e da reflexão filosófica? — Quando se consideram os enormes trabalhos dos homens, tantas ciências profundas, tantas artes

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inventadas, tantas forças empregadas, abismos superados, montanhas arrasadas, rochas arrebentadas, rios tornados navegáveis, terras desbravadas, lagos sulcados, pântanos secos, enormes construções erguidas sobre a terra, o mar coberto de navios e marinheiros e, por outro lado, procuram-se, meditando um pouco, os verdadeiros benefícios que resultam de tudo isso para a felicidade da espécie humana, só se pode ficar impressionado com a espantosa desproporção que reina entre estas coisas e deplorar a cegueira do homem que, para alimentar seu louco orgulho e não sei que vã admiração por si, faz com que corra atrás de todas as misérias de que é suscetível e que a natureza benfazeja tivera o cuidado de afastar dele — agora aquele Calígula extemporâneo estava lendo Rousseau, sem abrir o livro que tirara da estante. A capa de couro trazia o título, que François não precisou ler para reconhecer: Discours sur l’Origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes. — Os homens são mesmo naturalmente bons? Será que os interesses e o bem-estar individual sejam real e fatalmente inconciliáveis com a felicidade de todos? — questionou François. — Rousseau diria que sim. Na verdade, a sociedade leva os homens a se odiarem, ao mesmo tempo que os impele a coordenar seus esforços para o bem comum... Quando voltaram pra sala, François pensou que tinha entrado pela porta errada. Só o cocker permanecia em seu lugar, na mesma posição em que o tinha visto pela primeira vez. Apenas mais relaxado, aliás, totalmente imóvel. O tapete e o próprio pêlo imaculado do cachorro estavam agora tingidos por uma mancha de sangue, cujo toque de vivacidade contrastava estridentemente com seu olhar fixo e morteiro. Larisse também estava lá. Suas mãos, porém, tinham suspendido o fino e interminável frêmito

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que vinha iluminando de cores a brancura da fazenda. Ela estava debruçada sobre o encosto da cadeira, que alguém tinha arrebatado. O rosto apoiado no dorso da mão esquerda, olhava algum ponto do rodapé do lado oposto, sem qualquer interesse ou dúvida. O outro braço descansava ao longo do corpo, que acompanhava a forma angular do assento, agora perpendicular ao piso. A touca da jovem tornara-se um trapo a mais, junto com a roupa espalhada pelos redores, no meio de um caos de poltronas, papéis, cacos de cristais e de pratos, quadros, portas de armário, vasos, plantas, terra... As cortinas continuavam dançando ao vento da noite, já parecidas, porém, com as velas em frangalhos de um barco surpreendido por uma tempestade em alto mar. A cabeleira ruiva de Larisse, finalmente livre, participava dessa dança silenciosa também, e era o que só movimentava um pouco aquela cena de destruição. Sua boca ficara entreaberta e parecia querer romper agora o silêncio que guardara longamente em vida. Seu corpo nu punha em destaque, com inaudita irreverência, as nádegas rosadas, enquanto o resto da pele entregava sua ternura pudica aos livores da morte. — Bastardos marselheses! — murmurou Bourgelat. E aquele homem culto e superior era agora a própria imagem da derrota inconformada. Inimigos silenciosos haviam invadido sua casa, à procura, talvez, da encomenda recémchegada e tinham posto tudo de pernas para o ar. Tinhamlhe violentado e morto a esposa e esmagado seu cão. Uma fatalidade temida, embora parecesse esperada. — Vá embora, enquanto há tempo — falou ao hóspede, com o rosto impassível.

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— O que está acontecendo por aqui? — perguntou o jovem. Mas não esperou resposta. Foi embora correndo, presa do terror e da angústia. — Vai descobrir sozinho — escutou-o gritar, enquanto saía. E a voz do homem grande e sábio se revolvia já em soluços roucos, abafados pela revolta impotente. François encontrou Lucienne adoravelmente viva, entregue à beatitude do sono, que se sucede às façanhas do amor. Acordou-a suavemente, com um beijo, e não demoraram cinco minutos para arrumar as malas e acertar com a recepção do hotel. Seu esforço para aparentar naturalidade não convenceu sequer o concierge, enquanto, com admirável profissionalismo, executava a desagradável tarefa de fechar contas em plena madrugada. Durante a viagem, François relatou o acontecido à sua namorada. — Vamos evitar Marselha, sugeriu Lucienne. Deve ter alguém aí, que está a par do nosso roteiro e está querendo interferir nos próprios planos traçados pra nós. — Talvez aprenderíamos muitas coisas, se prosseguíssemos exatamente como prescrito. Pois estou ainda totalmente às escuras e tudo parece sempre mais complicado — contestou François. Na estação de Marselha, François mandou Lucienne se esconder no banheiro do vagão, enquanto ele se espremia entre a janela e o bagageiro da cabine, a observar a marquise lotada de viajantes. Os bastardos marselheses deviam estar à espreita e os dois camaradas lá na cabeceira da marquise poderiam ser representantes da turma que tinha feito estrago na casa dos Bourgelat. O casal acabou não descendo do trem,

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portanto, e prosseguiu de cortinas fechadas, até Milão, após ter entrado na Itália por Ventimiglia. Milão, como qualquer cidade, começa e termina na periferia. Mas tem um miolo guardado entre muralhas, que forma o centro histórico e torna a cidade diferente das outras. Sempre será assim. Desembarcaram na estação central e mergulharam na maré de gente que ia e de gente que voltava, de bagagens, de porta-bagagli empurrando seus carrinhos estourando de tantos volumes, chefes de estação dando ordens e apitos, apitos dos trens, trens freando estrondosamente, vendedores de panini imbottiti, giornali illustrati, caramelle, bomboloni, birra, acqua minerale... O verão é quente e abafado, em Milão. Por isso a população se reduz pela metade, quando o restante foge, nem que seja por uma semana, para as praias da península, principalmente no norte, Rímini, Viareggio, Êmpoli... Em compensação, há muitos grupos de turistas, do norte da Europa, que começam seus tours, exatamente em Milão, desfrutando de suas riquezas artísticas e culturais ou simplesmente aproveitando das benesses de uma das cidades mais evoluídas do mundo. François não tinha conseguido ainda esgotar o relato de todos os detalhes da aventura que acabara de viver em Lyon e esperava fazê-lo com calma enquanto estivesse desfazendo a mala com fundo duplo, que ele mesmo tinha montado — seguindo as instruções — uma vez acomodados no hotel reservado pra eles. Logo à saída da estação, porém, um táxi chegou, no momento exato em que eles estavam contratando o primeiro da fileira estacionada diante da plataforma. Era uma perua FIAT 650 do ano, guiada por um motorista de

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quépi marrom. Com a cortesia de um verdadeiro gentiluomo, ele convidou o casal a embarcar e carregou a bagagem, até o porta-malas do carro, após ter-se explicado com os colegas. — Il principe v’aspetta. — quase cantou, em voz baixa, o homem. — Por favor, sintam-se a vontade. Giácomo Orgândi era mais que um simples motorista, ele era um mordomo. O quépi segurava-lhe a cabeleira grisalha, ainda volumosa, contra os caprichos do vento que invadia o carro. Embora fosse o vento mais quente que os dois jovens tivessem jamais experimentado, a velocidade do automóvel o tornava agradável e revigorante, naquele mormaço insuportável do verão milanês. Percorreram a cidade inteira e Giácomo se revelou um guia entusiasta e eloqüente, ao mostrar os principais pontos turísticos. Ele gastava em profusão seu francês, adulterado por expressões genuinamente lombardas, que tornavam sua explanação ainda mais atrativa e pitoresca. — La Scala é o mais importante teatro lírico do mundo — exagerava com convicção. — Mais do que o Metropolitan de Nova Iorque ou o próprio Opéra de Paris. A catedral parecia ainda brotar daquela efervescência religiosa que deu início, em 1386, a cinco séculos de obras edis. Suas paredes respiravam como a pele de uma mulher, na qual todo homem gosta de apoiar a face, e escutar o coração batendo. A pedra, entre a prata e o marfim, nem a neblina da cidade industrial haviam conseguido escurecer, nem o vento nem a chuva privar de sua maciez lisa e morna. A galeria Vittório Emanuele II, com seu ar de shopping center da nobreza extinta, emprestava à eloquência do mordomo o clima ideal para seu ufanismo verborrágico.

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Na Piazza dei Mercanti, Giácomo lembrou que aí havia a principal feira-livre da Idade Média. Três edifícios daquela época ainda a isolavam dos ruídos da vizinhança, submergindo os transeuntes em um silêncio sepulcral. E finalmente foram ao castelo. Bem que tinham estranhado a ausência de prédios residenciais, na região do mapa da cidade, correspondente ao endereço indicado na encomenda. O castelo Sforzesco é, na verdade, apenas um grande museu, rico em obras de arte da Renascença italiana. No centro do salão principal estava a Pietà "Rondanini", com um Cristo morto inacabado e o rosto da mãe recém-crivado de marteladas por Michelângelo, sobressaindo do bloco disforme. Lucienne rodeou, durante um tempo sem instantes, a matéria amorfa que cristalizara para sempre um momento do gênio florentino, naquele vulto de sombras e de luzes, de onde emergia, também suspensa no fluir do tempo, a tragédia da humanidade, vazando pela superfície imaculada do mármore de Carrara. François só via, pela frente, o rosto do amigo Antoine, sem vida e sem respostas à dúvida que a Virgem e José de Arimatéia e os demais que não cabiam naquela maçaroca colocavam, com a mesma expressão aturdida: — Por que? Era a pergunta que o atormentava em todo lugar. A dor pela perda do amigo e o desapontamento por não conseguir uma maneira de livrar-se daquela dependência programada, se tornou particularmente pungente quando se defrontou com o pequeno quadro do Cristo morto de Mantegna, na pinacoteca de Brera. Era ainda o rosto desconcertado do jovem amigo, projetado, a partir dos pés, pelo grande pioneiro da perspectiva, sobre a minúscula

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tábua de quarenta centímetros de comprimento, tal qual o vira, logo após o golpe mortal da lança do centurião. Já para Lucienne, os afrescos, os arazzi, as estátuas, os vasos e a mobília secular, representavam apenas o habitat natural de suas fantasias sedimentadas ao longo de tantas horas de estudo e de aulas. Naquele momento, tudo se revestia das cores da realidade residual de um passado persistente, gratificante. Viram Giovanni Carpaccio, Caravaggio, Raffaello, Leonardo, El Greco, Rubens e Goya, em uma revoada que tirava o fôlego de Lucienne, sem nunca conseguir satisfazer seu desejo de ver mais. — Como gostaria de ter vivido naquela época e conhecer esses gênios insuperáveis — se empolgava a garota. — Deveria encarar também gente como Lucrécia Bórgia ou a mesquinhez da aristocracia da época, preocupada em esconder suas taras, com a opulência do nível de vida ou mesmo com as verbas em prol da arte — comentava sombriamente François. Tinham sido acomodados em uma suite deveras principesca. Nos armários monumentais, havia roupa feminina que as princesas da casa e quem sabe de quais cortes mais, deviam ter usado nos séculos idos. Lucienne se divertiu a vestir umas das tantas e soltou gargalhadas diante das caretas que François fazia, ao vê-la sumir no meio daqueles babados ou estrangulada em golas espalhafatosas. Finalmente, se deitaram na alcova renascimental, sem roupa nenhuma. Afogaram-se num mar de volúpia, revestidos apenas por sonhos iridescentes, dos quais afastavam com determinação, as sombras e as incertezas, os medos e as preocupações.

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Acordaram só quando um serviçal de uniforme foi chamá-los pela manhã, para conduzi-los ao salão das recepções... Quando o príncipe chegou, François teve a clara impressão de que o próprio Giácomo Orgândi estivesse dentro daquela roupa pesadamente elegante. Após as apresentações, lhe entregou o malote, fixando-o nos olhos, sem qualquer sujeição. Incrível, mas aquele ancião empertigado e fleumático tinha algo do agitado e cerimonioso mordomo. Piscou de leve a Lucienne, que não tinha ainda desconfiado de nada e voltou a assumir o seu papel de mensageiro involuntário, com naturalidade e cortesia. O príncipe era Ludovico Sforza, talvez o último, pois era solteiro e solitário. Falou pouco de si mesmo, mas foi o suficiente para convencer François de que o verdadeiro príncipe era Giácomo e o disfarce de mordomo devia servir-lhe para defender a herança ou a própria sobrevivência. O dono da casa conduziu com benevolência os visitantes, para conhecerem o palácio, assim como o mesmo Giácomo tinha feito. Seus comentários, porém, adquiriam a pose e o peso não apenas das palavras de um expert mas principalmente as de quem possui uma vivência e uma autoridade atávica. E a conversa logo verteu naturalmente sobre autoridade e poder. Afinal, era um jovem casal de plebeus, embora talentosos, dialogando com um velho e nobre sábio. — Sem o despotismo absoluto, a civilização não poderia existir. As massas transformam facilmente a liberdade em anarquia, a mais grave forma de barbárie. Um plano dividido por quantas cabeças há na multidão, pode perder sua unidade, tornando-se ininteligível e irrealizável.

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— Mas para que serviria a ordem e a civilização, se não fossem um produto da liberdade? — objetava o jovem plebeu. — Só a força cria a ordem e o progresso. Nossa palavra de ordem deve ser: autoridade, astúcia e hipocrisia. Nosso objetivo maior: o poder, exercido com violência e determinação. Não existe progresso sem ordem e não existe ordem sem o despotismo dos iluminados. François sentia uma mistura de fascínio e de respeito pelo velho, apesar de repudiar profundamente aquela atitude claramente retrógrada e compreensivelmente anacrônica. Desviou o assunto, na procura intencional de informações, mais do que na vã tentativa de convencer alguém, de suas próprias idéias. Aprendeu, assim, que existia uma verdadeira organização mundial, cujos próceres eram algumas inteligências privilegiadas, escolhidas a dedo por seus méritos pessoais, além de uma eventual ascendência nobiliar. — O que me espera em Roma? — perguntou enfim o jovem, o qual possuía apenas dados sobre o roteiro, mas ainda não compreendia nada do significado daquelas andanças. — Um só toque te orientará — sugeriu o príncipe, com ar de cumplicidade paternal, enquanto se despedia deles com a mesma majestade e amabilidade, com a qual os tinha recebido. Em Roma, os dois eram apenas jovens turistas desfrutando do verão da capital italiana. Após terem-se instalado em um hotel próximo à Stazione Términi, Lucienne foi sozinha visitar todas as pinacotecas, museus e ruínas, que sua insaciável fome de saber a impelia a devorar.

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François, por sua vez, foi logo executar a tarefa, à qual as instruções, embora meio enigmáticas, o obrigavam. Subiu a escadaria de mármore do palácio dos senadores, percorreu os corredores, os salões, os jardins daquele e dos demais edifícios que compõem o conjunto imponente do Capitólio, como teria feito qualquer visitante compulsivo daqueles monumentos da megalomania imperial. Quando alcançou a última rampa da torre do palácio senatório, François foi direto às engrenagens do grande relógio. Percorreu todos os andaimes e as escadinhas que asseguravam o acesso — fazia quatro séculos — para a manutenção da maquinária, na certeza de encontrar uma mensagem ou um malote em algum canto. Procurou até dentro do sino Paterino, que só toca nas grandes ocasiões da cidade. Não havia nada, em lugar nenhum. Os janelões da torre deixavam a luz fulgurante daquela manhã canicular invadir, sem cerimônias, todos os recantos do interior da torre. De lá de cima via-se a praça planejada por Michelângelo, com o monumento do imperador Marco Aurélio retirado de Latrão em 1535 e colocado bem no centro, com uma estrela de doze pontas a seus pés. Dela se expandem formas ogivais, dando a impressão de uma grandiosa renda de claro travertino, capturando os cubos de basalto pardo, para um jogo de perspectiva esférica, como se o Capitólio fosse a cúpula do mundo. De repente, um toque do relógio ressoou nos seus ouvidos, reverberando em seu corpo todo. Naquele instante ele estava observando a sombra do monumento e notou o braço do cavaleiro projetado exatamente em cima da ponta correspondente a uma hora, na grande estrela de mármore.

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Transpirando em profusão — pelo calor e pela ansiedade, — François desceu rapidamente até a praça e foi na direção indicada por Marco Aurélio. Atrás da esquina do palácio do museu capitolino estava um camelô cego, que repetia à exaustão: — Roma, caput mundi. Roma, caput mundi — e mostrava uma reprodução fotográfica da Praça do Capitólio, vista do mesmo ponto de observação, do qual François acabava de baixar. — Quanto costa?— ensaiou seu italiano François. — Quero uma dessas. — Roma é a capital do mundo — insistia o cego, fixando o infinito. — Quantos toques? — perguntou aí, estranhamente, em vez de responder. — Só um toque — respondeu François, que tinha entendido a pergunta, em um estalo. — Me orientará ou me confundirá mais? — Acrescentou para si mesmo. O cego, então, fez uma coisa deveras surpreendente. Levantou a foto até a altura dos olhos, embora continuasse a fixar o nada, e com a ponta de um estilete, riscou a letra grega , bem na ponta final da ogiva correspondente à bissetriz entre as 10 e 11 horas da estrela de Marco Aurélio. Finalmente a entregou a François sem dar sinais de querer cobrar qualquer quantia que fosse. — Quem é você? — quis saber François. — O que quer dizer isso tudo? O outro nem lhe deu atenção. Juntou rapidamente seus apetrechos e desapareceu no meio de um grupo de turistas, que se dirigia à igreja de Santa Maria de Aracœli. François ficou com a foto nas mãos, parecendo aquele garoto tímido que acabou de tirar o tênis diante de estranhos. Olhando ao seu redor intrigado e impotente e desconcertado, percorreu a esmo as linhas de travertino da

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praça do Capitólio, atrapalhando os turistas, enquanto procurava orientar seus pensamentos em qualquer direção plausível. Sabia, porém, que nada aplacaria sua sede de respostas. Lembrou, de repente, da placa que havia conseguido entrever, apesar da pressa e da escuridão, na porta dos Bourgelat, em Lyon. Sob o brasão estava, de fato, outra letra grega, o λ. E lembrou da jaqueta dos serviçais da casa Sforza em Milão, onde figurava o número romano XXIII bordado em ouro, por cima de cada bolso superior. Aí, não entendeu mais nada. Quando Lucienne viu a fotografia da praça do Capitólio, foi como se tivesse sido colhida por um raio. — Parece um mapa astrológico — quase gritou, enquanto abraçava a cintura do namorado — ou uma constelação ou um mapa celeste ou uma mandala. É uma mensagem sobrenatural. — É apenas a foto da Praça do Capitólio — minimizou François.

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— Eu sei — sorriu Lucienne, embora com os traços do rosto ainda tensos. — Você não entende? Michelângelo, quando desenhou a praça, quis sintetizar o esquema do poder que rege o mundo. Nada mais conveniente do que o centro da história e

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do poder terrestre, representado pelo Capitólio dos romanos e dos papas, para resumir a trama das forças que governam os seres humanos. Aí estão as concepções hindus, babilônias, hebraicas, gregas, romanas e até as célticas, maias e incas, das relações de comunicação e de decisão, que devem subsistir no mundo — explicou, sem puxar o fôlego, a moça. — Quem te deu a foto? — quis saber.

— Foi um camelô cego — contou François, junto com todos os detalhes dos últimos acontecimentos, que a namorada ainda não conhecia. — Mas o que mais me intrigou foi a precisão com a qual o sujeito foi riscar a letra , sem enxergar nada. — Nem precisava, — interrompeu-o Lucienne. — Os anjos não precisam de visão para ver, nem de ouvidos para ouvir. — Porque você está querendo me embromar? — protestou o jovem, sempre mais, encabulado. — Estou apenas tentando encontrar uma explicação para tudo isso que nos está acontecendo. — Não estou brincando com você — falou a moça, enquanto ia rabiscando vários pontos da foto com uma caneta. _ Veja bem. Você é . O Bourgelat é λ e o Sforza é XXIII. Certamente a velha que você viu no Louvre deve ter sido κ e o sujeito da prisão ou o próprio teu amigo Antoine seria XXI. Veja como tudo se encaixa. As doze pontas da estrela são como as doze tribos de Israel ou os doze apóstolos e alguém está querendo dirigir o mundo atual, através de doze líderes, que podem ser representados pelas primeiras doze letras maiúsculas do alfabeto grego. No lugar das horas, teremos assim: Α, Β, Γ, Δ, Ε, Ζ, Η, Θ, Ι, Κ, Λ, Μ. No segundo escalão, teremos os números romanos, de I a XII, e no terceiro, continuam as restantes doze letras 105


maiúsculas do alfabeto grego: Ν, Ξ, Ο, Π, Ρ, Σ, Τ, Υ, Φ, Χ, Ψ, Ω. — Como você pode ter certeza disso? — maravilhou-se François. — E por que todo esse emaranhado de linhas e de cruzamentos? — Divide et impera! meu amigo. É o princípio do império romano. Você poderá governar o mundo, se souber manter todos os demais interessados em se destruírem reciprocamente, ao mesmo tempo em que dependem um do outro. O importante é que todos os fios estejam convergindo para as mãos de um só. Maquiavel não inventou nada. Quem anseia o poder sempre soube disso. — Quer dizer que nós fomos obrigados a entrar num esquema e agora temos que passar por cima dos demais, para permanecer nele? Eu quero é cair fora disso. — Não dá mais. Veja como você está enroscado. Sua posição atual é de último escalão, junto com a de ω, ν, ξ, ο, π, ρ, σ, ς, τ, υ, φ e χ, em sentido horário. O κrecebia de XXI as ordens que transmitiria a você, sem ter qualquer relação direta com o escalão dele, formado pelas primeiras 12 letras minúsculas do alfabeto grego: α, β, γ, δ, ε, ζ, η, θ, ι e —após o κ — e . Se formava, assim, uma linha de decisão, partindo de  e chegando até você, através de VIII, , XXI e , enquanto de você partiria uma linha de informações, que envolveria, sucessivamente, , XXIII, Ω, XII e . Este, por sua vez, dirigiria a linha de decisão I, Ξ, XIV, γ e π, prestando conta apenas ao grande chefe, como os demais líderes intermediários da grande estrela. — Quem matou Antoine? E Larisse? — questionou mais uma vez François. — E por que? — Qual é então o porquê de tantas guerras, revoluções, violência e destruição e medo, no mundo inteiro, durante 106


tantos séculos de história humana? — Perguntou Lucienne, em lugar de responder. No dia do casamento, François e Lucienne só tinham o mesmo e único plano na cabeça, além do propósito sincero e definitivo de uma recíproca fidelidade conjugal e de uma convivência amorosa pela vida inteira. Fugir.

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.4 O LEOPARDO

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SUSY conhecera Omar, quando ambos eram funcionários da secção de entorpecentes da polícia militar. Omar era um simples cabo, destacado para os escritórios da central de Pucaranga, enquanto Susy havia obtido o emprego de rádio-telefonista, na mesma repartição, como funcionária civil contratada. Acontece que a irmã dela estava casada, naquela época, com um coronel do exército, muito amigo do tio delas, o famoso general Vargas-Dória. O coronel Arnóbio, um amável cinqüentão, divorciado, conhecera a jovem Helena, em Labareda, como assistente social de uma repartição da engenharia militar, que pertencia a seu comando, e acabou casando com ela, que terminava de completar vinte e três anos de idade. Sério e apaixonado, o coronel tornara-se um membro respeitado da família de Helena e passou a proteger e promover Susy também. Foi assim que Susy conseguira aquele emprego, que lhe permitiria manter sozinha os dois filhos, logo depois da traumática separação de Henrique. Omar tinha sido considerado sempre um sujeito correto e disciplinado. Havia sido uma criança calma e obediente, como toda criança pucaranguina. Acostumado a observar e avaliar. Respostas essenciais e objetivas, freqüentemente lacônicas. Indiferença aparente diante de assuntos que não lhe dissessem respeito. Ele era extremamente ciumento de sua privacidade, apesar ou justamente por haver muitos detalhes, em sua vida, que poderiam promovê-lo aos olhos de um círculo restrito de admiradores de certos atributos e prerrogativas. Existiam boatos, é verdade, mas tudo circunscrito à roda seleta de uns poucos amigos. Pouca gente sabia que ele poderia ser considerado um recordista em número de romances amorosos, o que justificava perfeitamente o apelido que destacava a peculiaridade mais expressiva de

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seu físico. Ninguém, todavia, viria a conhecer sequer o nome do autor da idéia, e muito menos a coincidência anagramática (perfeita apenas na língua portuguesa) com o outro apelido, mais definitivo e menos chocante, com o qual logo se tornaria conhecido, graças à série de eventos que estamos narrando: o Leopardo. Não fosse esse detalhe, ele permaneceria para a vida inteira como Palo-de-oro. — Estou sendo enviado em missão extraordinária para o Chapanal e gostaria que você fosse comigo — dissera um dia, assim de surpresa, Omar a Suzy. — Você está ficando louco. Eu sou uma mulher casada e muito bem casada — respondera Suzy, ficando vermelha de raiva e de vergonha. Sabia muito bem, no fundo, que seu relacionamento com Henrique nunca tinha sido lá grande coisa, embora tivesse feito um grande esforço para manter o casamento. Omar também estava casado e possuía um casal de filhos. Sufocado, porém, pelos ciúmes da sua esposa Glória, andava planejando o divórcio, de olho em Susy. Esta, por sua vez, mantinha sigilo absoluto quanto à própria falência do seu casamento e muito mais sobre as verdadeiras razões que a haviam levado a esse estado de coisas. Ela sabia muito bem que tinha casado cedo e rápido demais, ela com vinte e Henrique um ano apenas mais velho. O anúncio no jornal aparecera uma semana depois de acontecida a cerimônia. A própria Suzy exigira que fosse realizada em casa. — Vamos ter que convidar os tios de Santa Fé e a prima Catarina de Surija — lembrava a mãe de Suzy, Dona Ivone.

