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25.° aniversário da sua morte


Externato de Vila Franca

Homenagem prestada a 2 3 de Fevereiro de 1970 em memória do seu antigo aluno En$.° Artur do Canto Resende, no 2 5 ,° ani­ versário da sua morte na Mia de fílor, co­ mo prisioneiro do invasor japonês



0 Conselho Escolar do Externato de Vila Franca, reunido em 30/1/70, resolveu, por proposta do seu Director, Rev.° Padre An­ tónio Jacinto de Medeiros, que fosse comemorado, com o possível bri­ lhantismo, o 25.° aniversário da morte de um antigo aluno daquele es­ tabelecimento de Ensino Secundário Particular, então chamado Insti­ tuto Vilafranquense, o Eng.° Artur do Canto Resende, nascido nesta Vila e que veio a falecer na Ilha de Alôr, como prisioneiro dos japone­ ses, invasores da província portuguesa de Timor. Delineado o programa, ficou assente que fosse celebrada uma missa na Matriz de S. Miguel Arcanjo e houvesse em seguida no Gi­ násio do Externato uma sessão de homenagem à memória daquele in­ signe Vilafranquense, tendo sido convidado, na mesma ocasião, para orador o prof. Teotónio Machado de Andrade. Assim, o dia 23 de Fevereiro de 1970 foi assinalado por actos de exaltação daquele Herói e Mártir de Timor, que em vida se chamou —

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Artur do Canto Resende e que, por seus feitos valorosos, bem mereceu do Governo Nacional público reconhecimento e a consagração da sua vida que im jlou no altar sacrossanto da Pátria com a atribuição que lhe foi feita, embora a título póstumo, da honrosíssima condecoração da Torre e Espada. Começaram as comemorações com a celebração da Santa Missa, às 19 h. 30 m. na Matriz de S. Miguel Arcanjo, pelo Rev.° Prior An­ tónio Jacinto de Msdeiros. assistindo ao piedoso acto de sufrágio a Câmara Municipal, Magistrados da Comarca de Vila Franca, Autori­ dades concelhias, a Família do homenageado, Convidados de honra e os alunos do Externato com seus familiares. Finda esta primeira parte, todos os presentes dirigiram-se para o Externato, onde ia proceder-se à sessão de homenagem ao Herói Vilafranquense coro o descerramento de uma fotografia sua. Formou-se a mesa de honra no palco do Ginásio, a que presidiu o Director do Externato Rev.° Padre António Jacinto de Medeiros que dava a direita aos srs. Manuel dos Santos Melo, vereador, servindo de presidente do município vilafranquense, Delegado marítimo, dr. Augus­ to Botelho Simas e dr. Hermano Alcântara de Mendonça Dias. A es­ querda, sentaram-se os srs. dr. Abílio dos Santos Brandão, juiz da co­ marca, dr. Honorato Amaral, sr.a D. Natália Cymbron Faria e Maia do Canto Resende, viúva do homenageado e dr. António Alcântara de Mendonça Dias. Para que fique arquivado tudo quanto se disse nessa brilhante sessão em memória da excelsa figura do Homenageado — um filho de Vila Franca—e a servir de lição altamente patriótica para quantos alu­ nos frequentam e vierem a passar por aquele estabelecimento de En­ sino Secundário Particular, o sr. Director do Externato resolveu a pu­ blicação deste opúsculo que é dedicado à Mocidade presente e futura desta nossa Terra. Ao abrir a sessão, o Rev.° Padre António Jacinto de Medeiros pro­ feriu as seguintes palavras: Não podia este Estabelecimento de ensino ficar alheio, neste dia 23 de Fevereiro de 1970, em que se comemora o 25.° aniversário da morte dessa figura de herói e mártir, o Eng.° Artur do Canto Resende, —

