Terra livre 66 fevereiro de 2014

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TERRA LIVRE PARA A CRIAÇÃO DE UM COLECTIVO AÇORIANO DE ECOLOGIA SOCIAL

BOLETIM Nº 66

FEVEREIRO DE 2014

CRIANÇAS E TAUROMAQUIA

A sociedade dA tortura

Memória: Animais nossos amigos

LIXOS E ENERGIA


CRIANÇAS E TAUROMAQUIA

A ONU pede para afastar as crianças da “violência da tauromaquia”

A recomendação parte do Comité dos Direitos da Criança, órgão máximo a nível internacional para esta matéria, encarregado de garantir o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança, com base num relatório apresentado pela Fundação Franz Weber, no âmbito da sua campanha “Infância sem Violência”. A observação é destinada a Portugal, o único país com atividade taurina examinado este ano pelo Comité, mas segundo Vera Weber, vice-presidente da Fundação, “o mesmo princípio, aplica-se, desde hoje, a todos os outros Estados partes, pois a Convenção tem como objetivo oferecer os mesmos direitos a todos, e isto aplica-se a todas as crianças”. A Organização das Nações Unidas (ONU), através do Comité dos Direitos da Criança, um dos 9 órgãos de tratados em matéria de direitos humanos, pronunciou-se de forma expressa, contra a participação e assistência de crianças a eventos taurinos. Terra Livre nº 66 Fevereiro de 2014

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A Fundação Franz Weber apresentou, em março de 2013, um relatório onde chamava à atenção do Comité para a existência em Portugal de eventos taurinos, onde as crianças presenciam atos de violência, bem como escolas de tauromaquia, onde são incitadas a participar nos referidos atos, algo que viola as obrigações expressas na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, um tratado de aplicação obrigatória, que é, hoje em dia, a Convenção dos Direitos Humanos mais ratificada pelos poderes legislativos em todo o mundo.

A referida Convenção, reconhece o direito de todas as crianças (menores de 18 anos) a um nível de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, moral e social, assim como o dever do Estado de adotar medidas, que assegurem à criança essa proteção, questão que não é cumprida no âmbito da tauromaquia, tal como foi salientado por vários membros do Comité que decorreu nos dias 22 e 23 de janeiro em Genebra, entre eles, a vice-presidente Sara Oviedo: “a participação de crianças e adolescentes em atividades taurinas, constitui uma forte violação dos artigos da Convenção dos Direitos da Criança, sendo doutrinadas para uma ação violenta”. Hiranthi Wijemanne, outro membro do Comité, proveniente do Sri Lanka, expressou a sua preocupação por esta questão, argumentando que “Desde pequenas, as crianças são Terra Livre nº 66 Fevereiro de 2014

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expostas a uma forma de atividade violenta” que, além do mais, “apresenta riscos para a sua própria integridade física”. Jorge Cardona, membro espanhol do Comité, salientou que, apesar do organismo português para a proteção das crianças, ter declarado em 2009, que estas atividades supõem um risco para estas, atualmente continuam a ser autorizados menores de idade a participar em espetáculos taurinos, contrariando as obrigações da Convenção. Hoje, 5 de fevereiro, o Comité tornou pública a sua postura a respeito da participação e assistência de crianças a espetáculos taurinos “O Comité, com vista à eventual proibição da participação de crianças na tauromaquia, insta o Estado Parte a adotar as medidas legislativas e administrativas necessárias com o objetivo de proteger todas as crianças que participam em treinos e atuações de tauromaquia, assim como na qualidade de espectadores”. E, entre outras observações, acrescenta: “O Comité, insta também o Estado Parte, para que adote medidas de sensibilização sobre a violência física e mental, associada à tauromaquia e o seu impacto nas crianças”. “Nas escolas, nas aulas ou em eventos taurinos em que participam crianças, estas têm que ferir com violência os touros, com instrumentos cortantes, e agarra-los, sem qualquer proteção, até os dominar, sendo muitas vezes vítimas de acidentes”, afirma Sérgio Caetano, representante da Fundação Franz Weber em Portugal. “Por outro lado, as crianças que assistem a estes espetáculos, presenciam imagens de grande violência. Entendemos que agora, Portugal deve evitar que os menores de 18 anos frequentem aulas de tauromaquia e participem ou assistam a espetáculos taurinos” afirma o ativista. Segundo as declarações de Anna Mulà, advogada da Fundação Franz Weber, “o princípio do interesse superior da criança, que é a essência da Convenção, prevalece sobre o da diversidade cultural e sobre qualquer interesse legítimo que poderia entrar em conflito”. Leonardo Anselmi, Diretor da mesma Fundação para Iberoamérica, considera que “a ONU deu-nos mais um argumento para estarmos contra a tauromaquia e este tipo de espetáculos violentos que prejudicam, não só os animais, mas toda uma sociedade, incluindo crianças e adolescentes”. (Recebido por e-mail)

