Terra livre 75 agosto de 2015 a

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TERRA LIVRE PARA A CRIAÇÃO DE UM COLECTIVO AÇORIANO DE ECOLOGIA SOCIAL

BOLETIM Nº 75

AGOSTO DE 2015

TAUROMAQUIA: EM ESPANHA ALGO ESTÁ A MUDAR CONSERVAÇÃO DA NATUREZA NOS AÇORES Não ao abate de aves protegidas PARA compreender o decrescimento


TAUROMAQUIA: EM ESPANHA ALGO ESTÁ A MUDAR

ESPANHA: CINCO CIDADES CANCELAM TOURADAS E OUTRAS SEGUIRÃO ESTE CAMINHO

Os municípios de Corunha, Gandía, Mancor de la Vall, Pinto e Azira decidiram

suspender

corridas

e

outros eventos ligados à tauromaquia

Galiza

previstos para esta época, mesmo que eles tivesse já sido contratualizados

semana passada suspender a Feira

há dias ou meses.

Segundo o site 20 Minutos, muitos destes eventos tinham sido acordados entre os empresários e as autarquias antes das eleições de Maio. No entanto,

O município da Corunha decidiu na

muitos

dos

programas

eleitorais previam o cancelamento destes eventos, pelo que os autarcas eleitos estão a cumprir as promessas.

Taurina,

apesar

assinado

com

um

do

pré-contrato

empresário.

O

presidente da câmara, Xulio Ferreiro (Marea Atlántica), prometeu durante a campanha eleitoral “não financiar a exploração de touros, nem outros espetáculos de maltrato animal”. A plataforma abolicionista Galicia, Mellor Sen Touradas aplaudiu a medida e destacou que esta decisão pode abrir o

Para além destes cinco municípios, outros dois ponderam seguir o mesmo caminho: Huesca e Alicante. A nova autarca

de

Madrid,

Manuela

debate

sobre

a

possibilidade

de

impulsionar uma iniciativa legislativa popular sobre a abolição das corridas de touros.

Carmena, também já avisou que não irá destinar “nem um euro público” para

eventos

que

exploram

Comunidade Valenciana

os

animais. Veja a opinião de várias regiões espanholas sobre o tema,

É a região onde mais tem aparecido novos municípios anti-touradas. Em Gandía – localidade da Comunidade Valenciana onde não foram realizadas

Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

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corridas de touros durante 24 anos, até 2012 – as coligações políticas que

Ilhas Baleares

actualmente governam a região, PSOE e Mes Gandía, decidiram eliminar as

Mancor del Vall (Maiorca) é, desde o

festividades taurinas sob os argumentos

dia 1 de Julho, o povo balear número 18

de que “Gandía é contra o maltrato

na lista dos declarados “municípios

animal” e porque “é uma despesa que

anti-touradas”,

não pode ser assumida actualmente”.

prefeito, de Mes per Mancor. A capital,

a

pedido

do

novo

Palma de Maiorca, poderá também Em Alzira, onde os chamados “bous al

integrar a lista, debate previsto para o

carrer” começaram a ser celebrados há

próximo dia 30 de Julho, o primeiro da

sete anos com o apoio do PP (Partido

legislatura.

Popular),

foram

pressionar as autoridades, a associação

novos

“Mallorca sin sangre” (Maiorca sem

também

tais

celebrações

canceladas

governantes

pelos

o

propósito

de

com

o

sangue) convocou uma manifestação

maioria

da

para o sábado dia 25 de Julho. A lista de

população não aprova estas práticas na

municípios anti-touradas na Espanha

localidade.

outros

abriga actualmente um total de 101

municípios valencianos, como L’Horta,

localidades. A primeira a encabeçar a

Xàtiva e Aldaia planejam realizar

lista foi Tossa del Mar (1989) e a última

referendos sobre a organização de

a

eventos que exploram touros. Em

Janeiro

argumento

(Compromís),

Com

de

que

Além

a

desses,

juntar-se

Ariany (Maiorca), de

em

2015.