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não só por ser vilafranquense e baptizado na Matriz desta Vila, como por ter sido aluno deste Externato. Lembrar «aqueles que por feitos valorosos da lei da morte se fo­ ram libertando», não é apenas uma gentileza para com os seus fami­ liares, antes um acto de gratidão e justiça, própria dos corações bem formados. O Eng.° Artur do Canto Resende, escreveu na nossa Província de Timor mais uma página de oiro na secular história da nossa Pátria. Renunciando a tudo e a todo», viu somente a Pátria, o nome de Por­ tugal, na deíesa do qual ele deu a sua própria vida. E desse herói e mártir qué nos vai falar o Sr. Prof. Teotónio Ma­ chado de Andrade. Resta-nos dispor os nossos ânimos para saborear a proveitosíssi­ ma lição da hora presente. Tem a palavra o Sr. Prof. Teotónio Machado de Andrade. O orador da sessão, exaltando a memória do homenageado leu o seguinte trabalho que fo i muito aplaudido. Melindrosa tarefa esta que me foi confiada pelo Ex.mo Director deste Externato, Rev.° Padre António Jacinto de Medeiros para vos fa­ lar de uma grande figura nacional, cujo nome se encontra gravado para sempre em letras de ouro nas páginas da História secular deste Portugal eterno, a que todos nós tanto queremos e que tanto amamos. Bastou tratar-se de um notável Filho desta Terra, que nela viveu a sua mocidade radiosa, educado neste Externato, então Instituto Vi­ lafranquense, para não hesitar um momento em aceitar o encargo, le­ vado ainda por sentimentos tão gratos ao meu coração de Vilafran­ quense, como à minha alma de Português. Agradeço, pois, com desvanecimento ao Ex.mo Director do Exter­ nato a honrosa mas imerecida incumbência de usar da palavra nesta sessão, a que a ilustre presença de V. Ex.as, e, de um modo particular, a dos representantes da nobre Família Canto, que desde pequenino me habituei a respeitar, emprestam maior luzimento e especial dis­ tinção. Declaro, antes de mais, que dedico esta minha palestra aos meus alunos desta Casa de Ensino Secundário Particular, fundada pelo que­ —

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rido Mestre e notável Vilafranquense Dr. Urbano de Mendonça Dias, os quais fazem parte integrante da minha vida afectiva e são como que o prolongamento da minha família. Doutra forma, seria estulta, da minha parte, a pretensão de querer agradar a outro público que não fosse aquele a que há mais de duas décadas estou habituado a falar quase diàriamente. Devo, por isso, querer ser o primeiro a denunciar a pobreza desta palestra e pedir-vos as devidas desculpas. Caríssimos alunos do nosso Externato: Vila Franca do Campo, aquela que de nobre precedia , na ilha de S. Miguel a quantas Vilas havia... foi, numa trágica noite de 22 de Outubro de 1522 completamente so­ terrada e toda ela, com os seus solares e ricos edifícios, ficou transfor­ mada, em poucos minutos, num montão de ruínas, sob as quais pere­ ceram perto de 4 mil dos seus moradores. Mas, em breve se refez a nobre Vila, graças à tenacidade peculiar da sua gente, que nela se fi­ xou, vivendo arreigada ao torrão natal. A Vila soterrada ressurgiu, em poucos anos, incomparavelmente mais bela, mais formosa e atraente, e a exuberância das produções do seu solo fértil e luxuriante, a todos convidou à fixação, a um apego vegetal à Terra, que nós ainda senti­ mos, transmitido na voz do sangue e através do exemplo dos nossos maiores. E foi, certamente, esta seiyâ humana, esta fortaleza interior que animou e conduziu os nossos avós, que fez com que muitos dos fi­ lhos desta querida Vila marcassem posição relevante na vida, e se dis­ tinguissem dos demais, sempre que as suas ancestrais qualidades fos­ sem postas à prova em qualquer emergência grave ou difícil. A corroborar esta nossa afirmação, reza a História da nossa Ter­ ra que muitos filhos seus se distinguiram, através dos tempos, na co­ ragem e no ardor da luta, como um Jorge Nuno Botelho, que, em 1510, esteve em Tânger e Argila; um filho deste, chamado Manuel Botelho Cabral, que em 1571 combateu no cerco à cidade e ilha de —

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0 prof. Teot贸nio M. de Andrade proferindo a sua palestra