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— Não vou querer ninguém xereteando na minha vida — resmungava Suzy. — Não vou querer entregar-me às garras de todos esses fofoqueiros. — Que é isso, Suzy? São nossos parentes, que sempre nos trataram com muito carinho. Suzy conhecia muito bem seus parentes. Principalmente seu tio, o general Vargas-Dória, o equilibrado e ponderado articulador do governo militar, que tinha conseguido esvaziar uma das revoltas mais sangrentas da história de seu país, com sua conversa macia e sedutora, logo após seus colegas terem deflagrado uma verdadeira ação bélica de crueldade inédita. Sua prima Apolinária, a vedete de todas as reuniões de família, com suas manias de grandeza, ostentando a toda hora seu relacionamento com os figurões da nomenklatura nacional. Conhecia a tia Juana de Welch, casada com um funcionário de segundo escalão da embaixada americana, que vivia comparando todos com os imaginários compatriotas, com os quais gostaria de dividir a consangüinidade e não apenas a afinidade. De nenhum deles tinha recebido qualquer benefício e os detestava abertamente, pois alguma ajuda e carinho recebera de parte de estranhos, como de Arnóbio ou de colegas da faculdade, mas nunca de parentes. Sob os olhares severos ou sarcásticos desses observadores incômodos, ela iria pronunciar seu sim, em pleno último ano de faculdade, em favor de um garoto de sua mesma idade, ele também totalmente despreparado para formar uma nova família. Não suportava pensar nas insinuações nada generosas das coroas, que não tirariam os olhos de cima de seu ventre, para adivinhar a idade gestacional da noiva, sem precisar de qualquer recurso clínico ou laboratorial. Principalmente porque permanecia

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carregada de um sentimento de culpa que não a abandonaria um só instante de sua vida. O fato de estar casando grávida de cinco meses não seria nada mais que uma mera perturbação em seus planos de vida, tão longamente acalentados, não fosse a mentira que tinha fabricado, no momento do desespero, e que se tornaria um terrível feitiço contra ela mesma, do qual nunca conseguiria se libertar: Henrique não era o pai da criança. A cerimônia acabou acontecendo. Parecia mais um velório do que uma festa, mas, enfim, aconteceu. Suzy e Henrique haviam providenciado a transferência de seus respectivos cursos para a Universidade de Labareda e foram morar num cubículo em anticrético. O neném chegou pontualmente. O parto foi tão rápido e fácil quanto a gestação fora complicada e laboriosa.  Omar se tornou o Leopardo quando passou para o corpo de guarda especializada em ações anti-guerrilha contra o tráfico de entorpecentes, desenvolvidas principalmente na selva. O apelido era apenas um eufemismo, devido aos uniformes miméticos usados e, talvez, à própria ferocidade com que os policiais de sua corporação executavam suas missões. Ainda ele estava trabalhando como modesto burocrata da seção de Pucaranga, quando foi convocado, em forma extraordinária, para patrulhar o centro da cidade, durante a greve dos professores, que marcou o início do governo Cañabrava. Em sua primeira ronda noturna, junto com o soldado Pérez, tinha encontrado a praça central quase deserta. Seu pensamento estava sempre com Susy. Sabia tudo sobre ela, apesar do silêncio, com o qual a jovem procurava 114


salvaguardar sua privacidade. Não tinha aprendido a arte do policial em vão. Tinha sido treinado na arte de fuçar na vida dos outros e, ao mesmo tempo, manter uma discrição total sobre suas próprias informações. O companheiro estava lorotando sobre sua vida de praça, sobre mulheres e sobre futebol, acompanhado pelo passo e por raras vagas respostas do cabo. Este, por sua vez, continuava pensando em Susy. Imaginava o que ela estaria fazendo naquele momento. Sabia que o interesse pelo marido tinha esmorecido aos poucos ao perceber quanto Henrique não passava de um garoto mimado e de quanto sua aparência agradável, seus modos afáveis e sua voz maviosa, no teste da convivência prolongada, haviam acabado pondo às mostras uma pobreza de maturidade e de sentimentos, que haviam tornado a vida familiar e até o atrativo sexual, totalmente esquálidos e frustrantes. Após dois anos de dificuldades enfrentadas juntos, em Labareda, resolveram voltar a Pucaranga. Os parentes se haviam acomodado com a idéia de Susy casada e a presença de um anjinho loiro andando pela casa, já absorvera as atenções e os mimos dos avós e tios. Susy contava a Omar tudo que o pequenino fazia e era como se estivesse falando com o pai dele. Ela ficava extremamente linda e radiante ao relatar as travessuras do miúdo e Omar ouvia os detalhes mais insignificantes, com a atenção que um discípulo dispensaria aos ensinamentos de um guru. Ela frisava a toda hora, inclusive, como Henrique adorava brincar com o pequeno, dispensando as atenções que, aos poucos — isso Susy não falava —, ia negando à esposa. Nas proximidades da praça central, a Rua Calama que atravessavam naquele momento não estava tão bem iluminada e poucas pessoas se atreviam a sair após o toque

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de recolher. Assim mesmo os dois puderam notar um casal saindo de um prédio, que devia ter sido levantado na época da colônia. — Caramujo não sai sem chuva, — resmungou o pracinha, que tinha horror a silêncio total. — E este mar não é pra peixe, — ecoou o cabo, pela primeira vez atento à matraca de seu subalterno. Suzy desapareceu, como por mágica, de seus pensamentos e de — Vamos ver quem gosta dessa boemia extemporânea. Aceleraram o passo, seguindo, pela 8 de Maio, a mesma direção que os pombinhos tinham tomado pela Colón. Ao chegarem na esquina seguinte, pararam na penumbra, para espiar os outros dois, que teriam atravessado a rua mais lentamente do que eles tinham percorrido a quadra. Aguardaram alguns instantes, até se convencerem de que o casal não apareceria mais. Dobraram a esquina e mantiveram um passo forçadamente natural, até alcançarem a 8 de Maio. Completamente deserta. — Devem ter entrado por um destes portões — adiantou-se o soldado. — Muito bem, Pérez. Vou te propor para detetive de primeira classe — ironizou Omar, enquanto ficava cheirando o ar da noite ao seu redor. Ele apostaria mil pesos que os dois cidadãos não estavam acordados até aquela hora, só pra dar um passeio noturno ou pra namorar no centro de uma cidade em estado de sítio. — Nossa tarefa se esgotou. Vigiar, obedecer, agir... — observou ainda o soldado Pérez, que parecia estar lendo o regulamento da guarda civil e, na verdade, estava continuando apenas a verbalizar seus intermináveis delírios.

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— Estamos apenas começando — pensou Omar, correndo atrás de sua inata capacidade dedutiva. A imaginação lhe trazia uma visão radioscópica do interior daquele prédio sombrio, que, alguns séculos antes, tinha sido construído, seguramente, com o intuito de transmitir a solenidade e compostura, com as quais os conquistadores pretendiam impingir, nas colônias, suas veleidades de perpetuação da cultura importada da Europa. Revelava, ao invés, uma simples caricatura do fausto que as capitais avultaram, durante muitas décadas, às custas de uma espoliação constante e descabida das mesmas colônias, cujos próceres, com a pose provinciana de mecenas e mesmo pela preguiça intelectual tão ao estilo dos novos ricos, procuravam reproduzir nas fachadas de seus prédios públicos. Quase dava para escutar a respiração espaçada e até os batimentos cardíacos dos dois noctívagos, atrás do portão de madeira maciça, cujas bordas, e mesmo as figuras épicas nele esculpidas, o tempo e as intempéries se haviam encarregado de alisar e mutilar. Quem teria oferecido o abrigo tempestivo aos dois? Um casal de velhos temerários ou uma delicada donzela, vestida de um simples peignoir esvoaçante? Mesmo a imaginação mais efervescente devia dobrar-se diante do conhecimento prévio adquirido ao longo dos anos, por um indivíduo, como Omar, que não gostava muito de noções livrescas, mas que adorava informações, até as mais minuciosas, sobre tudo que fizesse parte de seu próprio mundo. O prédio, atualmente era uma escola de ensino básico, que durante o dia ocupava várias turmas de crianças, divididas em três turnos. O próprio Omar tinha freqüentado aquela escola, na terceira e quarta série.

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Já tinha jogado basquete na quadra que tomara o lugar do antigo pátio do edifício hispânico. Tinha passado muitos recreios apoiado na balaustrada da varanda, que descrevia o quadrado do espaço central do prédio. Não havia muita graça, pois só havia meninos e as conversas e brincadeiras não saíam nunca das mesmas piadinhas e insultos de maricón e de huevón e de empurrões e de palmadas no traseiro. Estava em idade suficiente para apreciar as formas e os atrativos do sexo feminino mas era obrigado a contentar-se com a amizade de companheiros da mesma idade e sexo. Não era tão ruim assim. Tivera até uma fase de verdadeira paixão por Walter, um garoto de dez anos, que viera morar em Pucaranga, pois o pai dele era funcionário do consulado do México. Era loiro e com traços delicados de princesa. Omar não se cansava de olhar pra ele, com admiração e prazer, sem qualquer conotação de maldade. Já com os demais colegas, permitia-se intimidades maiores, em momentos de algazarra geral, como aquele dia em que uma turminha resolveu tirar a roupa no banheiro e começar a medir o tamanho dos tilintintins. Luciano da quarta E, tinha arrumado uma reguazinha, que acabou encostando em todas as varetinhas ouriçadas. O pequeno Omar anotava os números em uma folha de caderno, sob os gritos de aprovação ou as vaias dos demais. Alguns dias depois, foi convidado por Rubens, o repetente da quinta C, a mostrar de novo, desta vez só pra ele, o tamanho do instrumento, que começava, já naquela época, a suscitar admiração satisfeita e até inveja nos ruidosos observadores. Atrás daquele portão, estavam agora dois adultos que se arrastavam pelas paredes, com uma ansiedade irrefreável, parecida à dos dois pequenos safados de tantos anos antes.

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— Não se mexa daqui e fique alerta. Eu vou dar a volta, pegar os dois desgraçados, — intimou, num sopro, ao praça e desapareceu atrás da esquina com a Calama. Entre a sorveteria España e a loja de frios Dillerman, ele conhecia uma passagem estreita, que antigamente lhe permitia entrar na escola e alcançar sua sala de aula, sem passar necessariamente pela portaria. Ficou decepcionado ao encontrar um prédio em construção no lugar da velha sorveteria. Omar se deu conta de que fazia muito tempo que não precisava mais de pular muros. Descobriu, porém, uma insuspeitada agilidade em seus próprios músculos e em sua criatividade, que lhe fez encontrar um caminho novo, entre tapumes e materiais de construção, na escuridão quase total. Percorreu corredores e salas, como um cego lê em Braïlle. Chegou logo ao saguão central e agarrou seu Taurus 38, apontando para o ar. Foi apalpando a parede inteira até localizar um quadro de interruptores. A seguir, escancarou uma porta com um pontapé e logo ligou a chave geral. Um feixe retangular gigantesco inundou o jardim e arrebatou de luz os dois suspeitos, feito corujas surpreendidas, em plena noite, pelos faróis de um caminhão solitário. A voz de prisão foi redundante, quase um ritual acessório, pois o jovem estava já de mãos ao alto, enquanto a menina desfalecia entre o portão e o companheiro. — Quem são vocês? Por que se escondem? Palo-de-oro via nos olhos rendidos do refém a mesma incerteza e decepção, o sentimento de culpa e de vergonha, que se apoderaram dele próprio, no dia em que o professor de Ciências o surpreendera, junto com Rubens, fazendo troca-troca.

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— Me chamo Jaime Ortega e esta é a minha namorada Hortência. Omar notou o nariz proeminente do interlocutor e pensou em uma águia ou mesmo num condor. Nem precisou fazer um verdadeiro interrogatório, pois logo obteve uma ficha completa do narigudo. Era professor de Estudos Sociais na Escola Martín Sotero e a garota estava terminando o Normal para tornar-se, ela também, uma mestra. Haviam jantado em casa de amigos e tinham perdido a hora. Agora tentavam voltar pra casa, lá na vila Cala-Cala, quando notaram a ronda policial e se assustaram, lembrando o toque de recolher. — Vocês vão com a gente, na delegacia. São suspeitos. — Somos suspeitos de quê? — Ainda não sabemos. Mas temos a vida inteira para descobrir. Os dois presos foram a pé mesmo, até a central de polícia. O chefe Rodriguez, porém, os liberou logo. O jovem professor era o Condorito, um amigo de Mário, o filho dele mais moço e a estudante era mesmo Hortência, uma garota meiga e caseira, que, além da escola, freqüentava apenas casas de gente de bem. Omar ficou bastante contrariado com a minguada revelação e voltou ao seu serviço, acabrunhado. O soldado Pérez o acompanhava como uma sombra e até sua matraca irrefreável tinha deixado o lugar a um muito mais incômodo silêncio. Aquela madrugada foi ainda mais tenebrosa, do que o resto da noite passada na rua. Começou a alvorada só quando a imagem de Suzy voltou a exorcizar sua imensa frustração. Quando chegou em casa, seu fracasso ocasional solidificava-se ao contato com a realidade de seu

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desgastado convívio familiar, feito da frieza da mulher e do distanciamento sempre maior dos filhos. Como poderia cultivar sonhos de uma nova família, quando sua primeira experiência tinha-se tornado tão decepcionante? E, de que jeito podia sequer pensar em atrair Suzy — embora ela também fosse, sem dúvida, uma pessoa profundamente insatisfeita —, simplesmente para compensar o vazio que seu relacionamento com Glória vinha lhe proporcionando? A imagem de Susy continuava, assim mesmo, a temperar o intenso desconforto que o atormentava. Arriscava até planos mirabolantes de sucesso profissional, de reconhecimento de seu talento investigativo, com promoções rápidas e prêmios relevantes. Sonhava com viagens de estudo ou de puro turismo, construção de mansões e compra de veículos de luxo. Tudo ao lado de Suzy. Com certeza, um dia. Puro sonho. Logo a realidade acanhada, em que ele estava totalmente submerso, se impunha à sua atenção. — Eu vou sair dessa. Não agüento mais.  Susy, naquele momento, adormecia após horas de insônia. Henrique roncara suavemente ao seu lado, o tempo todo, abraçado ao pequeno, que dormia esparramado na borda esquerda, entre ele e o berço, onde estava deitado o maiorzinho, escorado à cama grande. Eram apenas três crianças. E ela uma velha senhora de vinte e quatro anos de idade, que devia providenciar comida, roupa, limpeza e ordem pra todos eles. Henrique tinha acabado de formar-se em economia, mas continuava no seu empreguinho de quinhentos pesos, na Caixa Petroleira, graças às amizades de seus pais. Sua 121


contribuição no orçamento doméstico se limitava a isso e sua presença em casa era apenas de um companheiro de brincadeiras para os dois pequenos. Susy ficava seis horas, todas as tardes, nas telecomunicações da seção de entorpecentes. De manhã, saía cedo para dar duas aulas na Escola Municipal Laura de Arce. Lecionava Espanhol, Estudos Sociais, o que pudesse abocanhar, contanto que não a enviassem pra fora de Pucaranga. De volta pra casa, passava ainda na residência de alguns devedores da Caja de ahorro y credito "Sto. Antonio", pra efetuar as cobranças. Tinha sido seu primeiro emprego, desde a época do Normal, que lhe permitira manter seus estudos de literatura e constituía ainda uma boa fonte de poupança, com as comissões que recebia. Chegava em casa cansada, mas ainda devia pensar em arrumar tudo, corrigir tarefas, preparar aulas e cozinhar, lavar, passar... Henrique, por sua vez, andava sempre elegante e fazia sucesso com as colegas de trabalho, como sempre o fizera com as da universidade, tanto em Labareda, quanto em Pucaranga. A figura de Henrique era a de um garoto, mas com todas as partes do corpo bem distribuídas. Suzy também continuava admirando o aspecto dele, mesmo quando os atrativos do galã foram-se tornando mais de um objeto estranho do que de uma parte essencial do seu próprio ser. Além disso, toda vez que o olhava, surgia, atrás da silhueta do marido, a imagem de Roberto, como uma sombra grande, sem escuridão ou ameaças. Mais bem reconfortante e benéfica, como a sombra de uma palmeira. O mesmo acontecia quando parava um pouco para contemplar seu pequeno primogênito. Tinha-lhe dado o

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mesmo nome e procurava encontrar nele qualquer detalhe que pudesse assemelhá-lo ao marido. — Olha. é incrível. Já tem dois fios de cabelo branco, igual ao pai dele. — Observara a tia Maria, irmã de Henrique, o qual Suzy, naturalmente, encorajava qualquer descoberta dessas. Mas a ajuda maior lhe foi propiciada pela semelhança impressionante com a tia Helena. Nada mais natural do que se parecer com a irmã da mãe. Isso conseguiu despistar pra valer o parentesco inteiro. Mas o que ela queria, na verdade, era de se enganar a si mesma. Suzy recebia notícias esporádicas de Roberto, mediante Mariita, sua ex-colega de turma, que mantinha ainda algum contato com o Normal, onde ele continuava sua atividade de professor de Filosofia. Ao mesmo tempo, ele cuidava daquela paróquia miserável da zona sul da cidade, onde tinha voltado a morar, depois do afastamento de Suzy. Agora, ele andava mais comedido, em seu relacionamento com os alunos, sem perder, todavia, o glamour que sempre o caracterizara.  Quando começou a briga, Roberto estava observando a multidão, junto à Irmã Olga e a Gerardo, os quais, como ele, não poderiam expor-se muito, devido ao fato de serem estrangeiros. Os professores tinham-se concentrado na saída para Labareda, desde cedo, gritando suas palavras-de-ordem. Logo foi-se juntando também uma esquadra de operários da Paraco, uma grande fábrica de calçados instalada nas proximidades. A Paraco exportava noventa por cento de sua produção para os Estados Unidos e Europa, conseguindo ganhar qualquer concorrência internacional, graças aos magros salários concedidos aos seus 123


funcionários. Destes, a grande maioria, ironicamente, trabalhava descalça ou com as tradicionais sandálias de tiras-de-pneu. Os ânimos começaram a esquentar, quando a tropa-dechoque da polícia militar se acumulou do outro lado, formando uma fileira impenetrável de guarditas, com seus uniformes verde-grama, os escudos de metal e os capacetes de guerra, com viseiras de plástico duro. — No a los salários de hambre! — se escutava lá pelo meio da massa. E havia alguém que conseguia ser até espirituoso, arrancando risadas de seus vizinhos, já bastante exaltados, ao gritar: — Queremos la cabeza de Cañabrava em escabeche! Omar estava na retaguarda, junto com um pelotão de companheiros, também protegidos com escudos e viseiras, armados apenas de um cassetete. A iminência do choque com os revoltosos parecia lhe infundir firmeza e determinação, em lugar de ansiedade e medo, apagando qualquer outro tipo de preocupação ou mágoa. A imagem de Suzy permanecia como um estímulo a mais, para seu instinto de luta, como se estivesse lhe pedindo a toda hora: — Você deve lutar e ser forte. Deve fazê-lo por mim. Era como se Suzy tivesse tomado o lugar de Glória, em sua vida, capitalizando, inclusive, todos os momentos de convivência com a esposa, sem o desgaste acarretado pelos intermináveis desencontros, e sem o tédio dos momentos de aparente calmaria. De repente, começou o tumulto e o único carro blindado começou a disparar bombas lacrimogêneas sobre os manifestantes. Alguns desses tinham-se precavido, usando lenços ou máscaras cirúrgicas pra tampar a boca e o nariz. Podiam, portanto, aproximar-se com mais

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facilidade das velas fumegantes e apanhá-las para atirá-las de volta contra o pelotão mais ao alcance. Formara-se, desse jeito, uma verdadeira cortina de fumaça, que asfixiava muita gente dos dois lados, provocando uma desabalada correria em todas as direções. O próprio Omar teve que dar no pé, segurando seu ridículo cassetete e tropeçando no enorme, quanto inútil escudo, quando o gás atingiu suas mucosas também, irritando-as ao extremo, com aquele cheiro acre e sufocante. Logo se encontrou disperso de sua turma, numa área residencial, com suas ruelas totalmente desertas. Procedendo com circunspeção, enquanto procurava alguém de seu grupo, chegou no Callejón La Paz, que parecia um beco de outro planeta. O ruído do teatro-deguerra da revolta chegava até aí, como as aclamações do público de uma plaza de toros ou de um estádio de futebol, ouvidas a quilômetros de distância. Veio justo na hora em que um homem franzino, de casaco em couro preto, se lançava por cima de um loiro hercúleo, que rolava no chão, na última tentativa de escapar do perseguidor. Mas, em um instante, este tinha conseguido alcançá-lo e rendê-lo imediatamente, graças a um enorme revólver, que tinha sacado, num passe de mágica, de seu pesado casaco. Foi aí que o ágil agressor percebeu a presença de Omar, esgueirado pelo vão de um portal barroco, e se virou de imediato, apontando o revólver em sua direção. — Saia daí, com as mãos levantadas! — gritou-lhe com voz um pouco abafada. — Eu sou a polícia — retrucou o guarda — e você considere-se preso. Abandone a arma no chão e se entregue. O grandalhão desarmado, nesse intervalo, aproveitou da distração do adversário para desvencilhar-se e pular, com a

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agilidade de um gato, por cima do muro de uma daquelas casas e dar no pé pelos quintais. O outro ficou com o revólver em riste, a resolver o impasse com o policial, que não se decidia a sair do seu refúgio, enquanto estivesse com desvantagem do seu cassetete, contra o canhão do rival. Isso lhe deu tempo, porém, de olhar bem no rosto do sujeito e reconhecer o nariz do Condorito — agora em posição de clara vantagem com relação a ele. Por incrível que pareça, não estava com medo de morrer, embora nunca tivesse se encontrado, mesmo com todo o perigo de sua profissão, tão perto e tão na mira de um cano de arma de fogo. Permaneceu de pé, olhando pra dentro de si mesmo, enquanto o ruído da revolução, lá de longe, viajava pelo vale de Pucaranga, com a entoação festiva de uma tarde dominical. Quem estava na sua frente não era um inimigo em atitude ameaçadora, mas sempre Suzy, como uma visão de paz, aparecendo, de repente, das brumas de um conto de crianças. Era uma fada linda e benéfica, que sorria pra ele e conversava com a meiguice de sempre. — É muito bom ter um amigo como você. Você me inspira confiança e força. Na verdade, estou um pouco cansada de exercer o papel de mãe as vinte e quatro horas do dia, com meus filhos e com meu marido, inclusive. Gostaria de tirar um dia de férias, que seja, dessa minha atividade constante de provedora e empregada e babá e protetora e... tudo. Preciso de alguém que se preocupe um pouco comigo, que me dê proteção e segurança, que divida comigo a atenção constante, a responsabilidade, a tensão do dever, das obrigações, das tarefas, das compras, das vendas, das relações públicas, dos sorrisos forçados, do medo, da timidez, dos pesadelos da noite e dos

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sobressaltos do dia a dia... Você gostaria de me ajudar? Você cuidaria de mim? O Condorito lia, sem conseguir decifrar, aquele monólogo, no rosto ausente de sua vítima, na qual custavalhe reconhecer os traços do mesmo tira que, poucos dias antes, em uma situação exatamente invertida, o tinha apanhado com a truculência, que é peculiar aos mais convictos homens da lei. — Onde estão teus pais? Por que não te ajudam? — perguntava, de retorno, o soldadão apaixonado, à parceira, que o algoz-do-momento não via. — Será que poderia me tornar capaz de amparar a alguém, enquanto não pareço forte e seguro o bastante, como para agüentar a mim mesmo? — Meus pais moram na frente da minha casa e meus filhos passam o resto do dia com eles. Mas é como se eu estivesse sozinha no mundo. Minha mãe só resmunga o dia inteiro e está me cobrando ou jogando algo na cara, a todo momento. Meu pai foi sempre carinhoso comigo, mas fica com a cabeça nas nuvens e nunca sequer percebeu nada de meus problemas. O rosto do tira transformara-se agora numa máscara esquisita, mistura de comoção e de perplexidade, com os olhos aguados parecendo duas ostras de valvas abertas, sem qualquer orientação ou sentido. O corpo dele imóvel, na visão do Condorito, estava, na realidade, se aproximando de Suzy, enquanto seus braços se levantavam, à procura do rosto da amante. Suas mãos agora entravam em contato com a pele suave da jovem, tateando vagarosamente todas suas anfractuosidades. Afagou seu cabelo como faria com uma criança e finalmente a beijou. Na testa, nas faces, nos lábios, no pescoço. Enquanto Susy, com seus braços

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gráceis, se agarrava aos ombros robustos dele, com a força repentina de um náufrago. O prazer o inundava por todos os cantos de seu corpo, acompanhando as vibrações do corpo dela. Sua respiração ruidosa festejava, sem qualquer constrangimento, as ondas do orgasmo, que tomava conta de seu coração galopante e de seu rosto ruborizado e de seu ventre e de seu membro proverbial, imobilizado às duras penas, pelo uniforme de batalha. O espectador estupefacto rendia-se à incompreensibilidade da cena, repondo a arma e acudindo sua presa, que já desfalecia, em um mar de beatitude. — Seu covarde trapalhão. O que deu em você? — gritava-lhe no ouvido, inconformado por ter que se preocupar com quem já tinha tripudiado dele, pouco tempo antes. — Você só sabe se meter no meu caminho e cortar o meu barato. — Eu sou a polícia — borbotava com voz torporosa, o cabo, voltando, de contragosto, à realidade. — Você, considere-se preso. — Seu trouxa. Poderia tê-lo matado como um cão. E ainda por cima me deixa escapar o meu maior trunfo. — Do que é que você está falando? — reagia, já completamente recuperado, o tira. — Você não é aquele pateta de professorzinho, que eu prendi outro dia? — Eu sou Jaime Ortega. Mas pateta de uma figa, é você, seu bastardo. Sou um agente da Interpol e estava na pista boa, para desbaratar essa gangue de agitadores estrangeiros, quando você veio de novo, sentar no meu saco. Vê se sai de mim, só. Aí, Palo-de-oro entendeu tudo, num estalo. E se xingou de besta e de muito mais epítetos do que o vocabulário de grosserias do outro tira pudesse conter. Detestava fazer papel de idiota diante dos outros, mas ter que admitir pra

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si mesmo que tinha errado era pior que a morte. E ele tinha-se equivocado mesmo, ao deixar as coisas rolarem, perdendo uma chance de ouro, por ocasião do primeiro encontro com aquele ser abjeto, que agora vinha por cima dele, com a corda toda. E tinha dado uma de otário, deixando-se levar pelas emoções, nesta outra circunstância, em que era imprescindível ter lucidez e decisão. O Condorito era um cachorro, um agente duplo, que se infiltrara entre os professores, para orientar o serviço secreto do governo, no rastro dos militantes da oposição ao regime. — Você, agora, vai ter que me ajudar a encontrar o cara. E guarda o bico calado. Falo pelo teu bem e da tua família, se é que prezas por ela — concluiu o Condorito, assumindo um sorriso enigmático, que contrastava com a tensão dos traços de seu rosto e que Omar não tinha tido modo de notar, em ambas as ocasiões dramáticas, em que tivera que encará-lo. O dia seguinte, Palo-de-oro foi chamado pelo chefe Rodrigues e já se preparava para receber mais uma reprimenda. — Parece que foi dando alguns foras por aí — foi direto ao assunto o chefe. — Mas deve ter alguém que gosta mesmo de você, nos altos escalões. Prepare-se para voltar para a academia. Vai participar do curso de sobrevivência na selva e vamos ver o que fazer com você depois. — É um prêmio ou um castigo? — teve a ousadia de perguntar o cabo. — Para um policial existe apenas o dever — teorizou Rodrigues, que mais parecia um juiz encerrando um processo, com seu veredicto final. — Vai partir em quinze dias.

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Foi quando Omar comunicou a Suzy, que partiria em missão especial para o Chapanal e lhe fez a proposta de ir junto — como se seus planos e fantasias tivessem se desenvolvido na esfera da realidade e seus monólogos e sonhos os tivesse realizado como verdadeiros diálogos com a companheira de trabalho, obtendo dela plena e integral aceitação.  Viajou assim, sozinho, para o Chapanal, deixando Glória de um lado e Suzy do outro. E ainda os filhos, os amigos de viernes de soltero — com os quais costumava passar os momentos de maior descontração, todas as sextas-feiras, ao redor de uma mesa e com um copo na mão, sempre cheio de deliciosa cerveja gelada — e mais, o clima temperado de seu vale e o conforto de sua casa, tudo para embrenhar-se na selva tórrida e perenemente úmida da região tropical do departamento de Pucaranga. Viajou sentado na carroceria de um caminhão militar, o qual devia ter participado da guerra del Chaco, de tão sucateado que estava, mas tinha até capota de lona, para proteger os passageiros das chuvas torrenciais da época e, um pouco, do frio que enfrentariam durante a travessia pelas montanhas. Passou o tempo todo da viagem fechado em si mesmo, enquanto os colegas puxavam a conversa mais à-toa que soldado pudesse enredar. A paisagem de seu vale aprazível vinha deixando o lugar à vegetação mais rala, que ladeava a estrada tortuosa das montanhas de Tunaré. O caminhão sofria, mas ganhava teimoso cada metro da encosta e, atrás de cada curva, desvendava uma nova enquadradura daquela natureza avarenta, que se tornava, de repente, generosa de riachos ruidosos, esfarelando-se em cascatelas cintilantes, 130


ou de manchas de verde apagado, pondo à mostra flores sem classificação e arbustos agarrados às fendas das rochas e almofadas de relva onde jamais alguém pisara. Omar olhava a beleza familiar de sua terra, com a apatia de um estranho. Não saberia dizer se era rancor aquilo que ele estava sentindo e se podia considerar-se mais devedor por aquela natureza austera e vislumbrante ou se ele próprio não tinha dado mais do que teria recebido de seu país. O caminhão procedia mais sossegado, agora, aproveitando um bom trecho plano, na altitude de quatro mil metros. Acompanhou a borda de um lago solitário, que se insinuava matreiramente nas enseadas de vários morros calvos, rodeando a planície provisória. A água lisa espelhava o céu uniformemente cinzento, reverberando seu hálito gélido como se quisesse hibernar os seres vivos, na mesma imobilidade do ar e das pedras imemoráveis. Atrás de um morro surgira um vilarejo, com suas casas de adobe, que mal se distinguiam da monotonia de cores da encosta. Era dia de feira, em Punatengo, e as saias das índias sentadas no chão, atrás das mercadorias escassas, agitavam um pouco o cenário, graças à combinação obsessiva de seus tecidos iridescentes. Uns garotos foram ao encontro do caminhão e o acompanharam gritando, e oferecendo aos soldadinhos as trutas e linguados, que seguravam no ombro, pendurados em balancins de madeira. As vendedoras sorriram por debaixo de seus chapéus de feltro, sem movimentar a cabeça nem os músculos do rosto sequer. Os homens permaneceram entretidos em seus negócios, continuando a mostrar os dentes de suas mulas e os úberes de suas cabras, como se o ronco do caminhão fosse apenas um reforço sonoro de seus pensamentos.