Alicante, por sua vez, o tripartido PSOE, Guanyar e Compromís prevê

Aragão

retirar o apoio financeiro e ajudas públicas à praça de touros, e em 2017

O município de Huesca também está

acabarão

susceptível

definitivamente

festividades.

as

a

questionar

os

seus

cidadãos sobre a celebração destas festividades. O presidente da câmara, Luis Felipe (PSOE), disse recentemente que “não proibirá nada”, mas abrirá uma via de diálogo para que as pessoas decidam o modelo de festas que querem

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para a Feira de São Lourenço. “Se

Amanda Luis, do Pacma. Ela considera

houvesse o não como proposta para o

que o não financiamento destes eventos

espetáculo de touradas, seriam os

ainda não é o suficiente. “Se o que

cidadãos que decidiriam, pois haveria

queremos é construir uma sociedade

um referendo para isso”, garantiu.

mais justa e ética, os eventos taurinos não só devem deixar de ser subsidiados, como também devem ser proibidos. Ou

Comunidade de Madrid

a tortura deixa de ser humilhante Em

Madrid,

os

vencedores

do

quando

é

paga

com

o

dinheiro

município de Pinto, Ganemos Pinto,

privado?”, disse. A sua proposta passa

também decidiram deixar de financiar

por uma “proibição, gradual, mas

as largadas e corridas de touros. O

proibição¨, sem deixar de lado outros

último plenário municipal foi celebrado

“maus-tratos a animais como a caça e o

no final de Junho. Por sua vez, a

abandono

presidenta

da

câmara

de

de

greensavers.sapo.pt

no seu programa de governo, deixar de

via ANDA

as

touradas.

governamental

“Ahora

acrescenta.

Madrid,

Manuela Carmena, também planeava,

financiar

cães”,

O

grupo Madrid”

Fonte:

renunciou ao seu espaço na plateia da

http://abolicionistastauromaquiaportugal

Praça de Touros Las Ventas e não

.blogspot.pt/2015/07/espanha-cinco-

financiará a escola de toureiros. Somos

cidades-cancelam-

Alcalá optou por sair da comissão de

touradas.html?utm_source=feedburner

festividades para evitar ter que colocar

&utm_medium=email&utm_campaign=

touros

Feed:+AbolioDaTauromaquiaEmPortug

na

programação

habitual.

alENoMundo+(ABOLI%C3%87%C3% Os abolicionistas vêem estes tímidos

83O+da+tauromaquia+em+Portugal+e+

primeiros passos como um “avanço

no+Mundo)

positivo porque demonstra que os partidos

perceberam

que

uma

necessidade da população de acabar com o drama que vivem os animais nessas festividades”, nas palavras de Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

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CONSERVAÇÃO DA NATUREZA NOS AÇORES

Alguns apontamentos a propósito do Dia Nacional da Conservação da Natureza

conservação da natureza em Portugal e no mundo” e, por outro, “homenagear o movimento associativo de defesa do

“Ainda pensamos em termos de conquista. Ainda não amadurecemos o suficiente para pensar em nós como uma ínfima parte de um vasto e incrível universo. Mas o homem é parte da natureza e a sua guerra contra a natureza é inevitavelmente uma guerra contra si próprio”(Rachel

ambiente através de uma das suas mais prestigiadas instituições”, a LPN- Liga para a Proteção da Natureza que havia sido fundada a 28 de Julho de 1948, por iniciativa do Prof. Carlos Baeta Neves na sequência de um apelo do poeta Sebastião da Gama, surgido por ocasião da destruição de uma mata na Arrábida.