Goa; os netos do mesmo que combateram na índia; como um Pedro de Novais muito abalizado na arte da guerra, que esteve ao serviço de Carlos V, para não falar dos Botelhos fundadores de cidades no Brasil; e, ao lado de todos estes, vai outro Vilafranquense, Luís Gonçalves, que deu origem ao nome glorioso de Bento de Góis, que, na primeira metade do século XVII, foi até ao interior da China em busca do Cataio, de Marco Polo. Tudo isto vem a colação na referência ao valor da gente da nos­ sa Terra, sempre ousada e destemida, de alma forte, retemperada no salgado do mar que a embala desde os primórdios do povoamento insular, e endurecida no amanho do solo, por vezes tão ingrato nas suas convulsões. A continuar esta famosa pleiade de nobres Filhos desta Vila, eis que surge, em nossos dias, um outro herói, Artur do Canto Resende, que, trilhando a senda do sacrifício e da abnegação, passou a fazer parte da brilhante galeria dos bravos e dos intrépidos que use vão da lei da morte libertando», ao serviço da Pátria. Engrinaldar a memória de Artur do Canto Resende, honrar o seu nome, como fúlgida glória da nossa histórica Terra, é dever que se impõe a todos nós, vilafranquenses, nados e criados no mesmo solo pátrio que lhe foi berço e onde viveu. Por isso mesmo, esta casa de ensino secundário que o nosso he­ rói frequentou até fazer o exame do 3.° ano dos Liceus, não podia fi­ car indiferente na data que hoje decorre, mas antes sente-se muito honrada em poder contribuir, nesta oportunidade, para a consagração do nome de um dos seus antigos alunos que muito a honraram e que se encontra aureolado com o nimbo da glória dos imortais. Achamo-nos, pois, aqui reunidos para apoteosar uma vida engran­ decida por um ardente amor ao próximo, nobilitada pelo desinteresse, santificada pelo sofrimento. Estudantes da nossa Terra:

Artur do Canto Resende, falecido na ilha de Alor há 25 anos, no meio de sofrimentos atrozes e no mais completo desamparo, como pri­ sioneiro dos invasores japoneses de Timor, nasceu nesta nossa Vila a 7 de Agosto de 1897, numa casa solarenga já desaparecida e que se —

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situava no terreno onde hoje se ergue a residência que foi do benquis to cidadão sr. Alfredo Machado da Silva, que vive ainda bem presen te na memória e na saudade de quantos com ele de perto privaram < conheceram a gentileza do seu trato. 0 nosso homenageado aqui cresceu, dando já mostras, na sua mo cidade irrequieta, de ser corajoso e destemido, tanto nas brincadeira como nas lutas entre companheiros, sempre mais inclinado a tomar ; defesa dos mais fracos e dos mais tímidos. Banhou-se regaladament nas águas puras do nosso mar, frequentando ora o Poço Largo, ora i Corpo Santo, a Vinha da Areia, a Ponta da Cabra e chegou até a ver cer a prova final do mergulho, como ainda hoje fazem os rapazes quando se atiram da ponta do cais, penetrando no mar fundo e m dando até às escadinhas de fora, como primeira demonstração da su coragem. Depois de frequentar a Escola Primária como aluno da falecid professora D. Maria das Mercês Teixeira, veio para o Instituto e d< pois ssguiu para o Liceu, a continuar os seus estudos. Em 18 de Noven bro de 1927, concluía o curso de Engenheiro Geógrafo e logo após contratado para o Instituto Geográfico e Cadastral de Lisboa. Tendo cumprido várias missões de trabalho no nosso Ultramar, nomeado, em 1937, Adjunto da recem-criada Missão Geográfica c Timor, seguindo para aquela província em Agosto do ano seguinte bordo do paquete «Colonial)'. Estávamos em plena 2.a Grande Guerra e, com a entrada do J pão na luta das grandes potências, começa a tragédia que há-de levi ao sofrimento e à morte alguns milhares de pacíficos habitantes t província portuguesa de Timor, com o cometimento cobarde de mi tos assassínios e fusilamentos. Coçtjeça o Calvário da existência de un população que vivia em paz e pertencia a um país pacífico, sübitame te envolvido no fragor de uma luta de gigantes, que não respeitam < direitos dos neutros, nem dos amigos. Em certo dia, aviões australianos sobrevoam Timor e tropas de se país, com as holandesas, desembarcam em Dili. A confusão é grande. Há quem procure nas vizinhanças abrigo salvação para as suas vidas; outros deixam-se ficar presos à terra e população acha-se ao desamparo, sem a poder socorrer convenienl mente a Mãe Pátria distante. —