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Subiram por mais mil metros e a neve deixou nada mais que um risco de lama, para a geringonça passar, durante um tempo que os guardinhas dedicaram a um silêncio meditativo — por falta de ar mais do que por falta de assunto — antes de começar uma descida descabida, que reavivou a conversa, enquanto os freios do caminhão faziam malabarismos para acompanhar as sinuosidades das curvas eufóricas. A chuva deu-lhes as boas-vindas, quando chegaram às proximidades de Villa Tunaré. A estrada, que tinha mantido, durante um bom trecho, um resquício de manto asfáltico da Aliança para o Progresso, sob a violência da chuva de vários anos, tinha perdido até a aparência de estrada de rodagem. Era um lamaçal só. E as tentativas dos veículos pesados, de atravessar aquela região, tinham criado sulcos imensos, com bordas tão altas e irregulares, que inviabilizavam agora a passagem de qualquer meio de transporte. Os soldados tiveram que descer e ajudar os operários e os voluntários, que já se dispunham a alisar um pouco as disparidades da pista, debaixo de uma chuva impiedosa que penetrava até nos ossos. Omar continuava a pensar na vida e em Susy. O que, por sinal, pra ele era a mesma coisa. A atividade manual era puro automatismo. Mergulhou na lama, junto com os demais, e pegou no pesado, até ficar exausto. Quando o caminhão conseguiu prosseguir, estavam todos encharcados e sujos, mas a alegria tinha tomado conta da tropa. Haviam confraternizado com os civis, ensopados eles também, e haviam compartilhado com eles até uns goles de chicha, apesar das advertências do sargento Rojas. — É uma homenagem a sua excelência o senhor presidente — explicara, a quem não lhe havia perguntado nada, o peão de boiadeiro Malaquias, o qual devia estar

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tomando umas, fazia horas, junto com seu patrão, el señor doctor Segismundo, ambos cobertos pela mesma camada de lodo. — O que nivela as camadas sociais em nossa terra é esta bebida dos deuses, a chicha — filosofou don Segismundo, já visivelmente embriagado ele também, enquanto derramava um pouco de líquido no chão, para a tradicional libação à Pacha Mama, a mãe terra. — O solo produz o milho e nossas mulheres dedicam horas mastigando-o, para que as leveduras de suas bocas o façam fermentar. Tudo natural. Tudo saudável. — Aí, passam a noite inteira mexendo-o com uma escumadeira, em banho-maria e fogo brando — interrompeu Malaquias, para complementar a aula gratuita e não solicitada, aproveitando a brecha que o álcool lhe autorizava, naquele breve intervalo de tolerância socializante do patrão. Palo-de-oro não conseguiu sair de sua amargura, nem sequer naquele momento de descontração, e a bebida acídula, outrora agradável e macia, tinha agora o sabor do fel. A chuva tinha parado, já na entrada do vilarejo. Haviam enrolado e guardado a lona, para secar a roupa do corpo, aproveitando os últimos raios de sol, de uma tarde que tinham até esquecido de quão deslumbrante poderia ser. Avistaram de longe, em cada borda do trecho final da estrada, uma fileira de homens e mulheres sentados, quase imóveis, cobertos por ponchos e grandes chapéus, apesar do ar ainda úmido e abafado. Não tiveram tempo de achar estranho tudo aquilo, quando, num estrondo, o caminhão voou pelos ares como um brinquedo de criança. O motorista e o sargento Rojas ficaram lá mesmo, todos estraçalhados, junto com os

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destroços. Os soldadinhos estavam já preparados para descer da caçamba, com a mochila cheia de seus pertences e o fuzil na mão, quando foram todos despejados pelos arredores pela fúria da mina que os esperava, fazia tempo. Alguns ficaram na pista ou no meio da vegetação que costeava a carretera, contorcendo-se de dor, por terem quebrado algum osso ou por terem-se ferido na queda brutal. Num instante, os cidadãos de aspecto pacífico, sentados na entrada de Villa Tunaré, haviam-se transformado em terríveis guerreiros, armados das metralhadoras e dos fuzis que levavam escondidos debaixo dos ponchos. Omar não se machucou nem perdeu o controle. Segurou seu fuzil e atirou para o primeiro guerrilheiro que lhe veio na mira. Outros companheiros fizeram o mesmo e logo o grupo de assaltantes, que antes vinham correndo ao encontro dos militares, começou a se tornar mais ralo e a recuar, enquanto numerosos combatentes dos dois lados iam caindo, sob o impacto dos projéteis. — Avançar! Vamos acabar com a raça deles! — gritou Palo-de-oro, que virava, de repente, líder e salvador daquela meia dúzia de sobreviventes da emboscada. — Recuar! — ordenava aos rebeldes, um gigantesco loiro cabeludo, empunhando uma simples pistola automática, como se fosse um deus víking a guiar uma horda de guerreiros nórdicos. — Hasta la vuelta! — sorriu com escárnio aos inimigos, antes de desaparecer na mata. Os soldados tinham virado uns leões, que corriam ao encalço dos guerrilheiros, já embrenhados no matagal impenetrável que rodeava o povoado. Omar tinha ordenado aos companheiros remanescentes que se dispersassem, perseguindo um fugitivo cada um.

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Para si mesmo tinha escolhido o líder adversário, que se destacava facilmente, além do tamanho, pela cabeleira loira, parcialmente coberta por uma boina vermelha, enquanto os traços do rosto estavam irreconhecíveis, devido à distância e à barba inculta, que os escondia quase por inteiro. Várias vezes tentou atingi-lo com seu fuzil, mas o homenzarrão parecia um relâmpago, de tão ágil e veloz, apesar da mole, e logo perdeu-o de vista, pela mata adentro. De repente, escutou um estalo intenso e um assobio instantâneo perto de seu ouvido. Instintivamente atirou para o mesmo ponto em que lhe parecia ter escutado o disparo, que quase o apagara. Foi quando ouviu um grito sufocado. Correu naquela direção e se deparou com um homem que tentava ainda apontar um rifle contra ele, não fosse uma ferida sangrante no ombro direito. O espasmo doloroso de seu rosto de índio acompanhava o esforço, extremo e inútil, de apertar o gatilho com os dedos da mão boba. — Teu nome e tua origem?! — intimou o policial, rendendo o índio com a ponta do fuzil cravada bem no meio da testa. Sua voz saía sufocada, devido à correria recente. Mas sabia que tinha chegado a hora de sua própria desforra, embora desconhecesse ainda a identidade de seu inimigo e até os motivos daquela luta imprevista. Foi assim que o obscuro e atrapalhado Palo-de-oro, um simples cabo que fora para a reciclagem na selva como um ridículo empregado do último escalão da burocracia policial, iniciaria o curso já com o grau de sargento do corpo especializado dos Leopardos. O campesino não abriu a boca e o primeiro impulso de Omar foi de apertar o gatilho, por ódio e por despeito, mas

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logo conseguiu recuperar aquela mesma frieza que o salvara no momento do ataque. Trouxe o rebelde, como um troféu, aos chefes, que, naquele instante alcançavam o lugar do atentado e contavam mortos e feridos. No quartel o prisioneiro falou até o que não sabia. A informação mais preciosa, que as torturas conseguiram arrancar dele, foi a respeito do chefe do bando. Era conhecido pelos guerrilheiros, como el nuevo Ché, era médico, inteligente, alto, forte, barbudo e usava uma boina parecida com a do Ché Guevara, só que ele era loiro e de olhos azuis. E não era argentino, mas francês.  A promoção do novo Leopardo foi o ponto forte da cerimônia de inauguração do curso. O comandante não se cansou de exaltar os feitos do novo herói, que soubera transformar uma hecatombe certa numa fúlgida vitória. Que todas as virtudes que o curso pretendia desenvolver nos novos aspirantes, ele já tinha demonstrado em profusão. Que todos os membros da corporação deveriam se orgulhar de uma aquisição como essa... Afinal, era um novo Leopardo que havia conseguido vencer uma batalha contra o novo Ché. Foi uma rasgadura de elogios, que elevou drasticamente o nível de autoconfiança do Leopardo, permitindo-lhe vislumbrar, finalmente, aquela carreira brilhante que até então tinha permanecido nas névoas da ilusão. E ele prometeu para os companheiros e para si mesmo, que venceria, não apenas uma batalha mas a própria guerra. Enquanto isso, o índio, que tinha nome, sim — se chamava Estévan Villarroél —, ia entregando os pontos. O nome de guerra dele era el Chino, o chinês, devido aos 136


traços fortemente orientais, que a herança inca havia acentuado, principalmente em seus olhos em fenda. Tinhase notabilizado por uma legendária esperteza nas ações dentro da selva e também pela crueldade refinada que reservava às suas vítimas. A família dele havia sido dizimada no massacre de Pucaranga, cinco anos atrás, e desde então, ele tinha-se juntado aos sobreviventes dos grupos de guerrilha que haviam sido comandados pelo Ché Guevara. Foi na mesma época em que aparecera, no grupo dele, um jovem francês, que se fazia entender, nos primeiros tempos, graças a um português bem carregado, antes de adquirir o domínio integral do espanhol e até do quéchua. O nome de guerra do francês, desde o início, foi Vallegrande, devido ao lugar em que o Ché Guevara tinha morrido. Aos poucos, porém, Vallegrande adquirira a confiança total da turma, que acabou nomeando-o chefe das operações de campo e ganhou o novo apelido tirado de seu próprio ídolo e patrono. Por isso, agora era simplesmente el nuevo Ché. O nome verdadeiro do chefe ninguém sabia, como tampouco o de sua companheira Violeta. Esta última era uma garota de puro sangue índio, que mal falava qualquer coisa. Era a sombra de seu homem. Cuidava de sua alimentação, medicava suas feridas e o escutava em silêncio, olhando perenemente seu rosto, como se olha para um deus. Omar fez todos seus exercícios de sobrevivência na selva e aprendeu tudo sobre drogas e sobre guerrilha. O que antes ele tinha praticado instintivamente, agora dominava na teoria e se considerava pronto para o que desse e viesse. Foi, por isso, encarregado de monitorar uma leva de novos recrutas, depois de apenas três meses de

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aprendizagem. E o grau de tenente foi mais uma conseqüência de seu bom desempenho. Ao obter a licença de retornar por um breve período de descanso junto à família, após um ano inteiro de afastamento, o Leopardo teve mais uma agradável surpresa. Na hora da formatura, o comandante recheou novamente o discurso, fazendo referência a seu nome e, junto com mais elogios, o prêmio: tinha sido promovido a capitão, por merecimento em ações de guerra na selva.  O capitão Omar chegou à seção de entorpecentes da Guarda Nacional, em Pucaranga, precedido pela fama conquistada em Villa Tunaré. A recepção em casa tinha sido fria, como era de se esperar, e Glória tinha usado o próprio triunfo do marido para alfinetá-lo com as ironias de sempre, aprofundando ainda mais o sulco que os ia separando. Os companheiros de arma, ao contrário, demonstraram uma admiração calorosa e sincera. Ele foi bem recebido em todas as repartições, acompanhado pelo chefe Rodrigues, encontrando congratulações e elogios onde chegasse. Susy o recebeu com um sorriso amistoso, que lhe abriu o coração à esperança. Notava em seu rosto e em seus olhares, porém, a frustração e a mágoa, às duras penas disfarçadas, debaixo de sua compostura profissional. Ele já sabia que Henrique a tinha deixado. Assim, de repente. Tinha enchido uma mala com seus pertences e tinha ido morar com os pais, já fazia dois meses. Todas as tentativas de Susy para fazê-lo voltar tinham sido em vão. O Juninho, inclusive, havia chorado muito e um dia agarrou a mão da mãe e queria arrastá-la pra rua, buscar

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outro pai, pois percebia ele também o grande vazio que Henrique deixara. — Estou aqui — sorriu em seu uniforme novo o capitão, iluminado pelas insígnias do grau e pela aura do triunfador. — Gostaria de voltar a trabalhar perto de você. Mas, infelizmente, terei que ficar ainda várias vezes, e durante muito tempo, longe daqui. — Fico feliz em vê-lo de volta, principalmente por aparentar tanta satisfação e felicidade — foi sincera Suzy, desviando os olhos, ofuscados pela alegria que extravasava do olhar do Leopardo. — Eu estarei sempre aqui, sempre mais solitária e infeliz — pensou, enquanto levantava o receptor do gancho, para atender à chamada de uma estação da radiopatrulha. Omar estava magro e bronzeado e o uniforme lhe caía perfeitamente bem. Os cabelos e o bigode bem aparadinhos e a barba recém-raspada, lhe conferiam uma elegância considerável, que acentuava ainda mais o charme do herói forte e vitorioso. Suzy acabou aceitando o convite de se verem algumas vezes, para conversar apenas e tomar um chá juntos. O capitão havia obtido uma residência na vila dos oficiais e resolvera morar sozinho, enquanto pensava como se liberar do casamento com Glória. Não foi fácil, não. Mas aprendera a ser paciente e isso o ajudou, de um lado, a conquistar Suzy e, de outro, a cair fora da vida da esposa. Um dia Suzy foi até a nova casa dele e aí, sim, foi o verdadeiro triunfo do Leopardo. Conversaram bastante, cada um revelando detalhes de tudo que o outro sabia, fazia tempo. Encontraram facilmente muitos pontos em comum e muitos motivos para uma ajuda mútua. Devagar, as palavras foram se tornando insuficientes para justificar a necessidade de ficarem juntos e perto uma

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do outro. As mãos dele começaram primeiro a substituir os conceitos pelo tato. A satisfação das idéias participadas pelo parceiro facilitou a Susy a tarefa de pôr de lado a prepotência dos preceitos, deixando suas mãos e seus lábios também livres para pousar no rosto dele e sentir os frêmitos esquecidos reivindicar, na boca, o direito de voltar. Para a simplicidade do começo. Para a indefinição do não-acontecido. Para a irracionalidade da vida. Quando seus corpos torporosos se encontraram na perturbação da felicidade, era já hora de retornar aos deveres e aos compromissos. Mas o sangue revitalizara a rede dos desejos e o afã dos dias passados deixava espaço para outros desgostos.

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.5 O RETORNO

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ROBERTO já tinha decidido. Ele iria. Não importava o que Susy teria dito. Finalmente tinha descoberto por que ninguém respondia ao telefone da casa dela. Sílvia procurara ajudá-lo, ligando para alguns amigos que pudessem informar se havia mudado de número. Mas eles ou não sabiam ou não estavam em casa. Até o general, tio dela, o famoso general Vargas-Dória, foi incomodado. Respondeu, secamente, que não tinha relacionamento mais com aquela família, fazia anos. O que é que podia ter acontecido? Finalmente Sílvia lhe sugerira de telefonar à central e, após longa demora, o informaram que não havia tido troca de número, mas falta de pagamento mesmo. Fora resoluto até a casa dela. Conhecia muito bem aqueles lugares. Quantas vezes tinha percorrido o mesmo caminho, em ônibus, em táxi ou mesmo a pé. Caminhadas que o deixavam a vontade para pôr em ordem as idéias, os programas, a hierarquia de seus desejos. Lia e voltava a ler as pichações e os letreiros que levavam anos para serem substituídos; observava as raras mudanças nas construções e o desenvolvimento das árvores. O ar e a poeira sempre os mesmos. Seus lábios, nesta altura, já estavam ressecados e descamados, seu palato árido e a pele do seu rosto seca e bronzeada. Era aquele sol de sempre, sem filtros nem meiostermos. A sombra, verdadeira ausência de luz, calor e vida, um gelo só. Fora dela, brilho, cor e irradiação absoluta. A ponte sobre o rio Rocha, com o monumento do Alcarruá sempre lá, sempre gritando: — Que se rinda su abuela, carajo! E morrendo no bronze, que Roberto vira e admirara nos treze anos, que se haviam passado.

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Desta vez notara uma bandeirinha tricolor colada no peito do herói. Pareceu-lhe, à primeira vista, uma brincadeira irreverente da molecada. Mas logo refletiu que devia tratar-se do ato recente de um patriota anônimo, plebiscitária e silenciosamente aprovado pela população em geral. Lá estava a calçada colorida da ponte (as mesmas cores vivas do acimentado xadrez), o leito do rio, lotado de cascalho e de lixo, as três pistas, duas das quais agora asfaltadas. Virando à esquerda, duas quadras ainda e, finalmente, o beco gracioso em que repousava a casa dela.  A primeira vez que Roberto fora até lá, tinha saído da Escola, descendo junto com um grupo de alunos até a ponte Tupuraya, enquanto a turma ia-se reduzindo, deixando-os finalmente sozinhos, Roberto e Suzy. Só os dois. Era um bom trecho da estrada para Nacaba, que vinham percorrendo ao longo do rio, em direção à ponte do Alcarruá. Deu tempo para falar de escola, do presente, do futuro e foi aí que Roberto revelou as perplexidades que o afligiam a respeito de sua profissão e de suas dúvidas existenciais. — Por que você quis ser padre? Não sabia que ficaria só? — Claro que eu sabia. E assumi tudo de olhos abertos. Sempre achei que minha vida seria feliz daquele jeito. Sempre em atividade, sempre com os jovens, sempre disposto e amável, com os velhos, doentes, miseráveis e até com os bandidos e com todo tipo de marginal.

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No balanço do andar, várias vezes seus corpos se roçaram de leve e Roberto sentiu vibrações inéditas, que o deixaram pasmo. O cabelo dela, fino e ondulado, caía-lhe nos ombros e nas costas, numa dança ligeira e cadenciada. Usava minissaia, como a maioria das garotas ainda. Suas coxas sutis, seus seios de adolescente, seu corpo esbelto que abrigaria de uma braçada só. Ela andava se equilibrando numas sandálias irreais, que não conseguiam tirar nada da adorável aparência de fragilidade, apesar do tamanho e da firmeza da sola. A voz de menina meiga penetrava no professor e o enfaixava todo, umectando sua arganta e embalando seus passos. — Eu já catequizei presos perigosos e até fiz questão de abraçar leprosos. Me submeti a regimes de trabalho de dezesseis horas diárias e sempre demonstrei uma vitalidade e uma coragem que surpreenderam a mim mesmo. Me mantive rigorosamente longe de qualquer envolvimento emocional, principalmente se tivesse alguma conotação sexual. Isso mesmo. Nem eu acreditaria que alguém fosse capaz disso, se eu mesmo não o tivesse experimentado. Suzy o olhava admirada e comovida, enquanto continuava sua caminhada, ao lado de seu jovem interlocutor, agora revestido de uma aura, que o tornava ainda mais lindo. Depois de uma longa pausa, Roberto fixou-a nos olhos e conseguiu falar, com lábios trêmulos. — Te juro que, se você topasse, eu era capaz de deixar tudo pra trás e me casar com você. Uma expressão de terror calado se apoderou do rosto da garota, que pouco antes irradiava felicidade,

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imobilizando Roberto, como se fosse outro Alcarruá, suspenso na calçada da ponte, a olhar o cascalho amorfo. Dois dias depois estavam voltando de novo juntos da Escola e ela esperou até chegarem à mesma ponte, para enfim romper um interminável silêncio. Olhou-o bem de frente, com a mesma expressão aturdida de dois dias antes. Ainda séria, suspirou longamente e enfim sorriu: — Fiquei pensando no que você me falou. Me enterrei dois dias debaixo de um cobertor. Mas agora estou decidida. Quero me casar com você. Os violinos tocaram e o sol do meio dia ficou rodopiando nos olhos dele ofuscados. Os cabelos da menina esvoaçavam no ar, enquanto decolava nos braços firmes do homem grande, no vôo improviso de um planador. Na verdade, Roberto não conseguira sair do lugar. Seus braços ficaram grudados aos livros da aula recente e só os olhos falaram: — Amo você... E o que vão dizer seus pais? Tenho medo. — Eu também. Mas sei que eles vão acabar aceitando. — E Henrique? — Eu já falei pra ele, que entre nós terminou. Ele só vai continuar amigo do meu irmão e meu também. — Vamos em frente, então. Marcaram um primeiro encontro com a mãe dela, com a qual Suzy tinha confidenciado, recebendo pronta aceitação. Quando chegaram, Roberto estava no portão de entrada do restaurante, com um ridículo buquê nas mãos. Após as apresentações, ele já tinha perdido a ansiedade, ao subir a velha escadaria até a varanda colonial. O ambiente era

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antigo, mas aconchegante. Sentaram-se a uma mesa, ele de costas para o pátio e as duas na frente. — Suzy me falou que gostaria de se casar com o senhor. — Dona Ivone era bem objetiva e encarava o problema sem muitos preâmbulos. Deu mais uma olhada complacente no buquê, que repousava finalmente na cadeira ao lado, após a longa sessão de tortura nas mãos de Roberto, e sorriu com expressão de uma futura sogra: — Vou falar com meu esposo. Artêmio não vai fazer muitas objeções, lhe garanto. Roberto regosijou até nos porões de seu ego. Uma felicidade profunda forrava sua imaginação, que conseguia, de repente, a façanha de projetar um futuro paradoxalmente claro e luminoso na tela de um presente nebuloso e problemático. Dona Ivone parecia ter apenas apertado um botão, que desencadeara uma cascata de ponderações, julgamentos, opiniões, lembranças, lembretes, impressões, palpites, receitas de bolos, receitas de pratos nacionais, relato de opiniões, julgamentos e ponderações alheias. Tudo, enquanto os pombinhos consumiam uma ceia frugal, imersa nos olhares recíprocos, já benzidos pelos afáveis devaneios da matriarca. Os dias seguintes foram de uma felicidade indescritível.  Roberto lembrava novamente o primeiro encontro na casa paroquial. Lembrou a peña no Teatro Villachá, onde estavam realizando um show folclórico. Suzy levara junto o irmão menor, Félix, que, com seus doze anos, se tornaria o maior fã e aliado daquele namoro, embora ele mesmo o achasse bastante esquisito.

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— Eu gosto da maneira como Beto anda — confidenciara a irmã, logo depois do show. — Ele parece tão seguro de si. Ele tinha visto e admirado como um herói Beto brigando pela posse das cadeiras, que retardatários reclamavam quase no comecinho do show. — Está começando a ganhar pontos, neh, safadinho. — Suzy festejava cada sinal de agrado por arte de sua família, diante da nova realidade que vinha acontecendo. — O próprio Evaristo, meu irmão maior, que você achava ríspido e que lhe punha medo, fala toda ora de você: Ele é um cara bom, ele diz. A minha mãe continua sempre mais entusiasta e acha que tive sorte ao encontrar você. As conversas pelo telefone iam longe e Beto se desmanchava todo, ao perceber que o mesmo amor que ele sentia reverberava na personalidade de sua jovem amada, avultando-se, rapidamente, naquele corpo que permanecia miúdo, mas sempre mais adorável. Uma tarde, foram assistir juntos à sessão de tanda do filme italiano, legendado, Alfredo, Alfredo, com Dustin Hoffmann no papel do marido sufocado pela mulher linda, mas neurótica, o qual se reencontra com a felicidade, graças a uma nova união, desta vez informal e marcada pelo culto à liberdade e a um respeito sem limites. Ambos soltaram gargalhadas e suspiraram juntinhos, de mãos dadas, chegando até a se beijarem, no escurinho do cinema Palladium. De volta pra casa, ele afagou-a delicadamente, várias vezes, enquanto com mão firme segurava o volante do land-rover, e acabaram ficando bastante tempo sozinhos na sala de estar, até a volta dos pais. Foi naquela tarde que Roberto aprendeu jogos inéditos, os quais corresponderiam, para sua experiência amorosa,

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àquilo que a descoberta de um novo planeta constituiria para um cientista ou uma intensa experiência mística para um ermitão. Sentiu as ondas do prazer invadir a pele inteira de seu corpo, a partir do contato recíproco e do leve e lento roçar das polpas dos dedos, ou a partir da boca, cujos lábios carnudos, um por vez, ela se deliciava em sugar longamente, enquanto as mãos dos dois viajavam pelo corpo do parceiro, numa exploração fantástica de planícies e de relevos macios, nunca antes imaginados. Não precisava de mais nada. 

E Roberto começou a tomar as providências oportunas, para desligar-se de seus compromissos religiosos. Preencheu formulários, conversou com superiores imediatos e até com o cardeal primaz, durante uma reunião da conferência nacional de bispos, em Surquero. — Quando encontra a mulher fatal, não adianta tentar dissuadir um homem de Deus — sentenciou o cardeal, após o interrogatório de praxe. E ele mesmo não achou muita falta de lógica quando Roberto respondeu rotundamente sim à pergunta do questionário: "Você acha que teve vocação?". Suzy o acompanhara até o aeroporto, quando viajou de Fairchild, até Surquero e foi aguardá-lo à sua volta. O encorajava a proceder com calma e determinação, em cada passo, sem faltar a qualquer responsabilidade já assumida com o povo, que continuava a procurar o apoio do padrecito. Os dias amanheciam luminosos e as agruras do processo de exclaustração dissipavam-se no contato

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mágico com aquele ser maravilhoso, que passara a guiar suas emoções e suas decisões. A festa, todavia, durou pouco, como todas as coisas boas da vida. Começara, em troca, um verdadeiro, prolongado martírio. A coisa desandou mesmo, por ocasião do baile de encerramento do semestre. Suzy tinha participado do concurso de beleza organizado pelos alunos do último ano e, entre os jurados, estava Roberto, o qual, naturalmente, votou nela. Ninguém, na escola, desconfiava, minimamente sequer, da relação entre o dois, pois o jovem professor era muito popular e tratava a todos com grande empatia. Ele conseguia atrair a atenção dos alunos mais desinteressados, para os assuntos mais áridos de suas aulas, mediante piadinhas inesperadas, como naquele dia, após uma excursão, em que ele tinha dado uma de fotógrafo: — Vamos prestar atenção, gente. Aos meninos que se comportarem, vou mostrar as fotos das meninas. E às meninas... — hesitou um pouco, antes de soltar a idéia que lhe viera a calhar, mas que considerava ousada demais. Afinal, não agüentou e soltou: — às meninas, vou mostrar a minha foto! Ele tinha carisma e adorava demonstrar amizade e interesse pelos problemas de cada um, sendo retribuído por uma admiração e confiança a toda prova. Um dia, uma aluna conseguiu, por um instante, fazerlhe perder o brio, ao interrompê-lo com uma pergunta, de ar inocente, que, aos seus ouvidos, soou mais como uma inquirição seguida de velada acusação e condenação, sem direito a recursos. — É verdade que para ser padre, precisa ser necessariamente homossexual?