Carson)

O dia Nacional da Conservação da Natureza foi instituído, em 1998, através de uma Resolução do Conselho de Ministros, sendo primeiro-ministro

António

Manuel

de

Oliveira Guterres. O

meritório

trabalho

da

LPN

infelizmente não teve repercussões nos Açores pois, para além de alguns associados dispersos, nunca foi criado um núcleo daquela associação na região. Apenas se regista uma ténue ligação à LPN por parte do Centro de Jovens Naturalistas de Santa Maria Com a instituição do dia, pretendeu-se, por

criado

um lado, sensibilizar a sociedade civil para as

Dalberto Pombo que infelizmente não

questões ambientais, através da criação de

teve ninguém que desse continuidade ao

“um

seu trabalho voluntário em prol do

momento

anual

de

especial

e

dinamizado

pelo

senhor

reflexão sobre os problemas da Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

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património natural dos Açores, como a

com o tempo se caminharia para lá, pois

sua memória impunha.

acreditamos

que

são

possíveis

mudanças profundas se se optar por outro

modelo

de

produção

e

de

consumo. De qualquer modo, não pondo em causa os fundamentos da sociedade em que vivemos, sempre há a possibilidade

da

opção

por

um

capitalismo mais ou menos “amigo do No que concerne à Conservação da Natureza, alguns passos foram dados, nos Açores, desde a criação das primeiras áreas protegidas, nos últimos meses do Estado Novo. Já sob o chamado regime autonómico, criou-se uma

Rede

Regional

de

Áreas

Protegidas, criou-se uma Rede Regional de Ecotecas, deram-se alguns tímidos passos

no

combate

invasoras,

sobretudo

Protegidas

e

documentos

às

espécies

nas

Áreas

elaboraram-se

alguns

importantes

como

ambiente” e o que nos parece que está a acontecer é que se está a regredir de tal modo que já nem o discurso do desenvolvimento sustentável, que não põe em causa o modo de vida atual, é hoje uma bandeira dos atuais detentores do poder político. Com efeito, em vez das três vertentes, a ambiental, a económica e a social, parece que para eles só existe a económica e esta com os (maus) resultados que estão à vista de todos.

“Perspectivas para a sustentabilidade na Região

Autónoma

dos

Açores”,

prefaciado pelo Presidente do Governo Carlos Manuel do Vale César e com apresentação da Secretária Regional do Ambiente e do Mar, Ana Paula Pereira Marques. Não podemos escrever que antes da

Com a junção da pasta do ambiente à da

tomada de posse do atual governo dos

agricultura

Açores estava tudo perfeito, nem que

beneficiada e o ambiente de certeza

Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

esta

não

terá

sido

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perdeu. Com efeito, passados treze anos

Reserva da Lagoa do Fogo, na ilha de

continua uma miragem o reforço do

São Miguel.

“valor da componente ambiental na economia regional” defendido pelo presidente do governo regional dos Açores na I Reunião do Conselho Regional da Água, em 2003, e a conservação da natureza parece que deixou de ser prioridade, sendo dada primazia a atividades económicas que só subsistem porque são fortemente subsidiadas.

Outro indicador que mostra algum retrocesso foi a aprovação de um Plano Estratégico de Combate às Pragas nos Açores, onde se confunde pragas com espécies endémicas.

Se a situação continuar a involuir como tem acontecido nos últimos anos, estáA conservação da natureza e da

se a recuar para a época onde se

biodiversidade só serão possíveis se

entendia que a conservação da natureza

existir uma aposta séria na educação

era um empecilho ao progresso. Ou será

ambiental e esta ao longo dos anos tem

que sempre se pensou assim e os

sido relegada para um plano muito

discursos ambientalistas oficiais nunca

secundário.

passaram disso mesmo?

Uma das principais causas da perda da biodiversidade é a expansão de espécies

Teófilo Braga (Atlântico Express 27 de julho de 2015., p.3)

invasoras, nomeadamente nas Áreas Protegidas. É preocupante a situação atual que se carateriza pelo abandono das ações de erradicação que chegaram a ser implementadas, nomeadamente na Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

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NÃO AO ABATE DE AVES PROTEGIDAS

Regional da Agricultura e Ambiente, entre 15 de Junho e 15 de Setembro, nos campos da cultura da vinha das ilhas do Pico e da Terceira.