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Os japoneses seguem as pisadas das primeiras tropas invasoras e, sob o pretexto de expulsarem o exército anglo-holandês da sua «ilegí­ tima posição» e de garantirem a integridade de Timor Português, en­ quanto — declaravam eles — Portugal assegurasse, por seu lado, a ma­ nutenção da sua atitude neutral, promessas estas de pouca dura. Forma-se breve um negro cortejo de horrores que atemoiiza os espíritos. Os actos de vandalismo, os latrocínios, as exigências incon­ fessáveis, os massacres, os requintes de selvajaria sucedem-se de for­ ma aterradora. Há quem se refugie nas montanhas, outros procuram a todo o custo embarcar para a Austrália. Vive-se numa permanente e odiosa desconfiança, porque há perseguição, a infâmia da denuncia, existe o pavor das «colunas negras» de criação amarela. As prisões sucedem-se, e as mortes e fuzilamentos fazem da vida em Timor um verdadeiro inferno. É, então, neste ambiente horrível, que começa a epopeia do nosso Herói.Achando-se doente o Administrador do concelho de j Tvv t Dih, Lourenço de Aguilar, é-lhe exigido que abandone o exercício do seu cargo, pois os japoneses em nada respeitavam a soberania portuguesa e mui­ to menos a autoridade. Em face de tamanha anarquia, surge o Homem providencial, de ânimo forte, aquela pessoa que vive na ardência de querer servir o próximo ultrajado, esquecido de si, para só ver a liberdade e a segu­ rança dos seus semelhantes, a oferecer-se, voluntàriamente e sem qual­ quer remuneração, para o exercício do cargo de Administrador do Concelho. Vivia no Eng.° Canto o desejo obsecante de ser prestável nesse mo­ mento crucial e servia-lhe de incentivo a sirripatia dos Portugueses e a esperança que nele depositavam, e até mesmjD a consideração dos ja­ poneses que até certo ponto simulavam dispensar-lhe. O nosso Herói não descansa, a todus acode, socorre mulheres e crianças, por quem distribui agasalhos e até a sua própria roupa. Mesmo debaixo de bombardeamentos, percorre as regiões mais atingidas, calcorreia os contrafortes das serras ou percorre a costa debaixo de sol ardente, para ir levar aos que sofrem, o lenitivo da sua agradável presença, e a insuflar boas doses de coragem nos mais pusi­ —