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A classe inteira ficou, durante intermináveis instantes, pendurada na sensação desagradável do impasse entre a reprovação sumária da intervenção inoportuna da colega e a vontade de desabar numa boa gargalhada, ou entre o constrangimento e a curiosidade pela resposta. E o cerne da situação era, mais uma vez, o rosto sereno do professor, pela primeira vez aparentemente perturbado por aquele enigma extemporâneo. Mas logo o insight improviso coruscou nos seus olhos já entregues, desanuviando os traços tensos, no sorriso cativante de sempre. — Eu acho que seja suficiente ser monossexual.  Suzy quis que ele fosse seu par no baile. Ele a acompanharia na hora da coroação e dançaria a valsa com ela. Ocorre, porém, que Henrique havia insistido tanto para ir também ao baile, que acabou se convencendo de ter sido mesmo convidado por ela. E foi. Antes que começasse a cerimônia, chamou Suzy pra sentar a uma mesa e não levantaram mais até a orquestra iniciar as seleções. Quando passou na sua frente, Roberto leu nos olhos de Suzy que tudo havia mudado. Observou, ainda com muita satisfação, a silhueta da menina descendo graciosamente pela escadaria da passarela montada à beira da piscina. Ela vestia o longo de renda branca que ela mesma tinha feito com crochê e levava uma rosa vermelha no decote. O príncipe encantado aplaudiu, com os outros, o sucesso que deveria ser só dele. Dançou silenciosamente com uma Suzy totalmente desconhecida, a qual deixava para o dia seguinte a resposta às perguntas, que os olhares

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de Roberto lançavam. Era o início de uma luta tão inútil, quanto impossível era o objetivo traçado, da reconquista. Foi assim que a própria Susy resolveu chamar Roberto para conversar e lhe pediu um tempo, pois achava que ainda amava Henrique. Que não era por nada, mas ela pretendia cuidar de seus estudos e planejar o futuro, sem nenhuma afobação. Que era bom se Roberto voltasse para a Itália, arrumasse um emprego e começasse a nova vida perto da mãe dele, que já devia ter sofrido o bastante, com suas andanças pelo mundo afora. Roberto enlouqueceu de dor, chorou, suplicou, falou que não iria embora e que podia muito bem ficar tudo como estava antes. Afinal, ele tinha sido sempre um bom padre e o povo precisava dele. Será que, depois de tudo que passou, você ia se sentir bem, num papel que conflitaria com suas aspirações pessoais? E seu sonho de ser pai? — Encontrarei uma solução. Por enquanto, me sinto como um elefante dentro de um ônibus. Faço estragos, por onde me vire. — Não é assim — amenizou a garota. — Eu não estou decidida. Isso é tudo. Quem sabe um dia não possa resolver a minha vida, com mais calma e determinação? — Claro, você tem o direito — resignou-se, enfim, Roberto. — Irei embora, mas pode ter certeza de que te amarei sempre. Não procurarei outras mulheres, mesmo sabendo que isso a deixaria mais à vontade, não se sentindo mais responsável por meu destino. Acho que aprendi a amar de verdade e, portanto, exclusiva e perenemente. É como se já tivesse me casado com você, entende? Se, após este período de afastamento, der conta de meus sentidos e do meu corpo e de minha vida, estarei

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preparado para acompanhar você a vida inteira. E se não quiser mais ser a minha esposa, estarei talvez, preparado para retomar, em plena maturidade, à minha vida de serviço e de amor, como padre. E poderia, então, dizer às pessoas, com toda sinceridade: "Não tenho mais uma esposa e não cheguei a ter a filha que eu desejei, mas sou um verdadeiro pai, pois, de minhas entranhas estéreis, brotou um rio de amor, capaz de infundir a confiança na vida e a fé e a paz, em todos aqueles, que, imersos em sua própria humanidade, estiverem dispostos a se superar e sublimar". Sei, de outro lado, que uma eventual escolha de outra garota para casar comigo não eliminaria seu hamlético dilema. Pois acho que permaneceria com o remorso de terme posto na ocasião de errar minha própria escolha, uma vez que nunca teria a certeza absoluta de que eu seria feliz com outra, ou, como eu espero, ficaria o arrependimento crucial por ter perdido o homem que poderia enchê-la de felicidade — pelo que ele ia-se vangloriando de saber fazer. Suzy, quero que se convença de que não sou apenas um coágulo de desejos obscenos, nem apenas um pobre homem solitário, em busca de uma companhia qualquer. Sou um homem de trinta anos, o qual, após uma prolongada experiência de serviço e de amor em prol de crianças e adultos, jovens homens e mulheres e velhos e doentes e presos e leprosos e padres e ateus, reage, soberanamente livre, a uma violenta crise afetiva, escolhendo o casamento como a única alternativa digna de ser comparada ao magnífico celibato vivenciado até hoje. E tudo isso porque encontrou uma garotinha, que sua intuição lhe mostra capaz de sintetizar todos seus valores

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mais elevados, mesmo se tudo, ao redor, se lhe perspectiva opaco e ingrato. É verdade que esse homem apresenta uma personalidade com traços até desconcertantes. Ele é otimista e brincalhão, mas, às vezes, é sombrio e chorão. Parece forte e invencível, mas revela, freqüentemente, fraquezas e indecisões e timidez e covardia. É inteligente e intuitivo, mas há quando parece não penetrar o sentido da realidade ou não consegue dialogar com as pessoas. É sentimental e romântico e doce e comunicativo e paciente, mas explode facilmente em manifestações de uma sensualidade desesperada ou se fecha em um mutismo desagradável ou dá um show de impaciência impressionante. Parece generoso e altruísta, mas é capaz de manifestar um egoísmo preocupante. Se impõe, enfim, com uma personalidade original e digna, pelo menos, de atenção ou, mais ainda, de aceitação ou rejeição. Não é um brutamontes obtuso e escravo inveterado de paixões e de instintos, à procura de pessoas que satisfaçam seus desvios ou que se deixem oprimir por seu fascínio maléfico. É um fundamentalmente bom, que pede à vida o prêmio de podê-la dirigir por um plano criado por ele mesmo, sem deixar-se incluir nos esquemas impostos pelas circunstâncias. É um coerente, apesar das contradições internas de sua personalidade, seguindo uma linha substancialmente reta — o princípio da liberdade e do amor aprendido pelo Evangelho — apesar dos aparentes ou reais desvios ocasionais, nem sempre deliberadamente provocados. Você vai ter todo o tempo do mundo, para poder superar os temores, que esse homem possa ter-lhe provocado e tenho certeza de que logo vai ser capaz de valorizá-lo e de querê-lo definitivamente .

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Suzy foi até o aeroporto, mais uma vez, para despedirse, quiçá para sempre, daquele homem grande, que amara com a paixão de uma amante e com o carinho de uma filha e de uma mãe, ao mesmo tempo.  Assim, Roberto foi embora mesmo. No avião, permaneceu imóvel em seu assento, petrificado naquela agonia de desterrado. Gritou seu amor lancinante para uma Susy sempre mais longínqua, num protesto silencioso, que o rastro do boeing levava logo pro espaço, junto com o zunido persistente dos reatores. Aproveitou a escala em São Paulo, para visitar Toninho Neves, um velho conhecido, que morava em Lins, antes de prosseguir para a Itália. Mas acabou ficando no Brasil. Quando conseguiu se assentar no quarto de hóspedes do amigo, Roberto iniciou a primeira das inúmeras cartas quilométricas, que entrelaçaria com sua pequena amante, dona e prisioneira daquela devastadora ambivalência afetiva. Gravou uma fita com poemas, canções e tudo aquilo que não conseguira dizer-lhe durante seu breve e tempestuoso namoro. Juntou o romance de Ignázio Silone, Pane e Vino, que encontrara em espanhol, na banca de revistas do aeroporto, e enviou tudo num pacote só. Daí a quinze dias, chegou a resposta de Suzy, que o afogou em uma onda de felicidade incontrolável. A leu mil vezes, beijou o papel e chorou como uma criança. Só pensava e vivia por ela. 

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"Indescritível e doce Beto, tive uma grande variedade de reações (surpresa, tristeza, esperança, raiva, alegria, gargalhadas, ternura) ao ler sua carta, que acabo de receber hoje e à qual respondo imediatamente. Já passou o nervosismo provocado pelo meu exame de Literatura Americana — Bendita Literatura! Você me dizia sempre. — Não me dei tão bem como esperava, apesar de ter estudado muito. O fato é que não estava em condições psicológicas para prestar exames. Enquanto tentava ordenar minhas idéias para plasmá-las ao papel, pensava na minha vida atual e no meu futuro. A tudo isso me incitava a chuva que golpeava a janela e o frio que se sentia até na classe, me forçava a me concentrar sobre a folha de papel à minha frente e nas sete perguntas que me deixavam desesperada de tão compridas e até absurdas. Beto, não me faça sofrer, dizendo-me que vai enlouquecer ou olhar pra morte como único caminho. Quero que você seja feliz e por isso quero que tenha otimismo para começar essa nova vida longe de mim. Você deve trabalhar e estudar com o maior entusiasmo, e também se distrair muito, para jogar fora essa solidão, que hoje quer absorvê-lo a qualquer custo. Quando o tempo tiver apagado muitas coisas que hoje doem e nos encontrarmos em paz e, sobretudo, permanecer vivo o amor que existe, você poderá voltar a me fazer a pergunta: "Suzy, quer se casar comigo?" Ou talvez tenha apenas que trocar o nome, se não for mais eu a escolhida. Sinceramente, devo admitir que sentiria muito se, daqui a algum tempo, la donna magrolina e piccola que ficou em Pucaranga, visse eclipsada sua beleza — não excessiva, mas suficiente para atrair o último conquistador — pela das lindas garotas brasileiras e fosse relegada a um

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segundo ou terceiro plano. A única coisa que lhe peço é que quando sair com uma garota, por mais bonita que seja, não se deixe levar por seus impulsos. Lembre-se que uma filhinha precisa que seus pais se queiram muito e, com certeza, não gostaria de ser o produto de uma noite de loucura e esquecimento. Se algum dia fizer uma escolha, onde eu não seja nada mais do que uma sombra longínqua, obscura e algo dolorosa do passado, você terá que fazê-la impulsionado pelo amor, um amor incomensurável, como você mesmo chamou o que sentia por mim, capaz de estender-se até o final da vida. Não seja tão sexual, Beto. O sexo sem amor não tem sentido. Me prometa que vai levar em conta isso tudo. Gostaria muito que você estudasse Psicologia, pois tem muita base para tanto e, com certeza, em pouco tempo poderia se formar. Però oggi sto vivendo io questa storia, e con un'intensità disperata. Embora, na última hora, você tenha-me estendido a mão, pra não morrer de desespero... — você me escreve. Não é só você que viveu tudo isso com grande intensidade. Eu também vivi assim, desde o primeiro momento. O que não aceito é me dizer que, no último momento, tenha estendido a mão: isso se faz por compaixão e se eu o chamei, foi porque senti que o perdia e que o queria. Isso deve ficar sempre bem claro. De acordo? Parece-me que, em seu julgamento a respeito de Henrique, você se deixou levar pelo rancor. Ele se comportou como um homem apaixonado, que não se resignava a perder o que, já fazia quatro anos, tinha-se acostumado a considerar como dele. Não acredito que os passos que ele deu sejam produto de cálculo frio e astuto. De qualquer maneira, ele tratou de manter-me a seu lado.

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Não deve ser injusto, Beto. Ponha-se em seu lugar. O que teria feito você, se a pessoa que mais amava, à qual você tinha entregado a sua vida e os seus sonhos de adolescente, que quer se tornar um homem maduro, um dia, quando menos espera, diz que não lhe quer mais? Suponho que deve ser desesperador. Ele chorou, invadiu a casa, suplicou, xingou, ameaçou, e não apenas tentou seduzir. É verdade que te despreza, mas esse desprezo é devido somente ao fato de você ser o homem que desfez seu castelo de sonhos, fruto de trabalho e amor e tempo. Não o justifico, apenas o compreendo. Agora ele foi embora para estudar na capital, junto com meu irmão Evaristo. Mas tenha certeza que não me considera perdida. Deixemos, todavia, que o tempo se encarregue de resolver muitas coisas. Faz vários dias que terminei de ler O Chefão, de Mário Puzo, que você me deixou. Gostei mais do que do filme, e principalmente me fez gostar mais da Sicília, com sua máfia, com suas mulheres lindas, meigas, ingênuas e, sobretudo, puras. A simplicidade e o amor pela família são coisas que me agradaram ao máximo. A Romana, de Alberto Morávia, por seu estilo e forma de descrição, me impressionou sobremaneira. Em certo sentido, a protagonista Adriana ficou em mim para sempre e formou parte de meus inúmeros pensamentos sobre a felicidade. Não sei por quê — talvez seja fatalismo — mas, como ela, tenho uma profunda certeza de que nunca mais vou conseguir ser feliz. A Suzy que fica para trás nunca voltará a ser a mesma. Não porque não queira, mas porque não é possível. Creio ter perdido minha fé no futuro, em uma vida cheia de alegrias. Tudo se converteu, dentro de mim, em uma imensa sombra. Às vezes penso que só um filho — ou mesmo uma filhinha, como sempre você

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desejou ter — poderia me tirar deste mundo de solidão. Mas ainda falta muita coisa pra isso. Ainda não consegui escutar a fita gravada, que você me enviou. Será difícil, de qualquer forma, que eu grave uma fita para enviá-la a você, pois não tenho gravador, mas considero isso uma forma de comunicação muito melhor que a carta. Assim mesmo, lhe escreverei sempre, enquanto você faça questão de receber minhas notícias. Gostaria que me enviasse muitas fotos suas, se possível em cores. Eu também vou enviar algumas pra você. Não coma muito, mas alimente-se bem. Se comprar alguma roupa, compre casacos e camisetas bem aderentes ao corpo. As calças bem compridas e largas embaixo. E principalmente estude muito e não perca tempo com coisas sem sentido. Nos momentos em que esteja livre e sem preocupações, fique pensando em mim. E não se esqueça nunca de mim, mesmo se um dia deixar de me querer. Esqueci de dizer que sinto muito sua falta. E penso em você em cada momento. Escreva logo. Não me esqueça. Quero-lhe muito bem."  E alguns dias depois, chegava mais uma carta: "Acabo de voltar do cinema, o filme era: Sacco e Vanzetti. Ao sair do cinema, como a maioria das pessoas, fiquei com o sabor amargo dessa injustiça. Tinha vontade de gritar como Vanzetti, que a lei é uma verdadeira comédia, onde os poderosos, com uma palavra apenas, conseguem sempre os melhores papéis para representá-la, mesmo sem precisar saber nada sobre teatro. Parece inconcebível que nunca se possa sair desse marco

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repressivo que existiu desde sempre e que talvez nunca chegue a desaparecer. Ainda não comecei a ler o livro de Ignázio Silone, que você me enviou. Na próxima carta, farei um breve comentário, onde você possa apreciar meus poucos dotes de crítica literária. Beto, penso em você mil vezes ao dia. Será que você também pensa em mim, pelo menos novecentos e noventa e nove vezes? Se não, vou pensar que me está esquecendo. Não se esqueça de me contar todas as coisas que você faz e as coisas que pensa também. Todas me interessam muito, as pequeninas e as grandes. Quantas garotas conheceu aí? São lindas? Que lhe dizem? São doces e inteligentes que nem eu? Tenho certeza que não. Cuide-se muito. E me escreva logo. E principalmente lembre-se sempre de mim. Sempre. Ti bacio, ti bacio com tutto il mio affetto. Quero-lhe muito."  Como poderia se esquecer? Tinha-se tornado uma idéia fixa. Roberto conseguia a duras penas, encontrar alguma motivação para procurar um emprego, graças à compreensão do amigo brasileiro. Toninho Neves era um pedreiro que tinha conseguido construir sua própria casa e que liderava uma comunidade de base católica. Pagava seu dízimo pontualmente, para a paróquia, e estava presente em todas as reuniões domiciliares dos grupos de reza e de debates. Tinha conhecido Roberto, durante um congresso em Pucaranga, onde as várias comunidades da América Latina haviam trocado suas experiências e projetado um futuro mais pacífico para seus respectivos países, quase todos 160


submetidos a férreos regimes militares e em estado de pobreza generalizada. Roberto começou, portanto, a participar desses grupos e a se compenetrar de toda a problemática brasileira, em muitas coisas semelhantes à que havia conhecido nos países de língua espanhola, com a tarefa adicional de aprender a se expressar em um novo idioma. Entretanto, se tornava útil, reproduzindo nas paredes do salão comunitário, desenhos bíblicos e frases encomendadas pelo próprio grupo. Aos poucos o clima absorvente e amistoso daquelas pessoas conseguiu lenir um pouco de sua dor de cotovelo, sem, todavia, retirar nada da determinação em esperar que as coisas melhorassem em seu favor, no relacionamento com Susy. Continuava, por isso, escrevendo suas cartas de amor, que varavam as noites da primavera brasileira, moles de tanto escutar as cigarras cantando e alumbradas por luares impiedosos, que faziam só era aguçar sua saudade como a ponta de um punhal. E as respostas de Susy chegavam pontuais, trazendo tudo aquilo que Roberto gostaria de escutar de sua viva voz.  "Inesquecível, doce e incomparável Beto, depois de mil tentativas, finalmente consegui escutar a fita-cassete, que você me enviou. Quando terminei, no meio de uma grande dor, senti também alegria e felicidade, ao me descobrir dona de um amor tão infinito como o seu. Gostaria de tê-lo perto de mim para podê-lo abraçar e lhe pedir mil vezes desculpas por todo o mal que estou lhe ocasionando. Lembrei o seu olhar, o último, antes de

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embarcar pro Brasil, quando seus olhos, sem precisar de palavras, me gritavam que você me amava de verdade. Doce Beto, lembro-o sempre e o tempo, ao invés de separá-lo de mim, como também a distância, une-o sempre mais. Você vai formando, a cada dia que passa, um pedacinho a mais de minha vida. Uma vez, eu disse, ou foi você mesmo, talvez, que falou: Carinho não se agradece. Eu considerava uma verdade absoluta essa frase, que se tornou famosa com a Love Story de Erich Segall, mas hoje não acredito mais nela. Pois uma pessoa é livre de amar ou não. E se lhe dá seu amor, está depositando em você o melhor que possui em si mesma, o melhor de seu ser. Está-lhe entregando a vida e o destino dela. E só uma palavra, pequena e antiga, pode ser a resposta adequada a essa atitude. Você a conhece? Vou dizê-la pra você: obrigada. Obrigada, por ver em mim a sua esposa sonhada. Obrigada por considerar-me digna de ser chamada mãe de sua filha. Obrigada, por querer-me, apesar de tudo. Obrigada, obrigada, obrigada, por todo este sonho, que reluta ainda em se tornar realidade. Hoje, quando subi no ônibus, vi uma criancinha linda e relacionei aquele pequerrucho com o seu desejo ansiado de ser pai e senti muito dentro de mim, eu também, o desejo de ter um filho, ou uma filha sua. Sua e minha. Nossa. Esse pensamento foi interrompido pela realidade. O futuro, o presente, Henrique, que também quero, o estudo e o medo maior: de não ser feliz ao seu lado. Estou convencida que voltaremos a nos encontrar, com o tempo e que naquele dia, tomaremos uma grande decisão, que vai nos unir os talvez nos separar para sempre. Sonho?

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Me parece que na carta anterior, me esqueci de lhe dizer que a barba fica muito bem em você. Não gostei da foto, que me enviou junto com a fita, não somente porque estava mal tirada, como também pela expressão de tristeza que havia em seus olhos. Posso pedir-te algo? Sorria, sorria sempre. Mas, isso sim, quando estiver feliz, lembre-se de mim. As canções que você gravou são lindas. Aquela que mais gostei foi Ritmo del doctorcito. As composições, o poema de Neruda e as palavras de apresentação para o célebre auditório composto por uma única pessoa, a emocionaram mais do que se fosse composta para dez mil espectadores. Aqui em casa, todos se lembram de você, pelo menos dez vezes ao dia. Eu, 10.000.000.000.000.000.000.000.000 de vezes. Mamãe, em particular, fala sempre de você, que pra ela foi mais do que um filho. Gostaria que lhe escrevesse, quando tiver um tempinho. Beto, espero que agora esteja mais tranqüilo, com vontade de ir em frente, sempre. Sei que não é fácil, mas o importante é começar e tenho certeza que você já começou, não apenas por mim, mas principalmente por você mesmo. Já terminei de ler Pane e vino, o romance de Silone, que você me enviou. O trecho que me deu muito pra pensar, é o seguinte: Vive-se transitoriamente, pensando que a vida verdadeira vai começar um dia. Um dia! Nos preparamos para morrer, com o sentimento de não ter vivido. Às vezes essa idéia me obsessiona: vive-se uma só vez e essa única vez vive-se sempre no provisório, à espera do dia em que deverá começar a vida verdadeira. Assim corre o tempo. Ninguém vive no presente. Ninguém esta em

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condições de dizer: "A partir de então, a partir daquela determinada ocasião, começou a minha vida..." (Palavras de Nunzio Sacca a Pietro Spina). O final trágico da obra provoca um verdadeiro impacto, pois é um acontecimento inesperado. Nada mais cruel do que uma morte como a de Cristina. A personagem que, pra mim, é quase tão importante como Pietro Spina, é o padre Benedetto. Sua vida, suas palavras retas como seus pensamentos e princípios. É o homem que não duvida de sua fé e sabe transmiti-la aos outros. É uma magnífica caracterização de um autêntico sacerdote. Sua morte encerra com chave de ouro a história de sua vida. O protagonista revolucionário, com suas perplexidades quanto à causa que persegue, — as quais são logo dissipadas para começar com maior força e vontade, — estão esboçadas com um matiz muito humano e realista. A causa perseguida é a causa de todos os tempos: a liberdade. Ontem li o livro de William Blatty, O Exorcista. Se tiver um tempo, gostaria que você também desse uma lida e me enviasse seus comentários. Fiquei realmente impressionada pelo tema deveras escabroso. O livro Pedro Páramo também é muito lindo e sumamente original. Os trechos que envio, são os monólogos do protagonista, que evoca Susana, sua esposa falecida. É uma história onde todas as personagens, inclusive o protagonista, morreram, mas seus espíritos continuam perambulando pela terra. São mortos que pensam, sentem, sofrem e choram suas mágoas passadas. A lembrança da esposa amada é aquilo que obsessiona mais Pedro Páramo.

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Beto, há momentos em que seria capaz de deixar tudo pra trás e de ir com você bem longe, aonde só você seja meu mundo, meu futuro e meus sonhos. Queria que nos casássemos e tivéssemos muitas crianças, principalmente meninas. Queria estar junto de você e amá-lo até ficar sem fôlego, mas sempre com o desejo de querê-lo mais e mais, a cada dia um pouquinho mais. Só que, quando vejo Henrique, quando percebo a necessidade que ele tem de mim, então odeio você e queria não tê-lo conhecido nunca. Por que me acontece isso? Se pode amar e odiar ao mesmo tempo? Amo-o! Amo-o e também o odeio. Penso sempre em você, na doçura que você possui, na sua ternura de criança, em seus olhos, em sua forma de amar e naquela tarde, após o concurso de beleza. — Que beleza?! — E na outra tarde, que passei em lágrimas, pensando no Henrique, mas juntinho de você... Você lembra? Me escreva logo. Me conte como está de saúde. Quais são as últimas notícias. Sente falta de mim? Conheceu muitas garotas? São lindas? Você gosta delas? Acha que pode chegar a amar alguma delas, ao ponto de querer torná-la sua esposa? O que é que faz o dia inteiro? Sai com alguém? O procura alguma garota? Conte-me tudo, tudo, tudo, tudo, tudo. TUDO! TUTTO! Sabe, Henrique me deixará só quando não me considerar mais aquela que ele quer. Mas, quando isso vai acontecer? Cuide-se muito. Não coma muito. Deixe crescer a barba e me envie muitas fotos. Revelou aquelas que tirou aqui? Escreva logo." 

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Do grupo do Toninho Neves fazia parte Luís, um médico homeopata, que clinicava no consultório paroquial e no único hospital da cidade, assistido sempre pela esposa, a enfermeira Edna. Moravam lá, na periferia da cidade, e estavam muito bem integrados com os moradores, a maior parte bóia-frias ou operários do frigorífico. O leve sotaque estrangeiro e os traços claramente europeus dos dois não chegavam a despertar muita curiosidade naquela gente humilde, pois, entre os habitantes do lugar, havia muitos tipos claros e até loiros e de olhos azuis, como o médico, de ascendência sulina ou diretamente italiana. Os dois tinham chegado alguns anos antes e haviam-se entrosado devagar, com o pessoal. Mas poucas pessoas saberiam responder sobre o passado deles. De onde vinham; o que faziam antes de chegar ali; onde moravam os pais deles... Mesmo porque, como eles, vinham chegando tantas pessoas, quase todos os dias, naquele bairros de pobres e todo mundo estava tão preocupado com seus próprios problemas, que ninguém se interessava sequer em fazer tal tipo de perguntas. Roberto notou imediatamente a origem francesa dos dois, não apenas pelo sotaque, mas principalmente por inúmeras pequenas pistas deixadas, sem querer, em suas intervenções, durante os encontros de espiritualidade ou até nas simples conversas à toa, ao entardecer, no bolicho da Dona Joana. Já tinha entrado em amizade com eles e logo começou a freqüentar sua residência, onde as conversas prolongadas iam se transformando em verdadeiros saraus, com audições de velhos discos de óperas ou de canções antigas. Edna, uma noite, recitou até vários poemas em francês, acompanhada por um fundo musical de Luís tocando um

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acordeão meio asmático, que tirara da parede, onde parecia ter sido pendurado só de enfeite. Outras pessoas da comunidade começaram a se reunir por puro deleite, cada um recitando poemas ou lendo trechos de obras literárias, ou tocando ou ouvindo músicas. Numa noite daquelas, Edna foi interrompida, enquanto recitava Ronsard, por um garoto das redondezas, que adentrou na casa, sem que o pessoal, silencioso e atento à poesia, notasse sua presença sequer, e foi direto oferecer um buquê à jovem enfermeira, que acabava de declamar o soneto. Não esperou qualquer sinal de agradecimento e saiu, tão rápido e esquivo, como tinha aparecido. A locutora improvisada sorriu, surpresa e intrigada, ao mesmo tempo, enquanto suas mãos retiravam, automaticamente, e abriam o bilhete que acompanhava o inesperado presente. Era um cartão musical, por sinal: uma verdadeira novidade. Num instante, aquele sorriso sumiu e uma palidez mortal tomou conta de seu rosto, antes radiante e satisfeito, enquanto os lábios acompanhavam, num sopro, o ritmo que a musiquinha alfinetava a cada sílaba do samba: Não adianta fugir porque o mundo é pequeno... Ramsés. Seus braços amoleceram e o buquê foi parar no chão. Foi um estouro imediato, com uma labareda, que levou junto, até o teto, parte da pele e da roupa da jovem dama, arrebatada para trás, num grito de pavor. Os demais foram atingidos em vários graus, enquanto Luís e Roberto, mais

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afastados, assistiam inertes e aterrorizados ao espetáculo de um só instante. Edna foi levada ao hospital da cidade, antes mesmo que alguém procurasse juntar perguntas e explicações. Foi assim que a enfermeira morreu, a seguir, em seu próprio hospital, com a mão encarquilhada acariciando o rosto de Luís, enlouquecido de dor e trocando com ele olhares sem visão e gritos sem garganta. O significado do acontecido não veio das investigações policiais, mas do próprio Luís. Ele, por sinal, foi lacônico ao depor, diante do delegado, permitindo que vingasse a versão de um simples acidente com uma bambina de papel. Passados alguns dias, todavia, o médico se abriu com Roberto, contando toda uma história romanesca, que envolvia os últimos quinze anos de suas vidas, e revelando até que seu verdadeiro nome era François De la Roche e o da esposa recém-falecida, Lucienne Blanchard. Roberto aconselhou o amigo a continuar sua luta contra a máfia, fazendo a única coisa que ainda encontrava a seu alcance: fugir. Ele mesmo o teria acompanhado nessa façanha, pois já se considerava parte daquela incrível história também. Enquanto planejavam a nova fuga, Roberto recebia mais uma resposta de sua amada, totalmente desinformada do acontecido.  "Beto, quando recebo uma carta de você, sinto que está junto de mim, imagino e lembro a sua forma de falar e a meiguice que põe em suas palavras. Acho que nunca lhe falei isso: você é muito puro e muito meigo (um pouco safado, mas tão pouco, que quase não dá pra perceber). Nos veremos na ocasião de seu aniversário? Temos que festejar os 29 anos (após os trinta vou contar ao avesso, como você gosta) do irresistível conquistador italiano, ídolo das lindas e numerosas garotas brasileiras, vestidas 168


de elegantíssimos trajes, mas que não conseguem arrancálo de seu mundo mágico, onde vive uma borboleta pequena, esbelta, musa de suas inspirações, linda, mas nem tanto, com um coração imenso e uma alma grande, que ele ama incomensuravelmente e que se chama... Você sabe como? O meu período de sofrimentos já passou, como tudo passa. Reencontrei-me, depois de tanto me procurar. Sou novamente a Suzy de antes e talvez um pouco melhor. Acredito em tudo: em Deus (esta é a minha maior conquista), no amor, na amizade, no respeito, na entrega total, na vida, no futuro e em você também. A vida carece de sentido se não se ama. Amando se é completamente feliz. Amo a todo mundo e acho que todos necessitam um pouquinho de mim. Deixei de lado o que mais me pesava: o meu egoísmo. Estou olhando a vida de frente erguida, decidida e com otimismo. Beto, sei que, no meio da noite escura e da solidão desesperadora, em que às vezes nos encontramos, sempre tem uma luz, mesmo fraquinha, uma palavra, quase um sussurro, que te diz: "Vá em frente, alguém te espera". O importante é saber isso, não importa quem. Basta saber que tem alguém... Não posso negar que, às vezes, sinto uma intensa angústia, uma grande solidão — a minha grande companheira, — mas aprendi a não desesperar-me e até a gostar e aproveitar dela. Tenho certeza que estou amadurecendo, mas ainda não poderia dizer com exatidão se vou em direção a você. Eu quero-lhe bem, Beto, e se um dia chegar a amá-lo enlouquecidamente (Você é teimosa, teimosa!), — pois o casamento implica e exige um amor incomensurável, infinito, que não tem medida, — então não vacilarei em te fazer a pergunta: "Beto, ainda você quer se casar comigo?"