Esta autorização é grave por ser claramente europeia,

contrária que

confere

à

legislação a

máxima

protecção ao Pombo-torcaz-dos-Açores, proibindo expressamente o seu abate Abate de aves protegidas autorizado pelo Governo Regional é uma ameaça para a conservação da fauna

(Directiva Aves, Anexo I), e que proíbe igualmente o abate de qualquer espécie protegida

durante

o

seu

período

reprodutor, como é também aqui o caso Apesar da clara oposição manifestada

do Melro-preto e do Estorninho.

pelas associações ambientais regionais e mesmo nacionais, como a Quercus, e apesar também da existência de uma petição

na

internet

(http://peticaopublica.com/pview.aspx? pi=DefesaAvifaunaAcores)

que

reuniu mais de 800 assinaturas, o Governo Regional dos Açores insiste em autorizar o abate de três espécies de aves

protegidas

e

endémicas

do

arquipélago: o Pombo-torcaz (Columba palumbus (Turdus

azorica), merula

o

Melro-preto

azorensis)

e

o

Estorninho (Sturnus vulgaris granti). Este abate foi autorizado pela Secretaria

Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

Mas esta autorização é igualmente grave

por

não

existirem

estudos

científicos que sustentem os argumentos que o governo utiliza para permitir o abate, falsamente excepcional, destas espécies. Nem existe uma devida e necessária avaliação técnica no terreno sobre os danos que elas causam nas culturas da vinha. Pior ainda, esta situação arrasta-se já há três anos, pois foi agora divulgado que este é o terceiro ano em que são dadas autorizações para o abate destas três espécies, tendo sido já abatidas, por exemplo, várias dezenas

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de

pombos-torcazes

sem

haver

resultados conhecidos.

Entendemos assim que a única opção correcta é trabalhar com os agricultores para minimizar e compensar os danos

Recentemente foram divulgados, no

que possam sofrer nas suas culturas, não

entanto, alguns resultados preliminares

só pela acção das espécies nativas mas

dum estudo científico realizado sobre a

também por outras causas como a

biologia

expansão das espécies invasoras ou o

do

Pombo-torcaz

por

investigadores das universidades do

efeito das inclemências atmosféricas.

Porto e dos Açores que apontam para factos muito preocupantes. O sucesso

Tudo isto sem esquecer que as aves

reprodutivo da espécie revelou ser

endémicas

extremamente

(4%),

património de todos os açorianos sem

sobrevivendo apenas um individuo de

excepção, que têm um valor natural

cada 25 ovos que são postos. E isto

único e incomparável e que o seu

quando o número de ovos de cada

imprescindível papel nos ecossistemas

postura já é por si bastante baixo (1,76

insulares exige que as suas populações

ovos

tenham

por

baixo

ninho).

Foram

observadas

flutuações

populações,

apresentando

também

na

suas menores

dos

a

Açores

possibilidade

são

um

de

se

desenvolver naturalmente, com a sua própria

regulação

biológica,

sem

efectivos precisamente nos meses em

estarem sujeitas a ideias erradas como a

que é autorizado este abate, que ainda

de que devem ser corrigidas de alguma

por cima coincide plenamente com o

forma pelo homem em função de

período

diferentes interesses económicos.

reprodutor.

E

apesar

dos

escassos censos até agora realizados, a tendência da espécie continua a ser uma

Subscritores:

incógnita, pelo qual o Pombo-torcaz-

Amigos dos Açores

dos-Açores continua a estar incluído no

Amigos do Calhau

Livro Vermelho dos Vertebrados de

Quercus

Portugal.