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lânimes. Acode e providencia a todos os pedidos e reclamações vindas do interior, onde a situação é crítica e caótica a nossa autoridade. Ã sua chegada, a multidão de infelizes acorre a ouvi-lo, rodeia-o, comprime-se em seu redor, sendenta da sua palavra. É que no meio de todas as tropelias, de todos os vexames, de to­ dos os insultos e crimes praticados, ele representava, para os nossos, a voz da esperança. A sua voz se levanta contra as violações do direito; nada teme, nem receia, o ousado administrador. Quando um piloto australiano cai em solo português, cheio de queimaduras, por o seu avião se tar incendiado e os japoneses recla­ mam o prisioneiro. Artur do Canto considera isso uma prepotência. A questão complica-se e o próprio comando japonês intervém. A certa altura, como quem joga a última cartada, o comandante japonês per­ gunta-lhe o que fará se lhe intimarem, com uma pistola apontada, a vinda do australiano para Dili, lacònicamente, imperturbàvelmente, Artur do Canto responda:— <morrerei antes da dar uma ordem contra a minha consciência». Doutra vaz, indo protestar em nome do Gover­ nador, junto de Yodogava, Cônsul-Geral do Japão, contra a prisão de alguns portugueses, é por este informado que nada podia fazer pois já estava assente que seriim degolados. Artur do Canto luta, indignado, para os salvar. Mas, tendo-lhe o Cônsul mostrada a inutilidade da sua insistência, Artur do Canto afirma:—-«Esses portugueses estavam-me confiados. Se cometeram erros, deles me cabe também a culpa a mim; e, por isso, peço-lhe que diga ao Comandante que quero também ser degolado com eles. Nã3 saio daqui. Aqui esperarei que me venham buscar!» E com a sua persistência acaba por libertar os seus irmãos de sangue. Com estes dois episódios que acabo’da narrar, podemos ver como, fogoso, ele se impõe e reclama justiça aos asiáticos invasores, com ló­ gica irrefutável e firmeza constante. Mas as «colunas negras» continuam a sua acção terrífica e os quadrilheiros, nos seus ataques, fazem do campo de concentração o açougue dos portugueses. Artur du Canto passa por sofrimentos inenarráveis, mas porque é preciso defender os indefesos concentrados, ei-lo, indiferente ao peri­ go, á frente de uma coluna de voluntários, decidido a vencer ou a morrer.

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Tem, ainda, problemas graves com a tenebrosa polícia japonesa, neutralizando os seus manejos inconfessáveis e arrancando às suas gar­ ras aduncas quantos nelas haviam caído. Está-se a ver que um Homem desta natureza, que remove difi­ culdades gigantescas, que fala sempre a linguagem da verdade, de âni­ mo resoluto e coração limpo, não podia continuar por muito tempo na oposição aos desígnios dos japoneses, dementados pelo ódio da ra­ ça, e não convinha ao seu preconcebido objectivo de extermínio do branco. Em 9 de Março de 1944, por motivos que ainda se conservam obscuros e incompreensíveis, mas a que certamente não estão alheios os vendilhões da dignidade nacional que a mercadejam pelo ínfimo preço da sua própria indignidade, o Homem forte e intemerato, o Ho­ mem ousado e corajoso, que nada fazia recear nem temer, e que su­ biu com galhardia o íngreme calvário da existência de peito descober­ to e cabeça erguida, pede a demissão do cargo, com profunda tristeza para a esmagadora maioria dos seus compatriotas. Recolhe-se ao Hospital de Lahame, residência dos Portugueses que, por virtudes das suas ocupações, ainda permaneciam em Dili. Di­ minuído de energias, alquebrado, talvez desiludido, entrega-se aos seus estudos e trabalhos geodésicos e astronómicos. Em certo dia de Junho desse mesmo ano, a polícia militar nipónica o vai buscar para o desterrar em Kalabai, na ilha de Alor, que os timorenses passaram a designar por «Ilha Maldita», isto sem mais ra­ zões apresentadas, nem motivos justificados. Instalaram o Eng.° Canto mais os seus três companheiros de su­ plício num pardieiro rodeado de arame farpado, abandonados de tudo e de todos, unicamente entregues às suas agruras cruciantes. Dão-lhes por alimento arroz deterioradó e batata doce podre que não conseguem tragar. Para poderem adquirir um pouco de milho com que mitigar a fome, é ainda a abnegação do tn g .0 Canto Resende que o leva a desfazer-se da sua aliança de casamento, o único bem que ainda possuia consigo. Com o martírio do nosso Herói, começa o calvário da sua reden­ ção a caminho da imortalidade. Chegam-lhe as dores, o sofrimento é horrível. Pensa na vida do no­ vo mundo que se aproxima e, como esteio seguro para a sua alma de —

