Mitos e receios sobre a vinda de médicos estrangeiros ao Brasil

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Mitos e receios sobre a vinda de médicos estrangeiros ao Brasil Marco Aurelio Da Ros, médico sanitarista e professor aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina, posiciona-se com relação à polêmica do “Programa mais médicos para o Brasil”, que deve ser assinado em junho pela presidenta Dilma Rousseff O governo brasileiro anunciou a intenção de trazer seis mil médicos estrangeiros, que a princípio seriam cubanos, mas também espanhóis e portugueses, para atuar na Estratégia de Saúde da Família nos municípios onde há carência desses profissionais (interior e periferia). Um dos principais argumentos que surgiram contra a iniciativa é de que o país não precisa de médicos. Isso é verdade, nós não precisamos de médicos? Marco Da Ros - Precisamos e precisamos muito. O Brasil tem hoje 1,8 médicos por mil habitantes, o que significa uma defasagem de, praticamente, 168 mil médicos novos para chegar ao número preconizado como ideal, que é o número da Alemanha [3,5/mil hab]. Esse 1,8 está muito mal distribuído. Nós temos regiões em que o número já está igual ao que se quer, como a cidade de São Paulo e o estado do Rio de Janeiro. Mas mesmo a periferia desses lugares é desassistida, e estados como o Maranhão, por exemplo, têm 0,6 médicos por mil habitantes, um terço da média do Brasil. Então nós temos áreas totalmente descobertas: pelo menos 13 estados têm menos de um médico por mil habitantes e mais seis estados que têm um. Isso corresponde a 20 milhões de brasileiros que não têm nenhuma assistência médica. São pessoas que moram em cidades do interior, na Amazônia, no Nordeste e mesmo em periferias de cidades grandes. Não dá

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para esperar. Uma desculpa que eu tenho ouvido de alguns médicos é que não tem infraestrutura nessas cidades, mas que tipo de infraestrutura? Ah, não tem shopping, não tem cinema, como eu vou educar meus filhos? Então tá, então vamos dizer pra esses 20 milhões de brasileiros que quando tiver shopping lá, os médicos irão. Qual é o padrão de atenção médica que se pretende pra esse país? Então faltam médicos, existe uma má distribuição e há também uma questão de formação desses médicos? Eles se formam e estão preparados para trabalhar na saúde da família? Marco Da Ros - Não, esse é justamente o X da questão e que não tá sendo discutido. Eu estive analisando a distribuição de faculdades no Brasil. A região sudeste é onde se concentra o maior número de médicos do país, são quase duas mil vagas públicas em universidades e seis mil privadas. Na medida que seguimos para o norte, nordeste, centro-oeste, há mais oferta de vagas públicas do que de privadas. As privadas não querem se instalar lá, elas entendem que não vai compensar financeiramente. Essa lógica está prevista também no ensino médico. Então, nas faculdades públicas, há uma preocupação maior com o Sistema Público de Saúde, e já nas faculdades privadas não há muito essa preocupação. Nós temos hoje faculdades privadas

de péssima qualidade no Brasil. Foi feito um exame no ano retrasado, para testar os conhecimentos dos recém-egressos, e foi um fracasso medonho nas faculdades brasileiras, tanto que se silenciou em seguida e não se fez outra prova dessas. Algo como 70% dos alunos não alcançaram nota sete. Por um lado, temos esse modelo de formação privatista, e por outro lado há uma questão epistemológica: como se forja o estilo de pensamento de um médico. Nós copiamos infelizmente o modelo norte-americano do século XX, o modelo flexneriano. É que esse modelo vem embutido na lógica do capitalismo, ou seja, a doença passou a ser objeto de lucro. Então ela não é mais um serviço oferecido pelo Estado, ao contrário, tem que ser um objeto de lucro. E para uma doença edição 22 junho 2013


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dar lucro, ela tem que cronificar, de preferência. Então se usam medicamentos durante a vida inteira para continuar garantindo que a pessoa fique doente. A doença como objeto de lucro vai usar o hospital, o medicamento, o exame e o seguro saúde. São os quatro pés que a gente chama de complexo médico-industrial. Esse complexo se instalou no Brasil especificamente com o Golpe Militar. Depois de 21 anos, terminou a Ditadura Militar, nós fizemos o SUS e, bom, a faculdade continua do mesmo jeito, forjando os médicos do jeito norte-americano de pensar. Mas no interior da Amazônia isso fica complicado: não se sabe mais fazer uma medicina pública com exame físico, que precise de boa semiologia, eles sabem é fazer exames pedidos em laboratórios e esses exames não estão disponíveis lá. Então tem que mandar para muito longe, e há lugares que tem uma dificuldade extrema. A gente tem estatísticas mostrando que um médico geral, um médico de família formado, consegue resolver 90% dos problemas. Bom, uns 10% ele vai ter que encaminhar. Então nós podemos minimizar pelo menos 90% dos problemas fazendo uma boa clínica, o que os estudantes de medicina não estão sabendo fazer mais, o modelo de formação deles tem sido outro. Outro argumento forte contra a vinda dos médicos estrangeiros se refere justamente à formação, que é a validação do diploma dos estrangeiros. O Revalida, exame que avalia os diplomas, aprovou no ano passado 8,7% do total dos di-