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A sociedade dA tortura

À semelhança do que se passa a nível nacional, a Região Autónoma dos Açores está a passar por uma crise que vitima sobretudo as pessoas das classes sociais que vivem dos rendimentos do seu trabalho.

A injusta distribuição da riqueza criada, associada ao esbanjamento de dinheiros públicos em projetos megalómanos e ao mau uso dos fundos comunitários associados ao desmantelamento das pequenas explorações agrícolas e ao desvio de mão-de-obra para a construção civil que entretanto colapsou fizeram que na região o desemprego seja assustador e que a fome, mais ou menos encoberta, comece a surgir um pouco por todo o território regional.

Como os culpados pela crise não são capazes de encontrar soluções, isto é, por si só nunca irão implementar medidas conducentes a uma maior justiça social, a solução tem sido encobrir o desemprego com falsos programas de inserção social, como o Recuperar, e implementar ações caritativas de distribuição de alimentos semelhantes às famosas sopas do Sidónio.

A nível ambiental e à falta de novos investimentos continua-se a apostar em projetos ruinosos como a construção de duas incineradoras, uma na ilha de São Miguel e outra Terra Livre nº 66 Fevereiro de 2014

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na ilha Terceira. A incineração de resíduos, para além dos problemas de saúde pública e da qualidade ambiental que levantam, traduzir-se-á num aumento de encargos para todos os cidadãos contribuintes já que os mesmos verão ser agravadas as taxas de resíduos.

Ruinosa para a imagem dos Açores é a promoção da tauromaquia por parte do Governo Regional dos Açores, de que é exemplo o apoio no valor de 60 mil euros a um recente Fórum da “Cultura” Tauromáquica que se realizou em Angra do Heroísmo e é a associação da tortura de bovinos, na Feira Taurina de São João, apoiada pela Câmara Municipal de Angra do Heroísmo em 125 mil euros, às Sanjoaninas.

Por último, a política seguida para com os animais de companhia é o reflexo do usar e deitar fora característico das sociedades de consumo. No caso em apreço, não entra na cabeça dos autarcas que é mais barato, a médio e a longo prazo, a adoção de uma política de esterilização e de fomento da adoção responsável em contraponto à de deixar procriar para matar a seguir.

A alteração do atual estado das coisas só será possível se as pessoas forem capazes de se organizar em torno de objetivos comuns, pondo de parte as pequenas questiúnculas que por vezes as dividem.

A criação de coletivos temáticos, claramente anticapitalistas e antiautoritários, mais ou menos duradouros, mais ou menos informais, poderá ser o primeiro passo. 9 de fevereiro de 2014 Mariano Soares

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Memória: Animais nossos amigos

O discurso da Srª. D. Alice Moderno, proferido na última reunião da S.M.P.A.

Damos a seguir o texto do discurso proferido na última reunião da Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, a que em outro lugar nos referimos, pela sua dedicada presidente, Srª. D. Alice Moderno. “Na defesa dos seres inferiores que habitam esta formosa ilha, nos encontramos mais uma vez reunidos, no intuito desinteressado de proteger aqueles que as leis Terra Livre nº 66 Fevereiro de 2014

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escassamente resguardam, e que sofrem muitas vezes estoicamente, sem um queixume, os maus tratos que a crueldade humana lhes inflige.

Resignados e submissos, os pobres animais servem, nos limites das suas forças , e muito além, frequentes vezes, os interesses dos seus donos, tolerando-lhes os caprichos, visto que a maior parte dos mesmos ignoram, ou procuram ignorar, que a um dever corresponde um direito, e, reciprocamente, e que aqueles que puxam os nossos carros e carroças, lavram os nossos campos, defendem, com risco da própria vida, as nossas propriedades, ou encantam, com o brilho da sua plumagem e a harmonia dos seus cantos, as nossas casas, adquirem, ipso facto, o irrecusável direito de serem alimentados durante a vida, cuidados nas suas doenças, e reformados, quando a idade os impossibilite de trabalhar.