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eleição, ele constrói por suas próprias mãos e com a ajuda de uma lâ­ mina de barbear, um rosário, por meio do qual se dirige amiudadas vezes a Deus Todo Poderoso. Nessa altura da sua já frágil existência, com o espírito quase a desprender-se daquele corpo enfraquecido pela doença e pelos sofri­ mentos, certamente o seu pensamento voou para longe, para a distan­ te Terra Natal, a sua Vila Franca, e pairou por momentos numa evo­ cação, tão saudosa como sentida, junto da Mãe querida, da Esposa ama­ da, do Filho estremecido. E então rezava, rezava com intenso fervor religioso. Em transes de êxtase, elevava as suas preces a Deus, pondo as mãos erguidas, suplicantes, implorando a misericórdia Divina, até que chegou o momento em que... Na mão de Deus, na sua mão direita, Descansou, afinal, seu coração... A sua alma generosa, depois de se ter dado abnegadamente, to­ talmente, à Pátria e ao seu Próximo, purificada pelo sofrimento, enca­ minhou-se, por fim, para as alturas, como águia triunfal de luz voan­ do grandezas. Senhores que me escutais: Com as mesmas palavras com que um grande orador desta Terra principiou uma formosíssima oração em louvor de um outro Herói Vilafranquense, vou terminar esta minha mo­ desta palestra: «Se a vida dos grandes Homens é uma luta, a sua mor­ te é um triunfo, e na sublime paixão da Virtude, os beneméritos e os heróis não morrem.» Exaltemos, portanto. os Homens ’gloriosos! Louvemos Artur do Canto Resendè! Para sempre seja abençoada a sua memória! Tenho dito As alunas Isabel Maria Bulh5es Gago da Câmara e Maria Antónia Lima Borges Brandão recitaram, com muita perfeição, duas poesias de sentido patriótico que a selecta assistência muito aplaudiu. —

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A encerrar a sessão, usou da palavra o Director do Externato de Vila Franca que, focando o aspecto geral do ensino nos nossos dias e as causas de certa desorientação social que arrasta a mocidade estu­ diosa por caminhos perigosos, proferiu as seguintes palavras: Depois da patriótica lição que acaba de nos dar o Sr. Professor Teotónio Machado de Andrade, como Director deste Externato, per­ mitam-me V. Ex.as algumas considerações com relação à vida desta casa e à lição que coroou esta sessão solene. A três de Outubro de 1904 numa das salas do antigo Convento da Santo André, hoje Casa de Trabalho, foi inaugurado o Instituto de Vila Franca. Passaram 65 anos. O que foram para Vila Franca esses 65 anos? Bastará lançar hoje um olhar para a lista dos seus antigos alunos, Ma­ gistrados, Médicos, Sacerdotes, Advogados, Engenheiros, Agentes Téc­ nicos, Regentes Agrícolas, Professores Primários. Por aqui passaram já muitas gerações, muitos Vilafranquenses que hoje ocupam ou ocuparam altos cargos na sociedade, e que Deus sabe se gozariam dessas posições se não fora o Externato de Vila Fran­ ca, como no presente é oficialmente conhecido. Vila Franca mantem um Estabelecimento de Ensino Secundário, permanentemente, há 65 anos, caso único, fora das Capitais do Dis­ trito dos Açores e talvez mesmo de Portugal. Tudo isto se deve a um Vilafranquense a todos os títulos ilus­ tre—o Dr. Urbano de Mendonça Dias. Foi ele que o fundou e mante­ ve quase meio século. E, se nada mais fizesse, para que o seu nome ficasse bem gravado na memória de todos os Vilafranquenses, isso bastaria. Com uma vontade forte, um bairrismo são e fértil, e sem barrei­ ras, conseguiu dotar a sua Vila com uma Escola de Ensino Secundá­ rio, onde os Vilafranquenses menos bafejados pela fortuna pudessem conseguir melhor posição social. Parecerão descabidas estas palavras, velharias já ultrapassadas; ao contrário, sabe bem, é preciso apontá-las à geração presente, para quem o passado já quase não conta. Estamos numa época em que predomina o culto pela força, nas —