Coletivo Açoriano de Ecologia Social Avifauna dos Açores

Nestas condições, a insistência do Governo Regional no abate destas três espécies parece de todo irresponsável. Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

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PARA COMPREENDER O DECRESCIMENTO

POR ALAN A. BOCCATO-FRANCO

sugerirem, diante de países em crise, a continuação das políticas de “austeridade”, que geram mais desemprego e desindustrialização. O artigo de Navarro gerou importante polêmica, na seção de comentários dos

Movimento não é saudosista, nem anticivilizatório. Mas sustenta: sem rever padrões de consumo e produção, “progresso” resultará em desigualdade

leitores. “Outras Palavras” convidou um dos polemistas, Alan BocatoFranco, a escrever uma réplica. O resultado foi melhor que a encomenda. Muito mais que polemizar com Navarro — com quem, aliás, parece compartilhar pontos de vista –, Alan traça, no texto a seguir, um importante panorama sobre a origem, sentido e história das teorias do

e devastação

“decrescimento”.

Por Alan Bocato-Franco Pouco frequente, ainda, no Brasil, um debate tomou corpo e expandiu-se rapidamente nos últimos anos, em paralelo ao desconforto com o capitalismo e seus impasses. Trata-se da ideia de “decrescimento”. “Outras Palavras” abordou-o em diversos textos, no passado — mas deu-lhe destaque especial em 10 de outubro. Umartigo do cientista político catalão Vicenç Navarro criticava “algumas teorias” do decrescimento. Em sua opinião, elas acabam reduzindo-se a um ambientalismo elitista e antissocial, ao Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

É algo de enorme atualidade, num país que precisa encontrar uma síntese entre duas posições igualmente indispensáveis. Por um lado, as críticas cada vez mais frequentes a símbolos antes intocáveis do “progresso” — por exemplo, o automóvel, as grandes obras viárias e a multiplicação de projetos de geração de energia, desacompanhada de uma análise séria sobre o consumo de eletricidade. Por outro, a ênfase na redistribuição de riqueza e na necessidade de assegurar condições de vida dignas à ampla maioria da

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população — o que exige, por exemplo,

pessoas,

muito mais infra-estrutura (portanto, obras…) de transporte público, saneamento ou urbanização das periferias. (A.M.)

distribuem renda e a diminuição das que alienam, fragilizam as relações sociais e geram exclusão. Mas os decrescentistas reconhecem que mesmo para as atividades econômicas qualitativamente diferenciadas os limites biofísicos do planeta persistem. Certamente a humanidade terá uma maior margem de manobra. Mas os limites ao crescimento econômico continuarão existindo.

O movimento pelo decrescimento tem sido alvo de crítica recorrentes e repetitivas. De modo geral, acusam-no de tratar o crescimento econômico apenas em termos quantitativos, sem

estreitam

seus

laços

e

considerar suas variantes qualitativas. Além disso (ou por isso), afirma-se que seus defensores são malthusianos, porque propõem que a população e o consumo global sejam estabilizados, se não reduzidos. Seriam os decrescentistas saudosistas de um estilo de vida pré-civilizatório, por não reconhecerem que o progresso tecnológico libertou a população

Há, no decrescimento, uma defesa explícita pelo aumento das atividades econômicas que fortalecem a saúde

A partir disto, a qualidade do crescimento econômico é relevante, mas secundário. O ponto principal é o paradigma do crescimento ilimitado. O decrescimento coloca em questão o modelo de sociedade, e as teorias de desenvolvimento que o sustentam, que tem o crescimento como condição fundamental para a “harmonia” socioeconômica ou, em outras palavras,

humana e a diminuição das que intoxicam a sociedade. Defende as atividades que causam impactos menos acentuados e a diminuição das que degradam o ambiente de modo acelerado. Defende ainda o aumento das que fortalecem a autonomia das

a ausência de crise. Para o decrescimento, uma sociedade organizada sob o paradigma do crescimento ilimitado está fadada ao fracasso, pois é impossível crescer indefinidamente seja qual for a qualidade desse crescimento.