Em todos os países cultos, a proteção e assistência aos animais constitui um dever cívico, a que ninguém se exime, e pelo cumprimento do qual as leis olham cuidadosamente, rigorosamente, mesmo.

Foi, é bem de ver, da generosa França, que irradiou a ideia, cuja propaganda nos reúne hoje, visto que foi sob proposta do general e homem público DE GRAMMONT, que foi votada em 1850 uma lei protetora dos animais, em virtude da qual todo o indivíduo que maltratasse um irracional era punido com uma multa de 5 a 10 francos. Em caso de reincidência, a punição estendia-se de 1 a 5 dias de prisão. Foi depois desta lei, conhecida elo nome do seu benemérito fundador, que se instituíram as Sociedades Protetoras dos Animais, algumas das quais existem já em Portugal, cumprindo salientar a ação da Sociedade Protetora dos Animais de Lisboa, com a qual mantemos as mais cordiais relações, e à qual deve esta modesta agremiação as mais relevantes provas de solidariedade.

Mas, em São Miguel, com sincera mágoa, tenho de confessá-lo, pouco se tem feito.

Organizou-se, é facto, uma Sociedade à qual aderiram e aderem alguns espíritos bem formados, e que algumas pessoas de coração se comprometeram – compromisso absolutamente moral – a coadjuvar. Terra Livre nº 66 Fevereiro de 2014

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E vem a propósito recordar aqui o nome de um ilustre micaelense, o sr. Agostinho Machado Bicudo Correa, que entre as instituições filantrópicas da sua terra, beneficiou também, com um pequeno legado, a Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, protetora que tanto merece ser protegida, visto que vive exclusivamente de esmolas e donativos.

Não devo também deixar de mencionar a Exma Comissão Administrativa da Junta Autónoma de Ponta Delgada, da presidência do Exmo Sr. Dr. Hermano da Silva Mota, que destinou que, no Posto Zootécnico de Ponta Delgada, fosse uma dependência afecta a curativos aos animais doentes, ou eliminação dos animais incuráveis.

Mas forçoso é confessá-lo, muito há ainda a fazer.

Pelas nossas ruas encontram-se frequentemente animais pertencentes à raça em que a humanidade encontra os seus melhores amigos, estropiados pelos automóveis e camionetes ou cobertos de lepra, pelo abandono a que têm sido votados pelos descaroáveis donos, os quais, permitam-me V. Exas esta afirmação, nos desacreditam perante os estrangeiros que nos visitam, muitos dos quais me têm procurado, protestando contra a crueldade indígena de que o seu lamentável estado é a prova mais frisante. Frequentes vezes, também, vemos animais pertencentes às raças cavalar, muar, bovina, caprina e lanígera, deslocando pesos relativamente incompatíveis com as suas forças, e com o seu estado esquelético, cobertos de feridas, dissimuladas, mais ou menos habilmente, por meio de tintas, ramos verdes e arreios.

Sabermos o sofrimento que os suplicia sem que ninguém intervenha em sua defesa, constitui para todos nós uma censura pungente perante a qual a nossa consciência deve sentir-se humilhada ou mesmo fustigada pelo remorso, tão doloroso, quase, como o látego que sobre as suas chagas impiedosamente cai e recai.

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Para que este estado de coisas, verdadeiramente bárbaro, desapareça da terra, é que a Sociedade Micaelense Protetora dos Animais vem mais uma vez solicitar a cooperação de V. Exas. e de todas as pessoas em cujo coração se abriga a fina flor da sensibilidade. Em todos os países da Europa, os mais luminosos espíritos – esses que engrandecem e ilustram a grande família humana, têm manifestado o seu carinho pelos animais. E é para desejar que aqueles que os não podem acompanhar, na gloriosa trajetória que os conduziu, conduz ou conduzirá à imortalidade (e em cujo número me incluo), os acompanhem ao menos na sua generosidade para com os seres inferiores, que trabalham como nós, sentem, até certo ponto como nós, e nos quais, segundo a frase de Lassaigne, “encontramos, de entre todos os nossos amigos, os mais humildes e os melhores…”

É em prol desta cruzada, que segundo um distinto escritor contemporâneo, membro da Academia Francesa, “constitui o mais encantador apostolado” que vamos iniciar um novo ano associativo, que oxalá resulte da máxima utilidade para aqueles que nos cumpre defender, por amor dos mesmos, e por honra nossa e desta terra açoriana.

Tenho dito.