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plomas que foram avaliados e, de 182 médicos cubanos inscritos, 20 foram aprovados, o que corresponde a quase 11%. Em Portugal, na última avaliação, 60 médicos cubanos prestaram o exame e 44 foram aprovados, o que significa 73,3. Por que a avaliação brasileira tem sido tão rígida e tem reprovado tantos médicos? Marco Da Ros - Eu me lembro das primeiras provas do Revalida, quando eu participava do colegiado do curso de medicina da Universidade Federal de Santa Catarina, e não se queria que os médicos estrangeiros validassem o diploma. Aí, convidavam-se alguns professores que faziam a prova o mais difícil possível. Eu

“Por que não se aplica também o Revalida para os médicos das redes privadas?” não tenho dúvida de que as provas do Revalida não assustam tanto os médicos cubanos. Veja que o percentual que reprova é menor dos cubanos que dos outros. Os médicos cubanos normalmente têm uma formação maior, porque eles têm os seis anos de medicina e mais dois anos de medicina de família. Não são esses médicos que vieram fazer a prova. Na verdade, são médicos brasileiros que foram fazer o curso de medicina em Cuba, que concluíram apenas seis anos de formação e, mesmo assim, foram melhor que os outros na prova. E a pergunta que a gente fazia era: por que não se aplica também a mesma para os

médicos das redes privadas? E aí eu recebi a resposta: ah, aí não pode, aí é sacanagem. Sacanagem é a gente formar esses médicos e fingir que eles são bons. O que não significa que não tenha bons médicos saindo das faculdades brasileiras hoje. Tem sim, mas a proposta das universidades não é de formação de um bom médico geral, você tem que ser especialista do dedo mindinho do pé direito. Quanto mais especializado, mais se tem a fantasia de ser um bom médico. E esse médico que faz especialidade e fica na cidade grande vai trabalhar com convênio de plano de saúde e vai ganhar muito menos do que ganharia um médico do interior. Então, o problema não é salarial. Os médicos não vão pro interior por um problema de salário, porque eu te disse, os salários são altíssimos, inclusive, se viveria muito bem, ainda mais que a despesa é muito menor. É um problema de infraestrutura? Sim e não, porque na verdade o problema é de que cabeça eles foram formados, eles se sentem inseguros de trabalhar num lugar que não tenha toda infraestrutura moderna do modelo norte-americano, que é como eles aprenderam medicina. Aí nós vamos precisar de gente que saiba trabalhar no interior. Quanto ao Revalida ainda, você sabe que existe uma proposta de reestruturação do exame para logo? Marco Da Ros - Neste ano se abriram novas vagas nas universidades para professores que querem fazer a prova do Revalida, então é possível que a gente melhore. Mas, como a gente está vendo essa xenofobia da categoria méedição 22 junho 2013


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dica em relação aos estrangeiros, a dúvida é se não vão continuar fazendo uma prova super exigente. Eu não acho que tenha que ser uma prova fácil. Acho que tem que ser uma prova que afira os conhecimentos necessários para uma boa prática de medicina geral. Não sei se essa vai ser a orientação. O Ministério da Saúde faz uma parte da prova, e eu sei que o Ministério da Saúde tem essa preocupação. Então eu não acho que o Revalida seja um problema, só temos que ver se ele não está sendo absurdamente rígido, porque todos os países facilitam a vinda do estrangeiro - a Inglaterra tem 37% dos médicos que são estrangeiros -, então não é impressionante, aqui nós queremos uma reserva de mercado, que não é mercado, pois eles não vão trabalhar lá. A gente vê que tem países com sistemas de saúde reconhecidos como Portugal e Inglaterra que tem índices de médicos estrangeiros em atuação altíssimos, como o senhor mesmo já comentou, na Inglaterra quase 40%, Portugal mais de 10%, mas no Brasil é menor que 1%. Então, é só uma reserva de mercado? Por que existe esse medo todo? Marco Da Ros - É engraçado que a xenofobia veio em cima dos médicos cubanos. O “Programa mais médicos para o Brasil” prevê também mais residências em medicina de família, abertura de faculdades no interior, maio 2013 edição 22

especialmente na região amazônica, então tem um monte de coisas que está se fazendo. Um dos programas é a vinda de médicos do exterior. Nunca se pensou que eles vão revalidar para ficar aqui o tempo todo, aliás nós não gos-