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Temos ainda muito tempo pela frente, uma vida inteira, que nos pertence integralmente. O que vai acontecer? É uma eterna incógnita, que o tempo se encarrega de resolver. Fiquei contente ao saber que encontrou um emprego e amigos por aí. As fotos que conseguiu revelar com a aparelhagem do seu companheiro de apartamento, saíram muito bem. Tem uma sua que me fez pensar como deve ter mesmo milhares de brasileiras esperando atrás de sua porta. Beto, Henrique foi embora de verdade, mas me escreve sempre. Sobre isso e sobre muitas coisas difíceis de ser explicadas por carta, pretendo conversar com você quando estiver aqui. Peço-lhe, todavia, que se lembre sempre de que amar não é só pedir compreensão, mas sobretudo compreender. Nesta terrinha, tudo continua sempre igual: as aulas enjoadas, as provas — as primeiras duas regulares, as últimas excelentes —, meu trabalho sem novidades. Aliás, uma novidade eu tenho: engordei. Um quilo, imagina!. Lembre-se sempre de mim. Arrivederci. A cada dia que passa, vou amando sempre mais a literatura. Quando leio um livro e mergulho nesse mundo mágico e irreal, sinto uma satisfação infinita, me esqueço de tudo e existo em um lugar que não é meu, mas é ou o sinto como se fosse. Um momento atrás, me pus a pensar na sua mãe. Já sabe de tudo? Se ainda não lhe comunicou, acho que está sendo muito cruel com ela. Quer-lhe muito e não merece que a mantenha desconectada de tudo. E seus irmãos? E os sobrinhos? Escreveram-lhe? O que você sabe deles?

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Com certeza, deve rir ao encontrar tantas perguntas, mas é que não me diz nada e a mim interessa tudo. Espero que responda a todas elas. Minha mãe sonhou com você ontem à noite e o sonho foi muito feio. Você tinha ficado doente e nós não soubemos nada. Eu também sonhei com você: tinha-me chamado por telefone, do aeroporto, pra me comunicar que estava indo, com sua esposa e seu filhinho, para a Espanha e também que eu nada mais era que uma lembrança, que o tempo estava apagando aos poucos. A propósito de crianças, escutou a canção de Domenico Modugno: Bambino? Sobre o meu estado de espírito, geralmente estou triste. Parece que estou condenada a morrer no meio de uma grande solidão e tristeza. Embora às vezes esteja otimista, não consigo sair desse estado de desânimo contínuo. Acho que ao nascer, já estamos destinados a alguma coisa e eu acho que estou destinada à angústia e ao desespero. E seu livro, quando começará a escrevê-lo? Não se esqueça de pôr na primeira página a seguinte dedicatória: "À minha Suzy, minha musa e minha música."  Roberto resolveu que Pucaranga seria o melhor esconderijo para Luís e aceitou o convite de Susy para festejar seu próprio aniversário junto a ela. Os dois fugitivos levaram cinco dias para chegar a Pucaranga, de trem. Viagem alucinante, pois a estrada de ferro estava interrompida e, após duas horas de sacudidas, todos os passageiros tiveram que descer e procurar um lugar em camionetas, que os levariam até a pequena ponte de Hojarasca, sobre um riacho, que nem dava pra ver, de tão pequeno que era e de tão escura que estava a noite. 171


Tiveram que carregar suas próprias malas, esbarrando nos demais, que tomavam de assalto a última condução, pelo preço que desse. Conseguiram subir numa pick-up, junto com um grupo de comerciantes nacionais e um de turistas italianos, que xingavam, cada um em seu próprio dialeto, pelo contratempo e pelo enxame de mosquitos, que tomou logo conta das pálidas superfícies cutâneas generosamente expostas. Todos foram imediatamente submetidos a qualquer tipo de sobressaltos, que o atalho, rico em acidentes geográficos, ia progressivamente estendendo debaixo do veículo. Logo, porém, a alegria foi prevalecendo na turma de viajadores noturnos, graças, inclusive, às próprias pequenas surpresas que o percurso lhes reservava. A estrada era um sulco, entre duas fileiras de árvores e arbustos, cujas copas quase se juntavam, formando um verdadeiro túnel, completado por grinaldas luminosas, que apareciam a cada instante, sobre as cabeças dos passageiros, — todos em pé, na caçamba da camionete — e logo desapareciam, engolidas pela escuridão, atrás deles. Eram teias de aranha estendidas de um lado ao outro do caminho, o qual devia parecer uma pista de corrida de fórmula 1, ao motorista apurado, certamente convencido de estar ao volante de uma poderosa Ferrari. Os passageiros se agarravam ao que tivessem ao alcance das mãos, enquanto eram sacudidos por todos os lados, como uma espada na mão de um duelista. A cada festão daqueles, os da frente gritavam, para que todos se agachassem o mais possível, a fim de não cair na rede dos insetos invisíveis. — Se voltar vivo à minha terra, juro que não vou sair de casa, pelo resto da minha vida — prometia ao vizinho, um

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genovês medroso, enquanto engolia o ar morno da noite, em várias tomadas, que os solavancos lhe impingiam. — Melhor pra você, bobo — consolava-o, em tom de pilhéria sua esposa, cujo rosto de lagosta subtraía sorrateiramente qualquer graciosidade que pudesse animar o pobrezinho. — Poderia virar o novo herói dos dois mundos, que nem Garibaldi. — Só me restou o céu estrelado — constatava, no seu cantinho, François, fechado em si mesmo. — E a mágoa e a revolta e a vontade de viver para me vingar. — Chegaremos e encontraremos amigos à nossa espera — confortava-o Roberto, sem ver o rosto do companheiro, e nem sequer as rugas da escuridão da noite meridional, desenhadas na superfície de sua alma. A travessia do riacho tinha sido rápida e do outro lado estava aguardando-os um caminhão, onde já dormitavam uma vintena de campesinos, acomodados em cima de uma lona, que cobria suas mercadorias. François e Roberto conseguiram se equilibrar sobre uma única perna, enquanto os demais passageiros se acotovelam de qualquer jeito, em uma sarabanda de gritos, de imprecações e de risos. A viagem continuou agitada e insone e Roberto mal conseguia estabelecer uma conversa com a bancária Carmela Di Francesco, à qual se encontrava grudado, antes mesmo de fazer as apresentações, e logo uma sacudida maior ou uma curva invisível, produzia um rearranjo imediato, sob os protestos gerais. Após algumas horas daquele suplício, começou a cair uma chuva torrencial e aquela multidão conseguiu a façanha de tirar a lona debaixo de tantos pés e colocá-la por cima de todas as cabeças, enquanto o caminhão continuava sua corrida cega em plena noite.

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Roberto arrepiou ao imaginar que sua bagagem pudesse ter voado pela escuridão abaixo, naquela operação estabanada, mas não havia mais o que fazer. Quando começou a amanhecer, a chuva continuava fina e insistente, mas o caminhão tinha parado finalmente, em uma esplanada úmida e clara, que convidava a turma a desfazer aquele casulo de lona e a invadir a pequena estação de trem no meio do mato. A bagagem dos dois, apesar de tudo, estava ainda lá, esmagada entre os malotes e as sacolas dos índios. Agora havia só que esperar. O trem demorou bastante para aparecer e demoraram uma eternidade ainda, para chegarem a algum lugar. Mas, enfim, chegaram. Era o dia do 31° aniversário do Roberto, que Suzy contava como se fosse o 29°. Se hospedaram no mesmo alojamiento dos italianos e de quase todos os campesinos. Parecia como se o caminhão e o trem juntos tivessem sido despejados no mesmo local. Embrulhos, valises, caixas, galinhas vivas penduradas pelos pés, bebês dormindo enrolados em panos de muitas cores, uma cabra amarrada numa palmeira do pátio central, roupa estendida por todas as varandas dos vários andares, gente lavando roupa nas pias dos corredores e gente saindo do chuveiro com a toalha enrolada na cintura... Roberto não levou em conta o cansaço e se arrumou para ir ao encontro de Suzy. Ela estava sozinha em casa e o recebeu com alegria espontânea e tagarela. Roberto custava a relatar sua viagem aventurosa e seus meses passados no Brasil. Logo, porém, esqueceu sua timidez, seus temores, seu passado remoto e recente, se esqueceu até do amigo que deixara dormindo no hotel e mesmo de Henrique, que a própria Suzy lembrara apenas para contar

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que estava ainda em Labareda, a estudar com o irmão dela, Evaristo. Na frente de Suzy havia agora apenas um homem, alto, magro e elegantíssimo em seu terno brasileiro listrado e lustroso, de gravata, de cabelo comprido, como ela mesma o havia muitas vezes aconselhado. Da velha imagem sacralizada que sua memória preservara, sobrava apenas o sorriso, ainda casto e fraternal, apesar da libido que lhe inundava os olhares e extravasava pelos lábios polpudos e trêmulos. Suzy quis logo voltar a degustar aquele beijo de boca fechada, que podia acomodar por inteiro entre seus próprios lábios e sugar aquela carne que não pertencia a nenhuma mulher deste mundo e que só ela sabia quão macia e firme e dócil e forte era. Se amaram lá mesmo, no sofá da sala de estar e na cozinha, de pé, e no corredor e no quarto dela. A casa deserta ressoou de sussurros e de gemidos e de palavras de amor. Conseguiram se recompor, pouco antes da chegada dos pais dela, os quais demonstraram sincera satisfação pela volta de Roberto. Suzy entregou-lhe o presente que preparara com carinho: era La increible y triste historia de la cándida Eréndira y de su abuela desalmada, o último livro de contos de Gabriel Garcia Marques. Na folha de rosto estava a dedicatória que Suzy escrevera com sua serena caligrafia de adolescente: Para você, Beto, que me fez beber do cântaro amargo da escolha e me encharcou com o fel da renúncia. Quando voltou para o hotel, François não estava mais lá. Roberto ficou muito preocupado e cheio de remorsos por ter-se descuidado do amigo, quando mais ele precisava de sua ajuda. O procurou por toda parte mas nunca mais

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soube de seu paradeiro. Continuou entretanto, a freqüentar todos os dias, a casa de Suzy, de onde saía apenas altas horas da noite, para dormir um pouquinho, no alojamiento. Foram vários dias de uma verdadeira lua-de-mel. Se amaram com o furor dos amantes novatos e com a versatilidade dos pecadores mais empedernidos. Uma tarde Félix, o irmão menor de Suzy, voltou para apanhar sua raquete de tênis, entrando pela porta de serviço e atravessando a sala toda, na ida e na volta, a caminho de seu quarto. Roberto nunca saberia ao certo se o garoto percebeu o racha que, naquele instante, os dois estavam travando na penumbra. Foi naquela tarde que Suzy se convenceu de que estava ficando grávida. — Por que você fez isso? — gritou a garota, em um desespero total. — Você não poderia ter chegado até o fim. — Mas como você pode ter certeza de que ficou grávida neste exato momento? Isso não existe. — Apenas eu sei! Não sei explicar como isso acontece, mas eu tenho certeza. A moça parecia enlouquecida. Falou que não queria casar já e que agora ela se sentiria forçada a fazê-lo. Falou que amava Henrique e que não queria perdê-lo. Mandou Roberto ao ginecologista que tinha tratado de sua irregularidade menstrual, na época da puberdade. Agora ela teria vergonha demais se tivesse que se lhe apresentar, com a suspeita de estar grávida. Roberto foi pro consultório daquele médico de senhoras, pagou a consulta e esperou cochilando, no meio de gestantes de todos os tamanhos, desfeito pela tensão e pelo cansaço dos recentes embates amorosos.

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O médico estranhou um bocado, mas não soltou nem um sorriso. Ouviu a história e dirimiu as dúvidas, com isenção profissional e concluiu que seria realmente impossível que Suzy tivesse certeza do momento da fecundação, mas pelas contas dos dias, não era nada de se estranhar se tivesse ficado grávida. Receitou, pelo sim e pelo não, uma cartela de anticoncepcional, avisando que se estivesse realmente grávida, a pílula serviria só para tornar o bebê ainda mais resistente e viçoso. Suzy começou a tomar o remédio, mas nunca mais saiu daquele estado de pânico. — Vá embora — insistiu desesperada. Não se preocupe comigo. Eu vou me virar. Faça o que quiser da sua vida. Não quero mais saber de você. — Sinto muito, mas não acho que seja o caso de ficar assim — tentou argumentar o amante aflito. — Você não tem a menor certeza de que algo tenha realmente mudado. A garota não aceitava razões. — Não importa — encerrou o assunto, com olhar de náufrago. — Amanhã mesmo irei a Labareda, atrás de Henrique e espero que ele ainda me queira. Roberto se despediu sem sorrisos nem lágrimas, nem abanar de lenços. Aí mesmo, no limiar da sala, onde ainda ecoavam as tantas palavras e suspiros de amor e que agora parecia mais uma gélida câmara mortuária. Aí desmoronara todo seu castelo de felicidade, que até o dia anterior, parecia tão concreto e tão fascinante. Foi para Santa Fé e procurou trabalho em uma fazenda dos redores, onde havia uma pequena usina de álcool. Com os pais de Suzy, tentou se desculpar pelo telefone, logo que chegou, mas eles devem ter ficado com a convicção de que nunca amara a filha deles de verdade.

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Foi ali que o alcançou uma carta de Suzy, que tinha sido enviada ao endereço do Brasil e que Toninho Neves lhe remetera ao novo endereço. A carta estava carregada de ódio, de desapontamento e de desespero, submergindo Roberto debaixo de uma montanha de culpa e de mágoa. O final da carta sintetizava perfeitamente o estado de ânimo da garota, com uma comparação amarga, que todavia, até arrancou um sorriso de Roberto, pela precisão e propriedade da referência literária: Você foi, pra mim, como o vento que soprou, quando Erêndira dormiu com a vela acesa. O padrecito, que já não era mais coisa nenhuma, se tornou um funcionário esforçado da usina Santa Carmélia, pegando no pesado todos os dias, desde a madrugada até a noite, a limpar o almoxarifado, pôr em ordem o fichário, carregar e enfileirar nas prateleiras as peças de reposição e empilhar as caixas dos ingredientes, analisar as notas de compras, revisar os livros contábeis... O dono era Don Ferrante, um multifundiário, que tinha chegado da Itália trinta anos antes, trazendo um velho caminhão FIAT, resíduo de guerra, para carregar a riqueza dos outros pra lá e pra cá, e agora possuía um sem-número de hectares de plantações de algodão e de cana-de-açúcar, além da oficina de assistência técnica de tratores, que lhe havia permitido o acúmulo de tanta fartura. Ele estava já com planos de deixar Roberto se inteirar de todos os setores da usina, pois via nele um sujeito de total confiança e de capacidades excepcionais para assumir qualquer cargo administrativo. E não era por menos. O moço era uma verdadeira fúria condicionada exclusivamente para o trabalho. Não tinha vício, a não ser aquela paixão que — ele sabia e compreendia como um pai — o fazia chorar de mansinho,

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quando estava só e que, na frente dos outros, o empurrava numa vontade frenética de arrumar, carregar, escrever, analisar, avaliar... No quarto despojado, no silêncio radical da noite campeira, continuava sua correspondência com Suzy, mesmo sem mais a esperança de receber notícias claras do que lhe estivesse realmente ocorrendo e menos ainda quaisquer palavras do carinho e do amor de outrora. Assim mesmo, após algum tempo recebeu dela uma última carta, que revelava uma Suzy diferente e longínqua, mas também serena e apaziguada.  "Recebi a tua última carta e nela veio o Samba da Bênção, de Vinícius de Moraes, o qual me agradou muito, pois compreende todos os aspectos emotivos da vida e oferece dela uma definição muito bonita: "A vida é a arte do encontro". Parece um canto ao otimismo, à esperança; cita a tristeza e a dor, como algo necessário para valorizar a alegria, a felicidade. Beto, esqueça, por favor, minhas palavras ofensivas, ditas em momentos de desespero. Você não teve culpa nenhuma e não tem por que pedir perdão. Às vezes a vida nos põe mil provações e depende muito de cada um poder sair vencedor; às vezes perdemos muito do que colocamos em nosso esforço para nossas conquistas, mas no meio dessa dor, um dia descobrimos que tudo continua, que o mundo e as coisas continuam sempre lindas, que podemos fazer muito e brilha a nossa esperança, até voltarmos a alcançar a luz perdida. Não acredite nunca que lhe estou guardando algum rancor. Ao seu lado aprendi muito, Beto, e lhe agradeço de todo coração tudo que me deu, pois sei que sempre foi sincero e agiu com nobreza. Obrigada pelos 179


seus desejos de felicidade. Sei que vou ser feliz, mas quero que você também seja feliz, imensamente feliz. Ninguém como você o merece. Obrigado por seu amor, obrigado pela amizade de agora. Você vive em mim e nunca vai sair, mesmo com o passar do tempo e mesmo se ele apagar muitas coisas. No fundo as lembranças impregnam a alma e a alma vive a vida inteira. Já estou bastante recuperada, mas imagina que perdi quatro quilos. Estou quase transparente. Você me aconselha a leitura de O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry. Eu já o li. É um livro lindo e eu lhe aconselho a leitura de Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach. No fim de sua carta, me põe uma palavra que considero inexistente: Adeus. O adeus não existe entre duas pessoas que compartilharam algo, que foram companheiras, não importa quanto tempo, nesta caminhada da vida. Existe até sempre, a qualquer momento, até logo. Receba um forte abraço. Nele vai todo meu reconhecimento e agradecimento a você, Beto, que me ensinou a valorizar e a aceitar a vida."  Roberto leu aquela carta com a paz conformada de um condenado a morte. Assim mesmo, não deixou de pensar em Suzy, até o dia em que lhe chegou um bilhete de Dona Ivone, comunicando-lhe, com pesar, que a filha tinha-se casado com Henrique e que se haviam mudado para Labareda. Só então Roberto desistiu de vez de Suzy e aproveitou da delonga no deferimento do seu pedido de redução ao estado laical por parte do Vaticano, para resolver voltar pra sua paróquia, em Pucaranga, cuidar das almas de seus 180


índios e mergulhar no trabalho da escola. Aprendeu quéchua, se dedicou ao Normal, aos grupos de jovens, e acabou se envolvendo com todos os movimentos de resistência civil à ditadura. Depois da chacina de Labareda, porém, foi aconselhado a voltar para o Brasil, onde ficou tantos anos, na moita, como ele gostava de dizer. Agora, porém, estava de volta, mais uma vez...  A casa dela continuava risonha e pacata, no meio das roseiras de don Artêmio, cortejada pelos gerânios, primaveras e azaléias, que formavam manchas alegres em vários pontos do jardim. Do portão, podia-se ver até a edícula que Suzy tinha feito construir nos fundos, por ocasião da volta de Labareda, quando esperava ainda poder solidificar sua união matrimonial, com o amparo de seus pais e irmãos. Roberto não conseguia tranqüilizar, um só instante, o coração que batia disparado, na quase certeza de ter que encarar o Leopardo, com o qual Susy devia estar casada, já fazia mais de dois anos. — Cuidado com ele — tinha avisado Sílvia. — Ele é um Leopardo. A pior espécie de tiras. Arrogantes, venais, traiçoeiros. E matadores impiedosos. Bateu palmas e aguardou bastante, até sair um homem de média altura, barbudo e franzino, de uma porta da edícula. Era aquele o Leopardo? Tanta angústia por causa daquele sujeitinho desajeitado, de shorts e de chinelos, cuja barba inculta não conseguia esconder a cara de sono de quem acabava de acordar da sesta? Roberto continuava, todavia, a sentir sujeição e medo daquele homem, apesar das aparências pacíficas, pois Sílvia lhe havia descrito 181


exatamente a personalidade escorregadia de um carrasco educado, cujo rosto ela mesma nunca tinha visto, mas que demonstrara conhecer com íntima profundidade. — No hay nadie en la casa. Saiu todo o mundo. — Não tem ninguém? — repetiu Roberto surpreendido pela decepção e vencido pela ansiedade prolongada. Conseguiu, assim mesmo, acrescentar: — Saberia me informar, por favor, quando posso encontrar alguém? — Aí percebeu que o homem não devia ter nada a ver com a família. Nem conhecia, por sinal, os hábitos dos donos da casa sequer. Agradeceu e voltou atrás. Lá na entrada da ruela, vinha vindo um grupo de garotos, conversando animadamente, excitados, com certeza, por um jogo recente de futebol. Quando Roberto se aproximou, até poder delinear os traços de uma fisionomia, um daqueles moleques parou a olhá-lo fixamente, até dar-se conta de que não lhe era totalmente estranho. Naquele mesmo instante em que Roberto sentia novamente o coração disparar e corria para abraçá-lo, em uma emoção só. Era mesmo o Juninho, o filho maior de Suzy, Henrique ele também. Permaneceu imóvel, ainda encarando-o intrigado, enquanto Roberto, mais afirmando do que questionando, rompia o silêncio. — Você se chama Henrique?! Te conheço desde pequeno — justificou. — Onde estão teus pais? E teus avôs? — Quem é o senhor? Sua atitude segura e gentil denotava já uma personalidade equilibrada e estável. O olhava sem sinais de constrangimento nem de rejeição. Apenas uma sombra de perplexidade acompanhava o esforço para reunir

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lembranças que o ajudassem a localizar aquela fisionomia em algum canto de sua jovem memória. — Me chamo Roberto. — Agora eu sei — sorriu Henrique, com seus olhos transparentes, enquanto seus companheiros se dispersavam, sem dedicar qualquer atenção à conversa dos dois. — Sua mãe já lhe falou alguma vez de mim? — Sim. Sentaram em cima de uma pilha de tijolos deixados na calçada da frente, onde estava sendo construída uma casa. A conversa logo rolou fácil e amistosa. Henrique resumia a crônica dos acontecimentos dos últimos anos, com o talento de um contador de histórias. Aos doze anos, aquele garoto inteligente e reflexivo tinha o juízo de um adulto. — Me contou que vocês ficaram apaixonados, antes dela casar com meu pai. — E agora ela deve estar casada com Omar, pelas notícias de que disponho, de três anos atrás. — Não — corrigiu-o o pequeno, dispondo-se a explicar os detalhes de uma longa história muito enrolada. — Ela pretendia se casar com Omar, mas não deu certo. É uma verdadeira novela mexicana — admitiu. Com sua narração clara e arguta, expôs todos os fatos que Roberto desejava conhecer. A mãe dele tinha casado, é verdade. E na igreja, ainda por cima, quatro meses antes. Porém, não com Omar, mas bem com Javier, um artesão meio hippy, amigo do tio Félix, que ela conhecera fazia um ano e de quem já desquitara, com apenas três meses de casamento.

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Quem morava nos fundos era um estranho, um inquilino ainda por cima ruim, pois não pagava em dia o aluguel e a avó pretendia despejá-lo logo. A cada revelação do garoto, Roberto ficava sempre mais surpreso e, ao mesmo tempo aliviado, soltando até umas boas risadas pelo rumo fantástico que a realidade dos fatos tinha tomado. A tia Helena havia-se casado, pela segunda vez ela também, com um funcionário da embaixada italiana em Labareda, depois do divórcio com Arnóbio, do qual não conseguira ter filhos — justo ela que criticava a irmã quando fazia projetos de se casar com ele, por haver dez anos de diferença entre os dois e ainda por cima um estrangeiro, que poderia muito bem levá-la longe de casa ou abandoná-la a qualquer momento e nunca mais voltar a vê-la — pensou com seus botões, Roberto, cheio de ironia. Agora a tia se unira a Filippo Carli, divorciado, por sua vez, de uma labaredense maluca, que o largara com um casal de crianças, para cair no mundo, atrás de fantasmagóricas aventuras amorosas. Naquele momento a tia Helena e Filippo estavam na Itália, com as crianças dele, aguardando transferência para outra embaixada da América Latina. Suzy estava em Labareda, sozinha com o filho pequeno, cuidando do apartamento deixado pelo cunhado para alugar a terceiros e tentando se organizar para uma atividade independente, talvez uma creche para criancinhas de classe média. Daí a pouco chegou Dona Ivone, que abraçou Roberto com efusão, como faria com um filho. Ela estava voltando exatamente da empresa telefônica, onde acabava de liberar a linha, saldando a conta atrasada. Quis saber de tudo que tinha acontecido nos últimos anos e resumiu, com sábios

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cortes de sua censura pessoal, os eventos que Roberto conhecera com detalhes, pelo relato de Henrique Júnior. Enquanto conversavam, tocou o telefone, já desimpedido, e o garoto foi atender. — Oi, mãe — gritou. Roberto se retesou todo, segurando a xícara de chá, que Dona Ivone tinha feito questão de servir. — Beto, a minha mãe quer falar com você — comunicou, com naturalidade, o pequeno, após ter ficado longamente a escutar a mãe dele do outro lado da linha. — Comigo? Será? — Roberto estava deveras admirado e orgulhoso. — Te procurei várias vezes por telefone, no Brasil, mas não tive sorte e agora você está na minha casa. Que coincidência! Queria tanto conversar com você. — A voz da mulher que ele tanto amara, ressoava clara e familiar, como se todos aqueles anos e aquelas frustrações não tivessem acontecido e a própria distância física fosse de poucos centímetros apenas. — Posso ir até aí? — Aqui, em Labareda? Já? — Por quê não? Roberto chamou um táxi e foi até o aeroporto. Só havia uma vaga no último vôo da tarde, que sairia dentro de dez minutos. Foi assim mesmo, com a roupa do corpo, calças de verão e camisa de seda. Uma verdadeira comoção se apoderara dele e o guiava pelos céus dos Andes, de volta para quem nunca fora o que ele já imaginara ou gostaria que se tornasse.  Ao desembarcar, Roberto sentiu o vento gélido do altiplano, seu velho conhecido, atravessar sem cerimônias 185


sua roupa leve e o ar dos quatro mil metros de altitude lhe encurtando o fôlego. Vislumbrou imediatamente a figura exígua de Susy, detrás da grande vidraça, onde se acotovelavam muitos parentes e amigos dos recémchegados. Permanecia nela aquele frescor adolescente, irradiando de um rosto de mulher madura. Seus olhos pensativos rendiam-se a um sorriso composto mas espontâneo, recepcionando aquele homem que já soubera enchê-los de alegria e também de lágrimas. Ela vestia um tailleur delicadamente azul e levava um lenço de seda no pescoço, fixado ao decote com um broche de prata que Roberto reconheceu logo, pois ele mesmo lho doara treze anos antes, por ocasião daquele famoso baile da coroação. Se cumprimentaram formalmente, sem todavia tirarem os olhos de cima, uma do outro. Ela mesma o levou com seu fusca, direto pra casa, onde o pequeno Jorge aguardava a mãe, sentado nos degraus da escadaria, de volta da escola. Aí tiveram todo o tempo de pôr em dia as notícias dos últimos quatro anos, pelo menos. Ela tinha-se encontrado finalmente. Deixara seus estudos de Psicologia interrompidos, para dedicar-se às crianças de uma escolinha, que montara, naquele mesmo conjunto habitacional, em sociedade com o ex-cunhado Arnóbio. Este acabava de ganhar um filho do último casamento com mais uma jovem de vinte e poucos anos, a qual pretendia providenciar, assim, uma ocupação e um negócio rentável, além de um lugar privilegiado para criar o bebê. O casamento com Omar nem chegara a acontecer, pois Suzy percebera em tempo os rolos em que o sujeito devia ter-se metido para conseguir aquele enriquecimento ostensivo em poucos anos. Um leopardo estava facilmente

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tentado a compactuar com a contravenção que deveria, ao contrário, combater. Tinha casado com Javier, mas o rapaz não desgrudava de sua turma e estava querendo transformar o novo lar num boteco para seus viernes de soltero. Tocou-o logo de casa, como um cão sarnento. Henrique tinha casado e tivera um filho com a gorda — não sabia chamá-la de outra maneira, a advogada dinheiruda com quem o jovem marido flertava já na época da faculdade, enquanto Suzy quebrava seus ossos pra cuidar dele e dos filhos. Por isso, não sentia mais nada por ele, além de apatia e até desprezo. — Por que não acreditou em mim? — reprochou-a com ternura, Roberto. — Eu sabia que você me amava. Demais. Mas eu era apenas uma adolescente e nem sabia o que seria bom pra mim. Além disso, sempre tive medo que não desse certo com você. — Entretanto te falei que nunca te esqueceria. — Pensava que, com o tempo, conseguisse. E além do mais, eu achava que isso existisse apenas nos romances. Você leu O amor no tempo do cólera, de Gabriel Garcia Marquez? Florentino Ariza é apenas uma personagem de ficção. — Florentino Ariza sou eu — afirmava aquele cover de Florentino Ariza, com o mesmo olhar de paixão desolada, com que a deixara tanto tempo antes, enquanto se reaproximava ao objeto de seu amor persistente, ali vivo e verdadeiro e ainda jovem e bonito, por sinal. O pequeno já adormecera e Suzy não teve a coragem de levar Roberto para o apartamento vazio da irmã, lá na outra ponta da cidade, como firmemente havia-se proposto.