(Correio dos Açores, nº3972, 30 de Janeiro de 1934, p.1)

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LIXOS E ENERGIA

Durante algum tempo, foi espalhada aos sete ventos a ideia de que a ilha Terceira teria um sistema dito de tratamento de resíduos sólidos urbanos ambientalmente mais seguro do que o que iria ser implementado em São Miguel. Com efeito, a opção para aquela ilha seria a pirólise, enquanto para a ilha do Arcanjo seria a incineração pura e dura.

Afinal, depois de rios de tinta e de resmas de páginas de jornais e relatórios científicos, as duas ilhas vão acabar por ter para tratamento de lixos a tecnologia que é a incineração ou melhor, “o amianto do século XXI”.

Mas, como tudo tem um princípio, importa, para memória futura, deixar escrito que a acumulação de lixos não biodegradáveis resulta da opção pelo consumismo e pela submissão aos interesses económicos exógenos e do desleixo com que sucessivos governantes e autarcas, na sua esmagadora maioria, foram tratando ou empurrando o problema para debaixo do tapete.

Aliado ao desleixo, está o facto de o caminho ser sempre tortuoso quando não é um beco sem saída quando se trata de ir das palavras aos atos.

A propósito, recorda-se a morosidade do processo da instalação do atual aterro sanitário que deverá ter dado cabo da cabeça do autarca de Ponta Delgada na altura, o Dr. Manuel Arruda, o facto de os autarcas de então, com a exceção do vereador Silva Melo, não fazerem o mínimo esforço para educar uma população que parecia estar a viver no reino da abundância e do usar e deitar fora.

A acrescer ao referido, recorda-se que em 2006, já lá vão quase oito anos, a associação ambientalista Quercus deu o seu apoio ao Sistema Integrado para a Gestão dos Resíduos dos Açores (SIGRA), o qual previa um investimento de 88 milhões de euros até 2011.

Segundo o governo regional o SIGRA previa a construção de Centros de Triagem e Processamento em todas as ilhas, um centro de valorização energética por biometanização na ilha Terceira e centros de valorização orgânica por compostagem nas restantes ilhas.

Ainda, segundo informação governamental, numa segunda fase estaria prevista a criação de centrais de valorização energética em São Miguel e na Terceira. Contudo, para sossegar alguns

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cidadãos menos cultos e alguns ecologistas não-alinhados e conservadores, que não acompanham os avanços da ciência e da tecnologia, o governo assegurava que não se tratava “de incineradoras, mas sim equipamentos de valorização energética através de gaseificação”.

Nunca embarcamos nos elogios ao dito cujo pois sempre desconfiamos que o referido sistema não passava de gato escondido com rabo de fora.

Hoje, para além de virmos a ter, em São Miguel, a única incineradora do mundo que vai colocar no lixo da história a famosa Lei de Lavoisier, vai ser criado mais um ponto turístico que ficará acoplado à Lagoa das Furnas e às suas fumarolas, uma central hídrica reversível.

Segundo os entendidos para além de produzir eletricidade a partir de eletricidade, o que não deixa de ser um desperdício, a central irá contribuir para acabar de uma vez por todas com a eutrofização da lagoa. Irá, ou as medidas são tantas e simultâneas que nunca saberemos qual a que teve efeitos positivos sobre o ecossistema?

O sucesso económico do projeto está garantido, pois enquanto houver um cidadão que consuma eletricidade e enquanto houver um monopólio de fornecimento da mesma o consumidor vai ser obrigado a pagar para tal. Neste caso, vai pagar duas vezes, isto é, paga pela matéria-prima que vai entregar na incineradora e depois volta a pagar pela eletricidade que vai ser produzida a partir da matéria-prima que já pagou.

Ainda a propósito de energia, convém lembrar que, em 2012, foi anunciada a construção de uma central hídrica reversível para a ilha Terceira cuja construção deveria avançar ainda este ano. Vamos aguardar, mas se os prazos forem cumpridos como têm sido os do projeto geotérmico da Terceira podemos esperar sentados. Por último, em 2011, com pompa e circunstância foi inaugurado, em São Miguel, o primeiro posto de abastecimento de carros elétricos dos Açores. Na ocasião, o Diretor Regional da Energia mencionou o facto da mobilidade elétrica “contribuir para a redução das importações e, portanto, “para reter rendimento na Região”. Quantos euros já se pouparam na importação de combustíveis após a abertura do referido posto de abastecimento? Teófilo Braga (Correio dos Açores, nº 3018, 12 de Fevereiro de 2014, p.13)

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