“Nós precisamos resolver um problema de saúde. A categoria médica deu resposta?” taríamos que eles revalidassem. Os cubanos têm essa característica, eles não querem revalidar seu diploma. Não porque têm medo de fazer a prova, a competência deles não tá em xeque, eles têm a melhor saúde da América, eles têm uma mortalidade infantil baixíssima, o desenvolvimento tecnológico em Cuba é maravilhoso, eu conheço bem o sistema cubano e conheço os médicos cubanos muito bem. Eles só não querem ser médicos brasileiros, não querem trabalhar um tempo na Amazônia para depois vir para a

cidade grande, esse é o sonho do brasileiro, não é o sonho do cubano. O sonho do cubano, e parece que os médicos cubanos que viriam para cá seriam médicos com experiência internacional, seriam médicos com residência em medicina de família, com mestrado inclusive, então seriam médicos da altíssima qualidade. O problema é a crise europeia, com ela os médicos espanhóis e portugueses querem vir para cá, “vamos ganhar dinheiro no Brasil”. Então nós temos que tomar alguma providência, ou seja, as mesmas que de Cuba, vai ser provisório. É porque ainda a medida não foi tomada, então a gente não sabe quais as possíveis variáveis podem ter. Será uma medida provisória tomada pela presidente Dilma, não se sabe quando vai ser isso. Então, eu não acho que esse momento se trate de “a defesa de Cuba” ou a “defesa da Espanha”, é a defesa da população que não tem assistência, é isso que nós temos que pensar. E qual é a solução que o Conselho Federal de Medicina ou as categorias médicas dão pra isso?

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Então é hipócrita essa discussão, absolutamente hipócrita. Hipócrita e, na verdade, eu sinto um cheiro do tempo da Ditadura Militar. Eu vi coisas nos e-mails, médicos do partido democratas dizendo que temos que prender as pessoas que apoiarem. Outros médicos da sociedade brasileira de medicina de família dizendo, “não, são agentes castristas que vêm doutrinar a população brasileira, para ensinar marxismo para eles”. Impressionante o que alucinou as pessoas isso e pra mim é alucinação. Nós precisamos resolver um problema de saúde no Brasil, a categoria médica deu resposta? Não, não deu. Por que nós temos pensado, e digo nós, eu não sou o Ministério da Saúde. Nós estamos tentando, pelo menos nos últimos 10 anos, tudo para que os médicos vão para o interior: a gente criou mudança de currículo, criamos o Telessaúde, criamos os UnaSus, bolsa pra médico que vai pro interior, ampliamos o salário, o Provab agora, e nós não conseguimos porque os médicos brasileiros não querem ir. E “os provabs” vão para ganhar ponto para residência, e depois sairem de lá, eles não querem ficar. Então, a minha preocupação é “médicos cubanos: sim!”, “médicos estrangeiros: sim!”. Isso como solução

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paliativa, nós vamos precisar re- de um problema de gestão, nós solver isso em médio prazo. temos um problema de financiamento e um problema ideológiÉ uma solução paliativa, mas co, de formação, pelo menos os o que está se fazendo na base três. Nós temos um quarto prorealmente? Você citou algumas blema: na constituição está precoisas, mas elas também são visto o controle social do SUS, se paliativas, porque não resol- nós tivéssemos o controle social vem na essência. É uma questão eficiente, poderíamos reverter de mentalidade, de formação, as três coisas. O médico cubano, estrutura de sociedade. Então o médico estrangeiro no Brasil, como mudar isso? com diploma provisório, que é Marco Da Ros - Com o finan- o que a gente defende, significa ciamento que a gente tem hoje que nós ganhamos tempo e asnão se consegue sustentar um sistência a essa população desassistema universal, que é o que se sistida, enquanto a gente monta defende, então vai se fazer um uma proposta definitiva, senão é sistema meia boca. Mas a gente só paliativa. defende um sistema público de qualidade, sistema único de qualidade, que pode ser feito com *Para ver todo o conteúdo do Telessaúmédicos brasileiros e estrangei- de Informa entre no nosso site: telessauros. O problema então para nós de.sc.gov.br. No portal estão disponibilinão é esse, nós precisamos de zadas todas as edições do informativo. orçamento, nós precisamos de O Telessaúde é uma parceria do Minisgestores capacitados, e os nossos tério da Saúde com a Universidade Federal de Santa Catarina. gestores municipais têm pouca capacitação na área do SUS, inclusive devolvem dinheiro porque não sabem como utilizar. Além

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