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Passaram, assim, três dias de mais uma lua-de-mel temporona, que tirou o atraso e as mágoas e tantas incertezas sedimentadas como um incômodo resíduo da felicidade perdida. Roberto, após a chacina de Labareda, tinha procurado emprego no Brasil e havia-se tornado um correspondente de uma revista. Viera, de fato, até Pucaranga, para realizar uma reportagem sobre as rotas da cocaína, após o movimento de democratização que se desencadeara em toda a América Latina. Enfrentava novamente o poder tenebroso dos donos do mundo, que se revezam atrás das fachadas opulentas das organizações financeiras e da burocracia estatal. Agora, porém, ele era um leigo qualquer. O padrecito havia morrido e de suas cinzas havia ressurgido um homem, do qual a bula papal pretendia apenas que se comportasse como amantissimus Ecclesiæ filius, e que não fizesse nada que suscitasse scandalum aut admiratio. Talvez por isso é que eles se amaram na forma mais discreta possível, sem, todavia, renunciar a nada que a paixão tão longamente reprimida lhes exigisse. Ela voltou a beijar aquela boca fechada, com a mesma voluptuosidade que ficara marcada na matriz de seus desejos, sentindo a vida renascer em suas entranhas. Sua pele preservava aquele perfume que Roberto, durante tanto tempo, só curtira em sua memória inconformada. Aroma único, que reconheceria entre milhões. A superfície alva de sua tez era interrompida por raros lunares, como ela chamava, em sua língua melodiosa, as pintas que Roberto mapeara em mente, a fim de poder identificá-las pelas gemas dos dedos, quando os olhos fechados ou a penumbra do quarto encomendassem a repetição daquele singular ritual

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investigativo, sob a ordem imperativa dos sentidos. Os seios pequenos não haviam perdido a textura que ele apalpara antigamente e os mamilos, que se haviam avantajado no exercício da maternidade, se erguiam voluntariosos — agora entregues às labutas do amor — no mais leve contato com seu corpo famélico. As noites foram breves demais para reconhecer seus próprios erros e para tentar esboçar um futuro em que coubessem planos de recuperação de um passado que, obviamente, mereceriam melhor. E foi num desses momentos de lúcida irracionalidade, propiciada pela satisfação de desejos tão profundamente estratificados, que Suzy revelou ao antigo e novo amante aquilo que ele próprio sempre suspeitara e que ela tentara esconder de si mesma: — O pequeno Henrique é teu filho.

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.6 O TERCEIRO MUNDO

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O SOL estava surgindo, para mais um dia esfuziante, no horizonte do Pantanal. Jacinto de Aquino estava ajeitando ainda o cinto das calças, enquanto se dispunha a enfrentar a longa cavalgata que o esperava, junto com seus dois filhos maiores e seus quinze peões da fazenda Ribeirão dos Juízes. Dona Wanda, sua patroa, não via a hora de a manada desaparecer atrás da curva que a vereda formava lá longe, no meio da mata de aroeiras e de pequis, para finalmente começar a sofrer a dor da saudade de seu velho e de seus filhos. — Cuida bem da tua mãe — recomendou Jacinto a Zinho, o filho caçula, de quatorze anos, que se apressava para ajudá-lo em arrear o cavalo baio. — Você vai ser o homem da casa, até a gente voltar. Os outros filhos estavam já prontos com suas cavalgaduras estrategicamente distribuídas, para conduzir o gado pelo caminho certeiro. Waldir era o mais velho e, aos vinte e três anos, era um vaqueiro tarimbado, tendo inclusive participado de várias competições nos dois últimos rodeios do clube do laço de Porto Murtinho. Wanderlei tinha vinte anos e já havia ultrapassado o outro de meia polegada, além de ostentar um peito e uns braços musculosos, parecidos com aqueles sujeitos que tinha visto uma vez na capa de uma revista esquisita cheia de machos. Os dois tinham estudado pouco e quase tudo que conheciam da vida tinham-no aprendido do pai e dos serviçais da fazenda. Já o seu Jacinto ninguém sabia de onde tinha tirado toda aquela sabedoria. Que não era só de coisas da terra e dos bois, não, que ele entendia.

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— Qualquer coisa que as crianças ou a mulher ou os peões lhe perguntem ele dá sempre uma resposta de poucas palavras, mas que você pode conferir até numa enciclopédia, que ela está lá, toda escritinha, com palavras complicadas, mas é a mesma idêntica explicação — contava Tião, o velho praieiro, com verdadeiro orgulho. — É mesmo — confirmava Dona Francisca, sua patroa e ama-de-leite dos garotos, quando eram pequenininhos, e que agora fazia de tudo na casa grande da fazenda. — Ele parece até que enxerga por dentro da terra — exagerava um bocado. — Um dia escutava um zumbido pela casa inteira, que ninguém achava e que não achava de onde podia vir. De repente o seu Jacinto trouxe uns pedreiros e mostrou pra eles um ponto da calçada. Mandou cavoucar que aí devia ter o motivo daquele barulho, e acharam um cano que vazava, ninguém sabe há quanto tempo. Consertaram o cano e o barulho parou de vez. — É que ele é muito viajado e estudado — explicava Tião, com a segurança daqueles que desfrutam da amizade dos sábios. — Você nem imagina quantos livros ele já leu. Roberto pôde averiguar pessoalmente que toda aquela admiração tinha razão de ser, quando apareceu por aquelas bandas, pela primeira vez, durante uma excursão ao Gran Chaco, junto com uma turma de estudantes do Normal de Pucaranga, na época em que já perdera as esperanças de voltar com Susy. Tinham-se extraviado durante a tempestade que os surpreendera noite adentro e tinham acabado cruzando a fronteira, sem perceber. A madrugada inteira tinha continuado a chuviscar e o campo estava ainda todo úmido, apesar de ter-se empoleirado, há uma boa meia hora, sobre a acácia alta, um sol com a cara modesta de um barnabé, mas também com a imobilidade intencional e penetrante dos olhos de um

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hipnotizador. O aranquã tinha feito seu serviço de despertar o dia e os outros pássaros continuavam a cantoria matinal. Os meninos estavam entorpecidos pelo balanço violento do furgão na estrada de terra. Alguns hesitavam, ainda em seu lugar, olhando indolentemente ao redor, o verde sonolento, o rio deitado ao lado da estrada, as manchas de terreno nu, sujas pela água recente. — E agora? — rompeu o encantamento Osvaldo, com uma daquela perguntas que mais se parecem com uma amêndoa que cai num prato de gelatina ainda muito mole, com a intenção frustrada de decompor sua conformação. Era o mais tranqüilo da turma e dava qualquer coisa para poder puxar uma boa soneca. Surpreendentemente, porém, a chamada funcionou e o grupo estatuário se desenrolou em movimentos de câmara lenta. Era como se obedecesse mecanicamente, justo ao anfitrião do perene repouso. — Passe-me a coberta vermelha. — Onde colocou a minha mochila? — Olha como você deixou o meu casaco. As várias vozes passavam pelas mãos de um ventinho respeitoso, as palavras que se iam destrinçando daquele novelo de braços, de pernas, de embrulhos e de roupas. De repente, a terra estremeceu e Roberto sentiu os mesmos calafrios experimentados por ocasião do primeiro terremoto, que presenciara, lá na sua terra, em janeiro de 1968. Fora como se toda sua segurança e todas suas certezas se esfarelassem junto com os prédios seculares e com os casebres das aldeias sicilianas, que ruíam como castelos de cartas de tarô. Os pequenos terremotos vulcânicos que conhecera anteriormente, durante seu

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curso colegial, em Catânia, não passavam de pequenos abalos, que ao máximo conseguiam parar o pêndulo do relógio de parede do saguão da escola. E os próprios boatos, que antecediam os tremores de terra, se pareciam mais com sussurros, que o Etna emitia de suas vísceras, quase para avisar os moradores das encostas, que o pior estava por vir. Geralmente, todavia, a direção da escola não deixava sequer que os alunos descessem da sala de estudo, mesmo quando os terremotini se repetiam a breves intervalos. Mas o de 68 tinha sido bem diferente. Toda a região do Bélice, na Sicília ocidental, tinha sido afetada, e cidadezinhas do interior, como Santa Margherita, Montevago e Gibellina, ficaram arrasadas. Roberto fora pro epicentro do sismo, vindo de Messina junto com alguns colegas, com a missão de recolher crianças senza tetto, para refugiá-las nas escolas da congregação. Chegou em tempo para ver o sino da igreja matriz de Montevago se estatelando com um estrondo espalhafatoso, logo abafado por uma avalanche de entulhos e uma nuvem de poeira, que era o que sobrava da torre e da linda fachada barroca. A sensação de vôo no vácuo, que o possuíra naquele momento, só se comparava com o que ele sentira quando assistiu de perto à explosão gigantesca que o Etna resolveu provocar, alguns anos antes, após décadas de calmaria. Era igual ao cogumelo de Hiroshima, que vira várias vezes nos documentários cinematográficos, se levantando por cima de colunas de fogo a sair pela cratera de nordeste e a despejar grande quantidade de lapilos e de lava e de cinzas — por sorte, apenas em direção ao Valle del Bove, uma imensa depressão na encosta do mesmo lado do vulcão.

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O medo, porém, deixava agora o lugar à estupefação. A turma de estudantes via surgir diante de seus olhos atônitos, uma manada interminável, levantando um pulvísculo feito de gotas de água e de barro, como uma aura a ocultar e a ressaltar, ao mesmo tempo, aquele intenso fervilhar de bezerros e de bois e de vacas em desabalada carreira, até a beira do rio, o qual continuava impertérrito em suas voltas longas e sinuosas, naquela esplanada sem esquinas nem limites. À mente de Roberto vieram, então, imagens de Os cowboys, o filme com John Wayne já velho, iniciando uma turma de vaqueiros mirins, na arte que o notabilizara durante décadas. Os quero-queros e as anhumas gritavam alarmados, como ecoando as chicotadas dos vaqueiros e os urros intervalados do berrante e os tiros de pistola que pontilhavam com brio e vitalidade o ar voluntarioso da manhã pantaneira. As emas fugiam pelo capim alto da savana, enquanto jaburus e colhereiros levantavam seu vôo pesado pra longe daquele furacão animal. As capivaras, que já tinham evacuado a área, acompanhavam agora a passagem da imensa manada, mostrando em grupo suas cabeças quadrangulares do meio dos aguapés, com curiosidade obtusa. Osvaldo quase gritou ao notar um cachorro-domato cheirando o ar a poucos metros da camioneta, mas logo esse também se dirigia com decisão para um ponto qualquer que escolhera a esmo. Glória quisera vir com o grupo, agora que podia dedicar-se mais livremente às atividades de professora de quéchua, também no Normal. As crianças haviam ficado com a mãe dela e Omar andava por aí, atrás de sua

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carreira e das mulheres dos outros. Ela ficou encantada com um tamanduá-mirim que vinha, a passos lentos, na direção do furgão: devia estar perdido, após ter fugido de alguma queimada anterior à chuva. Roberto descera do furgão e acenava ao vaqueiro mais velho que parara lá perto, à beira da picada, para controlar a passagem do gado pelo lado esquerdo. Quando todos tinham passado e o ruído diminuíra, conseguiu se apresentar e pedir informações sobre o lugar exato e a maneira de poder sair daí. — Ustedes están en el Brasil— explicou, em perfeito espanhol, o vaqueiro — e podem-se considerar bemvindos à minha fazenda. Era o seu Jacinto em pessoa, o qual lhes indicava um casarão que se entrevia a um quilômetro de distância, após a volta que o rio dava . Quando chegaram todos à casa grande da fazenda, a alegria do retorno da manada e de seus condutores, se reverteu sobre os forasteiros, com uma baforada de familiaridade confortadora. Zinho era ainda um garotinho, que gritava da varanda, ao lado da mãe, agitando os braços e pulando feito uma bola de borracha. Os cachorros faziam um escarcéu do diabo. Corriam ao encontro da manada e voltavam sempre correndo e latiam sem parar. Junto vinha um bando de quatis, já praticamente domesticados, à procura de restos das iguarias que nunca faltavam ao redor daquela casa. O terreno que a cercava, de fato, era um imenso pomar lotado de laranjas, mangas, tangerinas, limões, cajus, mamões, bananas, goiabas, tudo que aquela terra pudesse produzir de melhor. Ninguém dava a mínima se a maioria daquelas frutas se transformava em alimento

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das araras-canindés ou das catorras, dos araçaís, dos japus e dos tucanuçus. E sabiam muito bem que tudo aquilo atraía também os papa-méis: martas, iraras, lontras e carcajus. Afinal, tinha pra todo mundo, bichos e gente. Daí a pouco estavam todos ajeitados para o café da manhã e os forasteiros se encontraram logo à vontade, conversando cada um em sua língua, mas se entendendo perfeitamente, com os moradores da fazenda, grandes e pequenos. Roberto percebeu logo a envergadura do dono da casa. Bastou acenar algo sobre sua procedência e conhecimentos, que se desvendasse, aos poucos, uma personalidade rica e profunda, debaixo da casca daquele caipira simplório. Ele residira no exterior, além de ter vivido durante muitos anos no Rio e em São Paulo. Freqüentara várias faculdades e obtido muitos títulos. Tanta cultura, porém, parecia possuir o único mérito de ter-lhe fornecido a chave capaz de desmontar o arcabouço sintático e o próprio cabedal semântico da linguagem aprendida em sua mocidade. Sem coordenadas, sem subordinadas ou incidentais; sem predicativas, ou atributivas, ou optativas, ou condicionais. O vocabulário rebuscado de sua formação humanista, tinha deixado o lugar à expressividade essencial e enxuta, própria dos membros das sociedades mais primitivas. Que pleonasmos. Que redundâncias. Que circunlocuções, que nada. Era como se tivesse destilado inteiros acervos bibliográficos, para retirar umas poucas palavras, como pérolas escolhidas mais pelo som do que pelo sentido criado pelas concreções de toda sua tradição cultural. Os longos silêncios entre as

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frases ressequidas ressaltavam o ritmo e o respiro das coisas que representavam, enquanto ganhavam realce os burburinhos das cachoeiras, que ninguém ouvira antes e o volitar dos insetos sem classificação, imersos no cristal transparente daquelas manhãs sem dono. Era apenas bucólico sem ser parnasiano e metafísico sem qualquer transcendentalismo. Até o tédio virava poesia, nos alambiques de sua compulsividade fabulatória. — Eu gosto de rastejar taciturno junto à bosta das cobras ou velejar até os confins deste mundo aguado, agarrado aos artelhos das mesmas águias que me roem o fígado — dizia ele mesmo. — Eu sou Prometeu e Ícaro juntos. E não me importa nada que os tuiuiús tenham tomado o lugar das antigas aves dos gregos. Jacinto conhecera tudo da vida, inclusive no campo do amor. Dona Wanda não fora a primeira nem a única paixão do velho caboclo aletrado. E seus filhos iam pelo mesmo caminho, com exceção apenas das letras. Waldir já se demonstrara um ídolo da mulherada, nas festas de todos os povoados das redondezas, isto é, por um raio de muitos quilômetros. Quando punha seu chapéu e aquela sua roupa embocada de vaqueiro vaidoso que ele era, as meninas estremeciam todas e não havia uma que não sonhasse em casar, um dia, com um jovem como aquele. — O safadinho já deve ter feito lá sei quantas daquelas vítimas — comentava de boca pequena o velho Tião, com um sorriso orgulhoso e matreiro. — O que é isso! — tentava amenizar Dona Francisca, em tom de repreensão, mas deixando a clara impressão de que ela também, no fundo, estava tão satisfeita quanto o marido, pelos boatos que corriam a respeito de seu jovem senhor.

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— Wanderlei já é mais manso, ao que parece — acrescentava, em tom conciliador, Nestor, o capataz, que escutara a conversa. — Também, pudera — atiçou Dona Crescência, a cozinheira, mulher do peão Genivaldo, — ele não passa de um moleque ainda, que só tem tamanho. Roberto e sua turma passaram dois dias de paraíso naquele recanto de verde e de água e de vida, que nunca sonharam antes. Na hora de ir embora, Roberto teve que aturar Glória dando vexame, pois se encarapichara com o Waldirzinho, em uma fulgurante história de amor, que deixou todo mundo pisando em ovos. Esquecia-se de tudo que deixara em Pucaranga e passava por cima de barreiras lingüísticas e de idade — ela era ainda nova mas tinha cinco anos a mais que o bugrinho —. E o mau exemplo para os alunos, que já estavam disciplinadamente aos seus postos, então? Não havia argumentos que pudessem convencer a mulher a deixar aquele oásis que o acaso lhe brindara de repente. Ela, afinal, estava já desquitada mesmo. E seus pais poderiam continuar cuidando das crianças. E não queria nem saber se Omar tomaria conta delas. E, além do mais, aquele safado não merecia nenhuma consideração sequer. E agora estava apaixonada por aquele jovem garanhão, que se tornava, de repente, o único motivo para ela continuar vivendo. E não precisava sequer pensar em compromissos ou casamento: que a vida é curta e que, por aquela hora de felicidade que pudesse desfrutar com o moço, valeria a pena até de viver o restante de seus dias se lastimando... Waldir nem falava. Soltava, às vezes, um sorriso duvidoso, debaixo do bigodinho ralo. E só.

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— Meu filho é apenas um potro moço. Não agüenta o cheiro de uma potranca — teve que intervir o seu Jacinto, do alto de sua posição de patriarca. — Estou apaixonada como nunca estive em minha vida. Eu não quero perder essa felicidade que mal acabo de encontrar aqui, don Jacinto. A mulher estava vislumbrada. Não estava disposta a escutar argumentações de qualquer tipo. — A senhora precisa refletir mais, antes de tomar qualquer decisão. O amor é a coisa melhor que se leva da vida. Mas é bom que a senhora vá agora. O Waldir não vai fugir daqui. — Eu não tenho pra onde ir — concordou, sem nenhuma sombra de reclamação na voz, Waldir. E, paradoxalmente, foi o único argumento que conseguiu remover a teimosia da mulher. Se despediram, dando um show de paixão explícita, cuja espontaneidade, todavia, conseguia poupar de qualquer sobressalto, o pudor camponês dos espectadores. O magnetismo daqueles olhares dispensava beijos ou carícias, pois prometia, sorrateiramente, incontáveis demonstrações futuras, enquanto deixava transparecer, com indisfarçável evidência, a sobrecarga de libido que o flirt recente concentrara nos dois. Omar reagiu até com alívio à perspectiva de se ver livre de Glória, embora seu incontrolável machismo, assim mesmo, chiasse um bocado. O cenário que sua imaginação construíra começava, naquela época, a assumir os contornos da realidade e já concretizara os alicerces de seu futuro com Susy e com os quatro filhos reunidos em uma única família, numerosa e feliz...  202


Desta vez, seu Jacinto estava levando o gado pra invernada. Por isso não tinha pressa de chegar. Conhecia à perfeição os tempos da planície e o ritmo que os animais podiam suportar, para os deslocamentos de longa distância. — Vamos comer a estrada — falou enfim o velho, enquanto se arvorava no dorso enfeitado do cavalo baio. — Vamos tatear o miolo da mata. A paisagem anseia nossos olhos. Roberto era já um correspondente internacional e vinha para elaborar uma reportagem sobre o Pantanal. Naturalmente foi direto à fazenda do seu Jacinto, que o recebeu com muita alegria. Participou de todas atividades da fazenda e agora acompanhava a cavalgata, para registrar todas as fases dessas movimentações sazonais. Em pouco tempo, o ar se tornou úmido e pesado. O céu ganhou uma cor vinhosa, como se o barro de todo o pantanal tivesse evaporado junto com a água dos corixos. Inesperado surgiu um vento forasteiro, que levantava areia mesmo de onde até então só havia verde e água. Os boiadeiros baixaram a aba de seus chapéus, que fincaram firmemente para que a ventania não lhos arrancasse dos queixos, e continuaram o ritmo da marcha como se nada estivesse mudando. A boiada seguia firme e compacta como um destacamento de cavalaria. De todos os lados havia revoadas de dezenas de garças e de tuiuiús e de anhingas e gaviões e talha-mares e gaivotas. Uma jaçanã vinha correndo toda desengonçada, pela margem do rio, sem saber onde pôr as patas descomunais. Os jacarés, dos bancos de areia onde, até então, se deliciavam ao sol, tentavam abocanhar grandes

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baforadas de vento, com as fauces arregaladas, como se estivessem soltando um enorme bocejo ou uma colossal risada, antes de mergulhar indolentemente na água morna. A tempestade rolou de repente, com o primeiro estrondo de trovoada, que iniciava uma sarabanda infernal de clarões e de rajadas de vento e mais trovões. Uma chuva demais desatinada caía mesmo aos cântaros e logo a picada se transformou em um lodaçal e os riachos em verdadeiras torrentes intransitáveis. Os peões tiveram que recorrer a todas as manhas de sua experiência, para manter unida a manada e guiá-la pelo caminho menos perigoso, enquanto o vento e a chuva pareciam enfurecidos e não ofereciam sequer uma pequena trégua para pelo menos pensar um pouquinho. Umas vacas se desgarraram e os homens assistiram impotentes à correnteza levando-as sem piedade. A tempestade, porém, terminou de repente, como tinha iniciado, devolvendo uma tarde cristalina, aos viandantes exaustos, para que pudessem tirar a roupa ensopada e até esquecer a inclemência daquela jornada. Acamparam numa área mais elevada, onde a esplanada se movia em pequenos relevos ondulados, entre os quais sobressaía tosco o Morro Azul, com sua mole monumental atenuada pela reverberação dos últimos raios de sol. Lá havia uns currais construídos justamente para pousar em trânsito, por ocasiões como aquela, em que o gado era transferido para os pastos altos, na época das chuvas. Os homens descansaram a noite inteira, debaixo de um céu que nem dava pra ficar contando as multidões de estrelas, uma mais brilhante que as outras. Os ruídos da noite pantaneira se sobrepunham aos sonhos agitados

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daqueles homens, em uma sinfonia surda de rastejos, estalos, murmúrios e a conversa tola das rãs dispersas pelo inteiro espaço ao redor. Jacinto de Aquino aproveitava sempre aquela parada, para pôr em ordem sua vida. Não ficava contando os anos, para não ter que se aborrecer, e menos ainda apostava nos que lhe restariam de viver. Só gostava de enumerar as coisas miúdas que tinha conseguido realizar desde a última vez que passara por aí e testava sua memória, para ver se ainda conseguia lembrar o nome de todas as mulheres que amara até então. De cada uma delas procurara guardar um detalhe que pudesse marcar um lugar exclusivo em sua memória prodigiosa. Ele sabia muito bem que o nome poderia ser facilmente substituído por um qualquer que lhe soasse conveniente no momento, mas seria um sinal definitivo de sua decadência, se, por ventura, começasse a confundir a lembrança de um odor ou de uma palavra ou de um traço de personalidade que era o que lhe permitia diferenciar a rica multiplicidade de pessoas, de uma anódina multidão. Acordaram antes que o aranquã cantasse. O que os derrubou das redes fora um verdadeiro tiroteio a média distância. Logo perceberam não se tratar de disparos de coureiros ou de algum caçador de fim-de-semana. Havia rajadas de metralhadoras entremeadas aos tiros secos de fuzis automáticos. Até algum tiro de morteiro de pequeno calibre devia estar sendo disparado em algo parecido com uma batalha campal. Podiam ser exercícios militares, mas ninguém tinha avisado sobre a programação de eventos desse tipo, através da rádio da fazenda. Jogos de artifício eram a coisa mais improvável, naquela lonjura de qualquer centro habitado. Podia ser uma batalha mesmo. Jacinto e os serviçais mais antigos lembraram da época em

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que apareceram, por aquelas imediações, alguns batedores da legendária Coluna Prestes e, mais recentemente, o contato que tiveram com o bando de guerrilheiros guiados por Ernesto Che Guevara. Ao alvorecer, Wanderlei viu um jovem soldado se movendo com circunspecção no meio do colonião e, finalmente, aparecer de corpo inteiro na frente dele, quando se dispunha a alimentar seu cavalo. Ao notar o rapaz junto com o animal, o militar se jogou no chão e rolou instantaneamente, segurando bem alto o fuzil, como tentaria fazer um garçom com sua bandeja abarrotada de copos de cristal, ao escorregar em uma casca de banana. Wanderlei não teve tempo de achar nada de engraçado naquilo, pois foi de pronto arrebatado por um estouro e um assobio e uma tremenda pancada na cabeça, antes mesmo de começar a perceber onde doía. Ficou aí mesmo, desacordado, vendo coisas que nunca tinha visto antes e nem reconhecendo o pouco que aprendera até então. Atrás do soldadinho, a voz do comandante ressoou até mais forte do que o próprio disparo: — Pare, imbecil. Não vê que é apenas um garoto? — Desculpe, senhor capitão, mas eu pensei que se tratasse de um guerrilheiro — tentou se justificar o praça. Foram socorrer Wanderlei, que já recuperava a consciência, enquanto perdia rios de sangue. Havia levado apenas um raspão, mas fora o suficiente para lhe esfolar uma mecha da cabeleira ruiva — de que tanto andava orgulhoso — junto com o escalpe que deixava uma trilha em seu couro, de onde logo brotara a hemorragia. Em um instante, formou-se, ao redor daquela mancha vermelha, uma mancha de uniformes de ações-na-selva, amarrotadas e sujas de barro, de um lado, e, de outro, o

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grupo estático dos vaqueiros, travados por uma mistura de estupefação e de terror e de revolta. Lá havia uns vinte leopardos, comandados pelo capitão Omar, que se aproximavam com o máximo cuidado e com evidente pesar e vergonha — mesmo com todo o arsenal bélico de que estavam dotados — ao descobrirem que se encontravam em território estrangeiro, diante de cidadãos desarmados, a um dos quais haviam quase tirado a vida. Roberto sentiu mais fortes que os demais os calafrios do medo, ao assistir à apresentação daquele militar truculento, que tentava, em vão, manifestar-se cordato e conciliador. Pediu a Jacinto que não revelasse ao intruso sua verdadeira identidade, botando a desculpa que, como jornalista, poderia criar mais problemas ainda. Evitou também explicar como conhecia o sujeito e ficou a ver como se desenrolaria o caso. Jacinto acabou assim, nem sabendo que Glória havia sido esposa daquele homem e nunca saberia sequer da existência de Suzy. Omar, doutro lado, fez uso de toda sua habilidade comunicativa para evitar que a revolta justificada dos peões se transformasse em um conflito destemperado, que complicaria ainda mais o saldo desastroso daquele encontro fora de programa. A intervenção de Jacinto, porém, foi que determinou o encerramento pacífico do incidente, dando o devido prosseguimento, primeiro, às atenções com o estado de saúde do filho e logo tomando as rédeas de toda aquela situação escabrosa, como teria feito um verdadeiro estadista. — Deve ter existido, com certeza, uma boa razão para que vocês invadissem meu país e minhas terras.