humana dos limites biofísicos da natureza e nos apresentou o progresso? Este artigo tem como objetivo dialogar com essas críticas. A questão do crescimento

Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

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População, consumo e tecnologia

crescimento econômico ilimitado. Desta

O decrescimento reconhece como verdadeira a equação I=PATformulada por Ehrlich. Essa referência aparece de modo pontual e periférico em algumas publicações do decrescimento (1). Ela nada mais diz que o impacto ambiental (I) tem relação direta com o tamanho da população (P), sua afluência ou consumo (A) e a tecnologia (T). Com

forma, reconhece a tecnologia sem a ingenuidade de acreditar que seu avanço seja prova de que a sociedade não deve se libertar da “gaiola do consumismo” (2). De modo que somente numa sociedade fora do paradigma do crescimento, que tem como base o consumismo, a tecnologia ganha alguma eficácia para conciliar atividade econômica e capacidade de carga do

base nela, os decrescentistas aceitam a conclusão de que a redução de (A) por suficiência e sobriedade, bem como a de (T) pelo progresso tecnológico não determinam a redução indefinidamente do impacto sem que a população seja estabilizada ou diminua.

planeta. Já a variável população está muito pouco presente na literatura e nos debates sobre o decrescimento (3). A redução da população é categoricamente entendida como uma falsa solução (4). Quando se trata de uma eventual regulação da população, ela deve ser igualitária e democrática, em vez de violenta e desumana, conforme propunha Malthus. Os decrescentistas rejeitam a limitação do número de filhos e assumem uma transição demográfica por meio da emancipação das mulheres, da alfabetização e da democracia (5).

Dessas três variáveis, o decrescimento foca sua crítica no consumo. E por isso, seus partidários são acusados de

Diferentes raízes

negligenciarem os avanços tecnológicos. A verdade é que o decrescimento não nega que estratégias como reciclagem, diversificação da matriz energética e ecoeficiência sejam essenciais e devam ser estimuladas. Mas não as vê como soluções salvadoras do

raiz. Podem ser identificadas até seis fontes intelectuais do movimento (6) como: 1) ecológica; 2) pósdesenvolvimentista e anti-utilitarista (7); 3) sentido da vida e bem viver (8); 4) bioeconômica (9); 5) democrática (10) e; 6) justiça (11). Uma das

Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

O decrescimento não tem uma única

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influências intelectuais é Ivan Illich, que

prática médica em detrimento às outras

figura em duas dessas seis fontes (2 e 5). Uma das inspirações buscadas nesse autor está no processo de “coisificação” que consiste na transformação da percepção das necessidades reais em produtos manufaturados de massa. Ou seja, as necessidades reais das pessoas transformam-se na necessidade por produtos industriais: a sede se converte na necessidade de um refrigerante, a

formas de conhecimento e práticas de cuidado com a saúde. Isto implica em entender a saúde individual e coletiva a partir de múltiplas perspectivas. É ampliar o leque das possibilidades de cuidados, de modo que ao mesmo tempo aumenta-se a autonomia do indivíduo em cuidar de si, naquilo que for adequado. Em outros casos, defende-se acesso democrático ao

mobilidade se reduz à necessidade de se ter um carro e a saúde se transforma na necessidade de tomar remédios e suplementos comprados numa farmácia. Assim, a indústria passa a deter um monopólio radical sobre as necessidades humanas. A técnica industrial cria as necessidades fictícias para as pessoas, e sugere que apenas os bens e serviços produzidos por ela são capazes de

serviço especializado.

atender essas necessidades. Diferentes correntes Uma das críticas feitas pelo decrescimento e inspiradas em Illich recai sobre a hegemonia do sistema de saúde pautado numa abordagem industrial, individual, privatista e heteronômica. Isso não significa negar os avanços da medicina científica. Aponta-se, isto sim, a apropriação