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competições desportivas; num mundo todo orientado para o progresso material e para o conforto, em que tanto se fala de modas, em que tanto se exalta o culto físico do corpo. Uma procura cada vez mais desmedida de prazeres e divertimentos, o desafogo económico como aspiração suprema na vida, precisamente porque só ele oferece o in­ dispensável para o acesso a essa vida que os homens dos nossos dias teimam concretizar. É preciso colocar as coisas nos seus lugares e lembrar-nos de que o homem é tanto mais homem quanto mais viver para o espírito. A nossa juventude vive desinteressada quase por completo das coisas do espírito, indiferente aos próprios estudos. Na antiga Grécia, duas cidades se distinguiram—-Atenas e Esparta. O Ateniense vivia para as artes, para as letras. O Espartano para a guerra. Na educação dos primeiros atendia-se mais ao espírito; na dos segundos, aos músculos. Os poetas, os filósofos, os artistas atenienses vivem na admiração dos homens de todos os tempos e ainda hoje são objecto de estudo. Quem fala agora de Esparta e sabe o nome dos seus atletas? A vida moderna, com todos os seus à-vontades e o comodismo de não poucas famílias, torna a nossa juventude por vezes incompreensí­ vel, indisciplinada, demasiadamente mimosa e sensível, não suportan­ do uma repreensão, o silêncio de uma aula ou o sacrifício de uma ho­ ra de estudo. Basta que uma coisa tenha sido «sempre assim», paya que o jovem dos nossos dias queira fazer «doutro modo». Ouvimos dizer aos nossos jovens: «procedo de acordo com a minha consciência». Esque­ cem-se os que assim pensam que a consciência deve estar orientada segundo a Verdade, e não segundo as verdades que cada um busca para se justificar. Liberdade não é f^zer o que apetece, mas, muito ao contrário, fazer o que deve fazer-se/ Hoje há uma grande tendência para se ser original, apresentar uma çoisa nova e para isso esquecem-se, como velharias, os mais rudimentares preceitos da moral e até da própria civilidade. Sem disciplina, sem esforço, sem trabalho, nada se poderá conseguir de proveitoso e útil. Vivemos num mundo de facilidades e de conforto, num mundo, do «deixar correr» para não criar complexos. Os nossos jovens preci­ sam de sér compreendidos e ajudados. Temos de viver os problemas que o mundo de hoje lhes criou, temos de os levar a saber escolher, a sa—

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A Ex.™ sr.* D. Natália Cymbron Faria e Maia Resende, descerrando o retrato do seu falecido marido.oEng.• Artur do Canto Resende, perante toda a assistência de pé, em atitude^ respeitosa


ber querer, a saber perseverar; Missão difícil, muito difícil mesmo porque tudo hoje lhes fala mais aos sentidos que à inteligência— anúncios, espectáculos, revistas, etc... e a gente nova quase não sabe o que quer, não pensa, não raciocina. É, sem dúvida, a juventude a quadra mais bela da vida, a dos grandes ideais e da generosidade sem limites. A vida, porém, não é fei­ ta de comodismos, nem de prazeres, mas de renúncias e de trabalho. Tendes, juventude de Vila Franca, no herói que hoje evocamos um exemplo a seguir. Esqueceu tudo—a família, as comodidades, os falsos louros de um traidor à Pátria. Só não pode deixar de nos legar a preciosa lição do seu heroísmo. Para não o esquecermos, porque foi herói no passado, continua a sê-lo no presente e será no futuro, bom será que continue a sua pre­ sença espiritual nesta casa, a apontar à nossa juventude o caminho a seguir. Peço pois a V. Ex.a, Ex.ma Sr.a D. Natália Cymbron Faria e Maia, viúva do ilustre homenageado o favor de descerrar a fotografia do he­ rói e mártir e querido esposo. E, para terminar, agradeço em nome deste Externato a V. Ex.a Ex."“ Sr.a D. Natália Cymbron Faria e Maia e Sua Ex.ma Família a honra que nos deram com a sua presença nesta sessão. Para a Ex.ma Família Mendonça Dias vai também o nosso muito obrigado pela sua presença nesta sua casa. A V. Ex.as, Ex.maB Autoridades, minhas senhoras e meus senho­ res» o reconhecido obrigado de todos os que trabalham nesta casa. Tenho dito No final da sessão os oradores foram muito cumprimentados.


TIPOGRAFIA «A CRENÇA» VILA FRANCA DO CAMPO


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