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— Le pedimos las más sinceras disculpas, señor— apressou-se o militar, improvisando uma defesa plausível — mas estávamos ao encalço de um bando de guerrilheiros, que visam à desestabilização do nosso governo e que seguramente constituem um perigo para o vosso também. Meu país é o Pantanal. E aqui o governo sou eu. Somos soberanos e livres. Não temos exército nem interesses a defender, que não sejam os da natureza e da vida humana. Poderei, todavia, tratá-los como hóspedes em lugar de expulsá-los como invasores, contanto que estejam dispostos a deixar suas armas de lado e aceitem viver em minhas terras como cidadãos do mundo. O Leopardo achou a proposta tentadora. Lembrou que, infelizmente, tinha compromissos a cumprir, mas aceitou a generosa hospitalidade do patriarca, para que sua tropa pudesse restaurar um pouco as forças, antes de voltarem às atividades corriqueiras. — O que lhe posso garantir — assegurou, entretanto — é a suspensão de qualquer atitude bélica, enquanto estivermos em seu território. O incrível aconteceu. Leopardos mancomunados com aquela gente simples, em uma confraternização só comparável com o congraçamento de garças e jacarés, de onças e de veados, que existe, como por um milagre, só no Pantanal Mato-Grossense. Os soldados tomaram umas roupas emprestadas dos peões, pra vestir depois de tomar banho no rio, com a nudez desenvolta e a alegria barulhenta de crianças inocentes. Colaboraram com os vaqueiros na preparação de uma grande churrasqueira e na confecção de longos espetos de madeira, ajudando Genivaldo a carnear um bezerro, tirando cuidadosamente

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o couro do animal e cortando a carne em grandes pedaços, adequados àqueles espetos descomunais. O momento culminante da festa, porém, foi a chegada do índio Pakariã. Era um cacique Kadiwéu, velho conhecido de Jacinto. Este interrompeu o churrasco e até levantou para ir comprimentá-lo, em sinal de grande respeito. — Soube que seu filho ficou ferido e trouxe o nosso melhor curandeiro para tratá-lo. — Agradeço-lhe, meu amigo. As mulheres já fizeram o curativo e o garoto passa bem. Mas sua visita nos enaltece e os cuidados de seu pajé nos tranqüilizam. O índio fez um gesto teatral, para passar uma ordem aos dois guerreiros que o acompanhavam. Daí, todos entenderam que o curandeiro não era nenhum deles. Pois ambos se apressaram a voltar pro mato e, daí a pouco, estavam de retorno, junto com um branco musculoso, dotado de uma grande cabeleira e barba loiras, vestindo um poncho de muitas cores, botas de cano alto e uma vistosa boina vermelha na cabeça. Os soldados levantaram-se imediatamente e sentiramse totalmente desamparados, diante do recém-chegado, em que reconheciam o líder dos guerrilheiros, sobre o qual, fazia muito tempo que queriam pôr as mãos. — Viemos em paz e em paz voltaremos — avisou solenemente Pakariã, enquanto o Leopardo convencia seus companheiros a se manterem tranqüilos e a confiar na autoridade do dono da casa. — Estou desarmado. Venho como médico que sou, a pedido do cacique — apresentou-se o guerrilheiro. — Você não é o tal de nuevo Che? — interveio, com firmeza, Omar. — Não acha que está sendo demais de

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atrevido em nos desafiar, aproveitando da neutralidade do nosso anfitrião? — Nossa luta é por uma nova ordem. Mas não é o lugar nem a hora de manifestar nossas divergências. Cuidarei do garoto e irei embora para continuar a minha missão de resgatar a humanidade das intrigas de um grupo de facínoras, que se arvoram em donos do mundo. Roberto reconheceu, finalmente, o amigo Luís, que perdera de vista tantos anos antes e do qual tinha-lhe sido revelada a verdadeira identidade — como sendo o doutor François De la Roche — e todas as peripécias da sua juventude. Procurou não ser notado por ele, pelo menos enquanto estivesse na frente do Leopardo. Foi, entretanto, contactá-lo logo, à beira da cama de Wanderlei, para abraçar o amigo e pedir as explicações, que já começava a compreender sozinho, sobre o porquê de seu desaparecimento em Pucaranga e sobre os motivos de suas opções subsequentes. — O Pantanal é um microcosmo, onde o ser humano é bem-vindo, contanto que não mexa em nada — estava argumentando Jacinto a Omar, durante o almoço. — Não é um desperdício tanto espaço vazio? As distâncias tornam a produção humana antieconômica — divergia o Leopardo. — O que é ecológico também é econômico. Natureza é fartura. O que torna escassos os recursos à nossa disposição é a ganância de uns poucos, que querem acumular riquezas, se esquecendo dos demais. — Tem que admitir, todavia, que nossas populações estão atrasadas, justamente graças à nossa atividade predominante sempre ter sido a agropastoril. Precisamos de mais indústrias e de transportes mais rápidos e de comunicações mais eficientes.

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— O que é atraso? E o que é progresso? Os olhos de Jacinto se velavam de mágoa e de desapontamento diante da obtusidade de homens como aquele, que se iludiam ainda com uma visão distorcida do progresso. Sem saber que o prejuízo, nesse caso é sempre superior a qualquer benefício. Eles, ao contrário, em sua clarividência, inspirada pela grande experiência de vida, estavam querendo traduzir a determinação de seu dono: "Já conheço o mundo. Por isso faço questão de ficar por aqui mesmo, pelo resto de minha vida" . — O que seria das cidades, se ninguém plantasse alimentos ou criasse animais? — perguntava com angústia aquele homem vivido. — O mundo vai para a destruição, pois o poder do ouro substituiu o poder da natureza. — Deveríamos nos unir, para formar um povo só, índios e homens brancos, ricos e pobres — sugeria o cacique Pakariã, com a solenidade hierática de um preceptor bizantino. — Não custa sonhar com uma república de Pantanália — ironizava Omar, com pouco tato. — Mas a realidade é bem mais complexa e a sobrevivência das nações impõe até a luta armada para manterem suas estruturas íntegras. — A realidade não pode ser verdadeira, sem ter primeiro passado pelo sonho — intervinha Roberto com sensatez. Aquela reunião de cúpula de gente pouco importante, talvez, mas tão representativa de todo tipo de humanidade — raças e culturas diferentes, um médico guerrilheiro, um ex-padre jornalista, um soldado ambicioso e, talvez, corrupto, um chefe índio, um filósofo caboclo, e toda aquela ONU matuta — parecia algo de demasiadamente arranjado, de exageradamente fantástico, para ser verdadeiro.

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— Todo homem aspira ao poder — continuava impertérrito Omar, rezando pela cartilha das instituições governamentais. — Quem não gostaria de tornar-se um ditador? — Ninguém pode se arrogar o direito de mandar no destino de multidões — rebatia Roberto. — Um espírito equilibrado não pode esperar conduzir com sucesso as multidões mediante exortações sensatas e pela persuasão, quando o campo está aberto à contradição desarrazoada. — Homens não são animais e os que tratam mal a natureza são os mesmos que judiam da humanidade — sentenciou Pakariã. Para governar a nossa gente é bom usar os conhecimentos dos brancos, mas a sabedoria dos índios é melhor. Eles respeitam a terra e os bichos. Por isso tinha escolhido François como o melhor curandeiro de sua tribo. Toda vez que este passava por aqueles lados, examinava todos os moradores da aldeia e distribuía remédios e vacinas, fazia curativos e pequenas cirurgias, ajudado pela fiel Violeta. A criançada o adorava e os guerrilheiros tinham-se tornado os protetores e os ídolos daquela gente primitiva. Roberto, quando conseguiu se entreter a sós com o amigo, lhe entregou um presente, que levava sempre consigo, pois tinha certeza que um dia o encontraria. Ao abrir o singelo pacote, o homem forte e destemido derreteu-se em lágrimas. Era o diário de Lucienne, que Toninho Neves havia encontrado entre as coisas que eles haviam esquecido de procurar, na hora da fuga. Folheou-o com carinho, como se afaga um bebê. Havia aí toda a história de sua juventude e de sua felicidade pertinaz, no meio do turbilhão da vida.

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Naquele caderno, Lucienne descrevia, passo a passo, as buscas e as descobertas, as surpresas e as emoções da adolescente e da mulher. Devota, corajosa, apaixonada. Mulher e amante. Delicada e forte.  Segunda-feira, 21 de julho de 1969. Ontem os homens pisaram pela primeira vez na lua. A televisão mostrou pra todo o mundo a façanha dos americanos. É coisa de não se acreditar, assim mesmo. E eu estou em Veneza. Parece também um lugar extraterrestre. O Canal Grande é mesmo a rua mais linda do mundo. Tinha razão o meu patrício Philippe de Commynes, já no século XV. A ilha de San Giorgio está deitada à minha frente, como a fachada branca da igreja também, toda virada para o sol claro da tarde adriática. A torre elegante e ousada procura, igual um foguete, o céu limpo e palidamente azul. As cúpulas amansando as linhas dos telhados e a soberba compostura do conjunto arquitetônico, que bóia imóvel nas águas serenas da laguna. Já passei em revista os palácios e as calli. VendraminCalergi, onde morreu Richard Wagner, Cá d' Oro, os afrescos do Giorgione no Fôndaco dei Tedeschi, Cá Loredan, o Corner-Spinelli, o Corner della Cá Grande... Quinta-Feira, 24 de julho de 1969. François está se preparando para a sessão de exame de verão e eu aproveitei para adiantar alguns contatos pra

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ele. Ainda não temos a visão clara do que vamos ter que realizar no futuro. Mas, por enquanto, tudo corre às mil maravilhas. Hoje eu vi o palácio Pesaro dei Camerlenghi, Cá Foscari, Bernardo, Giustiniano, Rossonico, Galleria dell'Accademia (Paolo Veronesi), Varnier dei Leoni, Dario... Passei debaixo da Ponte de Rialto (1588-92), vi Riva degli Schiavoni, com o Palácio Ducal e a Basílica de São Marco: Napoleão considerou sua praça, o salão mais elegante do mundo. Veneza é a materialização de um sonho de transcendência das limitações. Você entra em um mundo irreal, bom para visionários e poetas... Quinta-Feira, 15 de setembro de 1970. Como Londres é uma cidade maravilhosa! Eu já estou aqui há dois dias e estive correndo literalmente de um passeio para outro. Estou bem cansada, e quero explorar alguns lugares por minha própria conta. Hoje fiz um passeio que começou na praça Trafalgar. Tomei o underground (que nome esquisito para um metrô!) perto do meu hotel. Foi um passeio corrido, vendo o Parlamento, a Torre de Londres, a Ponte da Torre, e a troca da guarda no palácio. O que achei mais interessante foram as jóias da coroa, na Torre de Londres. Eu já estive fazendo tantos passeios que esta tarde resolvi fazer umas poucas compras. Fui a uma das internacionalmente famosas lojas de departamentos. A enormidade do local era assombrosa. Eu achei que seria muito mais agradável fazer compras em lojas menores. Eu comprei um cachecol pra François e um jogo de chá pra nós dois.

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Pode-se ir a pé do hotel até o Hyde Park. No final de um dia maluco, decidi que um passeio pelo parque era justo o que eu precisava. Acabei ficando sentada num banco do parque por mais ou menos uma hora. Ficar vendo o povo era divertido. Todos os tipos mais clássicos de ingleses passaram por mim — entre eles, homens com trajes típicos, babás empurrando carrinhos de bebê e os guardas londrinos. Nenhuma visita a Londres seria completa sem um chá no Hotel Ritz. Portanto, fui a pé do Hyde Park até Picadilly e tive um chá realmente memorável. É, na verdade, um pequeno almoço, pois oferecem pratos quentes juntamente com torradas, biscoitos e bolos. Depois de me empanturrar suficientemente com o chá, eu ainda andei um pouco mais. Mas chegou a hora do rush de Londres, e decidi que seria melhor ir a um cinema do que voltar para o hotel. É difícil acreditar que consegui arranjar forças para escrever hoje em meu diário. Eu tive um dia realmente fantástico. Eu adoro esta cidade... Sábado, 17 de setembro de 1970. Tenho que recuperar o atraso de dois dias no diário. Ontem à noite fui ao teatro, e voltei ao hotel muito tarde para escrever qualquer coisa. Ontem resolvi fazer um passeio livre, e decidi ir a vários locais por minha própria conta. Cedo, fui à Abadia de Westminster. Comprei um guia e dei pacatamente uma volta por toda a igreja. De tarde, fui visitar o Museu Britânico. É bem grande e é realmente impossível pensar que se pode visitá-lo em uma tarde. Mas dei uma volta rápida, e vi a Magna Carta, a Pedra da Roseta, e uma imensa quantidade de manuscritos e pautas

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originais — Bach, Hendel, Beethoven, Keats, Shelley, Dickens, e outros mais. Domingo, 18 de setembro de 1970. Hoje eu deixei de lado Londres e fui fazer um passeio a Stratford-on-Avon, a cidade natal de William Shakespeare. Fiquei pensando o dia inteiro em François. Me senti uma Julieta apaixonada. Fui de ônibus com um grupo grande, mas o guia era bem informado e valeu a pena. Deu para conhecermos uma quantidade de coisas, e ainda tivemos tempo para um almoço sossegado no hotel local. Strattford-on-Avon é uma cidadezinha pitoresca e ainda mantém um sabor Elizabetano. A maior parte dos prédios ainda é original, e muito bem conservada. Eu gostei de ver os locais relacionados com a vida de Sheakespeare. Dia 20 é o meu último dia em Londres. Vou ter que tirar o maior proveito dele!  O diário lembrava a François o que ele mesmo fizera naquela época. Todas as peripécias e os sofrimentos, para encontrar um sentido em sua vida. As viagens de Lucienne para o Oriente Médio, enquanto ele se aventurava no extremo oriente. Os contatos com os chefões da papoula, nos campos da Indonésia, da Turquia e do Irã. Sempre enfrentando e sempre procurando uma saída. 

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Quarta-Feira, 23 de maio de 1973. Uma amostra espetacular do glamour, da beleza, do poder e da elegância, criados há 3 milênios, é o vale das rainhas, nos arredores de Tebas, onde está a tumba de Nefertari, a mais bela esposa de Ramsés II, morto em 1223 a.C. Eu quero ser também uma esposa amorosa e uma companheira que faça feliz o meu esposo. François, eu te amo. Segunda-Feira, 28 de maio de 1973. Hoje fui visitar o hospital de Hadassa, em Jerusalém, onde está a sinagoga com os vitrais de Marc Chagall. Junto com Charles Marq ele trabalhou durante dois anos, para fazê-los. São os doze filhos de Jacó e suas tribos, iluminando a pequena sinagoga do hospital universitário, com uma miríade de cores e de tonalidades. Bichos de todos os tipos, plantas, peixes e símbolos judaicos, flutuam nas alegorias, modulando o ar recatado e pensativo com sua festividade magoada. Lá estão os pais de Chagall caídos, debaixo de seu olhar impotente. E milhões de outros judeus, que aguardam destino idêntico ou já aniquilados, ontem e milhares de anos atrás, como ele mesmo interpretou. E estão também as cores das bênçãos do sumo sacerdote — esbanjando ouro, azul, púrpura, escarlate e irradiando os reflexos de doze pedras preciosas: esmeralda, safira, azul-jacinto, ágata, berilo, lapislázuli, jaspe... — às doze tribos de Israel. E está Rubens, o primogênito, minha força e o princípio de meu vigor,

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diz a bênção. E Simeão e Levi, cujo furor aterroriza. E Judas, que os próprios irmãos louvariam e seguraria o pescoço dos inimigos sob sua mão. E Zábulon, que moraria em portos de mar. E Íssacar, asno ossudo, e Dan, juiz de seu povo, que seria como a serpente na estrada, o escorpião da vereda, que morde o calcanhar dos cavalos e arrebata seus cavaleiros. E Gad, capaz de rechaçar, render e destruir os exércitos inimigos. E Áser, cujo pão será volumoso e deleitará o rei. E Néftalis, cerva delgada, que dará veadinhos lindos. E José, ramo frutífero perto do manancial, cujo brotos se expandem sobre o muro. E, por fim, Benjamim, que será forte e herói e à noite repartirá o botim recolhido pela manhã. Lembrei-me da praça do Capitólio, em Roma, e tentei, mais uma vez, adivinhar quais poderiam ser os doze próceres da aldeia global de nossos dias.  François navegava no passado, se esforçando para aproveitar apenas os momentos de alegria, mas o perseguia a constante presença da organização, como um horrível pesadelo. Reviveu, nas páginas de Lucienne, os momentos de ternura do casamento e da lua-de-mel, pontualmente realizados, como mandava o programa. Mas logo o assaltava o terror da descoberta da trama poderosa que rege a humanidade. 

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Quinta-feira, 30 de maio de 1974. Estamos em Toronto. Cada dia mais lindo que o anterior. François agora é meu esposo e eu simplesmente o amo. Tenho certeza que isso vai durar toda a minha vida. É uma sensação intensa de bem-estar e de satisfação que preenche toda a minha alma. Eu sou toda dele e sei que ele me ama. Hoje rodamos todo o centro da cidade, de mãos dadas, como dois pombinhos. Apreciamos a limpeza e a compostura dos edifícios, das ruas e das pessoas. Tomamos sorvete na Yong Street e fomos até a beira do Lago Ontário. Uma maravilha. Sexta-feira, 31 de maio de 1974. Quando o arquiteto Edward James Lennox terminou o prédio da prefeitura de Toronto, em 1899, tinha feito, sem dúvida um dos paços municipais maiores da América. Em seu interior, fiquei admirada pelos vitrais imensos diante da entrada principal, pelas colunas de mármore e pelo piso de madeira trazida da Geórgia. Ao redor do salão havia uma coleção incrível de uniformes militares. Mas nos jardins, François achou espetáculo horrível a presença de tantas esculturas pavorosas, bem debaixo dos beirais, provavelmente caricaturas sub-reptícias dos vereadores do fim do século passado.

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François lembrou que foram aquelas figuras que lhe revelaram a verdadeira estrutura do poder que rege o mundo. Debaixo da figura maior, que representaria o próprio Lennox, havia a incisão de um gráfico que reproduzia o mesmo esquema da praça do Capitólio, em Roma, projetada sobre um mapa-múndi. Só faltavam os nomes atuais dos 72 sábios (ou psicopatas?) que compunham a rede mais poderosa do mundo.  Foi quando resolveu romper definitivamente com o programa que lhe fora traçado e desviar a rota, rumo à América Meridional.

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.7 O FIM DA HISTÓRIA

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ERA praticamente impossível entrever a entrada principal da catacumba. Na realidade, não era uma verdadeira entrada O morro se elevava como um grande chapéu-coco, com o perfil arredondado pelo vento milenar, que lhe conferia um aspecto humilde e composto. Olhando-o pela rodovia que vinha do aeroporto, tinhase a impressão de que, numa determinada hora, se deveria atravessar o ventre da colina, antes de entrar na área urbana. O retão, entretanto, se curvava docilmente à esquerda, logo que se chegasse aos pés daquele coco, para retomar a direção norte, imediatamente após ter superado o obstáculo. À direita da elevação, havia mais uma estrada, que também acompanhava as bases do morro, só que do lado oposto. Na verdade era apenas uma estradinha de sítio, estreita e quase sem asfalto mais: melhor seria chamá-la de picada. Devia ter sido muito utilizada, antes que construíssem a grande rodovia, mas agora a deviam estar usando somente os agricultores, para o transporte de suas mercadorias, nos trajetos mais curtos. Era exatamente de um desvio daquela picada, quase invisível entre os arbustos e o matagal que a invadiam a toda hora, que se chegava à entrada da catacumba. Roberto ouvira falar dela em muitas ocasiões, mas quem lhe havia quase imposto a obrigação de visitá-la, havia sido François, quando foram hóspedes da fazenda do seu Joaquim De Aquino. — Olha direito pro Morro Azul aqui — havia-lhe dito o amigo. — Você vai ver que os dois morros têm um aspecto muito parecido, apesar de os contornos deste daqui serem, sem dúvida, mais grosseiros e pesados do que aquele que você vai ver em Roma.

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O que tem a ver a geografia deste cerrado, com a italiana? — estranhou Roberto. — Três milênios de cultura transformaram totalmente a superfície e até o subsolo daquelas terras superpovoadas, que a duras penas conseguem renovar alguma vida vegetal e animal. — É exatamente isso que situa em tão íntima relação as nações economicamente desenvolvidas e as que ainda labutam para sair do vermelho do atraso tecnológico, do analfabetismo e da pobreza generalizada. E é isso que acabei descobrindo no que diz respeito à organização que domina a humanidade, há pelo menos duzentos anos. — Você acredita mesmo, que existe uma estrutura tão extensa e poderosa que alcance com seus tentáculos, lugares tão diferentes e distantes? — Infelizmente, não apenas tive que encarar esse polvo maldito, como também fui instrumento e vítima dele, tanto quanto você também e, em vários graus e formas, todo mundo. E, além do mais, como esses dois, existem ainda outros dez, esparramados pelo mundo afora. Mas o de Roma é o principal. É lá que mora Ramsés. — Gostaria que você fosse junto comigo — quase suplicava-lhe Roberto, assustado. — Não é possível. — François se mostrava peremptório. E justificava a afirmação com argumentos, que o outro acabou reconhecendo como irrefutáveis. Roberto não fazia parte do esquema e podia melhor servir de mensageiro. François havia já tentado penetrar no interior da catacumba, quando retornara à Europa, logo depois de ter decidido vingar a morte da esposa. Mas o acesso lhe havia sido vetado, provavelmente por causa de suspeitas sobre suas verdadeiras intenções.

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Ele já havia-se inteirado completamente da estrutura da organização, comparando as informações de que dispunha, com as que lhe forneceu Quin, o anjo vietnamita que conhecera em Toronto. Adquirira o costume de rotular todas as pessoas pela letra A de anjo ou D de diabo — diga-se de passagem — graças à visão extremamente simplista da vida e dos homens, que Lucienne lhe havia inculcado, fruto do contato com a cultura persa, quando de sua ida ao Irã. Tornara-se um mecanismo de simplificação até plausível, pela eficácia didática e pela segurança que oferecia, ao orientar todos os cuidados e esforços, para proteger-se contra os perigos que os diabos poderiam apresentar. Mas, doutro lado, dificultava sobremaneira uma catalogação adequada do comportamento alheio, quando um indivíduo qualquer demonstrasse, por exemplo, uma boa índole, sob certo aspecto, enquanto, em um determinado momento, surpreendesse todo mundo com um ato de inaudita maldade ou de imperdoável velhacaria ou de indisfarçável mesquinhez. Giácomo Orgândi era um anjo. Já o príncipe Sforza se salvara do rótulo D, graças apenas à convicção de que se trataria da mesma pessoa. E o Bourgelat, então? Ele também devia ser fundamentalmente um A, apesar de certas idéias peregrinas e daquela sua personalidade um tanto esquisita; mas as circunstâncias deviam tê-lo tornado um D. Larisse, ao invés, devia ter sido um anjo, com toda certeza, como as demais mulheres que ele tinha conhecido. Em primeiro lugar a sua Lucienne. As mulheres, sem sombra de dúvida, são todas fundamentalmente A. Como pensar de outra forma, diante do amor devoto de Violeta por ele? Qualquer um sentiriase um deus, diante daquela jovem adoradora, totalmente

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dedicada aos rituais de uma religiosidade carnal, com que incendiava sua vigília e velava seu sono. O restante do dia era todo um preparativo. Sua pele de jambo mal emergia da escuridão da noite silvestre e já estava em movimento, a refletir a alvorada, em todo o fulgor de suas formas escultóricas. O andar descalço modelando o chão para seus passos cadenciados, que puxavam o restante do corpo em uma dança flexuosa e macia. O ritmo, propiciado pelas aves e pelos outros bichos do mato, em um festival de silêncios e de sons. Levava as roupas pro rio e trazia a água, os alimentos, as flores para a barraca do chefe. Nos dias em que não precisava partir cedo para alguma expedição ou batalha, a esteira, do repouso e do amor, era ainda a espreguiçadeira e a mesa e o divã do líder, o qual então virava também o rei e o amante e o deus, para sua fã maior idolatrar e mimar. Não haveria roupa mais asseada ou pratos mais deliciosos, em um salão principesco ou em uma alcova imperial. E não haveria cortesã mais sedutora do que aquele broto firme e dócil, que respirava e se mexia somente em função do novo Ché...  O primeiro contato de Quin com François havia sido em Malta, mas não diretamente. La Valletta era o último porto, onde atracaria, antes de alcançar a França. Educado em escola de padres, lá em Saigon, havia transcorrido uma juventude totalmente alienada dos problemas de seu povo. Até o dia em que os franceses deixaram a Cochinchina. Seu pai tinha sido um oficial das forças armadas, na época do general L'Atre de Tassigny. Quando Quin contou isso, François até sorriu, lembrando da praça em que praticamente havia iniciado 226


seu roteiro, pelo mundo afora. Listou, mentalmente, todos os D que haviam infernizado sua vida e concluiu que, apesar da distância, o coronel Wang Ton Quen, pai de Quin, devia ter sido um deles. Muitos rebeldes haviam passado pela sua espada, sem contar as centenas de miseráveis, que os canhões e os rifles de suas tropas regulares haviam dizimado. Quantas jovens tinham tido o privilégio de serem por ele defloradas, quantas crueldades mais havia perpetrado, à frente de seus guerreiros! O bem-estar que ele conseguia propiciar à sua família não tinha origem, evidentemente, apenas nos minguados François, que mal chegavam, muitas vezes, a se converter em piastras, tão rápida era, na época, a desvalorização da moeda vietnamita e tão reduzido estava o poder aquisitivo do soldo reservado àqueles fiéis guardiões da província. Os estudos de Quin e de suas duas irmãs e os bens, que conseguira acumular, em vários lugares da Cochinchina, provinham, na verdade, de suas atividades paralelas e clandestinas de proteção a subalternos, de botins de guerra, de achaques a empresários e, principalmente, de sua progressiva ascensão no ramo sul-asiático da organização. Quin descobriu tudo isso, só quando seu pai estava morrendo e o veneno que alguém, entre seus numerosos inimigos, havia conseguido pôr em sua comida, não tinha sido rápido o bastante, como para impedir que o coronel revelasse todos os seus segredos ao filho. Este terminava, naqueles dias, o quinto ano de serviço militar. Tudo que estudara e tudo que tinha, passaria, doravante, a dedicar ao desenvolvimento de sua gente, enquanto tentaria escapar às garras dos inimigos de seu pai. Em Malta, Quin chegara sob identidade falsa, desertor e clandestino — mas cheio de dinheiro —, no dia 3 de

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agosto, festa de São Caetano, padroeiro de um subúrbio de La Valletta. À saída do porto, foi quase arrastado por uma multidão, que levava o santo de passeio pela cidade. Era um tumulto alegre e barulhento, amalgamado pelas marchinhas desencontradas de uma banda bem intencionada e persistente, embora pouco familiarizada com as sutilezas do pentagrama. Apesar de todo maltês ser trilingüe — culpa da dominação inglesa, por um lado, e, por outro, mérito da televisão italiana, que alcança a ilha, sem precisar de estações retransmissoras —, Quin teve que agüentar aquele furacão de gritos e risos articulados em uma linguagem totalmente diferente das várias que ele estava acostumado a falar ou que tinha aprendido, durante sua primorosa formação literária. Quando encontrou uma brecha, saiu do meio daquela onda humana, se agarrando a uma esquina, por sorte adjacente à entrada de um pequeno hotel. Em inglês, conseguiu tudo o que queria e foi logo pro quarto, tentar relaxar da maresia prolongada e de mais aquele último turbilhão em terra firme, que tivera que enfrentar. À noitinha estava de novo na rua, onde continuava a encontrar aquela torrente humana, por onde quer que ele fosse. A diferença é que, na noite da festa, não existe um único maltês que não fique totalmente embriagado. Em uma pequena travessa obscura, onde tinha procurado refúgio da maré humana que o sacudira pela avenida principal, encontrou um garoto de nove ou dez anos de idade, encostado na parede de uma das casas, com um casco de Black-and-White vazio na mão, parecendo querer engolir todo o ar da redondeza, pois, evidentemente, estava afogado em um verdadeiro mar de álcool. Carregou o menino nos braços até a esquina da

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outra rua, paralela àquela de onde tinha fugido, esperando que estivesse um pouco mais sossegada. Era, de fato, a própria avenida à beira-mar, que se alargava em uma pracinha de formato irregular, lotada de gente sentada às mesas permanentemente esparramadas diante da entrada principal de cada pequeno restaurante. Chegaram logo dois jovens altos e musculosos, ainda em plena fase eufórica do uísque, os quais interrompiam uma animada discussão, para prestar-se a ajudá-lo. — Um hospital, já — se esforçou para explicar em inglês Quin, preocupado com a sorte do garoto, ao entregá-lo nas mãos daqueles energúmenos etilizados. — Don't take care, stranger. — gritou-lhe, sem maldade, o mais loiro dos dois, enquanto retomava seu falatório incompreensível em maltês, com o companheiro, que quase arrancava as pernas do resto do corpo do menino, querendo tomar a direção oposta àquela escolhida pelo parceiro. Quin procurou se acalmar e admitir que ele era apenas um estrangeiro mesmo e não tinha o direito sequer de ajudar os outros. Sentou em uma das poucas cadeiras vazias, lá perto, e começou a meditar sobre os últimos acontecimentos. — Deixe com eles! Ils sont si heureux!— a linda mulher, que ele tinha acabado de notar, sentada sozinha à mesa do lado, adivinhara seu sotaque francês, apesar da tentativa de disfarçá-lo na linguagem mais britânica de que fosse capaz. A noite era clara, de uma lua maior que a própria ilha. Dava até para flagrar os navios no meio do mar e as ondas voluptuosas os embalando suavemente. A miríade de reflexos prateados se esmigalhando em outras tantas novas centelhas, miúdas e vivas. Os ruídos da cidade em