Sobre o tema do decrescimento, existem dezenas de livros, centenas de artigos acadêmicos, muitos blogs, inúmeros coletivos de experimentação prática, grupos de discussão, de pesquisa e de formação em países dos hemisférios Norte e Sul (12), inclusive o Brasil (13)

perversa da medicina pela indústria, que transforma a primeira em mero produto destinado ao consumo. Ao denunciar este processo, o decrescimento pretende contribui para a democratização do acesso à medicina científica. Mais do que isto, denuncia a supremacia da

que se auto-reconhecem como parte do movimento pelo decrescimento. Todos à sua maneira e entendimento vêm contribuindo para a construção das múltiplas identidades e entendimentos sobre o decrescimento. Há inclusive uma sistematização (14), que não

Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

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abrange a totalidade dessa diversidade,

Mas o decrescimento abre perspectivas

que reconhece ao menos duas “vertentes” que se complementam: o decrescimento à francesa, que foca sua crítica à modernidade; e o decrescimento sustentável, mais alinhado com a disciplina Economia Ecológica. Assim, este é um movimento ainda em processo de formação e significação, sendo que qualquer crítica dirigida a ele baseada em apenas um

radicalmente novas, quando denuncia que, sem superar o paradigma do crescimento ilimitado, o crescimento das economias já desenvolvidas irá agravar as desigualdades globais. Além de explicitar que todas as teorias de desenvolvimento, sejam quais forem, tratam de como provocar mais crescimento econômico. Ademais, o decrescimento retoma o debate sobre a

único autor constitui um erro precário.

autonomia da sociedade com relação ao Estado e sobre a influência da razão contábil e instrumental das grandes burocracias públicas ou privadas. Assim, os decrescentistas rejeitam as falsas soluções que se focam apenas na gestão e na escolha dos tipos de recursos. Mais que isto, os decrescentistas buscam provocar mudanças de sentido, não só dos meios,

A novidade Ao reconhecer e divulgar suas fontes intelectuais, o decrescimento assume que o debate que provoca não é novo (15). Desta forma, o decrescimento ao mesmo tempo, incorpora e articula movimentos e autores que já empreenderam criticas à modernidade, ao desenvolvimentismo, ao consumismo, à democracia, à impossibilidade de generalização do padrão de consumo dos países e das classes ricas e às desigualdades ecológica e social.

Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

mas também dos fins (16). Em suma, a novidade está no entendimento de que sem modificar a essência do modelo socioeconômico e dos valores pessoais não haverá saída. 1. KERSCHNER, C. Economic de-growth vs. steady-state economy. Growth, Recession or Degrowth for Sustainability and Equity?, v. 18, n. 6, p. 544–551, abr. 2010; MARTINEZ-ALIER J. Environmental justice and economic degrowth: An alliance between two movements. Capitalism, Nature, Socialism, v. 23, n. 1, p. 51–73, 2012.

Página 14


SORMAN, A. H.; GIAMPIETRO, M. The

Ecological Sustainability and Social Equity.

energetic metabolism of societies and the

Paris: Research & Degrowth, Telecom Sud-

degrowth

Paris, 2008

paradigm:

analyzing

biophysical

constraints and realities. Degrowth: From Theory to Practice, v. 38, n. 0, p. 80–93, jan. 2013. XUE, J.; ARLER, F.; NÆSS, P. Is the degrowth debate

relevant

to

China?

Environment,

Development and Sustainability, v. 14, n. 1, p. 85–109, 2012. 2. JACKSON, T. Prosperity without growth: economics

for

a

finite

planet.

London:

Earthscan, 2009.

KALLIS, G.; KERSCHNER, C.; MARTINEZALIER, J. (EDS.). Special Section: The Economics

3.

A

questão

da

população,

sobretudo

of

Degrowth.