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festa, acompanhando aquele fervilhar de luzes, como uma mão que ajeita uma fantasia de lantejoulas, sobre o corpo de uma mulher. — É verdade, estão muitos felizes — concordou Quin, tocado pela bondade daqueles olhos. — E muito doidos também — teve que acrescentar, sorrindo. — Todo ser humano precisa de seu dia de folga, senhor Quin — o surpreendeu aquela voz pousada e segura de mulher. Ele esperava encontrar um homem, que o reconheceria pelo número XIV em broche de ouro, do pai dele, fixado à lapela de seu impecável terno de linho bege. — Confesso que estou admirado, ao ser reconhecido por uma dama, neste quinhão perdido no meio do Mediterrâneo. — Não importa muito o que os olhos nos mostram, e sim as credenciais que o nosso coração oferece. A jovem senhora explicou como tinha sido delegada pelo esposo, para coordenar os contatos com as pessoas que poderiam ajudar a desvendar os mistérios, que ainda o afligiam, e em reordenar os planos de sua própria vida, numa direção moralmente mais aceitável. — Nos encontraremos mais vezes e conseguiremos alcançar nossas aspirações comuns — concluiu Lucienne. Quin tornou-se, assim, um ótimo apoio para a execução dos planos que François ia arquitetando, enquanto, aparentemente seguia o esquema preestabelecido. Quando veio a conhecer os segredos do general Wang Ton Quen, que adquirira a posição XIV, no ranking da rede, François se convenceu de que havia mesmo uma maneira de reverter a fatalidade. — A catacumba é um labirinto de salas e corredores, que respondem a uma concepção sordidamente mística da geopolítica mundial, assim como vem sendo pensada, há

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muito tempo, por uma estirpe de malfeitores disfarçados de estadistas. Eles têm a convicção de que os homens podem ser governados pelo poder do ouro e os próprios governos são manipulados, no mundo inteiro, para obedecer aos objetivos de um segundo rei Davi, um messias das trevas com uma estrela de doze pontas, o qual garantirá o domínio do mundo a essa casta de predestinados, para sempre. — Você não tem medo, em lidar com essas forças subterrâneas? — Por que acha que eu não deveria ter medo? Sempre convivi com a incerteza e a insegurança e o perigo. Sempre tive que enfrentar a angústia da próxima esquina. Atrás dela poderia estar a morte, de tocaia, ou, pior, a doença, a impotência física, a incompreensão, a maldade alheia... Mas, por incrível que pareça, foi nessa corda bamba que acabei encontrando a minha paz.  Quando entrou na catacumba, Roberto lembrou-se do casarão do massacre de Labareda, embora se tratasse, desta vez, de um labirinto luminoso e asseado. — Cosa desidera? — perguntou, com afetada cortesia, uma voz anasalada do porteiro eletrônico, escondido nas frestas da parede rochosa, atrás de arbustos. — Voglio vedere Laforgue — falou imediatamente Roberto. François o tinha ensinado. Mas ele se lembrou, naquele instante, só do sorriso do Condorito. Uma pedra rolou horizontalmente e se abriu um vão, que transformava de repente o meio selvagem numa acolhedora sala de recepção. A cor azul clara predominava nas paredes e no balcão, atrás do qual estava uma jovem

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vestida de um longo roupão de cetim branco, com um diadema cintilante segurando os longos cabelos. — Força, luz e coragem mantenham seus passos seguros e os levem na trilha do conhecimento da verdade — rezou aquele ser extraterrestre, em voz monocórdia, enquanto aspergia o visitante com o hissope. A sala não tinha portas, nem janelas, e o estranho tivera a sensação de ter sido trancado em um luminoso calabouço. Até o momento em que a parede inteira à frente, delicadamente decorada com flores e com grandes letras brancas formando a palavra ÁLBUM, se abriu, descrevendo um ângulo de noventa graus, sobre o canto direito. A sala dobrou assim de tamanho, aprofundando o azul em uma fuga de imagens das profundezas marinhas, como se fosse um imenso aquário. Enquanto se aproximava ao fundo daquele cenário, a parede móvel voltava ao antigo lugar, atrás dele. Sobre uma belíssima concha, estava a palavra FÓSSIL. Foi avançando, desta maneira, enquanto se descortinavam progressivamente novos cenários, de cores e formas variadas. Arabescos e figuras da oleografia astrológica, bíblica e mágica, diferenciavam cada um dos ambientes climatizados. François sabia perfeitamente qual seria a seqüência das salas e de suas cores dominantes, pois conhecia finalmente o sentido verdadeiro do poema, que um bandido lhe havia soprado, fazia tantos anos, dentro da prisão. Azul claro, a cor do vitral de Chagall, que representa a tribo de Rubens, seguida pelo azul escuro de Simeão. O dourado da tribo de Levi resplandecia, não apenas nas paredes, mas até no piso e no teto, revestidos de

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mosaicos multicolores, se parecendo com uma capela bizantina, dominada pela palavra GERÂNIO. Vinham, a seguir, a tribo de Judas em vermelho, a de Zábulon em vermelho claro, de Íssacar em verde, de Dan novamente em azul, de Gad em verde-escuro, de Áser em verde oliva, de Néftalis em amarelo, de José em alaranjado e de Benjamin em azul-marinho. Uma palavra de cada verso de Laforgue acompanhava mnemonicamente a distribuição do mundo em setores: ÁLBUM (= branco, em latim) do papa e do nordeste da Europa e Ásia; FÓSSIL, Oriente Médio e União Soviética; GERÂNIO, Extremo Oriente; ILHAS, as Ilhas do Pacífico; TROVADOR, a Oceania; MARFIM, a África; FLOR, a América Meridional; ESTÓRIAS, América Central; PAZ, Estados Unidos; ELA, Canadá; NADA, noroeste da Europa; SENHORITA, norte da Europa.



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A tribo sacerdotal de Levi havia eliminado Antoine, o qual estava sendo preparado para suprimir o papa Paulo VI, mas havia já um substituto para essa tarefa. A doença salvara o papa da morte violenta mas, afinal, morte é morte, de que jeito sobrevenha. O sucessor, João Paulo I, o papa Luciani, que o diga. Ele também pregava a liberalização da Igreja. Seria um João XXIII e um Paulo VI juntos numa pessoa só. Um verdadeiro perigo. Deu no que deu. François tinha sido escalado para fazer o serviço. Pra ele, teria sido um salto enorme dentro da hierarquia da organização. Mas sua fuga o desqualificara. Levi procurou, então, em seu próprio reduto o jovem turco que tentaria eliminar mais um papa progressista, em 1980. A punição de François foi a morte de Lucienne...  Um domingo de primavera amanhece preguiçoso mesmo em uma cidade tropical como Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Ainda mais na hora da missa na penitenciária, onde o frei Wildebrand já vinha embalando, fazia uma hora, as almas pervicazes dos detentos, com sua voz monótona e branda, enrugada apenas pela perdoável aspereza do sotaque alemão. Perdão e compreensão, por sinal, respiravam-se em qualquer canto do salão abafado, misturados embora com as exalações sebosas dos condenados, recém-emersos dos langores de mais uma noite de sonhos de amores e de fugas e logo mergulhados na atmosfera mole travada pelo coral incansável e pelos fervores místicos do padre. A irmã Zósima não gritou mais alto que os demais, pois teve a impressão que a visão apocalíptica à qual estava 234


assistindo pertencesse às íntimas elucubrações que a dominavam naquela altura do pai-nosso Por cima da careca do frei, de fato, estava surgindo a careca do Zé Carranca, como um sol escuro nascendo de outro, mais pálido, enquanto um revólver permanecia pendurado ao ouvido do religioso, parecido com um brinco horrendo. — Todo o mundo quieto, ou estouro o padre. Todos ficaram quietos como estavam, e ninguém precisou levantar as mãos, pois todo mundo foi pego rezando.. de mãos ao alto. Meia hora depois havia um mundaréu na rua. François vinha chegando na avenida, em tempo para enxergar o opalão do governador, preto e instantaneamente gigantesco, lá na frente dele, detido milagrosamente por uma árvore, antes de se lhe espatifar por cima. Petrificado, conseguiu ainda agradecer à árvore amiga, enquanto se agachava no banco ao lado, ingenuamente esperançoso que ele também o protegesse, pois uma trança de balas de verdade estava-se entrelaçando em todas as direções. Nem precisou da ajuda do assento, pois as balas certeiras foram todas crivar a lataria do opala irreconhecível, numa festa de crepitações, de assobios e de estouros. O ferro velho começou logo a despejar reféns e bandidos cambaleando, tingindo de riscos vermelhos o asfalto tétrico. Todos num pavor só. As freiras, não mais reféns, ficaram flutuando ao vento, ilesas, como anjos imaculados, perdidos no ar, sem ninguém mais pra cuidar, sem ninguém mais cuidando delas.

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A cena permanecia de uma imobilidade cristalina, Só as balas continuavam trançando teia invisíveis. Quem sobrou vivo foi, mais tarde, invadir o pronto socorro, onde François já tinha chegado são e salvo e tinha assumido seu plantão rotineiro. Parecia uma procissão. Alguns segurando outros. Guardas armados de metralhadora, alguns empurrando outros. Guardas, reféns, prisioneiros, enfermeiros, doentes, dementes e não-dementes, atendentes, superintendentes. Três macas, agulhas, frascos de soro, frascos de urina, catéteres, desfibriladores, soluções, problemas não resolvidos, opiniões, sugestões, vozes. François reconhecera o padre pelo livro preto com borda dourada e a batina pendurada no braço. Não o conhecia. Nem entendera muita coisa daquilo que estava apregoando, balançando a cabeça, que precisava acabar com as prisões, que os honestos parecem desonestos e vice-versa, e quando era pequeno, na sua favela só tinha ladrão e assassino, mas tudo corria bem melhor. Que sua mãe era preta e seu pai mais ainda. Que os juizes é que deviam ficar detrás das grades... Ele falava misturado com latim e alemão, uma salada de arrepiar. Macarrão era o preso que queria dizer seu nome verdadeiro, mas a bala esmiuçara-se-lhe na boca e só saía era sangue e baba, Zé Carranca estava delirando em alemão também, com uma bala casual infiltrada por trás da orelha. Falava de sua terra verde, que no inverno ficava toda branca de neve, de seus estudos, de seus amigos e namoradas louras, de mundos novos e de amor e paz. O guarda que não conseguia abrir a algema que o prendia ao comatoso do meio, teve a presença de espírito de avisá-lo de que o Macarrão era muito perigoso e que afastasse qualquer objeto contundente dele. De que jeito? O outro,

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que tinha ficado preso em um canto, conseguia insuflar ao seu ouvido: — Mata o Macarrão, doutor. Lhe dá uma daquelas injeções que você sabe e ninguém vai perceber. O Zé Carranca eu consegui acertar com meu revólver. O pessoal falou que foi no tiroteio. Que nada. Foi no camburão mesmo. Pode ter certeza que ninguém vai abrir o bico, Apaga ele... François nunca conseguiria fazer aquilo. Mesmo que quisesse. Sentia-se apenas, pela primeira vez, livre da escravidão do futuro incerto, mas prisioneiro ainda, de suas recordações. Imagens de pessoas amadas e amigas se sobrepunham às das personagens nojentas, que haviam atribulado sua juventude. Lucienne voltava à memória, em seu frescor adolescente e em sua tranqüila maturidade. E, de improviso, a labareda que a levara embora. O calor do corpo de Violeta vinha logo aquecer sua imaginação, moderado apenas pela mágoa por não tê-lo seguido quando ele decidiu alistar-se entre os Médecinssans-frontières. Ela continuava na ativa, junto com os excompanheiros de guerrilha, agora que seu país havia finalmente reconquistado a democracia e era uma forte candidata à presidência da república. Um após o outro, vinham à tona os lugares e os eventos que haviam marcado sua vida agitada de herói-semquerer e de espectador do fim da história: a redemocratização da América Latina, a queda do muro de Berlim, o fim do Comunismo na Rússia, a guerra do Golfo, a luta contra a fome na África... 

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Poderia parecer puro exagero, se não estivesse lotado de chineses aquele espaço imenso entre o palácio da Assembléia do Povo e a Cidade Proibida. Podia-se falar em milhões. Era o coração de uma megalópole e de um povo inteiro abrindo uma trincheira para a esperança. Roberto amanhecera naquela praça, junto com Quin e com o fotógrafo Chang. Aí, treze anos antes, Mao-tze-tung festejava o aniversário daquela revolução cultural que ele mesmo havia inventado. Mais uma revolta estudantil armava agora a baderna mais parecida com a democracia. A armada continuava seguindo sua tradição de manter-se distante daquele local histórico. A polícia, paradoxalmente, compactuava com os manifestantes. O poder central estava num impasse crucial. A redação da revista Expresso-Mundo queria do repórter Roberto De Luca notícias de primeira mão. Ele embarcara de pressa no Rio, rumo a Chang-hai e de lá conseguira uma passagem na linha aérea nacional, graças ao visto diplomático que o adido cultural do Consulado lhe havia fornecido. — Ninguém passa! Pode voltar! Não era uma ordem militar, mas vinha de um jovem que bem poderia estar prestando serviço junto com as centenas de pracinhas que cercavam Pequim. Ele segurava uma bandeira vermelha com o nome de sua universidade e levava na testa uma faixa branca riscada com quatro caracteres com tinta nanquim: Aquele que não tem medo de morrer. Atrás dele uma multidão barulhenta precipitava-se, cada vez que um veículo se aproximava da barreira. Quin relembrava sua vida de soldado, seu vigor patriótico e sua vitalidade de atleta. Era também um

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intelectual, mas tinha lutado pela própria pátria e, por isso, entendia perfeitamente aqueles jovens que se expunham à truculência do estado, em nome de um amor visceral pela nação. Uns vinte ônibus e camionetas, de atravessado, ocluíam toda a largura da avenida da Paz Celestial, que corta a cidade do leste ao oeste. Eram 3 horas da manhã, sábado, e debaixo da luz irreal dos gigantescos lustres estalinianos, a cena possuía matizes alucinados. Um 4 x 4 da polícia, vidros fumé e pequenas antenas no teto, tentava forçar a passagem. Com um movimento de sua bandeira, o estudante chamou para a reação. Vinte, trinta jovens chineses, cabeludos como roqueiros ou jovens funcionários de uniforme, vieram se apoiar no carro. As mãos escolhendo os pára-choques, o chassi, as rodas. E fazendo com que a viatura desse logo a meia-volta. — É um jornalista estrangeiro. Ele vai ver as outras barreiras, mais pela frente. O estudante pediu a Roberto a carteira da imprensa, depois fez o sinal para o motorista passar. Panorâmica de rostos tensos pelo medo e pela excitação, inclinados por cima de seu vidro abaixado. Uma moça elegante, de pulôver angorá e brincos de jade, lhe fez o V da vitória. A mesma coisa fez um velho desdentado, com seus óculos cobertos de poeira, grave como o destino. E centenas de homens, de mulheres, de mãos dadas, que lhes abriam passagem. Pequim estava vivendo sua Comuna. Haviam transcorrido três dias de euforia, durante os quais a quase totalidade dos onze milhões de habitantes da cidade, reunidos por uma dezena de milhares de estudantes vindos de todas as cidades da China, desfilaram na praça Tian-an-mem, para aplaudir os três mil grevistas da

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fome. O poder central acabava, de fato, de escolher a maneira forte. Mas os chineses não concordavam. Durante uma reunião de urgência do Comitê central, Zhao-Zi-Yang, secretário-geral do partido e campeão dos reformistas, propôs ceder às exigências patrióticas dos estudantes. Ele foi posto em minoria de 4 a 1, e já estava entre os demissionários. Na calada da noite, o primeiroministro, Li-Peng, líder dos comunistas de primeira hora, apareceu ao vivo na televisão. Tremendo de raiva, como um ditador conspurcado. — Pequim caiu na anarquia. Em qualquer canto a lei e a disciplina são escamoteadas. Nós devemos proteger o nosso sistema socialista, com a ajuda da gloriosa armada popular de libertação. A praça Tian-an-mem será evacuada esta noite. Após a primeira transmissão, a declaração de Li-Peng passou mil vezes na pequena tela e nos radinhos de pilha, soando como uma ameaça. Filho adotivo de Xu-En-Lai, formado na ideologia rígida, o primeiro-ministro chinês, de óculos e roupa estilo Mao, abotoada até o pescoço, era um puro produto do aparelho. Decidindo apelar à armada, ele pensava, sem dúvida nenhuma, de poder chamar à docilidade o rio imenso do povo da capital. Foi exatamente o contrário o que aconteceu. Desde os primeiros rumores de intervenção, alguns comandos estudantis amontoados nas plataformas das camionetas, se juntaram nos quatro cantos da cidade para alertar seus simpatizantes. Hordas de jovens empresários particulares, proprietários privilegiados de pequenas motos japonesas, corriam de um lado a outro, com a bandeira ao vento, para levar as notícias. Os operários do metrô haviam cortado a passagem para os trilhos, desde o início do

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discurso de Li-Peng e bloqueado a entrada das estações com correntes e cadeados. Eram 4 horas da madrugada. O taxista de Roberto substituíra sua insígnia amarela com uma bandeira democrática, e gritava seu apoio a cada grupo de vigilantes que cruzasse. As sirenes das ambulâncias transformadas em lotações para estudantes, batiam o ritmo estridente da tensão que subia sempre mais. Os caminhões passavam a toda velocidade, carregados de cidadãos, que ritmavam seus slogans vingadores na noite. A quinze quilômetros da praça, em pleno leste, o primeiro comboio militar. Havia quatro caminhões armados de canhões de água, seis caminhões carregados de bombas lacrimogêneas, enormes latas do tamanho de um foguete, e oito transportavam a tropa. Haviam chegado lá pela meia-noite e o trolebus duplo de número 403 estava colocado de través na pista. Quando a coluna parou, alguns operários de canteiro de obras lá perto colocaram umas cunhas atrás das suas rodas. Ficaram bloqueados durante quatro horas. Sobre o teto do ônibus, um estudante agitava a multidão que cercava o veículo caqui. — Quem faz a desgraça do povo? Quem procura desviar o povo de seu destino nacional? Milhares de vozes pediam a demissões de Li-Peng. Um homem subiu então na capota do primeiro caminhão do comboio, tirou, por debaixo de sua roupa enlameada, uma trombeta de cobre toda amassada e entoou A Internacional. A dois metros de distância, atrás do vidro de sua cabine, o graduado chinês, debaixo de seu capacete estrelado, permaneceu impassível como uma estátua de marfim. Segunda barricada, dez quilômetros mais longe. Ali estavam onze caminhões-pipas da usina de cimento do

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leste, que abasteceram uns vinte caminhões de capotas. Sobre a lona escurecida alguém escrevera slogans com o giz: Os soldados populares não são os cães de guarda da casa do imperador. Atrás de seu volante, cara a cara com o veículo de ponta do comboio, um operário de cinqüenta e poucos anos, com o rosto tranqüilo de um pai de família, ergueu a cabeça com ar decidido. — Mesmo se eles quiserem recuar, vamos aguardá-los até o meio-dia. Precisa que o povo de Pequim veja o que os soldados vieram fazer na capital. Os pracinhas, todos sem jeito. Eles eram muito jovens, e jogavam olhadas amedrontadas sobre a multidão que os encarava. Um estudante passava de caminhão em caminhão, para explicar a situação aos irmãos soldados. Como todas as tropas que se haviam reunido aquela noite em Pequim, esses recrutas haviam sido de fato privados da televisão e do rádio, fazia quatro dias. Fora-lhes dito que deveriam se reunir na praça Tian-an-mem para um desfile militar. Depois do esforço, vinha a recompensa. Três chinesas de uns quarenta anos de idade, comerciantes joviais, com braços de carregadores de porto, traziam uma panela de sopa de arroz. Os jovens soldados, com os lábios apertados, agradeciam e recusavam. — Precisa comer, meu filho — urrava a mais corpulenta das chinesas — não deixa os mandarins te arruinar a saúde! — Os que ouviram se torciam de rir. O soldado cedeu e aceitou a tigela de sopa. Foi aplaudido com entusiasmo. Roberto retornou a Tian-an-mem, santuário daquele maio de 68 ao molho chinês, ponto central da teia de aranha de barreiras populares. A alvorada acariciava a entrada da Cidade Proibida e enrubescia sobre os

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telhados pintados. Bruscamente, as reverberações da praça se apagaram e a luz difusa se tornou aurora. A Rádio Tian-an-mem, de seus alto-falantes, que os estudantes haviam pendurado em toda parte na praça, fez então ressoar o hino à alegria de Beethoven. Magia. Para os 3.000 grevistas de fome e para os 100.000 estudantes que ocupavam os lugares entre eles, a mais longa das noites em claro acabava de terminar. Após o amanhecer, a Rádio Tian-an-mem transmitia as notícias e as instruções. — Se tiver uma confrontação, antes de mais nada mantenham-se calmos. Formem cordões cerrados e não batam em nenhum membro das forças da ordem. Os soldados tentarão romper as linhas estudantis pela entrada noroeste. Acabamos de ter notícia de que policiais antimotim de Xian espancaram os estudantes deitados diante de seus caminhões, perto da estação de Feng-tai. Há 45 feridos entre nossos companheiros. Após a voz estudantil ter-se calado, os alto-falantes oficiais da praça, acionados desde o vizinho Palácio do Povo, despejaram o discurso ameaçador do primeiroministro Li-Peng. — Li-Peng perdeu a cabeça. Ele acha que é Komeini. — Kong-Ping era uma garota de dezenove anos; uma cabeça de boneca asiática e a força de vontade de uma guerrilheira da resistência basca. — Dois dias atrás nós queríamos mudar a maneira de fazer política e não os homens — prosseguiu ela. Um pouco como a terra de um campo que não produz há alguns anos, mas que, se for trabalhada, trará novos frutos. Mas agora, eu sei que esse governo não tem jeito. Li-Peng deve sair e Deng-Xiao-Ping também.

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Sentada no primeiro degrau do obelisco, esse monumento aos heróis do povo erguido em pleno centro da praça, que servia de quartel-general aos líderes estudantis, Kong-Ping contemplava a enorme esplanada dominada, há oito dias, por ela e por seus companheiros. Os primeiros raios de sol pareciam resgatar essa aldeia rebelde, parecida com uma Woodstock chinesa que se tivesse transformado em uma fortaleza. Responsável pela gráfica — três impressoras alinhadas debaixo de uma lona estendida por algumas varas de bambu —, Kong Ping confeccionara volantes a noite toda. Apresentava tinta preta até os cotovelos e cinza debaixo dos olhos. Com um sorriso de orgulho, a jovem estudante em Técnicas Industriais_ lembrava que chegara sozinha em sua bicicleta, para alcançar o primeiro punhado de manifestantes, dia 19 de abril. Já fazia um mês. — Não, eu não sou uma veterana — respondeu rindo — mas acredito que estamos escrevendo a história da China. Páginas gloriosas? Páginas sangrentas? Em lugar de responder, Kong-Ping se ergueu bruscamente. Vindos do leste em vôo rasante sobre a avenida da Paz Celestial, cinco helicópteros da armada chinesa mergulharam sobre a praça e descreveram círculos a baixa altitude. KongPing precipitou-se para dentro da gráfica. Na televisão, a locutora enfática acabava de anunciar a lei marcial. A queda-de-braço duraria três dias. Toda noite novas colunas militares alcançavam a capital. Toda noite Pequim era maculada por barricadas e chicanas. E os cidadãos bloqueando os soldados. Ao oeste da cidade, no domingo de manhã, não eram menos de 10.000 homens, mais uns vinte tanques da 65ª armada, que se encontravam concentrados perto da usina de aço n. 1. Na estação de Pequim, seis comboios extra, com mais de

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11.000 soldados vindos do norte, retornaram após umas dez horas. As plataformas estavam invadidas pela multidão. Depois de algumas investidas, arremessos de pedras e golpes de cinturão, o choque entre a armada popular de libertação e os civis poderia degenerar a qualquer momento. Detentores de um novo direito moral, fortes de um patriotismo que levantavam como uma tocha, os estudantes chineses se auto-proclamavam pioneiros de um Império do Meio Ambiente em pleno despertar. E a maior parte da população os seguia, com a cabeça cheia de sonhos e até várias unidades da armada teriam já tomado partido em favor deles. Um coronel tinha vindo duas vezes até o obelisco da praça, nas primeiras horas da noite, para avisar os contestatários sobre os movimentos das tropas e um dos helicópteros que sobrevoavam regularmente o acampamento dos estudantes, lançara volantes que explicavam aos jovens rebeldes, como se proteger contra os gases lacrimogêneos. Segunda-feira à noite. Pela primeira vez após cinco dias, as ruas de Pequim estavam quase calmas. A maioria dos comboios haviam voltado para suas casernas. Não restavam mais que 20.000 estudantes na praça Tian-anmem. Seguramente o poder escolhera as maneiras duras, afastando o progressista Zhao-Zi-Yang, e retomando em suas mãos a imprensa. Mas desde sua mobilização, a armada não seguiu as ordens do primeiro-ministro LiPeng e a afronta parecia imperdoável. — Na história dos mestres da China, os que perderam a cara um dia, não se mantêm mais por muito tempo no trono — explicava uma estudante a Roberto. — Mas aqui dizem também que um cão pode se jogar de um telhado, se ficar enlouquecido.

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 Roberto pensava em Suzy, ainda, enquanto observava os tanques invadindo a avenida e a praça. Quin ajudava Chang a filmar a fileira interminável daquelas máquinas bélicas, que criavam o vácuo ao seu redor. Um jovem franzino estava tentando sozinho obstacular um daqueles mastodontes, como se estivesse dançando com um urso imenso. Quando começou o tiroteio contra os manifestantes, o mundo parecia acabar. Roberto se sentiu novamente como se estivesse dentro da sala de reuniões de Labareda, no meio de seus amigos. Suzy também estava bem perto. Sentia crescer o amor por ela e, ao mesmo tempo, o medo de perdê-la. Estava na cama com ela, tentando recuperar, mais uma vez, os anos que ficara longe. O contato de seus lábios e a maciez de suas mãos o compensavam largamente por todas as privações e humilhações que sua fidelidade tinha custado. Nunca mais sairia de perto dela. Quin sabia também que sua última batalha terminava aí, ao lado do amigo, e sentia quase um sentimento de satisfação por ter podido interferir um pouco nos destinos de seu povo e até da humanidade. Chang conseguiu sair vivo daquele apocalipse e transmitir ao jornal as reportagens realizadas pelos seus colegas estrangeiros, caídos no meio de centenas de jovens chineses. François já vivia em Campo Grande, quando viu a revista com as fotos por eles tiradas e os próprios retratos dos dois amigos, com quem compartilhara bons momentos de sua vida. Acreditava nas previsões misteriosóficas de que o centro do mundo é o Pantanal mato-grossense e que 246


Campo Grande será a capital do universo, no terceiro milênio. Vivia de seu trabalho de médico e de suas recordações. Sem filhos, sem família. Mas com uma multidão de pessoas necessitadas de seu apoio e de seu trabalho. No meio da sala estava agora Ramsés. Existia realmente e era o chefe do mundo. Seu nome completo era Ramsinkus. Estava numa cadeira de rodas, mas não era paraplégico, não. Vestia uma batina vermelha-púrpura. Era um cardeal de santa romana igreja. Sentava no meio de muitos vídeos e outros aparelhos eletrônicos, governando o mundo, pela cibernética. Ouviu-se um estouro e a sala ganhou repentinas reverberações. De fogo. De sangue. Incêndios, explosões, rajadas de arma de fogo. As paredes da sala se abriam e o teto desabava. Ram-sinkus fora ejetado para o alto, como um piloto de um avião em chamas. Junto voava o monumento de Marco Aurélio e todo o centro da praça capitolina, debaixo da qual estava situada a sala central da catacumba de Ram-sinkus. Crepitar do fogo ao redor. Gritos de vítimas angustiadas, de todo lado. Depois, finalmente, o silêncio. E, de repente, François se encontrou nos campos de neve que o Zé Carranca tinha roubado das lembranças do padre e viu os becos da favela do negro e toda aquela gente andando pelo mundo, sorrindo, de mão dada e acenando amistosamente. Começou a falar meio alemão, meio latim, ele também, e tudo estava em ordem na salinha de urgência, campos, tesouras, agulhas, intracaths, lençóis, mesinhas... Tudo limpo, asseado, equilibrado, tudo bonito e bom.

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AĂ­, deu-se conta de que havia perdido qualquer medo ou ansiedade ou raiva ou pena. Ou a capacidade de se emocionar sequer. Pois percebeu que era ele que estava morto. NĂŁo sabia como isso acontecera. Dos outros, tampouco soube mais nada.

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