Ecological

Economics, v. 84, n. 0, p. 172–269, dez. 2012.

relacionada às ideias de Ehrlich, considerado por alguns como um autor malthusiano, não é

LATOUCHE,

S.

sequer citada em diversos livros sobre o

Decrescimento

Sereno.

decrescimento, em edições especiais de revistas

Martins Fontes, 2009.

acadêmicas

dedicadas

exclusivamente

Pequeno São

Tratado Paulo:

do

WMF

ao

decrescimento ele tampouco figura entre as

LATOUCHE,

raízes

decrecimiento ¿cómo salir del imaginario

intelectuais

do

movimento.

Para

S.

La

apuesta

por

el

verificação veja:

dominante? Barcelona: Icaria, 2009.

BAYON, D. et al. Decrecimiento : 10 preguntas

MARTINEZ-ALIER, J. et al. Sustainable de-

para

[Mataró]:

growth: Mapping the context, criticisms and

Ediciones de interveción cultural/El Viejo Topo,

future prospects of an emergent paradigm.

2011.

Ecological Economics, v. 69, n. 9, p. 1741–

comprenderlo

y

debatirlo.

1747, 2010. DEMARIA F et al. What is degrowth? from an movement.

TAIBO, C. En defensa del decrecimiento : sobre

Environmental Values, v. 22, n. 2, p. 191–215,

capitalismo, crisis y barbarie. Madrid: Los

2013.

Libros de la Catarata, 2009.

FLIPO, F. Conceptual roots of degrowth

4. Ver a subseção “Uma falsa solução: reduzir a

Proceedings

população” do livro Pequeno tratado do

activist

slogan

Conference

of on

to

the

a

social

First

Economic

International

De-Growth

Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

for

Página 15


decrescimento sereno, de Latouche (2009) –

Schumacher, Howard T. Odum e Elizabeth C.

citado acima.

Odum

5. Ver o capítulo “El decrecimiento, ¿es

10. Algumas referências desta fonte intelectual

malthusiano?” do livro Decrecimiento: 10

são: Ivan Illich, Jacques Ellul e Cornelius

preguntas para comprenderlo y debatirlo, de

Castoriadis.

Bayon e colaboradores (2011) – citado acima. 11. Uma das referências desta fonte intelectual é 6. DEMARIA e colaboradores (2013) – citado

Paul Aries

acima 12. Demaria e colaboradores (2013) – citado acima 13.

BOCCATO-FRANCO,

decrescimento

no

Brasil.

A.

A.

O

In: LÉNA,

P.;

NASCIMENTO, E. P. DO (Eds.). Enfrentando os limites do crescimento: sustentabilidade, decrescimento e prosperidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. p. 269–288.

7. Algumas referencias desta fonte intelectual são: os criticos do desenvolvimento das décadas

14. Martínez-Alier e colaboradores (2010) – citado acima

de 1970 e 1980, como Latouche, Arturo Escobar, Gilbert Rist, Helena Norberg-Hodge, Majid Rahnema, Wolfgang Sachs, Ashish Nandy, Shiv Visvanathan, Gustavo Esteva, François Partant, Bernard Charbonneau e Ivan Illich. Inclui também os críticos inspirados por Marcel Mauss como Alain Caillé e outros

15. Para verificação: Latouche (2009); Bayon e colaboradores

(2011)

e

Martínez-Alier

e

colaboradores (2010) – citados acima. 16. KALLIS, G. In defence of degrowth. Ecological Economics, v. 70, n. 5, p. 873–880, 2011.

membros do MAUSS. Além de outros autores como Karl Polanyi e Marshall Sahlins.

Fonte:

http://outraspalavras.net/posts/para-

compreender-o-decrescimento-sem8. Algumas referencias desta fonte intelectual

preconceitos/

são Henry David Thoreau, Pierre Rabhi, Mongeau, Schumacher, Kumarappa e Easterlin. 9. Georgescu-Roegen, Herman Daly, Donella Meadows,

Kenneth

Boulding,

E.

Terra Livre nº 75 Agosto de 2015

F.

Página 16


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